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SINAIS ISSN 1809-9815

ano 5 I setembro > dezembro | 2010

SOCIAIS
SESC I Serviço Social do Comércio

EDUCAÇÃO A M B IEN TAL NO LICENCIAM ENTO:


UMA A N Á LIS E CRÍTICA DE SUAS
CONTRADIÇÕES E PO TEN C IALID AD ES
Carlos Frederico B. Loureiro

A R ESP O N S A B ILID AD E SOC IAL E


AS ENTID AD ES CORPORATIVAS
Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e Bárbara de Souza Valle

A M ODERNIZAÇÃO DE SÃO PAULO EM DOIS


TEXTOS DE JO A O A N TÔ N IO (19 3 7-19 9 6 )
led a Magri

DISCURSOS SOBRE 0 H A IT I: 0 Q U E V GLOBO'


E SEUS LEITORES TIVERAM A DIZER SOBRE 0
TERREMOTO DE 2010
Larissa Morais

OBSERVAÇÕES SOBRE A CHAM ADA


' MORTE DO AUTOR'
Paulo Cesar Duque-Estrada
SINAIS v.5 n °1 4

SOCIAIS
setem bro > dezem bro | 201 0
SESC | Serviço Social do Comércio
Administração Nacional

ISSN 1809-9815
SINAIS SOCIAIS I RIO DE JANEIRO | v.5 n°14 | p. 1-155 | SETEMBRO > DEZEMBRO 2010
SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional

PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL


Antonio Oliveira Santos
DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL
Maron Emile Abi-Abib

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento
Mauro Lopez Rego

CONSELHO EDITORIAL
Álvaro de Melo Salmito
Luis Fernando de Mello Costa
Mauricio Blanco
Raimundo Vóssio Brígido Filho
S EC R ET Á R IO EX EC U T IV O

Mauro Lopez Rego


A S S ES S O R IA E D IT O R IA L
Andréa Reza

EDIÇÃO
Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral
Christiane Caetano
P R O JET O G R Á FIC O

Vinicius Borges
PR O D U Ç Ã O E D IT O R IA L

Duas Águas editoração e consultoria


R EV IS Ã O

Clarissa Penna
Elaine Bayma
R EV IS Ã O DO IN G LÊ S

João Mateus Cordeiro Pinto


D IA G R A M A Ç Ã O

Susan Johnson
PR O D U Ç Ã O G R Á FIC A
Celso Clapp

Sinais Sociais / SESC, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/


ago. 2006)- . - Rio de Janeiro : SESC,
Departamento Nacional, 2006 -

v.; 30 cm.

Quadrimestral.
ISSN 1809-9815
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade.
3. Brasil. I. SESC. Departamento Nacional.

As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.


As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.
S U M A R IO
APRESENTAÇÃ05
E D IT 0 R IA L7
SOBRE OS AUT0RES8
EDUCAÇÃO A M B IEN TAL NO LICENCIAM ENTO:
UMA A N Á LIS E CRÍTICA DE SUAS CONTRADIÇÕES
E P0TENC IALID AD ES10
Carlos Frederico B. Loureiro

A R ESPON SAB ILID AD E SOCIAL E


AS ENTIDADES CORPORATIVAS36
Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e Bárbara de Souza Valle

A M ODERNIZAÇÃO DE SÃO PAULO EM DOIS


TEXTOS DE JO A O A N TÔ N IO (19 3 7-19 9 6 )6 6
leda Magri

DISCURSOS SOBRE O H A IT I: O QUE


E SEUS LEITORES TIVERAM A DIZER SOBRE O
TERREMOTO DE 201098
Larissa Morais

OBSERVAÇÕES SOBRE A CHAM ADA


' MORTE DO AUTO R'130
Paulo Cesar Duque-Estrada
APRESENTAÇAO
A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um espa­
ço de debate sobre questões da contem poraneidade brasileira.
Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Plu­
ralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publica­
ção de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil hoje.
A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus
no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar.
Com o espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da
Sinais Sociais é garantida. O fundamento deste pressuposto está nas Diretri­
zes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade: "Valores
maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cida­
dania, o amor à liberdade e à dem ocracia como principais caminhos da bus­
ca do bem-estar social e coletivo."
Igualmente é respeitada a forma como os artigos são expostos - de acor­
do com os cânones das academ ias ou seguindo expressão mais heterodoxa,
sem ajustes aos padrões estabelecidos.
Importa para a revista Sinais Sociais artigos em que a fundam entação
teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das ideias
tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que
acrescentem , que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos lei­
tores ou lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo.
O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes,
de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões
como para segmentos do grande público interessados em se informar e se
qualificar para uma melhor compreensão do país.
Dissem inar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mun­
do acadêm ico, e, com isso, am pliar as bases sociais deste debate, é a inten­
ção do SESC com a revista Sinais Sociais.

Antonio Oliveira Santos


Presidente do Conselho Nacional
EDITORIAL
Assim como as conexões entre causa e consequência são objeto da curio­
sidade e da investigação humanas, para melhor compreensão de uma obra
frequentemente se lança mão do conhecimento a respeito do autor. Quanto
mais a obra desperta emoções e instiga a imaginação e o intelecto, mais se pro­
duzem indagações sobre a personalidade do responsável pela sua criação, seu
contexto histórico e seu percurso pessoal. Indagações que podem ser entendi­
das como uma extensão da fruição e da apreciação do trabalho de criação.
A presente edição da revista Sinais Sociais apresenta trabalhos que ressaltam
intencional ou circunstancialmente a figura do "autor". O texto de leda Magri
compara a produção literária de |oão Antonio, escritor que em dois de seus
livros toma por cenário a mesma capital, São Paulo, separada por intervalo de
duas décadas. O caminho pessoal e profissional do autor, por um lado, e as
mudanças vividas pela cidade, por outro, são elementos complementares para
a apreciação das obras e sua crítica literária. Sen/indo de contraponto, o artigo
de Paulo Cesar Duque-Estrada enfoca especificamente as linhas de pensamen­
to que defendem a chamada "morte do autor" - seja autor literário ou filosófi­
co - , e suas conexões com a crítica ao Humanismo e à ideia de subjetividade.
Larissa de Morais Ribeiro Mendes aborda a prática que a instantaneidade
dos atuais meios de comunicação tornou possível: a integração dos com en­
tários dos leitores às notícias dos jornais on-line. A celeridade do processo
conduz a uma nova realidade: os leitores do jornal criticam, complementam
e contextualizam as notícias e comentários anteriores, tornando-se também
eles, autores do jornal.
Os dois artigos seguintes situam a questão da autoria e da subjetividade no
plano institucional. O texto de Carlos Frederico Loureiro discorre sobre o Esta­
do brasileiro como elemento indutor da Educação Ambiental no licenciamento
de atividades produtivas, frente à legislação e ao ambiente institucional atual.
Aborda, portanto, os caminhos para que as organizações do ambiente econô­
mico possam se tornar sujeitos efetivos dos processos de educação ambiental.
Finalmente, Leticia Veloso, Eduardo R. Gomes e Bárbara de S. Valle en­
focam como as entidades corporativas nacionais vêm adotando práticas da
assim chamada responsabilidade social das empresas, alterando, como as pró­
prias empresas que representam, suas formas de atuação junto à sociedade.

Maron Emile Abi-Abib


Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC
S O B R E OS A U T O R E S
Bárbara de Souza Valle
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal
de Minas Gerais. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Flumi­
nense (2007), tem experiência na área de Ciência Política e Sociologia, atuando
principalmente nos temas ligados à responsabilidade social empresarial, cidadania
e participação. Atualmente é socióloga da Defensoria Pública da União.

Carlos Frederico B. Loureiro


Biólogo, mestre em Educação e doutor em Serviço Social. Professor do Programa
de Pós-Graduação em Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicosso-
ciologia de Comunidades e Ecologia Social, ambos da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental da Fundação Universidade Federal de Rio Grande. Coordenador do
Laboratório de Investigações em Educação, Ambiente e Sociedade (Lieas/FE/UFRJ
- grupo CNPq). Pesquisador do CNPq. Consultor ad hoc do CNPq e outras seis
fundações de amparo à pesquisa. Parecerista ad hoc de mais de uma dezena de
revistas científicas. Consultor de instituições públicas como: Instituto do Meio Am­
biente da Bahia (IMA), Instituto de Gestão das Aguas da Bahia, Ministério do Meio
Ambiente (MMA), Ministério da Educação e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
(Ibama). Autor de mais de uma centena de livros e artigos publicados em periódi­
cos nacionais e internacionais.

Eduardo R. Gomes

Doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago e professor de Ciência


Política da Universidade Federal Fluminense, na qual atua também no Mestrado
Profissionalizante em Sistemas de Gestão, na área de Responsabilidade Social. Tem
vários trabalhos publicados sobre este e outros temas, tendo sido professor visitan­
te no exterior, inclusive como Fulbright Scholar. Na atualidade, atua também como
consultor sobre Responsabilidade Social e Terceiro Setor.
leda Magri
Autora do livro de ficção Tinha uma coisa aqui (7 Letras, 2007), doutora em Lite­
ratura Brasileira pela UFRJ (2010). Tem graduação em Letras - Língua Portuguesa
e Literaturas pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002) e mestrado em
Teoria da Literatura pela mesma universidade (2005) com o tema Arte e público:
reflexões sobre a experiência estética. Faz parte do corpo editorial do Fórum de
Literatura Brasileira Contemporânea da UFRJ, é editora da Revista Anjos do Pica­
deiro e, juntamente com João Carlos Artigos, organizou o livro Teatro de Anônimo
- sentidos de uma experiência.

Larissa Morais

Jornalista e professora-assistente do Departamento de Comunicação Social da Uni­


versidade Federal Fluminense (UFF). E também aluna do curso de Doutorado em
Comunicação Social na mesma universidade com pesquisa sobre a participação do
leitor no jornalismo. Como jornalista, já exerceu diferentes cargos em veículos da
mídia impressa e digital, como Jornal do Brasil, O Globo, Globo On Line e Jornal
do Commercio.

Leticia Helena Medeiros Veloso


Professora do Departamento de Sociologia e Programas de Pós-Graduação em So­
ciologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Tem pós-doutorado em
Sociologia, doutorado e mestrado em Antropologia pela University of Chicago/EUA.
Foi professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing/RJ e pesquisadora
do Centro de Altos Estudos em Propaganda e Marketing, ESPM/SP (2007-2009).
E autora de livros e artigos nas áreas de Sociologia e Antropologia do Consumo,
Responsabilidade Social, Antropologia das Empresas e Sociologia Urbana.

Paulo Cesar Duque-Estrada


Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(1981), mestre em Filosofia pela mesma universidade (1987) e doutor em Filosofia
pelo Boston College (1993), sob orientação de Jacques Taminiaux. Fez pós-douto-
rado na New School for Social Research (1999-2000). Atualmente é professor do
Departamento de Filosofia e Coordenador Central de Pós-Graduação e Pesquisa
da PUC-Rio. Consultor da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Atua nas áreas de Fenomenologia, Hermenêutica
e Desconstrução, com ênfase nos temas: ética, linguagem, alteridade, ontologia e
diferença.
ED U C A Ç A O A M B I E N T A L
NO L IC E N C IA M E N T O :
U M A A N Á L I S E CRÍTICA
DE SUAS C O N T R A D IÇ Õ ES
E POTENCIALIDADES
Carlos Frederico B. Loureiro
O presente artigo tem por objetivo caracterizar a educação ambiental no licen­
ciamento, situando-a no âmbito dos avanços institucionais alcançados no Brasil
em relação à gestão ambiental pública. Para isso, se apresenta breve contex-
tualização do tema, indicando em seguida, de modo analítico, sua especificidade
teórico-metodológica e a base legal de sustentação da educação ambiental
enquanto condicionante de licença. Por fim, são indicados alguns critérios bási­
cos que definem o perfil do profissional capaz de atuar nesse campo novo, que
exige domínio dos processos pedagógicos, bom diálogo entre saberes e ciências
e conhecimento dos marcos regulatórios do licenciamento no país.
Palavras-chave: educação ambiental, licenciamento, administração pública

This article aims to characterize the environmental education in licensing, situ­


ating it within the institutional progress made in Brazil referring to environmen­
tal public administration. Therefore, a brief context of the theme is presented,
demonstrating afterwards, in an analytical mode, its specific theoretical-metho­
dological and legal basis in support of environmental education as a condition
for environmental licensing. Lastly, it suggests some basic criteria to define the
professional profile able to perform in this new field, which requires mastery
over the pedagogical processes, good dialogue between knowledge and sci­
ence, and an understanding o f national regulatory licensing frameworks.
Keywords: environmental education, licensing, public administration
INTRO DU ÇÃO

N os a p ro x im a d a m e n te q u a re n ta a n o s d e h istó ria da e d u c a ç ã o
a m b ie n ta l, o B rasil te v e d e sta c a d o p ro ta g o n ism o em seu p ro cesso
d e c o n so lid a ç ã o nos d ive rso s e sp a ço s p e d a g ó g ico s: e sc o la s, in stitu i­
çõ e s p ú b lica s, m o v im e n to s so c ia is, á re a s p ro te g id a s, grupo s a fe ta d o s
p o r e m p re e n d im e n to s lic e n c ia d o s , c o m u n id a d e s e tc . N essa tra je tó ­
ria, em nosso p aís, p rin c ip a lm e n te a p a rtir d o s an o s d e 1 9 9 0 , as
d iscu ssõ e s so b re p re m issa s e c a m in h o s p ara sua u n iv e rs a liz a ç ã o se
a v o lu m a ra m e g an h aram d e n sid a d e co m a fo rte a ç ã o d e gestores
p ú b lico s, p ro fe sso re s, a m b ie n ta lista s e e d u c a d o re s p o p u la re s ( L O U ­
R E IR O , 2 0 0 6 ). O re su ltad o m ais v isív e l d esse m o v im e n to foi a p u b li­
c a ç ã o d a P o lítica N a c io n a l d e E d u c a ç ã o A m b ie n ta l (P n e a ) - Lei F e ­
d e ra l n. 9 .7 9 5 / 1 9 9 9 - e seu d e c re to d e re g u la m e n ta ç ã o (D e c re to n.
4 .2 8 1 / 2 0 0 2 ), q u e a p re se n ta m d ire triz e s e p ressup o sto s v o lta d o s para
u m a p rá tica e d u c a tiv a p a rtic ip a tiv a , h is to ric iz a d a , d ia ló g ica e h u m a ­
nista e um a sp e cto o rg a n iza c io n a l d e g ran d e re le v â n c ia : o Ó rg ã o
G e sto r. Essa in stâ n cia in te rm in is te ria l in é d ita d e gestão p a ritá ria (M i­
n isté rio d a E d u c a ç ã o (M E C ) e M in isté rio d o M e io A m b ie n te (M M A ))
assegu ra d ire triz e s c o m u n s e um d iá lo g o e n tre a esfe ra a m b ie n ta l e
a d e e d u c a ç ã o , co m base na a ç ã o p o lític a u n ific a d a e no re sp e ito às
c o m p e tê n c ia s d e c a d a ó rg ão .
A m a te ria liz a çã o do Ó rg ão G e sto r da Pn ea em ju n h o d e 2 0 0 3 , a p o ia ­
d a em um c o n te xto d e a d o çã o de p o líticas de d e m o c ra tiza ç ã o da área
am b ie n ta l e d e tra n sve rsa liza çã o do te m a na e d u c a ç ã o fo rm a l, sin a li­
zo u para a co n so lid a çã o da e d u c a ç ã o a m b ie n ta l co m o p o lítica p ú b lica
nas três esferas d e p o d er (fe d e ra l, estadual e m u n ic ip a l). C o m isso, as
açõ e s d e fo rm a çã o , c o m u n ic a ç ã o , bem co m o a in stitu c io n a liza ç ã o de
fó ru n s de p a rticip a çã o , se d iv e rsifica ra m e a lc a n ç a ra m p ra tica m e n te
todos os esp aço s possíveis d e a tu a ção dos agentes so ciais p ú b lico s e
p rivad o s - sem e n tra r aq u i no m é rito da q u a lid a d e ou e fe tiv id a d e das
m esm as, ap en as d e stacan d o o fato h istó rico e sua va lid a d e para o q ue
interessa no esco p o do artigo.
Para ilustrar, p o d em o s afirm ar, co m base em p esq u isa n acio n a l e
em d ad o s do C e n so Esco lar (L O U R E IR O e C O S S ÍO , 2 0 0 7 ; T R A JB E R
e M E N D O N Ç A , 2 0 0 6 ; L O U R E IR O , A M O R IM , A Z E V E D O e C O S S ÍO ,
2 0 0 6 ), q u e no an o d e 2 0 0 6 m ais d e 9 6 % das esco las d e e n sin o funda-
m ental no B rasil, em um u n iverso a p ro x im a d o d e 1 8 6 m il in stitu içõ es,
re a liza v a m e d u c a ç ã o am b ie n ta l d e algum a fo rm a (n o rm a lm e n te por
in te rm é d io d e um a ou m ais d e u m a destas o p ç õ e s: p ro jeto s, in serção
tran sversal, p rojeto p o lítico pedagógico ou d isc ip lin a ). A a rtic u la çã o
la tin o -a m e rica n a e co m os países lu sófonos se c o n c re tiz o u , re fo rça n ­
do um e n fo q u e so cio a m b ie n ta l da e d u c a ç ã o a m b ie n ta l nestes países
(B R A S IL , 2 0 0 7 ).
N o q u e se refere ao processo de gestão a m b ie n ta l, a p re se n ça d a
e d u c a ç ã o am b ie n ta l ganhou n o to rie d a d e e re co n h e c im e n to q u an to à
sua im p o rtâ n cia estratég ica p ara a so c ia liza ç ã o de in fo rm açõ e s e c o ­
n h e c im e n to s, a a u to n o m ia dos grupos so cia is, a p a rticip a çã o p o p u la r
e a d e m o c ra tiza ç ã o d as d e cisõ e s. O d e staq u e se d eu em e sp e cia l nas
a tivid a d e s ju n to a u n id ad e s d e co n se rv a ç ã o (L O U R E IR O , A Z A Z IE L e
F R A N C A , 2 0 0 7 ; L O U R E IR O , 2 0 0 4 ), m ais g e n e ric a m e n te ju n to a áreas
protegidas (leg itim ad as co m a p u b lica ç ã o d o Sistem a N a cio n a l de U n i­
d ad es d e C o n se rv a ç ã o (Sn uc) - Lei 9 .9 8 5 / 2 0 0 0 - e do Pro gram a Estra­
tégico N a cio n a l d e Á re a s Protegidas (P n ap ) - D e c re to 5 .7 5 8 / 2 0 0 6 ), e
no lice n cia m e n to (A N E L L O , 2 0 0 6 ; U E M A , 2 0 0 6 ; Q U IN T A S , G O M E S
e U E M A , 2 0 0 6 ). C a b e lem b ra r q u e o lice n cia m e n to é o in stru m en to
por e x c e lê n c ia d e c o m a n d o e co n tro le q u e o Estado possui para regu­
lar as ativid ad e s p ro d u tivas e e c o n ô m ica s em geral, e sta b e le ce n d o os
lim ites e n orm as na re la çã o p ú b lico -p riv a d o . A e d u c a ç ã o a m b ie n ta l,
nesse esco p o e e n q u a n to c o n d ic io n a n te d e lic e n ç a , torna-se um m eio
de e x e rc íc io d e p a rticip a çã o e c o n tro le so cial em ca d a e m p re e n d i­
m ento lic e n c ia d o .
D e v e m o s ressaltar q u e esse d ad o d e re a lid a d e se c o n c re tizo u m u i­
to por m e io d o a c ú m u lo o b tid o co m as açõ e s p ro m o vid a s, ao longo
da d é ca d a d e 1 9 9 0 até o an o d e 2 0 0 7 , p ela C o o rd e n a ç ã o G e ra l de
E d u c a ç ã o A m b ie n ta l do Ib am a (C g e am ), fo rm u la d o ra dos p re ssu p o s­
tos te ó rico s e m eto d oló g ico s d a e d u c a ç ã o no pro cesso d e gestão a m ­
b iental (O L IV E IR A , 2 0 0 3 ; Q U IN T A S , 2 0 0 0 e 2 0 0 4 ), q u e se rve m de
re fe rê n c ia para as e x p e riê n c ia s e p ara a proposta te ó rica a p re se n ta d a
neste artigo.
M as nesse c e n á rio ra p id a m e n te a p re se n ta d o , q ual é a e s p e c ific id a ­
de d a e d u c a ç ã o am b ie n ta l no lice n cia m e n to ? O q u e há d e novo na
d iscussão aberta em vá rio s estados do país q u e a to rn a tão estratégica
para a gestão am b ie n tal?
A resposta pode ser d ad a de um m o d o bem d ire to . A e d u c a ç ã o a m ­
biental no lic e n c ia m e n to atua fu n d a m e n ta lm e n te na gestão dos c o n fli­
tos d e uso e d istrib u tivo s o casio n ad o s por um e m p re e n d im e n to , o b je ­
tivan d o g arantir: (1) a a p ro p ria çã o p ú b lica d e in fo rm a çõ e s p e rtin e n te s;
(2) a p ro d u ção de c o n h e c im e n to s q u e p erm itam o p o sicio n a m e n to
respon sável e q u a lific a d o dos agentes so ciais e n v o lv id o s; (3) a a m p la
p a rticip a çã o e m o b iliza ç ã o dos grupos afetad o s em todas as etapas do
lic e n c ia m e n to e nas in stân cias p ú b lica s d e cisó ria s; (4) o ap o io a m o v i­
m entos d e reversão dos processos assim étrico s no uso e na a p ro p ria çã o
da n atu re za , tan to em term o s m a te ria is q u an to sim b ó lico s.
O novo está, po rtan to , na a d o çã o d e u m a p e rsp e ctiva d e e d u c a ç ã o
am b ie n ta l co m forte im p acto nas p o líticas p ú b lica s e nas re laçõ e s de
p o d er e n tre os grupos so ciais q u e se situ am em te rritó rio s d e fin id o s
por processos p ro d u tivo s lic e n c ia d o s. O q u e exig e projetos para além
da re a liza ç ã o d e açõ e s p o n tu ais e de processos e d u ca tiv o s q u e não
ab o rd am os sen tid o s do e m p re e n d im e n to , fo co m o tiva d o r d a a ç ã o .

Quando pensamos em educação no processo de gestão ambiental es­


tamos desejando o controle social na elaboração e execução de po­
líticas públicas, por meio da participação permanente dos cidadãos,
principalmente de forma coletiva, na gestão do uso dos recursos am­
bientais e nas decisões que afetam a qualidade do meio ambiente
(Q UIN TAS, 2002, p. 9).

A ssu m ir esse pressuposto sig n ifica a d m itir q u e a gestão am b ie n ta l


não se esgota em suas d im e n sõ e s a d m in istra tiva s e té cn ic a s, m as é e s­
tru tu rad a e p e rm e a d a por re laçõ e s p o líticas e e c o n ô m ica s q u e situam
as p ró p rias e sco lh as té cn ic a s. A ssim se n d o ,

a gestão ambiental é um processo de mediação de interesses e confli­


tos entre atores sociais que agem sobre o meio físico-natural e cons­
truído. Esse processo de mediação define e redefine, continuamente,
o modo como os diferentes atores sociais, por meio de suas práticas,
alteram a qualidade do meio ambiente, e, também, como se distri­
buem os custos e os benefícios decorrentes da ação desses agentes
(Q UIN TAS, 2002, p. 14).
Posto isso, a a rg u m en tação q u e sustenta o q u e foi dito de m o d o
in tro d u tó rio pode ser d e se n vo lvid a por d ois c a m in h o s. U m p rim e iro ,
q u e e n fa tiza os asp ectos n o rm ativo s e legais d a pro p o sta, q u e p o d em
ser ap ro p riad o s p elos órgãos a m b ie n ta is na d e fin iç ã o de suas p o líticas
in stitu cio n ais e v a lid a ç ã o ju ríd ic a . H á h o je no país, in d isc u tiv e lm e n ­
te, um c o n ju n to d e in stru m en to s q u e co rro b o ra m a p e rtin ê n cia d a
e d u c a ç ã o am b ie n tal no lic e n c ia m e n to sob u m a p e rsp e ctiva c rític a e
so c io a m b ie n ta l. O o u tro c a m in h o refere-se ao d e ta lh a m e n to te ó rico
das p rem issas dos pró p rio s d o cu m e n to s legais, q u e são re sp eitad as nas
e x p e riê n c ia s p io n eiras da C g e a m /lb a m a . Esse asp ecto m e re c e a te n ­
çã o , u m a v e z q u e , a p e sa r d e serem a m p la m e n te m e n c io n a d o s, nem
sem p re há cla re za sob re c o n ce ito s (L O U R E IR O , 2 0 0 6 b ) q u e "m a rc a m "
a e d u c a ç ã o am b ie n tal no Brasil (e m a n c ip a ç ã o , co n tro le so cia l, tra n s­
fo rm a çã o so c ia l, p a rticip a çã o , ju stiça a m b ie n ta l, p ro b le m a tiza çã o da
re alid a d e so c io a m b ie n ta l, e n tre outros).
C o m isso, o o b je tivo do artigo é tratar os d ois asp ecto s visa n d o fo r­
n e c e r as bases gerais q u e d e fin e m a e d u c a ç ã o a m b ie n ta l no processo
de lice n cia m e n to a m b ie n ta l. C a b e d e stacar q u e sua p e rtin ê n cia está
não só em term o s do c o n h e c im e n to p ro d u zid o em u m a área p o u co
estu d ad a e p e sq u isad a, m as tam b ém no e sc la re cim e n to das p rem issas
gerais q u e o rie n ta m u m a m e d id a m itigad o ra o b rig ató ria e q u e d e ve
ser c u m p rid a pelo c o n ju n to de e m p re e n d im e n to s no B rasil.

1 0 Q U E N Ã O É E D U C A Ç Ã O A M B I E N T A L NO L I C E N C I A M E N T O ?

Essa é u m a q u estão q u e p o d e ria ser e n te n d id a co m o m a lco lo ca d a ,


u m a v e z q u e tem o s u m a m u ltip lic id a d e d e fo rm as legítim as de p en sar
e fa ze r e d u c a ç ã o a m b ie n ta l (C A R V A L H O , 2 0 0 6 ). T o d a via , esse fato,
q u e por sinal não p o d eria ser d ife re n te , já q u e tod o c a m p o p o lítico
e de c o n h e c im e n to se d e fin e por m e io d e c o n tra d içõ e s e p o siçõ es
d iverg en tes e p o r v e z e s an tag ô n icas, não im p lica c a ir em um e n fo q u e
relativista d e a c e ita ç ã o sim p le s e a c rític a d e q u a lq u e r m o d o d e fa ze r
e d u c a ç ã o a m b ie n ta l.
A ssu m ir e in stitu ir u m a p o sição d e m o c ra tica m e n te d iscu tid a e legi­
tim a d a , q u e se a p resen ta co m o vá lid a para a te n d e r às fin a lid a d e s da
gestão p ú b lica , segundo crité rio s te ó rico s, m e to d o ló g ico s, p o lítico s e
legais, é in d isp en sável para a o p e ra c io n a liz a ç ã o dos in stru m en to s da
gestão a m b ie n ta l. Ter u m a po sição não é sin ô n im o de estar fe c h a d o ao
d iálo g o , ser a u to ssu ficie n te . E sim te r a c o m p re e n sã o de q u e é preciso
co n stru ir no diálog o e no m o vim e n to dos a c o n te cim e n to s a c o e rê n ­
cia te ó rica e p rática q u e p o ssib ilite a m a te ria liz a çã o d e u m a p o lítica
p ú b lica e seus in stru m en to s, a partir d e d e te rm in a d a c o n c e p ç ã o de
so c ie d a d e , n atu re za e valo re s é tico s q u e b a liza m a c o n d u ta h u m an a
sob certas c o n d iç õ e s h istó ricas.
O lic e n c ia m e n to é um pro cesso in stitu cio n a liza d o e atrib uto e x c lu ­
sivo d o Estado q u e bu sca g arantir certo s pad rõ es d e d e se n vo lvim e n to
h u m a n o , social e de p ro teção e p re se rva çã o a m b ie n ta l, cu jo s crité rio s
para e x e c u ç ã o são d e fin id o s seg und o m o tiva çõ e s p o líticas e e c o n ô ­
m icas e p arâm etro s o riu n d o s d o c o n h e c im e n to c ie n tífic o . Isso d eno ta
e n te n d e r q u e o e sp e c ífic o d a e d u c a ç ã o a m b ie n ta l no lice n cia m e n to
se in sere nesse m o vim e n to visa n d o d a r respostas efetivas aos d esafio s
c o n te m p o râ n e o s.
A so c ie d a d e não está d e sco la d a das q uestõ es d o Estado e se d e fin e
nos tem p o s m o d ern o s d e fo rm a desigual e d ive rsa . N ela c o n v iv e m e
d isp u tam agentes so ciais, em suas fo rm as d e se o rganizar, c ria r id e n ­
tid ad es e in te rfe rir p o litica m e n te . C o n se q u e n te m e n te , o m o d o de
a p ro p ria çã o dos recu rsos n aturais e n vo lv e interesses e n e ce ssid ad e s
q u e d e te rm in a m a q u a lid a d e a m b ie n ta l resultan te e a d istrib u içã o so ­
cial dos custos e b e n e fício s. Portanto, q u a lq u e r ato de o rd e n a ç ã o do
a m b ie n te tam b é m co n tra ria interesses e , em m uito s caso s, põe em
risco as c o n d iç õ e s m ateriais e sim b ó lica s q u e d e ve m g arantir a satisfa­
çã o das n e ce ssid ad e s básicas d e grupos so ciais já vu ln e rá v e is. A ssim , o
processo de a p ro p ria çã o so cial d a n a tu re za , alé m d e não ser n eutro ,
tam b ém é a ssim é trico . D esse m o d o , c a b e ao Estado, por m e io d e seus
in stru m en to s d a gestão am b ie n ta l p ú b lica , tal c o m o o lic e n c ia m e n to ,
fo m e n ta r c o n d içõ e s para tran sfo rm ar o e sp a ço "té c n ic o " da gestão em
esp a ço p ú b lic o , c ria n d o m eio s p ara a e fe tiva p a rticip a çã o igualitária
dos d ife re n te s atores so c ia is, p a rticu la rm e n te os q u e h isto rica m e n te
fo ram postos na c o n d içã o d e o p ressão c u ltu ra l, e x p ro p ria ç ã o m aterial
e e xc lu sã o d a tom ad a d e d e cisã o .
Tais d esafio s e a rc a b o u ço legal e xiste n te s, no atual m o m e n to , re ­
m etem à n e ce ssid ad e d e u m a p rática e d u c a tiv a a m b ie n ta l q u e seja
c a p a z d e tra b a lh a r co m as m ú ltip las d im e n sõ e s das p ráticas so ciais
q u e o riginam o m o d o co m o nos re la cio n a m o s na n a tu re za . C a so con-
trá rio , u m a a ção p la n e ja d a não co n se g u irá a b o rd a r satisfato riam e n te
os efeito s d e um e m p re e n d im e n to por d e sc o n h e c e r os n exo s e n tre o
fu n d a m e n to e c o n ô m ic o (co m o se p ro d u z, q u e m p ro d u z e para q u e ,
q u em se a p ro p ria e se b e n e fic ia d e q u ê , q u e m re ce b e o ô n u s d a a tiv i­
d a d e , q u a is são os custos en erg ético s e eco ló g ico s e tc .), as cu ltu ra s dos
grupos so ciais, a d in â m ic a e co ló g ica e os pressupostos pedagógicos da
gestão am b ie n ta l.
Em term o s e sp e cífico s dos pressupostos ped agó g ico s, d ia n te dessa
e xig ê n c ia , o c a m in h o p ara a re a liza çã o da e d u c a ç ã o a m b ie n ta l no
lic e n c ia m e n to passa n e ce ssa ria m e n te pela o rg a n iza çã o de esp aço s e
m o m en to s d e tro ca d e sab eres, p ro d u çã o d e c o n h e c im e n to s, h a b i­
lid ad es e atitu d es q u e g erem a a u to n o m ia dos su jeito s p articip an te s
em suas c a p a c id a d e s d e e sc o lh e r e a tu a r tra n sfo rm an d o as co n d içõ e s
so cio a m b ie n ta is d e seus territó rio s.
Logo, n ão c a b e p e n sa r a e d u c a ç ã o a m b ie n ta l c o m o m e ra fo rm a ­
lid a d e d isso c ia d a d os d e m a is e stu d o s e p ro je to s p re visto s nas m e d i­
d as c o m p e n sa tó ria s ou in stru m e n to re p a ssad o r d e c o n h e c im e n to s
c ie n tífic o s . Su as c o n c e p ç ã o e e x e c u ç ã o p re cisa m a rtic u la r o rg a n i­
c a m e n te as a ç õ e s, g ara n tir a a p ro p ria ç ã o dos e stu d o s té c n ic o s p elo s
ag en tes e n v o lv id o s e tra n s fo rm a r os e sp a ço s p ú b lico s d e d iscu ssã o
dos e n c a m in h a m e n to s em e sp a ço s d e a p re n d iz a g e m e d e d e cisã o
d e m o c rá tic a .
U m a p ro p o sição co m o essa não se pauta em in g e n u id a d e p o lítica
ou ilusões so b re os a lc a n c e s d o ato e d u c a tiv o . N ão p o d e m o s re p etir
e q u ív o co s do passado e a c re d ita r q u e à e d u c a ç ã o basta boa v o n ta ­
d e das pessoas (e d u ca n d o s e e d u ca d o re s) para q u e o co rra e a ltere
u m a re alid a d e e xiste n te , ou a c h a r q u e por si m esm a é su fic ie n te para
co n stru ir um "m u n d o n o v o ". Já m a n ife stam o s em o utras o p o rtu n id a ­
d es q u e , co m o bem a firm a Paulo Fre ire , não há m u d a n ça su b stan tiva
da re alid a d e sem e d u c a ç ã o , m as esta não a c o n te ce e n em se c o n sti­
tuiu no "v a z io ", fora das re laçõ e s so cia is (L O U R E IR O , L A Y R A R G U E S e
C A S T R O , 2 0 0 7 ). S ab er estru tu rar e e x e c u ta r um pro jeto d e e d u c a çã o
a m b ie n ta l, bem co m o o seu pro cesso d e m o n ito ra m e n to e a v a lia ç ã o ,
para g arantir q u e se c u m p ra m fin a lid a d e s e m etas e sta b e le cid a s, signi­
fica sab er tam b é m em q ual c o n te xto p o lítico -in stitu cio n a l, e c o n ô m ic o
e cu ltu ral isso está se d an d o e co m o um pro jeto no âm b ito d a gestão
am b ie n ta l se m o v im e n ta e, até m e sm o , po d e alte ra r tais c o n d içõ e s.
En tão , o q u e não c a b e em e d u c a ç ã o am b ie n ta l no p ro cesso d e li­
ce n c ia m e n to ?
D isc o rre re m o s so b re alguns pontos co m base em nossa e x p e riê n c ia
e na boa siste m a tiza çã o feita por U e m a (2 0 0 6 ).
Fre q u e n te m e n te o b servam o s u m a a sso cia çã o d ire ta e n tre pro jeto
d e e d u c a ç ã o am b ie n ta l e re a liza ç ã o d e curso s d e c a p a cita ç ã o p o n ­
tuais e d e cu rta d u ra ç ã o , sem u m a a rtic u la çã o co m as d e m a is açõ e s
no âm b ito d o lic e n c ia m e n to e co m p o líticas p ú b lica s im p la n ta d a s.
V e rifica -se , ig u alm en te, nesse e sco p o , a u sê n c ia d e c o n c e p ç ã o p e d a ­
gógica q u e assegure u n id a d e e n tre os cu rso s, m ó d u lo s ou q u a isq u e r
o utros m o m en to s d e fo rm a çã o previstos. A in stau ração d e a tivid a d e s
e d u ca tiv a s d e sco lad as d a re a lid a d e so cio a m b ie n ta l em q u e se insere
o e m p re e n d im e n to m o tiva d o r d o lic e n c ia m e n to agrava a situ a çã o . E
re co rre n te no Brasil a e x e c u ç ã o d e curso s e e ve n to s sem um p révio
c o n h e c im e n to e d iag n ó stico d a d in â m ic a so cio a m b ie n ta l do te rritó ­
rio, dos co n flito s e fo rm as de o rg a n iza çã o so cial e xiste n te s, dos m o ­
dos d e p ro d u ção e garantia d e so b re v iv ê n cia dos grupos so cia is, das
cu ltu ras e sab eres q u e d e fin e m re la çõ e s e sen tid o s d ad o s à n a tu re ­
z a . O s co n te ú d o s são estru tu rad o s sem co n sid e ra r essas in fo rm açõ e s
e o diálog o co m q u em é o su je ito do pro cesso e d u c a tiv o , h ave n d o
casos id e n tifica d o s d e e m p re sa s d e co n su lto ria ou O N G s co n tratad as
q u e re p ete m os m esm o s curso s em c e n á rio s ab so lu ta m e n te d istinto s,
0 q u e e v id e n c ia falta d e co m p ro m isso co m os grupos m ais v u ln e rá v e is
so c io a m b ie n ta lm e n te 1 (L O U R E IR O e A Z A Z IE L , 2 0 0 6 ). O resultad o é
e v id e n te : c o n h e c im e n to s in ó cu o s para q u e m vive em áre as atingidas
pelos e m p re e n d im e n to s.
H á in c id ê n c ia tam b ém d e casos de d e sc o n h e cim e n to do e x e c u to r se
há outros projetos de e d u c a ç ã o a m b ie n ta l na região e se m u n icíp io (s)
e estado(s) (d e p e n d e n d o d o porte do e m p re e n d im e n to ) a p resen tam

1 Em termos conceituais, cabe esclarecer que, por estado de vulnerabilida­


de socioambiental entendemos a situação de grupos específicos que se en­
contram: (1) em maior grau de dependência direta dos recursos naturais para
produzir, trabalhar e melhorar as condições objetivas de vida; (2) excluídos do
acesso aos bens públicos socialmente produzidos; e (3) normalmente ausentes
de participação legítima em processos decisórios no que se refere à defini­
ção de políticas públicas que interferem na qualidade do ambiente em que
se vive.
p o líticas e sp e cífica s em e x e c u ç ã o , p ro p icia n d o so b re p o siçõ e s q u e le ­
vam à p erd a d e o p o rtu n id a d e de se o tim iza r re cu rso s e te m p o co m
resultad os c o n cre to s.
São, em síntese, q u an d o org anizad as com essas características, a tivi­
d ad es cu m p rid as por fo rm alid ad e e força d e e xig ê n cia legal, q u e , fruto
desses e q u ívo co s, geram d esp e rd ício de recursos ap licad o s e desrespeito
às prem issas e d iretrizes d a e d u ca çã o a m b ie n ta l, à situação dos grupos
afetados e à n ecessid ade p rem en te de m u d an ça da re alid ad e socioam -
biental frente à grave crise civiliza tó ria em q u e estam os inseridos.
N o q u e se refere ao te o r dos program as d e c a p a cita ç ã o ou tre in a ­
m en to , é co m u m a ên fase na in fo rm açã o e na transm issão d e c o n ­
teú d o s c ie n tífic o s o riu n d o s da eco lo g ia e c iê n c ia s n atu rais sem situar
so c ia lm e n te esses im p o rtan tes c o n ce ito s para a co m p re e n sã o dos p ro ­
cessos m ateriais e en erg ético s, dos eco ssiste m as e dos m o d o s de vid a
d e o utras e sp é cie s. Isso é um e rro , pois, co m o bem c o lo ca A cse lra d
(2 0 0 4 ), o e n te n d im e n to e a a p re e n sã o ra cio n a l da n atu re za são m e ­
d iad o s por asp ecto s p ro d u zid o s pela ação dos agentes so ciais e por
d im e n sõ e s su b je tivas vin c u la d a s a tais p ráticas, ou se ja , a re a lid a d e
am b ie n ta l não está d ad a e so m e n te p o d e ser tra b a lh a d a e p ro b lem a-
tizad a se c o n te x tu a liz a d a . A ssim , a categ o ria a m b ie n te não sign ifica
um ag lo m erad o d e o b jeto s m ateriais q u e p o d em se esgotar d ia n te
da a ção h u m a n a , sen d o p e rm e a d a por sen tid o s c u ltu ra is e interesses
d ife re n cia d o s. R efe re-se a um e sp aço c o m u m , só q u e co n stitu íd o por
d istintos projetos d e so c ie d a d e , visão d e m u n d o e m odos d e a p ro p ria ­
ção e usos m aterial e sim b ó lic o . E x e m p lific a n d o , u m a flo resta é m e io
e esp aço d e v id a p ara serin g u eiro s e índio s e é ig u alm en te e sp a ço d e
a c u m u la ç ã o e e sp e cu la ç ã o fu n d iá ria d ia n te dos regim es d e p ro p rie d a ­
d e e v a lo riz a ç ã o m o n e tária em u m a so cie d a d e p ro d u to ra d e m e rc a ­
d o rias. A água d e um rio é base vital para a o rg a n iza çã o p ro d u tiva e
cu ltu ral d e rib e irin h o s e va z a n d e iro s e é v a lo riz a d a c o m o m e io para
g eração d e u m a m o d a lid a d e d e en erg ia e c o n o m ic a m e n te barata q u e
p e rm ite o p ad rão de d e se n vo lvim e n to u rb a n o -in d u stria l vig en te.
C o m o essas altern ativas são a d m itid a s, legitim ad as e in stituíd as pelo
Estado? Q u a l é a c o n c e p ç ã o h e g e m ô n ica? Sob q u e c o n d içõ e s é p o s­
sível e sta b e le ce r diálog o en tre cu ltu ras? C o m o a p re n d e m o s co m elas?
C o m o p ro b le m a tiza m o s os c a m in h o s e sta b e le cid o s no m o m e n to da
lice n ça ? Q u a is são as o p çõ e s m ais v iá v e is em term o s d e garantia da
su ste n tab ilid ad e ? São q uestõ es q u e , para serem re sp o n d id a s, exig em
d o m ín io te ó ric o do c o n te xto so cio a m b ie n ta l e do processo de lic e n ­
c ia m e n to , trânsito en tre c iê n c ia s so cia is e n atu rais, e n tre c iê n c ia s e
sab eres p o p u lare s, e c a p a c id a d e pedagógica para p ro b le m a tiza r a
re alid a d e , b u scan d o altern a tiva s q u e se situ em para alé m d e m o d elo s
p rescritivo s e id e a liza d o s.
O c o n c e ito d e a m b ie n te para a e d u c a ç ã o no p ro cesso d e gestão
am b ie n ta l e xp re ssa, p ortanto , um e sp a ço p e rce b id o e m aterial m ente
p ro d u zid o , co m d iferen tes escalas de co m p re e n sã o e in te rve n çã o , em
q u e se o p eram as re laçõ es so c ie d a d e -m e io n a tu ra l. E x p rim e u m a to ­
ta lid a d e , q u e só se c o n c re tiza na m e d id a em q u e é p re e n c h id a pelos
agentes so ciais co m suas visõ es d e m u n d o e p ráticas. O a m b ie n te é
o resultad o d e in te raçõ e s c o m p le x a s, lim itad as em reco rtes esp aço -
tem p o rais q u e p e rm ite m a co n stru çã o do sen tid o d e lo c a lid a d e , te rri­
to ria lid a d e , id e n tid a d e e de p e rte n cim e n to para os su jeito s.
A id eolog ia d o m in a n te q u e co nstitu i o d iscu rso o ficia l d e m uitos
Estados e em p re sas, re p ro d u z id o em program as e pro jeto s d e e d u c a ­
çã o am b ie n ta l e c o m u n ic a ç ã o so c ia l, não e v id e n c ia q u e a c o m p re e n ­
são e a p e rce p çã o da p ro b le m á tica a m b ie n ta l são distintas co n fo rm e
os interesses, n e ce ssid ad e s, fo rm as d e p ro d u zir e in stitu ir as re laçõ e s
in tersu b jetivas d e grupos e classes so cia is. Para tal c o n c e p ç ã o redu-
c io n ista , as não c o n fo rm id a d e s d e uso p o d em ser e q u a c io n a d a s te c ­
n ica m e n te (com o a v a n ço te cn o ló g ico e do c o n h e c im e n to c ie n tífic o ).
Essa p rem issa é asso ciad a à p ro cu ra por um a gestão e fic ie n te vo ltad a
para o cre scim e n to e c o n ô m ic o - e fic iê n c ia té c n ic a no m a n e jo dos
recu rsos n atu rais, o b je tiv a n d o ganhos e co n ô m ico s (m o n etário s) bem
c o m o e co ló g ico s por m e io de m e d id as trib u tá ria s, e n tre o utras, so ­
bre as ativid ad e s d eg rad an tes (A L IE R , 2 0 0 7 ). O q u e é g erado co m o
m e rc a d o ria e as c o n se q u ê n c ia s disso na re p ro d u çã o dos m e ca n ism o s
q u e e n g en d ram a d e sig u ald ad e so cial e a so b re -e xp lo ra çã o dos re ­
curso s n aturais n ão en tram em d iscu ssão , co m o se as atu ais re laçõ e s
d e p ro p rie d a d e e o tip o d e uso d a te cn o lo g ia fossem algo in trín se co à
c o n d iç ã o h u m a n a , a ú n ica o p çã o .
Esse d iscu rso da m o d e rn iz a çã o e co ló g ica ou da e c o e fic iê n c ia
(A L IE R , 2 0 0 7 ) re fo rça o p rim a d o do m e rca d o , e lim in a n d o c o m o a l­
tern ativa de su ste n tab ilid ad e outras fo rm as d e cu ltu ra e d e p ro d u çã o .
M ais a in d a , ao co n sid e ra r co m o c a m in h o a lógica m e rca n til p riva d a ,
aposta no cre scim e n to e c o n ô m ic o (le ia -se : a u m e n to da p ro d u çã o de
m e rca d o ria s e d o co n su m o ) co m o m e io para assegurar bem -estar e
p re se rva çã o . Algo q u e é p o u co d e fe n sá ve l d ia n te da p e rp e tu a çã o das
re laçõ es de assim etria e a c u m u la ç ã o m aterial q u e se m an ifestam no
ag u çam e n to da m iséria e na a c e le ra ç ã o do co n su m o d e bens su p é r­
flu o s (cu ltu ra do e fê m e ro e d o d e sca rtáve l) q u e exig em c o n tín u a dis-
p o n ib iliz a ç ã o de "m a té ria -p rim a " e re p re se n ta çã o u tilitária da n a tu re ­
z a (M É S Z Á R O S , 2 0 0 7 ).

Os desafios que se colocam para a construção da sustentabilidade e


da justiça ambiental no Brasil exigem, portanto, o reconhecimento
das formas históricas de significação e apropriação do espaço, que
anulam uma multiplicidade de formas de conceber e agir junto ao
ambiente natural. Isso remete à necessária valorização das alternati­
vas culturais disseminadas por entre as várias camadas sociais, assim
como a compreensão das dinâmicas de poder existentes entre elas.
A heterogeneidade cultural de nossa sociedade contrapõe-se à forma
homogeneizante de intervenção na natureza, expressando propostas
de sustentabilidades plurais - múltiplas possibilidades de viver, que se
refletem na diversificação do espaço e inspiram uma visão de susten­
tabilidade que deve necessariamente articular as dimensões da equi­
dade, da igualdade, da distribuição, assim como da universalidade do
direito de viver na singularidade (Z H O U R I, LASCHEFSKI, PEREIRA,
2005, p. 19).

Q u a n d o nos e n co n tra m o s fren te a um tra tam e n to d e sisto riciza d o


co m o esses m e n cio n a d o s, q u e p re co n c e b e o a m b ie n te co m o cate g o ­
ria do co n sen so e da c o o p e ra ç ã o , ig no rand o sua d im e n sã o de c o n te s­
tação e de c o n flito , as a tivid a d e s e d u c a tiv a s te n d e m a vo ltar-se para a
se n sib iliza ç ã o e para a tran sm issão d e c o n ce ito s a b stra ta m e n te . N ão
há, nesse esco p o d e açõ e s, p re o cu p a ç ã o em o rg an izar as ativid a d e s
a partir d e e co m fo co nos grupos p rio ritário s d o p ro cesso e d u ca tiv o
(os q u e se e n co n tra m em situ a çã o d e m aio r v u ln e ra b ilid a d e so cio am -
b ien tal). D e m od o ilu strativo , isso q u e r d iz e r q u e o co rre m a tivid a d e s
d e se n sib iliza ç ã o , de "d esp ertar se n tim e n to s" e sen tid o s pela n atu re za
sem se tra b a lh a r de fo rm a v in c u la d a as c o n d içõ e s co n cre ta s de vid a
das pessoas e suas cu ltu ras (q u e já en g lo b am certas re p re se n ta çõ e s d e
n atu re za e a m b ie n te ); eleg em -se tem as co m o en erg ia, a q u e c im e n to
global, lixo , água, m as estes não são tratad o s d e m o d o a serem re la c io ­
nad os ao m od o de p ro d u çã o e xiste n te no te rritó rio im p a cta d o por um
e m p re e n d im e n to lic e n c ia d o e n em são e sta b e le cid o s os n exo s entre
os m a cro p ro b le m a s a m b ie n ta is e os p ro b le m as e xiste n te s na base te r­
ritorial de nossa v id a c o tid ia n a .
C o m isso, no m o m en to d a e sco lh a e se le çã o dos su jeito s p a rtic ip a n ­
tes do fa ze r e d u c a tiv o , h ab itu a lm e n te e n fa tiza m -se alu n o s de esco las,
c ria n ça s e c o m u n id a d e em geral (co m o se fosse um todo h o m o g ên eo ),
o c asio n an d o alguns e q u ív o co s pedagógicos.
P rim e iro , é in viáve l se e sta b e le ce r um p ro cesso e d u c a tiv o co m re ­
sultados co n cre to s d e m u d a n ç a da re a lid a d e tratan d o tod o s os grupos
so ciais de m od o in d istin to (q u a n d o se faz isso, fica-se no p lan o da
se n sib iliza ç ã o e da transm issão d e c o n h e cim e n to s p re via m e n te e sc o ­
lhid os pelo co rp o té c n ic o ). E in e x e q u ív e l um p ro jeto q u e ap resen ta
c o m o p ú b lico toda a p o p u la ç ã o , a in d a q u e , em ú ltim a in stâ n cia q u e i­
ram os q u e todos se sintam e n vo lv id o s co m a q uestão a m b ie n ta l. U m
p ro jeto , p ara ser o p e ra c io n a l, co m o b je tivo s p la u síve is, q u e parta das
c o n tra d içõ e s co n cre ta s da re a lid a d e e q u e possa ser a v a lia d o , n e ce ssi­
ta d e cla ra d e lim ita ç ã o dos su je ito s do pro cesso e d u c a tiv o e das m etas.
A lém disso, o tip o d e linguagem , d e co n te ú d o , de in teresse e d e c a p a ­
c id a d e de o rg an ização para in te rve n çã o e a tu a çã o no e sp a ço p ú b lico
se altera sig n ifica tiv a m e n te e n tre os grupos. C o m p re e n d e r essa d in â ­
m ica e resp eitá-la é c o n d iç ã o e le m e n ta r para q u e se e sta b e le ça um
processo e d u c a tiv o em q u e os su jeito s se m o tive m , se a p ro p rie m de
in fo rm açõ e s, c rie m c o n h e c im e n to s, atu em c o n sc ie n te m e n te e c o n ­
q u istem d ireito s.
Seg u n d o , co m p e te à e d u c a ç ã o a m b ie n ta l no lice n cia m e n to a ação
e d u c a tiv a não fo rm a l. A d im e n sã o fo rm a l, q u e se refere fu n d a m e n ­
talm e n te à d im e n sã o c u rric u la r, e não a p e n a s ao ato d e se re a liz a r
a tivid a d e s na e sco la , tal co m o exp re ssa a Pn ea e a L D B , é d e c o m p e ­
tê n c ia d as in stân cias d e e n sin o . A co n fu são e n tre o q u e ca b e à e d u c a ­
çã o fo rm al e à não fo rm al gera p ro b le m as d e a trib u iç õ e s e n tre órgãos
a m b ie n ta is, d e e d u c a ç ã o , e m p re sas e o rg a n iza çõ e s p o p u la re s. H á c a ­
sos no Brasil d e redes d e e n sin o a d o ta n d o co m o p o líticas m u n icip a is
d e e d u c a ç ã o am b ie n ta l projetos d e fin id o s por O N G s ou e m p re sas,
sem respeito à a u to n o m ia e sco la r e às c o m p e tê n cia s da S e cre ta ria de
E d u c a ç ã o , q u e passa de re g u lad o ra, m e d ia d o ra e in stâ n cia p ro m o to ra
d e d ireito s e d a esfera p ú b lica à c o n d iç ã o d e e x e c u to ra de p o líticas
d e fin id a s na esfera p rivad a. H á ig u alm en te caso s em q u e se cre ta ria s
d e m eio a m b ie n te d e fin e m açõ e s de e d u c a ç ã o a m b ie n ta l re p assan d o
às secretarias de e d u c a ç ã o ap e n as a fu n çã o d e im p le m e n ta ç ã o nas
esco las, fe rin d o a p ró p ria estru tu ra p aritária d e gestão prevista na Po lí­
tica N a cio n a l d e E d u c a ç ã o A m b ie n ta l (P n e a ). São claro s e x e m p lo s de
c o n flito en tre p ú b lico e p rivad o (m ais o b je tiv a m e n te d e so b re p o sição
do p rivad o so b re o p ú b lico ) e e n tre c o m p e tê n cia s no in te rio r do p o d er
p ú b lico , q u e não p o d em ser e stim u lad a s ou a d m itid a s.
A e d u c a ç ã o no processo d e gestão a m b ie n ta l, até por e x ig ê n c ia le ­
gal, d e ve partir d e m o vim e n to s so cia is, sin d ica to s, e m p re sas, e n tre o u ­
tras, p o d e n d o ch eg ar às esco las, a rtic u la n d o e sc o la -c o m u n id a d e , sob
o p rism a da e d u c a ç ã o não fo rm a l, o q u e é um m o vim e n to positivo
e um a d ire triz da e d u c a ç ã o a m b ie n ta l b ra sile ira , fo m e n ta d a em in i­
cia tiva s co m o A g end a 21 e sco la r e C O M - V ID A (B R A S IL , 2 0 0 4 ). Pode
ta m b é m , por fo rça da d in â m ic a dos p ro jeto s e pro gram as, fa v o re ce r e
fo m e n ta r d iscussõ es co m se cre ta ria s de e d u c a ç ã o visa n d o a a d e q u a ­
çõ es c u rric u la re s , c o m o d e sd o b ra m e n to d e algo q u e se in icia na órb ita
d o lic e n c ia m e n to , m as d esd e q u e se te n h a c la re z a d e q u e esse tip o d e
a ção não é o c e rn e da e d u c a ç ã o na gestão a m b ie n ta l.
A lé m disso, co m o já foi d ito , o p ú b lico p rio ritá rio de q u a lq u e r p ro je ­
to no co n te xto d o lice n cia m e n to são os grupos afetad o s, e os esp aço s
de atu ação por e x c e lê n c ia são a q u e le s o n d e se m an ifestam d e m odo
im e d iato os co n flito s de uso, e isso exig e q u e se saiba d e fin ir graus de
p rio rid a d e nas re laçõ e s in stitu cio n a is e co m os su jeito s e n vo lv id o s.
Em resum o, não é adm issível em um projeto no lice n cia m e n to , por
e xe m p lo , q u e se invista m ajo ritariam en te em ativid ad e s de se n sib ili­
za ç ã o co m crian ças em escolas e visitaçõ es em áreas preservadas sem
co n sid e rar o objeto ce n tra l: o e m p re e n d im e n to e seus efeito s; e a atri­
b u ição ed u cativa própria da gestão a m b ie n ta l: a e d u ca çã o não form al.
U m a ú ltim a co n fu são re co rre n te q u e m e re c e cita ç ã o é id e n tifica r
program as de c o m u n ic a ç ã o so cial co m o sen d o de e d u c a ç ã o a m b ie n ­
tal. E, o q u e é pior, a partir dessa sim p lific a ç ã o , u tiliza r a e d u c a çã o
am b ie n ta l co m o m e io p ara d ivu lg açã o d e in fo rm açõ e s re lativas ao
e m p re e n d im e n to co m o estratégia d e m a rke tin g , de p ro m o çã o insti­
tu cio n al ou co m o m eio d e c o n v e n c im e n to id e o ló g ico ju n to à popu-
lação , d ize n d o q u e o e m p re e n d im e n to lic e n c ia d o é a ú n ica o p ção
viá ve l para o "progresso da região e g eração d e e m p re g o s".
São program as q u e p o d em ser pensad os d e fo rm a integrada? Sem
d ú v id a , já q u e se c o m p le m e n ta m e se p o te n c ia liza m m u tu a m e n te ,
posto q u e se re ferem às nossas re la çõ e s in te rsu b je tiva s, às in te raçõ e s
h u m an as, à linguagem e à c u ltu ra , m as não são a m e sm a co isa . A
c o m u n ic a ç ã o social atu a na p u b liciza ç ã o d e in fo rm açõ e s, tem por fi­
n alid ad e to rn ar tran sp aren te s in fo rm açõ e s re lativas às a çõ e s in sta u ra ­
das, d ivu lg ar fatos, to rn a r a cessível c o n h e c im e n to s e fo rm a r o p in iõ e s,
p o d e n d o ain d a ser im p o rta n te m e io de o rg a n iza çã o p o p ular, q u a n d o
tem o s m eios d e c o m u n ic a ç ã o d e m o c rá tico s, por in te rm é d io do uso
d e in stru m en to s co m o rád io s c o m u n itá ria s, p ro d u çã o de jo rn a is c o ­
m u n itário s e fo m e n to a redes e ca n a is in te rativo s. A e d u c a ç ã o atua
no processo e n sin o -a p re n d iza g e m , na p ro b le m a tiza ç ã o e to m ad a de
c o n sc iê n c ia de d ad a re alid a d e p elo c o n h e c im e n to e pela in te rve n çã o
p rática, na co n stru ção de va lo re s e co n d u ta s, na re fle x ã o c rític a do
q u e fa ze m o s e da re alid a d e o b je tiv a e na c ria ç ã o d e m eio s in stru m e n ­
tais (técn icas) q u e p ro p icia m d e te rm in a d o tip o d e tra n sfo rm açã o da
n atu re za para a te n d im e n to d e nossas n e ce ssid a d e s.
H á um lo u vável esfo rço d o Ó rg ão G e sto r da Pn ea na a rtic u la çã o
dessas d u as d im e n sõ e s, por in te rm é d io d o Program a de Ed u co m u -
n ica çã o S o cio a m b ie n ta l (B R A S IL , 2 0 0 5 ). C o m ele se bu sca a te n d e r
a lin h a d e a ção C o m u n ic a ç ã o e E d u c a ç ã o A m b ie n ta l do Program a
N a cio n a l d e E d u c a ç ã o A m b ie n ta l (P ro n e a ). A té o m o m e n to , fo ram
re alizad as açõ e s d e c a m p a n h a s, p ro d u çã o e d istrib u içã o de m ateriais
d id á tic o s, fo lh eto s e livro s, c ria ç ã o d o portal E A .n e t, v e ic u la ç ã o de
p ro d u çõ e s in d e p e n d e n te s em c a n a is d e rá d io e TV, im p le m e n ta çã o
do Pro jeto R ád io -Esco las V e rd e s, e n tre o utras. E um program a q u e ,
ao ser c o n h e c id o , pode a ju d a r a d e sfa ze r as co n fu sõ e s e xiste n te s e a
co n stru ir as "p o n te s" p ertin e n te s.

2 Q U A L É A E D U C A Ç Ã O DA E D U C A Ç Ã O A M B I E N T A L ?

Define-se a educação como sendo uma prática social cujo fim é o


aprimoramento humano naquilo que pode ser aprendido e recriado
a partir dos diferentes saberes existentes em uma cultura, de acordo
com as necessidades e exigências de uma sociedade. Atua, portanto,
sobre a vida humana em dois sentidos: (1) desenvolvimento da produ­
ção social como cultura, mesmo dos meios instrumentais e tecnológi­
cos de atuação no ambiente; (2) construção e reprodução dos valores
culturais. (...)
Educação, antes de ser um procedimento formal de escolarização, é
um processo livre, em tese, de relação entre pessoas e grupos, que
busca maneiras para reproduzir e/ou recriar aquilo que é comum, seja
como trabalho ou estilo de vida, a uma sociedade, grupo ou classe
social (LO U R EIR O et a/., 2005, p. 12).

Pelo q u e foi exp o sto até a q u i, é fá cil p e rc e b e r q u e a e d u c a ç ã o não


se esgota na e sc o la riza ç ã o (m esm o q u e esta seja c o rre ta m e n te e n ­
te n d id a co m o um d ire ito so cial in a lie n á v e l). R e fe re -se , ta m b é m , aos
processos so ciais pelos q u ais nos co n stitu ím o s c o m o seres so cia is, e
a p artir dos q u ais d ife re n te s sab e re s, c o n h e c im e n to s, atitu d e s e h a ­
b ilid ad e s são cria d o s e tran sm itid o s (re p ro d u zid o s), g eran d o cu ltu ra
(L O U R E IR O , 2 0 0 6 a ).
O s in d iv íd u o s não n asce m p ro n to s, m as se d e fin e m e n q u a n to tal
p o r m e io d as re la çõ e s so c ia is. C o n s e q u e n te m e n te , e d u c a r é u m a
p rá tica in te rsu b je tiv a in te n c io n a l, pois e xp re ssa nossos p ro jeto s e
id e a is so b re a c o n d iç ã o h u m a n a e a so c ie d a d e em q u e q u e re m o s
v iv e r, e stan d o p ara alé m da se n sib iliz a ç ã o ou da a c u m u la ç ã o de
c o n h e c im e n to s (c o m p o n e n te s n e ce ssá rio s ao p ro ce sso , m as não su fi­
c ie n te s), e n c o n tra n d o -se tam b é m na c o n s c iê n c ia a c e rc a da re a lid a ­
d e e no m o d o c o m o in te rvim o s nesta e o b je tiv a m o s nossos va lo re s
(S A V IA N I, 2 0 0 3 ).

Com efeito, se cada indivíduo humano sintetiza relações sociais, isso


significa que ele só se constitui como homem por meio das relações
que estabelece com os outros homens, isto é, só pode tornar-se ho­
mem se incorporar em sua própria subjetividade formas de compor­
tamento e ideias criadas pelas gerações anteriores e retrabalhadas por
ele e por aqueles que com ele convivem (SAVIANI, 2004, p. 46).

O ra , se esse é o pressuposto p rim o rd ia l da e d u c a ç ã o , sua fin a lid a d e


p rim e ira e ú ltim a é atu ar no pro cesso e m a n c ip a tó rio . E d u c a r é e m a n ­
c ip a r (L O U R E IR O , 2 0 0 7 ).
A p ro fu n d a n d o um p o u co m ais a re fle x ã o , va le ressaltar, para fin s
d id á tic o s, alguns p rin cíp io s pedagógicos co m base em Paulo Freire
(1 9 8 8 ), q u e fa cilita m a c o m p re e n sã o d a a m p litu d e c o n c e itu a i em v o l­
ta d a e d u c a ç ã o no processo de gestão a m b ie n ta l.
• E d u ca r é p ro p ic ia r a le itu ra do m u n d o , c o n h e cê -lo para tran sfo r­
m á-lo e, ao tran sfo rm á-lo , c o n h e c ê -lo . Tal m o vim e n to e n vo lve
m etod ologias p articip a tiva s e d ialó g icas asso ciad as a c o n te ú d o s
tran sm itid o s, assim ilad o s e re co n stru íd o s co le tiv a m e n te .
• E d u c a r é sentir, in terpretar, c o n h e c e r e agir. C o n h e c e r é esta­
b e le ce r re laçõ es lógicas, d e fin ir n exo s e e x p lic a r fe n ô m e n o s. A
v e ra c id a d e do c o n h e c im e n to , alé m d e ser tra n sitó ria , h istó rica
e v in c u la d a à m a te ria lid a d e e xiste n te , está c o n d ic io n a d a à sua
p o ssib ilid ad e p rática, de re alizar-se e de ser a p ro p ria d a para fin s
e m a n c ip a tó rio s. Logo, sab er não é possuir um a fo rm a id e a l, um
c o n te ú d o p révio e u n ive rsal q u e se a p lica na so c ie d a d e , m as fo r­
m ar-se, co n stru ir o c o n te ú d o q u e vira fo rm a no p ro cesso e q ue
nos p e rm ite p en sar o m u n d o .
• A p re n d e r está para além d e a c u m u la r c o n h e cim e n to s. E c o n se ­
guir ra c io n a lm e n te re la cio n á -lo s e co n te xtu a lizá -lo s p ara sab er
co m o a h istória foi feita até aq u i e o q u e é p reciso fa ze r para a
c o n stru ção d e nossa p ró p ria história d aq u i para fre n te .
• Ed u ca r é re co n h e c e r q u e d ife re n te s sab eres são vá lid o s. A va lid a d e
de nosso ponto de vista se afirm a no e n fre n ta m e n to respeitoso de
id eias e p o sicio n am en to s, no d iálogo, na e x p lic ita ç ã o d e co n flito s
e busca d e novas re alid a d e s. Ped agog icam ente vá lid o é o q u e se
afirm a pela e xp o sição e arg u m en tação e não pela im p o sição .
• A p a rticip a çã o na v id a p ú b lica é o c e rn e da ap re n d iza g e m p o lí­
tic a , da gestão d e m o c rá tic a . E por m e io desta q u e v in c u la m o s a
e d u c a ç ã o à c id a d a n ia , e sta b e le ce m o s os elos p ara fo rm u la çõ e s
tra n sd iscip lin a re s e am p lia d a s a c e rc a da re a lid a d e , nos p o sicio ­
nam os fre n te aos p ro b lem as e b u scam o s g aran tir a ig uald ad e de
d ireito s e a justa d istrib u içã o do q u e é so c ia lm e n te p ro d u zid o .

Em sín tese, p o d em o s d iz e r q u e a e d u c a ç ã o to rna-se o p rin cip a l


m eio d e fo rm a çã o h u m a n a e im p o rtan te m e io de e x e rc íc io d e c id a ­
d an ia e co n tro le so cial na gestão a m b ie n ta l ao p ro p ic ia r v iv ê n c ia s de
p e rce p çã o sen so rial e g erar c o n sc iê n c ia d as c o n d içõ e s m a te ria is de
e x is tê n c ia ; ao fa v o re ce r a p ro d u çã o d e novos c o n h e c im e n to s q u e nos
p e rm itam re fle tir c ritic a m e n te so b re o q u e fa ze m o s no c o tid ia n o e so ­
bre os rum os do m o d elo de d e se n v o lv im e n to ad o tad o em um país ou
reg ião ; ao e x e rc ita r nossa c a p a c id a d e de d e fin ir os m e lh o re s c a m in h o s
para um a "c u ltu ra d a su ste n ta b ilid a d e ".

3 A S P E C T O S L E G A I S D A E D U C A Ç Ã O A M B I E N T A L NO L I C E N C I A M E N T O

N a C o n stitu iç ã o Fed eral tem o s a p rem issa d a p a rticip a çã o p o p u la r e


a e xig ib ilid a d e d a e d u c a ç ã o a m b ie n ta l, bem co m o a d e te rm in a ç ã o do
c a rá te r p ú b lico do a m b ie n te . Portanto, há o re c o n h e c im e n to , a in d a
q u e posto d e m o d o g e n é rico , da va lid a d e d e co n stru çã o d e a lte rn a ­
tivas q u e b u sq u em u m a su ste n ta b ilid ad e d e m o c rá tic a , vo ltad a para a
ju stiça am b ie n ta l.

CA PÍTU LO VI
D O M EIO AM BIEN TE
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equi­
librado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1S - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o
manejo ecológico das espécies e ecossistemas;!...)
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade poten­
cialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente,
estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a com ercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade
de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente (...).

Essas prem issas se tra d u ze m , no c a m p o da e d u c a ç ã o a m b ie n ta l,


p rin cip a lm e n te nos seguintes tre ch o s da Po lítica N a cio n a l de E d u c a ­
ção A m b ie n ta l (Lei 9 .7 9 5 / 9 9 ):
Capítulo I
Art. 2o A educação ambiental é um componente essencial e perma­
nente da educação nacional, devendo estar presente, de forma arti­
culada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em
caráter formal e não-formal.
Art. 3o Como parte do processo educativo mais amplo, todos têm di­
reito à educação ambiental, incumbindo:
I - ao Poder Público, nos termos dos artigos 205 e 225 da Constituição
Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão am bien­
tal, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o
engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria
do meio ambiente;
II - às instituições educativas, promover a educação ambiental de ma­
neira integrada aos programas educacionais que desenvolvem;
III - aos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente
(Sisnama), promover ações de educação ambiental integradas aos pro­
gramas de conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente;
IV - aos meios de comunicação de massa, colaborar de maneira ativa
e permanente na disseminação de informações e práticas educativas
sobre meio ambiente e incorporar a dimensão ambiental em sua pro­
gramação;
V - às empresas, entidades de classe, instituições públicas e privadas,
promover programas destinados à capacitação dos trabalhadores, vi­
sando à melhoria e ao controle efetivo sobre o ambiente de trabalho,
bem como sobre as repercussões do processo produtivo no meio am ­
biente;
VI - à sociedade como um todo, manter atenção permanente à forma­
ção de valores, atitudes e habilidades que propiciem a atuação indi­
vidual e coletiva voltada para a prevenção, a identificação e a solução
de problemas ambientais.

Em seu artigo 8 § 2 o, d e fin e -se o tip o d e c a p a cita ç ã o c a b ív e l. Esta


voltar-se-á p ara:

I - a incorporação da dimensão ambiental na formação, especialização


e atualização dos educadores de todos os níveis e modalidades de
ensino;
II - a incorporação da dimensão ambiental na formação, especializa­
ção e atualização dos profissionais de todas as áreas;
III - a preparação de profissionais orientados para as atividades de ges­
tão ambiental;
IV - a formação, especialização e atualização de profissionais na área
de meio ambiente;
V - o atendimento da demanda dos diversos segmentos da sociedade
no que diz respeito à problemática ambiental.

D e m odo com plem entar, o decreto regulam entador 4 .2 8 1 /0 2 , afirm a:

Art. 6Q - Para o cumprimento do estabelecido neste Decreto, deverão


ser criados, mantidos e implementados, sem prejuízo de outras ações,
programas de educação ambiental integrados:
I - a todos os níveis e modalidades de ensino;
II - às atividades de conservação da biodiversidade, de zoneamento
ambiental, de licenciamento e revisão de atividades efetivas ou po­
tencialmente poluidoras, de gerenciamento de resíduos, de gerencia­
mento costeiro, de gestão de recursos hídricos, de ordenamento de
recursos pesqueiros, de manejo sustentável de recursos ambientais, de
ecoturismo e melhoria de qualidade ambiental;
III - às políticas públicas, econômicas, sociais e culturais, de ciência e
tecnologia de comunicação, de transporte, de saneamento e de saúde;
IV - aos processos de capacitação de profissionais promovidos por em ­
presas, entidades de classe, instituições públicas e privadas;
V - a projetos financiados com recursos públicos;
VI - ao cumprimento da Agenda 21.

D e v e m o s re co rd a r q u e o Program a N a cio n a l de E d u ca çã o A m b ie n ­
tal (P ro n e a), no p lan o da c o n c e p ç ã o ped agóg ica, a rticu la as m u d an ça s
in d ivid u a is d e p e rce p çã o e co g n ição às m u d a n ça s so cia is co m vistas
a um a tran sfo rm ação p ro fu n d a d o m o d o co m o nos re la cio n a m o s na
n atu re za . P ro p õ e c o m p re e n d e r as e sp e cificid a d e s dos grupos so cia is,
o m od o co m o p ro d u ze m seus m eio s d e v id a , co m o cria m co n d u ta s e
se situam na so c ie d a d e , para q u e se e sta b e le ça m processos p au tad o s
no d iálo g o, na p ro b le m a tiza ç ã o do m u n d o e na a çã o . Em sua e x p o si­
ção d e p rin cíp io s n o rtead o res, em co n so n â n c ia co m a P n e a , alguns se
referem d ire ta m e n te a um e n te n d im e n to pedagógico c rític o da e d u ­
c a çã o a m b ie n ta l: (1) respeito à lib e rd a d e e a p re ço à to le râ n c ia ; (2)
v in c u la ç ã o e n tre é tic a , esté tica, e d u c a ç ã o , tra b a lh o e práticas so cia is;
(3) lib e rd a d e d e ap ren d er, en sin ar, p esq u isar e d ivu lg ar a c u ltu ra , o
p e n sam e n to , a arte e o sa b e r; (4) co m p ro m isso co m a c id a d a n ia a m ­
biental a tiv a ; (5) tra n sve rsa lid a d e a m b ie n ta l co n stru íd a a partir d e um a
p ersp ectiva in te rd iscip lin ar.

4 Q U A L E D U C A D O R E E D U C A D O R A A M B I E N T A L A T E N D E À PR OP OS TA ?

D ia n te do q u e foi e xp o sto , u m a q uestão q u e a p a re c e nas d iscussõ es


q u e visam à n o rm a tiza çã o d a e d u c a ç ã o a m b ie n ta l no lice n cia m e n to
é : q u ais são as c a ra cte rística s q u e um p ro fissio nal d e ve ter para p o d e r
atu ar em um p rojeto co m tais e sp e cificid a d e s? E n fim , ao co n trá rio de
o utros ca m p o s d e c o n h e c im e n to , a e d u c a ç ã o a m b ie n ta l, pelo m odo
c o m o se co n stitu iu , não é u m a a tivid a d e p ro fissio nal re g u lad a, ou seja,
não há n e n h u m a in stân cia q u e c re d e n c ie u m a pessoa co m o e d u c a d o r
ou e d u c a d o ra a m b ie n ta l.
Esse asp ecto , se por um lado é in teressan te, tra z em si seu reverso
q u a n d o p en sam o s na gestão a m b ie n ta l: se todos p o d em se id e n tific a r
c o m o e d u c a d o re s, q u e m e fe tiva m e n te po d e se h a b ilita r a atu a r co m o
tal em açõ e s d e e d u c a ç ã o não fo rm al? E p re ciso , p o rtan to , p e n sar em
alg um as c o n d iç õ e s q u e possam ser exig id as para q u e se te n h a m a io r
m argem d e seg urança d e q u e p ro jeto s, co m o grau d e c o m p le x id a d e
c a b ív e l em um processo d e lic e n c ia m e n to , se c o n c re tize m d e n tro do
esco p o previsto.
N ão tem o s a preten são d e e sta b e le ce r um m o d e lo p ro nto , m as a l­
guns asp ecto s q u e p o d em ser p re lim in a rm e n te e le n c a d o s, in sp irad o s
na sistem atização feita pela C g eam (IB A M A , 2 0 0 2 ).
U m p ro fissio n al, para atu a r na e d u c a ç ã o no p ro cesso d e gestão
a m b ie n ta l, tem q u e d e m o n stra r e x p e riê n c ia e c a p a c id a d e d e interlo-
c u ç ã o co m grupos co m d ife re n te s fa ixa s d e e sco la rid a d e (por ve ze s,
e xtre m a m e n te d iscre p a n te s), ou se ja , tem q u e ser c a p a z d e a d e q u a r
linguagens e m etod ologias em fu n çã o dos su jeito s p a rticip a n te s. N e ­
cessita d o m in a r tam b é m os p ro ce d im e n to s pedagógicos para a ação
p rio rita ria m e n te ju n to a jo v e n s e ad u lto s, posto q u e são as faixas e tá ­
rias q u e c o m p õ e m m a jo rita ria m e n te o co n ju n to dos e n vo lv id o s nas
d iscussõ es sob re um e m p re e n d im e n to e q u e atu am d e fo rm a m ais
d ireta no e n fre n ta m e n to dos co n flito s de uso. N esse p lan o m ais ge­
n é ric o , p recisa ig u alm en te e v id e n c ia r c o n h e c im e n to das d ire trize s da
e d u c a ç ã o am b ie n ta l e os p rin cíp io s da gestão a m b ie n ta l p ú b lica .
Para tan to, o e d u c a d o r e a e d u c a d o ra a m b ie n ta l d e ve m estar h a b i­
litados a:
• a n a lisa r c ritic a m e n te o co n te xto p o lítico , cu ltu ra l e e c o n ô m ic o e
as in stitu cio n a lid a d e s q u e leg itim am os pro cesso s d e cisó rio s so b re
acesso e uso aos recu rso s a m b ie n ta is;
• re c o n h e c e r os lim ites e as p o ssib ilid a d e s d e u tiliza ç ã o dos in stru ­
m entos d e gestão am b ie n ta l no o rd e n a m e n to dos usos;
• agir para su p e ra r a v isã o frag m en tad a da re a lid a d e so cio a m b ie n -
tal, por m e io de processo s crítico s e d ialó g ico s;
• re sp eitar as cu ltu ras e xiste n te s na base territo rial a fe ta d a ;
• fo rta le c e r a o rg a n iza çã o e a m o b iliza ç ã o d os grupos te rrito ria liza -
dos no e x e rc íc io d e sua a u to n o m ia ;
• agir e tic a m e n te no p rocesso d e c o n stru ção d e n ovas re la çõ e s
so ciais na n atu re za , re sp e itan d o p rin cíp io s c o m o : ju stiça so cia l,
su ste n tab ilid ad e d e m o c rá tic a , e q u ilíb rio e co ló g ico , d ig n id a d e d e
vid a e resp eito à d iv e rsid a d e c u ltu ra l.
Em re su m o , são asp ectos q u e exig em ca d a v e z m ais u m a fo rm a çã o
p ro fissio nal in te rd isc ip lin a r e bom d o m ín io d e categ o rias p ró p rias das
c iê n c ia s so ciais no trato da q uestão a m b ie n ta l.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

V iv e m o s um m o m en to ú n ico no Brasil para a v ia b iliz a ç ã o d a e d u ­


c a çã o a m b ie n ta l e n q u a n to p o lítica p ú b lica d e c a rá te r d e m o c rá tico ,
in serid a e a rtic u la d a aos d ife re n te s esp aço s pedagógicos, in c lu in d o a
gestão am b ie n ta l e o e n sin o fo rm a l. M as a c e rte za disso não pode
estar asso ciad a a um o tim ism o d e sc a b id o . A s c o n tra d içõ e s q u e o p a ­
d rão so cie tário nos co lo ca m são agudas e , ao m e sm o te m p o em q u e
co n seg u im o s a v a n ça r na c o n so lid a ç ã o de e sp a ço s d e p a rticip a çã o e
no co n tro le so cial d e p o líticas a m b ie n ta is e e d u c a c io n a is , re p ro d u z i­
m os re laçõ es d e p re co n c e ito , e x p ro p ria ç ã o e d o m in a ç ã o , o c a s io n a n ­
do d e se sp e ra n ça e o ag u çam e n to da m iséria e da d e stru içã o a m b ie n ­
tal. S im u lta n e a m e n te ao a m a d u re c im e n to te ó ric o e m e to d o ló g ico na
e d u c a ç ã o a m b ie n ta l, as d ú vid a s so b re o q u e fa ze r e co m o fa ze r d ian te
dos gigantescos p ro b lem as co tid ia n o s se a v o lu m a m .
N esse co n texto , a e d u caçã o am b ien tal no lice n cia m e n to se conso lida
en q u an to esp aço de disputa no uso e na a p ro p riação dos instrum entos
d a gestão am b ie n ta l p ú b lica b ra sile ira , q u e pode c o n trib u ir d e m odo
sig n ificativo para a d e m o c ra tiza ç ã o da so c ie d a d e e su p e ra çã o de in ­
ju stiças a m b ie n ta is, p rin c ip a lm e n te em um m o m e n to d e fo rte c re s c i­
m en to e c o n ô m ic o q u e se re flete na d e m a n d a por lice n ça s e a tu a ção
do Estado.
Estar c ie n te desse d ad o de re a lid a d e sig n ifica negar um o tim ism o
id e a liz a d o e ig u alm en te o im o b ilism o e a angústia. A re a lid a d e c o n c re ­
ta é o e stím u lo para q u e , a partir d o c o n h e c im e n to c rític o da m e sm a,
se co n stru am alte rn a tiva s v iá v e is. P re cisa m o s sair d o senso c o m u m na
e d u c a ç ã o a m b ie n ta l, das respostas prontas e fá ce is, e en frentar, sem
m ed o e co m a n ecessária d ose d e u to p ia , os d esafio s q u e p o d em nos
c o n d u z ir à c o n so lid a ç ã o de um a a lte rn a tiva à atual fo rm a çã o so cio e-
c o n ô m ic a .
R EFE R EN C IA S
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A R E S P O N S A B ILID A D E
S O C IA L E AS EN T ID A D ES
CORPORATIVAS
Eduardo R. Gomes,
Leticia Veloso e
Bárbara de Souza Valle
O presente estudo mostra que houve uma significativa incorporação de ideias
da Responsabilidade Social pelas entidades corporativas e que esta apropriação
é variável no que concerne à missão, aos objetivos e às ações das organizações
corporativas, apontando para uma importante renovação da visão empresarial
do social nas estruturas corporativas, especialmente se comparada àquela do
período do desenvolvimentismo, tipicamente construída a partir da fábrica.
Palavras-chave: Responsabilidade Social, corporativismo, Sistema S, empresários

This study shows that there has been a significant incorporation of ideas from
Social Responsibility by corporatist entities, but this appropriation varies in res­
pect to the mission, objectives and actions of these corporatist organizations,
pointing out to an important renewing of the entrepreneurial view of social
issues, especially if compared to the one of the developmentalist phase, com ­
monly built from the industry.
Keywords: Social Responsibility, corporativism, S System, entrepreneurs
INTRO DU ÇÃO

Este artigo vo lta-se aos im p a cto s do novo e c re s c e n te e n v o lv im e n ­


to dos e m p re sá rio s co m a c h a m a d a "R e s p o n s a b ilid a d e S o c ia l" na
m issão , nos o b je tiv o s e a çõ e s das e n tid a d e s c o rp o ra tiv a s, u m a v e z
q u e essa n ova fo rm a de a tu a ç ã o e m p re sa ria l surgiu e se d e se n v o lv e u
e x te rn a m e n te à q u e la s o rg a n iza ç õ e s d e c la sse , tra d ic io n a lm e n te m a r­
c a d a s p o r u m a p o stu ra d e d e fe sa d e in te re sse s e c o n ô m ic o s e m p re ­
sa ria is, d e sd e sua fu n d a ç ã o em m e a d o s d o s an o s 1 9 4 0 até os an o s
1 9 8 0 / 9 0 . Isso não q u e r d iz e r q u e as e n tid a d e s c o rp o ra tiv a s n ão tiv e s ­
sem p re o c u p a ç õ e s so c ia is - o q u e , na v e rd a d e , é a ra zã o d e ser, por
e x e m p lo , do S e rv iç o S o cia l d a In d ú stria (Sesi) e d o S e rv iç o S o cia l do
C o m é rc io (S E S C ), en tre outras q u e são parte do q u e se c o n v e n c io n o u
c h a m a r d e S iste m a S - m as q u e a d e fe sa d a q u e le s in te re sse s este ve
no c e n tro d a a tu a ç ã o das o rg a n iza ç õ e s c o rp o ra tiv a s em g ra n d e parte
d esse p e río d o 2.
C a ra c te riz a d a p o r um e n g a ja m e n to d e p e q u e n a s, m é d ia s e g ran ­
d es e m p re sa s dos m ais v a ria d o s se to re s em a ç õ e s so c ia is v o lu n tá ria s
vo lta d a s p ara o e n fre n ta m e n to d e p ro b le m a s so c ia is e e c o ló g ico s,
a R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l g an ho u g ra n d e im p o rtâ n c ia na s o c ie d a ­
d e b ra sile ira c o n te m p o râ n e a . C o m o foi co n sta ta d o p e lo In stituto de
Pesq u isas E c o n ô m ic a s A p lic a d a s (Ip e a ) há p o u co s a n o s, q u a se sete
em ca d a d e z e m p re sa s h a v ia m fe ito u m a a ç ã o so cia l v o lu n tá ria (PE-
L IA N O , 2 0 0 6 ). A p rin c ip a l e n tid a d e e m p re sa ria l vo lta d a p ara p ro m o ­
ç ã o d a R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l no p a ís, o In stituto Etho s, p a re c e se

2 O chamado "Sistema S" não é um sistema orgânico, ainda que algumas de


suas entidades tenham uma estrutura semelhante. Na atualidade, compõe-
se de 11 organizações como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
(Senai), o Serviço Social da Indústria (Sesi), o Serviço Nacional de Aprendi­
zagem do Com ércio (Senac), o Serviço Social do Com ércio (SESC), o Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o Serviço Social
de Transporte (Sest), o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (Senat),
o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop), o Serviço
Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), o Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra), a Diretoria de Portos e Costas do Ministério da
Marinha (D PC), que passaram por significativas modificações ao longo dos
anos desde sua fundação.
o rg u lh a r d e ter c e rc a d e 1 .2 0 0 e m p re sa s a sso cia d a s, q u e re p re s e n ­
tam 3 5 % do P IB b ra sile iro 3.
Em term os gerais, a R esp o n sab ilid ad e So cial das Em presas (ou R es­
p o n sab ilid ad e Social C o rp o rativa ) tem sido e n te n d id a co m o u m a res­
posta vo lu n tária das em p resas a um a so cie d a d e fo rm ad a d e in d ivíd u o s
cad a v e z m ais crítico s - co m o co n su m id o re s e/ou cid a d ã o s - dos p ro ­
blem as sociais e am b ien tais por elas m esm as gerados, assum ind o -se
q u e o Estado teria certas lim itaçõ es para d ar so luçõ es a essas q uestões
e, p ortan to, c a b e ria a elas c o m p e n sa r a so cie d a d e . A ssim co n fig u rad o ,
esse novo tipo de ação social e m p resarial a p a re ce co m o distinto de a ti­
tud es filan tró p icas ou assistencialistas, feitas o casio n alm e n te em nom e
de algum va lo r h u m a n itá rio ou religioso, co m o b jetivo s sim ilares.
Ten d o em vista essa nova postura co n sc ie n te d a so c ie d a d e , a in c o r­
p o ração da R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l nos negócios e m p re sa ria is a p a ­
re ce co m o u m a a titu d e q u e as e m p re sas d e ve m n atu ra lm e n te a b ra ­
çar, u m a v e z q u e pode p ro p o rcio n a r-lh e s um d ife re n cia l c o m p e titivo ,
sen d o q u e alguns p o u co s, co m o M ilto n F rie d m a n , o p õ e m -se a esse
tip o d e ab o rd ag em a firm a n d o q u e "th e business o f business is b u si­
n ess" (C R A Y S O N ; H O D G E S , 2 0 0 3 ; T E N Ó R IO , 2 0 0 4 ; M E L O N E T O ;
F R Ó E S , 2 0 0 1 ).
D ad o q u e o e m p re sariad o b rasileiro tem se en g ajad o de fo rm a cada
v e z m ais intensa em práticas de R e sp o n sab ilid ad e S o cia l, ca b e in ve sti­
gar as a p ro p riaçõ e s desse novo p e n sam e n to pelas e n tid a d e s co rp o ra ti­
vas, já q u e essa nova postura não só surgiu co m um a o rie n ta çã o distinta
d aq u e la assum id a pelas o rg an izaçõ es co rp o rativas desd e o pós-guerra
até re ce n te m e n te , e xte rn a a elas e até m esm o de m an e ira crítica a elas.
C o m o o sistem a co rp o rativista no Brasil é estru tu rad o h ie ra rq u ic a m e n ­
te em sind icato s de ram os d e setores e co n ô m ico s lo cais, fe d e raçõ e s
m ultissetoriais estadu ais e co n fe d e ra çõ e s seto riais n acio n a is c o m o , o ri­
g in alm en te, aq u e la s da indústria e do c o m é rc io , e n fo ca m o s o nível
m eso desta estru tu ra, q u e são as fe d e ra çõ e s estad u ais, p o ssivelm en te
cap tan d o a d ive rsid a d e do p an o ram a e c o n ô m ico n a cio n a l.
V alores so ciais perp assaram , sem d ú vid a , a m o d e rn iza çã o d a e c o n o ­
m ia b rasileira resultan d o em in iciativas co m o as das e n tid a d e s so ciais
do Sistem a S e outras, m as nosso foco é o im p acto desse novo e n fo q u e

3 Ver Instituto Ethos (2006).


d a q uestão so cial, sob o prism a d e "R e sp o n sa b ilid a d e S o c ia l", q u e a c a ­
bou por se co n so lid ar co m o um sistem a d e gestão, q u e se baseia em a l­
gum tipo de co m p e n sa çã o das e xte rn a lid a d e s negativas das em p resas,
ou em in terven çõ es sociais q u e d em o n strem um certo co m p ro m isso
destas com d em an d as so ciais, d e m an e ira vo lu n tá ria e in d iv id u a l, à
guisa d e m arketing, d e va lo riza çã o d a m arca ou de outro ganho.
Para C h e ib u b e L o c k e (2 0 0 2 ), tais n u a n c e s não im p o rtam m u ito e
é d ifíc il, senão im p o ssível, e sta b e le ce r as m o tiva çõ e s reais das açõ e s
so ciais das em p resas no e n v o lv im e n to co m R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l.
O s a u to res q u estio n am tam b é m o p o rq u ê de se e n fo c a r tão e n fa tic a ­
m ente as em p resas sem co n sid e ra r outras in stitu içõ e s co m o sin d ica to s,
asso ciaçõ e s, en tre o utras e n tid a d e s, q u e tam b é m p o d em g erar algum
tipo d e p re d ação so c ia l. N o e n ta n to , esses m esm o s auto res c o n sid e ­
ram , co m o nós e A m a e sh i e Bongo (2 0 0 6 ), q u e é in e q u ív o c o q ue
as em p resas estão c re sce n te m e n te a d o ta n d o essa nova postura social
p rivad a e q u e isso p o d e ser não ap e n as c o m p a tív e l co m ganhos in d i­
v id u a is, m as tam b ém com o interesse p ú b lico .
Portanto, a partir d e u m a a n á lise das origens e dos p rin cip a is a s­
pectos da R e sp o n sab ilid ad e So cial no B ra sil, estam o s in teressad o s em
e x p lo ra r q uestõ es: C o m o as e n tid a d e s co rp o ra tiva s estão in te rag in ­
do co m esse n ovo d iscu rso e m p re sa ria l? Q u a is são as categ o rias nele
e n fatizad as? Q u a is são as se m e lh a n ç a s e d ife re n ça s d a postura das
o rg a n iza çõ e s co rp o rativas a c e rc a da c o n c e p ç ã o p re d o m in a n te de R es­
p o n sa b ilid a d e S o cial? N este artigo, e n fo ca m o s ap e n as o e m p re sa ria d o
in d u strial, por m eio d as suas Fe d e raçõ e s Estad uais, e x a m in a d a s aqui
pelas in fo rm açõ e s co n tid a s nos seus sites in stitu cio n a is. Esse fo co se
ju stific a pelo fato d e a R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l, no B ra sil, ter-se o ri­
g inad o da in d ú stria, sem p re ju ízo d e sua in co rp o ra ç ã o pelos outros
setores, o q u e está o c o rre n d o e m e re ce a te n ç ã o .
D e q u a lq u e r fo rm a , p o d e m o s a d ia n ta r q u e o q u e se a p re e n d e da
p esq u isa, é q u e h o u ve , sim , u m a sig n ificativa in co rp o ra ç ã o das id eias
d e R e sp o n sa b ilid a d e So cial nas e n tid a d e s co rp o ra tiva s, m as essa a p ro ­
p riação m ostrou-se algo v a riá v e l. D essa fo rm a , não foi possível id e n ti­
fic a r um fo rm ato d e in co rp o ra ç ã o e sp e c ífic o , q u e englobe todas as Fe ­
d e ra ç õ e s, nem fa ze r c o rre la çõ e s e xp lic a tiv a s co m fato res e xte rn o s às
o rg an izaçõ e s, d igam os, co m o o nível do d e se n v o lv im e n to dos estados
p o d eria in d icar. A ssim m e sm o , p are ce -n o s q u e a a m p la ad e são à nova
postura "so cia lm e n te re sp o n sá ve l" e seu c o n te ú d o p lural sugere um a
sig n ificativa re n o va çã o da visão e m p re sa ria l d o so cial nas e n tid a d e s
co rp o ra tiva s, p rin cip a lm e n te se co m p a ra d a à visão so cial dos e m p re ­
sários no p e río d o d a m o d e rn iz a çã o d e se n vo lvim e n tista , tip ic a m e n te
ce n tra d a na fá b ric a , ou no ram o ou setor e c o n ô m ic o .
Isso ab re um se m -n ú m e ro d e q uestõ es da m aio r im p o rtâ n cia para
re laçõ es co n cre ta s en tre e m p re sá rio s, g overn o e so c ie d a d e no âm b ito
das p o líticas p ú b licas, assim co m o para as te o riz a çõ e s sob re um novo
pap el social das em p resas nas so cie d a d e s d e m e rc a d o , d e q u e não
tratarem o s a q u i, m as estão na nossa pauta de p re o cu p a çõ e s.
Para re sp o n d e r às q uestõ es q u e nos p ro p u sem o s neste artigo, re c u ­
p erarem o s as origens, os d e lin e a m e n to s e d e sd o b ra m e n to s d o m o v i­
m ento em to rn o d a R e sp o n sa b ilid a d e S o cial no B rasil. Em seg uid a,
a p re se n ta re m o s os resultad o s d a in vestig ação e da d iscu ssão desse
m aterial à lu z da nossa proposta d e a n á lise , co m o q u e ch e g are m o s às
c o n c lu sõ e s d e lin e a d a s no d e se n v o lv im e n to do tra b a lh o , a rticu la n d o -
as a partir do q u e p o d em ser os p rim e iro s m o m en to s da in te ra çã o da
R e sp o n sa b ilid a d e S o cial co m os se viço s so cia is d o Sistem a S.
Em v e z d e re a liz a r u m a c o m p a ra çã o e xa u stiva e n tre todos os Esta­
dos, d e cid im o s e n fo c a r a m issão e/ou o b je tivo s das fe d e ra ç õ e s, assim
co m o açõ e s d e se n vo lvid a s por algum as fe d e ra ç õ e s. A lé m disso, é im ­
p o rtan te e sc la re c e r q u e , para a d e q u a r nossa a n á lise às fo rm as c o n c re ­
tas pelas q u ais a p a re c e , nestes m a te ria is, algum grau d e p re o cu p a çã o
co m a re sp o n sab ilid ad e da in d ú stria, foi p reciso q u e e xp a n d ísse m o s
o c o n te ú d o d e nosso p ró p rio c o n c e ito . T ra b a lh á va m o s, in ic ia lm e n te ,
co m um c o n c e ito d e R e sp o n sa b ilid a d e S o cial Em p resarial tal co m o
sugerid o pelo Instituto Ethos, p ara o q u a l, a re sp o n sa b ilid a d e e m p re sa ­
rial d e ve ab ran g er não só o c u m p rim e n to da lei nem a p e n a s a ação so ­
cial p ro p ria m e n te d ita, m as um m o d e lo m ais a m p lo d e c o n d u ç ã o dos
n egócios q u e englob e todos os asp ecto s d a p ro d u çã o e da gestão.
N esse m o d e lo , tod o e q u a lq u e r asp e cto da a tivid a d e e m p re sa ria l é
visto co m o en g lo b ad o sob a ru b rica d a re sp o n sa b ilid a d e . N o e n tan to ,
ao an alisar os sites das fe d e ra ç õ e s, logo d e sco b rim o s se r n e ce ssá rio e x ­
p a n d ir a in d a m ais o c o n c e ito para d ar co n ta das d ife re n te s fo rm as p e ­
las q u ais tais p re o cu p a çõ e s vê m sen d o in co rp o rad a s pelas fe d e ra çõ e s.
Em outras p alavras, nem se m p re as fe d e ra çõ e s se u tiliza m dos m esm o s
co n c e ito s para d ar sig n ificad o às m esm as a çõ e s ou p e rce p çõ e s acer-
ca d o n ovo p ap el so cial da in d ú stria : e n q u a n to alg um as falam e x p li­
c ita m e n te d e re sp o n sab ilid a d e so cial e m p re sa ria l, outras p referem o
term o d e se n v o lv im e n to su sten tável, por e x e m p lo . N o e n ta n to , am b as
p o d em estar se re fe rin d o ao m esm o c o n ju n to de id e ia s, segundo o
q ual a e m p re sa é p e rce b id a c o m o te n d o um pap el so cial no d e se n v o l­
v im e n to do país e até m esm o na re so lu ção das q uestõ es so ciais.
Portanto, e x p a n d in d o o c o n c e ito para q u e fosse possível d ar co nta
d as várias fo rm as pelas q u ais as fe d e ra ç õ e s e sp e cífica s o vê m u tiliz a n ­
d o , foi possível p e rce b e r q u e p ra tica m e n te todas as fe d e ra çõ e s esta­
d u a is p ressu p õ em algum re c o n h e c im e n to da im p o rtâ n cia e n e ce ssi­
d ad e da R e sp o n sab ilid ad e S o cia l, o q u e nos p a re ce u m a im p o rtante
co n statação , a in d a q u e m e re ça a p ro fu n d a m e n to , e v id e n te m e n te , em
o utros trab alh o s.

1 O R I G E N S E E V O L U Ç Ã O D A R E S P O N S A B I L I D A D E S O C I A L NO B R A S I L

O q u e se co n fig u ro u d e fo rm a m in im a m e n te re c o n h e c id a co m o
R e sp o n sa b ilid a d e S o cial Em p re sa ria l no Brasil d e h o je co n stitu i-se
c o m o um novo tip o d e açõ e s e p ro je to s d e in te rv e n ç ã o so cial e a m ­
b ie n ta l, d e se n v o lv id o s por um se m -n ú m e ro d e e m p re sa s, e m p re s á ­
rios e o rg a n iza çõ e s p o r e le s c o n stitu íd a s. D ife re n te m e n te d as p rá ti­
cas fila n tró p ic a s, q u e se ria m a q u e la s m a rca d a s p elo v o lu n ta rism o e
a ltru ísm o , essas açõ e s e p ro jeto s visam in te rv ir em p ro b le m a s so cia is
e a m b ie n ta is co m o p arte in teg ran te da p ró p ria a tiv id a d e e m p re sa ria l,
te n d o p o r base a id e ia d e q u e , em vista dos lu cro s q u e as e m p re sa s
a u fe re m co m a u tiliza ç ã o dos re cu rso s h u m a n o s e m a te ria is d a s o c ie ­
d a d e , ca b e a elas u m a re sp o n sa b ilid a d e e sp e cia l d e co m p e n sa r, de
alg u m a fo rm a , a p ró p ria so c ie d a d e .
D e n tre tod os os fato res q u e c o n d u z ira m ao su rg im ento da R e sp o n ­
sa b ilid a d e S o cial Em p resarial no B ra sil, p a re ce -n o s q u e a c rític a às d i­
fic u ld a d e s do W elfare State d e m a n te r o e n fo q u e u n ive rsalista , o riu n d a
dos países d e se n vo lvid o s do H e m isfé rio N orte nos an o s 1 9 8 0 , fo rm o u
c o m o q u e o p ano d e fu n d o dessa m u d an ça e , p o rtan to , po d e se r o
p rim e iro item a ser c o n sid e ra d o . C o m isso, foi v a lo riza d a u m a fo rm a
d e assistên cia m ais seg m e n tad a, em q u e a so c ie d a d e estivesse m ais
d ire ta m e n te e n v o lv id a , in clu sive a rca n d o co m parte dos custos dos
program as so ciais (E S P IN G - A N D E R S E N , 1 9 9 5 ).
Tal revisão do W elfare State, q u e d e ita ra íze s na crise dos ano s 1 9 7 0 ,
q u e e n ce rro u o c ic lo d e p ro sp e rid a d e do pós-guerra do m u n d o o c i­
d e n ta l, eco o u no Brasil nos anos 1 9 9 0 , ou se ja , e x a ta m e n te no m o ­
m ento em q u e se firm a v a a id eo lo g ia n e o lib e ra l. C o m base em um a
am p la c rític a ao m o d elo d e se n vo lvim e n tista q u e h avia guiad o o Brasil
por p ra tica m e n te c e rc a de c in q u e n ta ano s, fo rm o u -se e n tre as e li­
tes b rasileiras n aq u e le m o m e n to um grand e co n se n so em to rn o do
id eário n e o lib e ra l, visto co m o ú n ica saíd a para se c o m b a te r d e v e z a
in fla çã o c rô n ic a q u e nos assolava e q u e h avia ch eg ad o à h ip e rin fla çã o
na d é ca d a a n te rio r (D IN IZ , 1 9 9 7 ).
D ife re n te m e n te das tentativas da seg und a m e tad e dos anos 1 9 8 0
de se c o m p a tib iliz a r cre scim e n to e c o n ô m ic o e re d istrib u içã o através
d e vário s planos e c o n ô m ico s h e te ro d o xo s, a n ova o rie n ta çã o p re ­
v a le ce n te nos ano s 1 9 9 0 p rio riza v a o co m b a te à in fla çã o através de
p o líticas o rto d o xas d e e sta b iliza ç ã o , in d e p e n d e n te m e n te d as c o n se ­
q u ê n cia s regressivas q u e d elas p u dessem advir. A ssim , além de um a
luta irrestrita co n tra a in fla çã o , a nova postura e n v o lv ia a im p le m e n ta ­
ção d e am p las refo rm as lib e ra liza n te s na e c o n o m ia e no Estado, co m o
a lib e ra liza ç ã o e a d e sre g u lam e n ta çã o e c o n ô m ic a , a p riv a tiz a çã o das
em p resas estatais e a refo rm a a d m in istra tiv a , e n tre outras m e d id as.
Esse d iag n ó stico ganhou esp a ço já nos p rim e iro s ano s da d é ca d a de
1 9 9 0 , com o g overn o C o llo r, e a m p lio u -se na a d m in istra ç ã o Fe rn a n d o
H e n riq u e , q u e tam b é m o b teve o p rim e iro sucesso de co m b a te d u ra ­
d o u ro à in fla çã o co m o P lan o R e a l, im p le m e n ta d o pelo seu a n te c e s­
sor, Itam ar Fran co . D e n tro dessa re visão d o m o d elo d e se n v o lv im e n ­
tista, ataco u -se tam b é m o p aradigm a d o m o d e lo d e assistê n cia so cial
vig en te no país, p ra tica m e n te nos m esm o s term o s em q u e o W elfare
State tin h a sid o c ritic a d o d esd e o fin al dos ano s 1 9 7 0 no e xterio r. S e ­
g uin d o essa nova visão , o g overn o Fe rn a n d o H e n riq u e im p le m e n to u
u m a sé rie d e refo rm as do sistem a b rasileiro d e b em -estar so c ia l, a p a r­
tir do q u e ganhou im p o rtâ n cia a fo rm a çã o d e p a rce ria s co m a so c ie ­
d ad e c iv il (A R R E T C H E , 1 9 9 9 ). Estas fo ram v ia b iliza d a s pelas c h a m a d a s
"L e i d o V o lu n ta ria d o ", d e 1 9 9 8 , e "L e i das O S C IP " (O rg a n iza ç õ e s da
S o cie d a d e C iv il d e Interesse P ú b lico ), d e 1 9 9 9 , im p le m e n ta d a s por
esse m esm o g overn o (S Z A Z I, 2 0 0 5 ).
D e q u a lq u e r fo rm a, estávam o s no m o m en to pó s-co n stitu in te e , do
lado da so cie d ad e c iv il, tam b ém se notava um a m o b iliza çã o no sen-
tido d e in stitu cio n alizar os esp aço s d e p a rticip a çã o co n q u istad o s com
as lutas dos anos an terio res, d esd e a re d e m o cra tiza çã o (D A G N IN O ,
2 0 0 2 ). N esse co n texto , o Instituto B rasileiro d e A n álise Social (Ibase) e
seu presidente H e rb e rt d e So uza (B etin ho ) tiveram um papel d in a m iz a ­
d o r m uito im p o rtante, ao c h a m a r a a te n ção para a e xistê n cia de fom e
no país, c o n cla m a n d o a todos, em 1 9 9 3 , para q u e co labo rassem para
saná-la através de d o açõ es. O Ibase, na v e rd a d e , já vin h a re alizan d o a l­
gum as cam p an h as sociais desd e os anos 1 9 8 0 , m as esta c a m p a n h a em
esp ecial procurou ligar a so lução desse pro b lem a social básico - q u e é
a fo m e - à so cied ad e brasileira co m o um to d o , ao intitular-se "Ação da
C id a d a n ia co n tra a M iséria pela V id a ". Pode-se d ize r q u e , d e fin id a n es­
ses m oldes, tal in iciativa foi e xtre m a m e n te b em -su ce d id a, tend o obtido
ap o io e xp líc ito d e vários setores sociais, in clu sive dos e m p resário s4.
T alvez não p o r c o in c id ê n c ia , este foi tam b é m o m o m e n to em q ue
em erg iu o m o vim e n to "R eag e R io ", q u e b u scava m o b iliza r so cie d a d e
e g overn o co n tra o q u e foi visto c o m o e sca la d a de v io lê n c ia por q ue
passava a c id a d e do Rio d e Ja n e iro , o q u e d e p o is e co o u em outras
g randes c id a d e s b rasileiras. L id e ra d o pelo an tro p ó lo go R ub em C é sa r
Fe rn a n d e s, o m o vim e n to se tra n sfo rm o u , no caso d o R io d e Ja n e iro ,
em outra im p o rtan te O rg a n iza ç ã o N ão G o v e rn a m e n ta l: o V iv a R io 5.
M ais tard e , no fin a l dos ano s 1 9 9 0 , o m e sm o B e tin h o , sin to n iza d o
co m essas m u d an ça s, in icio u u m a luta p ela a d o çã o d e um R elató rio
S o cial p elas e m p resas. Tal re la tó rio , na c o n c e p ç ã o de B e tin h o , seria
c o m o q u e um sinal p ú b lico da a tu a çã o so c ia lm e n te resp o n sável de
ca d a e m p re sa , v in d o a se ju n ta r a um c o n ju n to d e novas n o rm atiza-
çõ es in te rn a cio n a is do co m p o rta m e n to e m p re sa ria l so cia lm e n te res­
p o n sável. E estas, p o r sua v e z , tam b ém e stim u lara m a d isse m in a çã o
dos p rin cíp io s d a R e sp o n sa b ilid a d e S o cial Em p re sarial e n tre nós.
A ssim , o c e n á rio do su rg im ento da R e sp o n sa b ilid a d e So cial E m p re ­
sarial no Brasil é bastante c o m p le x o , co m d iverso s d e te rm in a n te s e
d e sd o b ra m e n to s: por um lad o , a crise do tra d icio n a l m o d elo d e assis­
tê n c ia so cial e p re v id ê n c ia u n ive rsalista do W elfare State, q u e e co o u
nas refo rm as d o m o d elo d e d e se n vo lvim e n to do país nos anos 1 9 9 0
vo ltad as para p rio riza r os d e te rm in a n te s d e m e rca d o . Por o u tro , a so-

4 Ver Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - Ibase (2006).


5 Ver Viva Rio (2006).
c ie d a d e não só c o m e ç a v a a re cla m a r m ais dos p ro b le m as so cia is, m as
- d e fo rm a in éd ita - tam b é m se e n v o lv ia ca d a v e z m ais co m a lte rn a ­
tivas à in te rve n çã o estatal para so lu cio n á -lo s. F in a lm e n te , essa m esm a
so c ie d a d e tam b ém c o m e ç a v a a te r u m a v o z ca d a v e z m ais ativa na
a va lia çã o d o q u e re ce b ia co m o co n su m id o ra .
D e n tro desse q u ad ro , foi su rp re e n d e n te o b servar q u e os e m p re sá ­
rios, tra d icio n a lm e n te m arcad o s por u m a postura reativa às m u d an ças
p o lítico -e co n ô m icas, e sem d e m o n strar um a p re o cu p a çã o m ais efetiva
co m as q uestões so ciais, passaram por um processo d e p ro fun d a m u ­
d an ça . Tal re n o vação se e x p lic ito u , p rin cip a lm e n te , através do e n v o lv i­
m ento e m p resarial em vário s tipos d e açõ e s e projetos so ciais, o q u e ,
por sua v e z , abriu c a m in h o para a fo rm a çã o d e novas asso ciaçõ es de
classe m uito distintas d aq u elas e n tid a d e s co rp o rativas em q ue tra d ic io ­
n alm e n te tin h am se e n vo lv id o ao longo de nossa história re ce n te .
Esse e n vo lv im e n to d erivo u tam b ém do processo d e transição d e m o ­
c rá tica , no q ual alguns setores re co n h e c e ra m q u e sua busca por in ­
flu ê n c ia na d e fin içã o de novos ru m o s para o Brasil não podia passar à
m argem de um p o sicio n am e n to so b re nossos p ro b lem as so ciais, m ais
do q u e n u n ca e xp licita d o s. P io n e iro e e m b le m á tico nessa m u d an ça dos
em p resário s foi o Pensam ento N acio n al das Bases Em p resariais (P N B E ).
Surgido em m ead os de 1 9 8 7 , o P N B E foi um m o vim e n to d e reação
de jo ven s líd eres da indústria paulista à o lig a rq u iza çã o d a Fe d e ração
das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a seu silê n cio fren te às
q uestões em pauta na re d e m o cra tiza çã o do B rasil. B u scan d o te r um
lugar pró p rio na o rg an ização dos e m p resário s e q u e re n d o levar um a
n ova vo z à p o lítica n a c io n a l, o P N B E en tro u na ce n a p o lítica lutando
por u m a o rie n ta çã o social das p o líticas e co n ô m ica s e pelo fo rta le c i­
m ento das práticas d e m o crá tica s em todos os n íve is, in clu sive d entro
da p ró p ria o rg an ização q u e n ascia. D essa fo rm a , esse novo m o vim e n to
se n otab ilizo u por u m a co nstante luta por p o líticas e c o n ô m ica s redis-
trib u tivas, baseadas na n eg o ciação aberta e n tre as classes. Foi co m essa
ag end a, q u e se a p ro xim a v a d e u m a postura so cia l-d e m o cra ta , q u e o
m o vim en to trab alh o u , p rin cip a lm e n te e n q u a n to esteve m ais p ro e m i­
n ente na ce n a p ú b lica n a c io n a l: no p erío d o en tre 1 9 8 7 e 1 9 9 4 .
Preo cu p ad o s em m a rcar sua sin g u larid ad e no c o n ju n to da classe,
líd eres do P N B E desd e ced o tentaram se n sib iliza r o grupo para q u e
praticassem um a "c id a d a n ia e m p re sa ria l", d e m o n stran d o por m eio de
in iciativas co n cretas as p o ssib ilid ad es d e so lu cio n a r os p ro b lem as so ­
ciais do país. E não foram m enos b e m -su ce d id o s nesse asp ecto , pois
d esd e seus prim eiro s anos d e atu a ção até os dias de h o je, o m o vim en to
d e sen vo lveu um a série de ativid ad e s nesse sen tid o , d esd e as p arcerias
em presa-escola ao d e se n vo lvim e n to d e projetos am b ie n tais, passando
pelo e n vo lv im e n to com causas so ciais co m o a luta co ntra a e xp lo ra çã o
do trab alho in fan til, en tre outras q uestões. N o fin al dos anos 1 9 9 0 ,
cheg aram m esm o a se ab rir para u m a a m b icio sa te n ta tiva : a d e pro p o r­
c io n a r um m ín im o de c o n d içõ e s dignas de vid a a todos os m o rad o res
d e rua adultos de São Paulo, através da co n stru ção de abrigos pú b lico s
sob os viad u to s da c id a d e . Foi o projeto "M in h a rua, m in h a casa" q u e ,
no en tan to , term in o u por fic a r restrito a um a ú n ica u n id a d e , va lo riza d a
pelo m o vim en to pelo seu "e fe ito d e m o n stra çã o ". Investind o na m esm a
lin h a, o P N B E instituiu o q u e ve io a se to rn a r o prestigioso "P rê m io
P N B E d e C id a d a n ia ", q u e h o m en ag earia todo a n o in d ivíd u o s q u e se
destacassem em sua atu ação em prol da d efesa d a cid a d a n ia . C ria d o
em parte para h om enag ear B e tin h o - o p rim e iro ag raciad o - esse p rê­
m io ilustrava o re co n h e c im e n to e m p re sarial do novo e n fo q u e q u e a
questão social g an hava. Seg u in d o o m esm o o b je tivo , a h om enag em já
foi c o n c e d id a ao ex-m inistro da S aú d e , A d ib Jaten e, ao sociólogo C a io
Ferraz e ao jurista Fáb io K o n d e r C o m p a ra to , en tre outros.
A in d a q u e restrita a um p eq u e n o grupo de e m p re sário s, m ais re c e n ­
te m e n te tal atu ação vem se d esd o b ra n d o em outras in icia tiva s vo ltad as
5

para p ro b lem as sociais não m eno s graves: foi do P N B E q u e se origi­


naram en tid ad es em p resaria is co m o a Tra n sp a rê n cia Brasil (em 2 0 0 0 ),
vo ltad a para a luta co n tra a c o rru p çã o , o Instituto A ka tu (em 2 0 0 1 ), v o l­
tado para a p ro m o ção d o co n su m o c o n scie n te e, m ais re ce n te m e n te , o
Instituto E T C O (2 0 0 3 ), en gajad o na d efesa d a c o n c o rrê n c ia . Le m b re -se ,
a in d a , d e q u e o P N B E esteve tam b ém à frente da c a m p a n h a pelo im-
peach m en t do p resid en te C o llo r e da fo rm a çã o do Instituto São Paulo
C o n tra a V io lê n c ia . N ão por c o in c id ê n c ia , portanto, esse m o vim en to
acab o u por se co n stitu ir em re fe rê n cia fu n d a m e n ta l d en tro da R e sp o n ­
sab ilid ad e So cial Em p resarial. Isso se d eu in clu sive pelo fato d e q u e um
d e seus fu n d ad o res, O d e d G ra je w , viria a ser a fig u ra-ch ave nessa área
no B rasil: foi ele q u em form o u a Fu n d ação A b rin q , em 1 9 9 0 , e tam b ém
q u e m fu n d o u o Instituto Ethos d e R e sp o n sab ilid ad e So cial Em p re sarial,
já m e n c io n a d o an te rio rm e n te (G O M E S ; G U IM A R Ã E S , 2 0 0 4 ).
O Instituto Ethos e sp ecializo u -se em p ro m o ver a prática de R esp o n ­
sab ilid ad e Social Em presarial em duas linh as d e atu a ção : o d e se n vo l­
vim e n to de um a série d e açõ es indutoras d ire cio n a d a s a em presas e
a d isse m in ação , por m eio dos ch a m ad o s "agentes m u ltip lica d o re s"
(co m o jornalistas e professores), da pró pria id eia de q ue o setor e m p re ­
sarial tin h a re alm en te um a d e te rm in a d a re sp o n sab ilid ad e a ser c u m p ri­
d a. M ais co n cre ta m e n te , o Instituto Ethos volta-se para a re alizaçã o de
congressos e outros en co n tro s profissionais, o fe re ce prêm io s aos p ro ­
jetos sociais das em p resas e a estudos sobre R esp o n sab ilid ad e S o cial,
além de d e sen vo lver um a extensa lista d e p u b lica çõ e s e sp e cia liza d a s
sobre o assunto. A p are n te m e n te co n so lid a d o co m o a instituição m ais
im portante na área de R esp o n sab ilid ad e Social Em presarial no Brasil, o
Instituto Ethos chega a se a lin h a r co m o Ibase na d isse m in ação do uso do
B alan ço S o cial, m as acab ou por d e se n vo lve r seus próprios instrum entos
de avaliação , q ue são os Ind icad o res Ethos de R esponsabilidade So cial6.
D e q u a lq u e r fo rm a, não m enos relevante q u e a fu n d a çã o do Instituto
Ethos, foi a fo rm ação do G ru p o de Fu nd açõ es, Institutos e Em presas
(G ife ), em 1 9 8 9 . Esta é um a ve rd a d e ira o rg anização d e cú p u la , fo rm ad a
por c e rca d e 6 0 grandes em p resas, fu n d açõ e s e instituições, todas v o lta ­
das para ações e/ou investim entos sociais d esen vo lvid o s ou fin a n cia d o s
por em p resário s. O rig in alm e n te um grupo de trab alho da C â m a ra A m e ­
rican a d e C o m é rc io d e São Paulo, nascido d a n ecessid ad e d e se e n c o n ­
trar form as de parcerias en tre o Estado e as organizaçõ es d a so cie d ad e
civil na busca d e soluções para as desigualdades sociais do país, o G ife
se in stitucionalizou em 1 9 9 5 , m otivado p rin cip a lm e n te pelos p ro b le­
m as de c re d ib ilid a d e q u e a área d a filan tro p ia em p resarial passava na
m etad e d a últim a d é ca d a 7. A fo rm ação do G ife e do P N B E talvez seja
o e xe m p lo m ais em b le m ático da grande im p o rtân cia q ue as ideias de
R esp o n sab ilid ad e Social ganharam no m eio em p resarial brasileiro, um a
v e z q u e , h isto ricam en te, esse setor social quase sem p re teve suas e n ti­
d ad es de classe subm etidas a um ou a outro tipo d e tutela do Estado.
Por ú ltim o , m as não m eno s im p o rta n te , há a re ce n te co n sta ta çã o ,
em u m a p esqu isa do Instituto d e Pesquisa E co n ô m ic a e A p lic a d a
(Ip e a), da d isse m in a çã o d e práticas d e açõ e s so cia is vo lu n tá ria s por

6 Ver Instituto Ethos (2006).


7 Ver Grupo de Institutos, Fundações e Empresas - Gife (2004).
todo o e m p re sa ria d o b ra sile iro 8. C o o rd e n a d a por A n n a P e lia n o , a
pesquisa A ç ã o S o cial d as Em p resas fe z um estu d o q u a n tita tivo dessa
p rática, m as já su rp re e n d e u in d ica n d o q u e , para todo o país, c e rc a de
6 0 % dos e m p re sá rio s h aviam se e n v o lv id o em pelo m eno s u m a ação
desse tip o no a n o 2 0 0 0 . A pesquisa re velo u a in d a q u e a p e n a s 2 0 %
dos em p re sário s não h aviam tid o n e n h u m tipo d e e n v o lv im e n to com
açõ e s so ciais (P E L IA N O , 2 0 0 1 ).
E n fim , a re n o va çã o no m e io e m p re sa ria l b ra sile iro q u a n to às q u e s­
tões so ciais p a re ce ser m u ito p ro fu n d a . Isso se p e rce b e não só pela
fo rm a çã o dessas n ovas e n tid a d e s, m as tam b é m por o utro fato m e re ­
c e d o r d e n ota: a in d a m ais re ce n te m e n te , as antigas o rg a n iza çõ e s de
classe d o sistem a co rp o rativista dos e m p re sá rio s tam b é m se ab riram
para a q uestão da R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l. Exe m p lo m a io r disso é a
tran sfo rm ação re ce n te d o slogan d o S e rv iço S o cial da Ind ústria (Sesi)
co m o “ a m arca da re sp o n sa b ilid a d e s o c ia l". C a p p e llin , G iu llia n i, M o ­
rei e Pessanha (2 0 0 2 ) já situ aram os p rim ó rd io s desse d iálo g o , m as
a in d a não se sabe e xa tam e n te co m o está se d an d o esse pro cesso , q ue
é o tem a e sp e c ífic o da p ró xim a se çã o .

2 0S IM P A C TO S D0 M O V IM E N T O EM T O R N O DA R E S P O N S A B I L I D A D E
S O C I A L N A S E N T I D A D E S C O R P O R A T IV A S

Passem os, p o rtan to , a e x a m in a r a cre sce n te p re o cu p a ç ã o co m a res­


p o n sa b ilid a d e e a su ste n ta b ilid ad e tal co m o vêm se c o n stru in d o nas
Fed eraçõ es Estad uais da In d ú stria, região por região. N o te-se q u e c o n ­
ce n tra m o s a an álise n aq u e le s estados q u e possuem os program as m ais
atu an tes, o q u e não q u e r d iz e r q u e tal não se m o d ific a rá . A esco lh a
d e ve u -se ao fato d e q u e , nos Estados não in clu íd o s nesta a n á lise , a
R e sp o n sab ilid ad e S o cial não p a re ce o c u p a r pap el sig n ificativo . Perce-
beu-se isso na p esq u isa pelo fato d e q u e algum as fe d e ra çõ e s não pos­
su em sites q u e in clu a m o te m a da R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l, seja em
sua m issão ou o b je tivo s, seja na d e scriçã o de suas esferas d e a tu a çã o .
D e n tro da região N o rte , o estado do A c re su rp re e n d e u pelo seu
c la ro co m p ro m isso q u an to à R e sp o n sa b ilid a d e S o c ia l. A Fe d e raçã o
d as Ind ústrias do Estado d o A c re (Fie ac) cheg a a in clu ir, co m o seus

8 Ver Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea (2006).


o b jetivo s m ais im e d iato s, a "re sp o n sa b ilid a d e so cial e a m b ie n ta l, [e a]
re la çã o é tica e tran sp aren te da o rg a n iza çã o co m tod as as suas partes
in teressad as, visan d o o d e se n v o lv im e n to su ste n tá ve l" (F IE A C , 2 0 0 6 ).
Essa d e fin iç ã o d e seus o b jetivo s se c o m p le m e n ta co m sua m issão, na
q ual a d efesa dos interesses e m p re sa ria is se a lia à busca do d e se n v o l­
vim e n to su sten tável.
A e n tid a d e possui a in d a um p ro jeto vo ltad o e sp e c ific a m e n te para a
p ro m o ção da R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l. In titu lad o "F ie a c S o lid á rio ", o
p ro jeto p re te n d e , c o n fo rm e d e sc riç ã o no site:

Catalisar e propagar o espírito sinérgico de pessoas e instituições sensí­


veis aos graves problemas sociais que afligem a comunidade acreana,
incentivando a mobilização de mutirões de solidariedade institucional,
com foco no exercício da responsabilidade social, junto a organizações
não governamentais de carência comprovada e de reconhecida missão
social, na oferta de alguns de seus produtos e serviços (FIEAC, 2006).

O Fieac S o lid á rio , tra b a lh a n d o em co n ju n to co m o Sesi e o S e n a i,


tem co m o sua p rin cip a l a tiv id a d e , no m o m e n to , o a te n d im e n to a jo ­
ven s e ad u lto s d e p e n d e n te s q u ím ic o s e a lc o ó lic o s. São o fe re cid o s tra ­
tam en to o d o n to ló g ico , a u x ílio a lim e n tar, palestras e d u c a tiv a s, e vagas
nos cursos d e q u a lific a ç ã o pro fissio nal e d e e n sin o fu n d a m e n ta l e m é ­
d io (as vagas são d isp o n ib iliz a d a s através d as u n id a d e s o p e ra cio n a is
do Sesi e S e n a i). A lé m d o tra b a lh o co m o Sesi e o S e n a i, o p ro jeto b u s­
c a , se m p re , interagir co m O rg a n iza ç õ e s N ão G o v e rn a m e n ta is. Esta­
b e le ce -se , assim , um m o d elo d e a tu a çã o em R e sp o n sa b ilid a d e So cial
q u e é bem c a ra cte rístico no p aís: a q u e le no q ual institutos, fu n d a ç õ e s,
a sso ciaçõ es e tc ., fo rm ad as por e m p re sá rio s d o seto r p riva d o , tra b a ­
lham em prol d e u m a cau sa p ú b lica , não só fin a n c ia n d o p ro jeto s, m as
re alm e n te c o n stru in d o p arce ria s e c o o p e ra ç õ e s en tre e m p re sá rio s e
o rg an izaçõ es da so c ie d a d e c iv il (sejam elas O rg a n iza ç õ e s N ão G o v e r­
n am e n tais p ro p ria m e n te d itas, ou m e sm o o rg a n iza çõ e s fila n tró p ica s).
N o caso do A c re , por e x e m p lo , a o rg a n iza çã o -p a rce ira do Fie a c S o li­
d ário nesse p rojeto d e re cu p e ra ç ã o de jo v e n s é a in stitu içã o fila n tró p i­
ca D e sa fio Jovem P en ie l, q u e atu a há 3 0 ano s no Brasil e há 8 anos em
Rio B ra n c o . A s açõ es p ro m o vid a s por essa in stitu içã o são bem p o n tu ais
e d e c id id a m e n te fila n tró p ic a s, m as fo ram in co rp o rad a s co m o parte
d a d e fin iç ã o d e m etas do Fie a c S o lid á rio . O u se ja , as m etas e sta b e le ­
cid as pela Peniel é q u e são re ap ro p ria d a s e , por e xte n sã o , c u m p rid a s
pelo Fie ac S o lid á rio . Isso, por si só, d e m o n stra d uas c a ra cte rística s da
R e sp o n sab ilid ad e So cial nessa fe d e ra ç ã o : em p rim e iro lugar, a c o n so ­
lid ação de p arcerias em prol do bem c o m u m e d e p ro jeto s vo ltad o s
para os m ais n ecessitad o s, n um m o d e lo ca d a v e z m ais presen te em
todo o país; m as, em segundo lugar, o fato d e a Fie a c se u n ir a u m a e n ­
tid a d e d e c u n h o d e c id id a m e n te fila n tró p ic o e assistencialista q u e , por
d e fin iç ã o , vai na co n tra m ã o do p ró p rio c o n c e ito d e R e sp o n sa b ilid a d e
S o cial (A S H L E Y , 2 0 0 5 ), o q u e acab a por lim ita r os rum o s dessa a ç ã o .
So m o s co n vid a d o s a ler, no site do Fie a c S o lid á rio , q u e a in stitu ição
"atu a na re ab ilita çã o d e jo ve n s e ad u lto s, d e p e n d e n te s q u ím ic o s e
a lc o ó lic o s, m e d ian te a e x e c u ç ã o de program as te ra p ê u tico s o cu p a cio -
nais cristão s, q u e possam m otivá-lo s a d e ix a r o m u n d o das d ro g as". A
ên fase nos program as o c u p a c io n a is cristão s, p o rtan to , já in d ica q u e ,
ap e sar d e, em sua d e fin iç ã o d e m etas e o b je tivo s, o Fie a c S o lid á rio
p re te n d e r d e fin ir-se c o m o e n tid a d e vo ltad a para a R e sp o n sa b ilid a d e
S o cial do setor in d u strial b ra sile iro , o m o d e lo re alm e n te seg uido , na
p rática, acab a por in co rp o ra r práticas assistencialistas e fila n tró p ic a s -
ou se ja , e xa tam e n te a q u ilo q u e o p ró p rio c o n c e ito d e R e sp o n sa b ilid a ­
d e S o cial Em p resarial p re te n d e negar (F E R N A N D E S , 1 9 9 4 ). N esse se n ­
tid o , p a re ce inegável q u e há d ife re n ça s p ro fu n d as e n tre esse m o d elo
d e a ção so cial e o outro m o d e lo , m ais a b ra n g e n te , da in d ú stria e dos
negócios re sp o n sáveis (co m o proposto p elo Instituto Ethos). A fin a l, tal
c o m o ve m sen d o d e se n vo lvid o na lite ra tu ra , o c o n c e ito de R e sp o n ­
sa b ilid a d e So cial Em p resarial não p o d e nem d e ve en g lo b ar açõ e s de
c u n h o fila n tró p ic o ou m esm o religioso (C F iE IB U B ; L O C K E , 2 0 0 2 ).
Q u a d ro se m e lh a n te foi e n co n tra d o na região N o rd este o n d e , e m ­
bora p ra tica m e n te todos os estados in d iq u e m seu co m p ro m isso com
o d e se n vo lvim e n to su sten táve l, não se d e fin e o q u e seja tal d e se n v o l­
v im e n to e co m o e xa ta m e n te as in d ú strias p o d em c o n trib u ir para sua
c o n stru ç ão . P o rém , n o v a m e n te , não se po d em p e rce b e r c o rre la çõ e s
im ed iatas e n tre graus d e in d u stria liza ç ã o , por e x e m p lo , ou o utras e s­
p e c ific id a d e s q u e ju stificasse m um m a io r ou m e n o r e n v o lv im e n to do
Estado na R e sp o n sab ilid ad e S o cia l.
Pelo m esm o m otivo q u e o e x p lic ita d o , d e cid im o s c o n c e n tra r a a n á ­
lise, a q u i, em um estado e sp e cia lm e n te ativo na d isse m in a çã o não
só do c o n c e ito d e R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l, m as d e um c o n c e ito d e
in d ú stria q u e , por d e fin iç ã o , se p e rce b e co m o respo n sável p erante
o so cia l, para além d e suas o utras e sp e cificid a d e s. O estad o e sco lh id o ,
p rin c ip a lm e n te p ela e xte n são d e sua p re o cu p a ç ã o co m a re d e fin iç ã o
da a tiv id a d e in d u strial co m o u m a a tiv id a d e q u e se p e rce b e co m o re s­
ponsável pelos p ro b lem as so cia is, bem co m o pela bo a c o n d u ç ã o das
relações sociais, m orais e éticas no seio de u m a so cie d a d e , foi o C e a rá .
A q u i, a R e sp o n sa b ilid a d e S o cial c o n fu n d e -se co m a p ró p ria m issão
da Fe d e raçã o d as Ind ústrias do Estado d o C e a rá , c u ja m issão é "p ro ­
m o ve r a a d o ç ã o d e práticas d e re sp o n sa b ilid a d e so cial pela in d ú s­
tria c e a re n se , e stim u lan d o a fo rm a çã o de redes de c o la b o ra ç ã o q u e
agreguem v a lo r às em p resas e c o n trib u a m para o d e se n vo lvim e n to
su ste n tá ve l" (F IE C , 2 0 0 6 ). D a m e sm a fo rm a q u e no A c re , a fe d e ra çã o
crio u um instituto e sp e c ific a m e n te vo lta d o para a d ivu lg açã o e p ro ­
m o ção da R e sp o n sa b ilid a d e So cial e n tre seus m e m b ro s. L e m o s, por­
tan to, no m esm o site , q u e o Instituto Fiec de R e sp o n sa b ilid a d e So cial
tem co m o p rin cip al a trib u iç ã o "m o tiv a r e m p re sá rio s a agir d e fo rm a
so c ia lm e n te re sp o n sáve l" e q u e a m issão d a Fie c "é catalisar, in d u zir e
d ivu lg ar açõ es de R e sp o n sa b ilid a d e So cial nas e m p re sa s", c o n c lu in d o
q u e "q u e re m o s tran sfo rm ar o C e a rá em e x e m p lo d e p a rticip a çã o do
e m p re sa ria d o nas açõ e s em prol do d e se n vo lvim e n to d a c id a d a n ia ".
É in teressante notar q u e a a d o çã o da R e sp o n sa b ilid a d e S o cial por
parte da Fiec do C e a rá segue q u ase q u e rigo ro sam ente as d ire trize s
sugeridas pelo Instituto Ethos, segundo as q u a is as p ráticas de re sp o n ­
sa b ilid a d e d e ve m ser in co rp o ra d a s às e m p re sas não só por co n ta de
seu suposto p ap el na q uestão so cia l, m as tam b é m p o rq u e c o n trib u e m
para o d e se n v o lv im e n to su stentável e , até , p o rq u e agregam va lo r às
e m p resas. C o m o se e n co n tra in d ica d o no site, a m issão do Instituto é
tra b a lh a r p re cisa m e n te nesse se n tid o , p ro m o v e n d o esse tipo d e a ção
e m p re sa ria l re sp o n sável. N o e n ta n to , há aq u i um d ife re n cia l im p o r­
tan te q u e , na v e rd a d e , se id e n tifica co m algum as das p re o cu p a çõ e s
c e n tra is d o P N B E : o fato d e q u e , para esse Instituto , ser so cia lm e n te
resp o n sável sig n ifica não só agir d e a co rd o com regras e va lo re s ético s
em todas as etap as nas q u ais a e m p re sa esteja e n v o lv id a , m as tam b é m
agir "e m prol do d e se n vo lvim e n to da c id a d a n ia ", co m o vim o s na c i­
tação anterio r. O u seja, p rete n d e a Fie c q u e as e m p re sas a ja m co m o
v e rd a d e iro s agentes p ro m o to res d e c id a d a n ia - a q u a l, ap e sar d e um
bem e sse n cia lm e n te p ú b lico , ve m sen d o ca d a v e z m ais p ro m o vid a por
agentes p rivad o s em nosso país, pois ca d a v e z m ais e m p re sa s p a re ce m
id e n tific a r a R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l, p rim o rd ia lm e n te , co m a atu a ção
d ire ta no d e se n v o lv im e n to d a c id a d a n ia (F E R N A N D E S , 1 9 9 4 ).
N esse se n tid o , a R e sp o n sa b ilid a d e So cial propagada pela Fie c id e n ­
tifica-se co m a m aio r parte do d iscu rso p re d o m in a n te no B ra sil: ser
so c ia lm e n te respon sável é agir p elo bem d o c id a d ã o e do país. M as,
talve z seja a in d a m ais in te re ssan te , neste caso , o fato d e a Fie c re c o ­
n h e c e r a n e ce ssid ad e d a re la çã o e n tre e m p re sas e e m p re sa ria d o com
os outros agentes resp o n sáveis pelo d e se n vo lvim e n to e pelo so c ia l:
sua "visão d e fu tu ro ", ou seja, a q u ilo a q u e o Instituto a lm e ja é "se r re ­
c o n h e c id o , em nível n a c io n a l, pela sua e x e m p la rid a d e em re sp o n sa b i­
lid ad e so cial pela so cie d a d e c iv il, m e io e m p re sa ria l e p o d e r p ú b lic o ".
Para c u m p rir essa visão a c e rc a d e si em re la çã o a seu papel p e ra n ­
te a so c ie d a d e b ra sile ira , o Instituto o fe re c e u m a sé rie de se rviço s às
em p resas in teressad as em in stitu ir práticas de gestão re sp o n sáve l, tais
c o m o assessoria no to can te à im p le m e n ta ç ã o , m o n ito ra m e n to e a v a ­
liação de in icia tiva s d e p esq u isa, e na p ro m o çã o , d ifu são , c o n c e p ç ã o
e e x e c u ç ã o d e projetos d e re sp o n sa b ilid a d e so cia l. A lé m disso, p re ­
te n d e o Instituto, tal q ual o p ró p rio Instituto Ethos no q ual o b v ia m e n te
se in sp ira, "d ivu lg ar e x p e riê n c ia s b e m -su ce d id a s d e e m p re sa s na área
d e R S E ", "sistem atizar, d ivu lg ar e d isp o n ib iliz a r in fo rm a çõ e s so b re o
te m a ", "p ro m o v e r diálog os e açõ e s co la b o ra tiva s e n tre o seto r e m ­
p resarial, o p o d er p ú b lico e a so c ie d a d e c iv il o rg a n iza d a ", "d ivu lg ar e
b u scar ap o io aos projetos q u e ca u se m im p acto s so cia is po sitivos e q u e
d e m o n stre m gestão e fic a z d as a ç õ e s".
F in a lm e n te , cab e ressaltar q u e talve z a m a io r c o n trib u iç ã o desse Ins­
tituto seja o m odo c o m o p ro cu ra re d e fin ir o pap el da e m p re sa na so ­
c ie d a d e e o c u id a d o co m q u e se en gaja nessa ten tativa d e re d e fin iç ã o .
A ssim , o Instituto nos o fe re c e q u ase q u e um m an ifesto sob re o q u e é,
em sua e ssê n c ia , u m a e m p re sa re sp o n sá ve l: "n ã o im po rta se é grande
ou p e q u e n a , u m a e m p re sa m o d e rn a é so cia lm e n te re sp o n sá ve l". Essa
postura, q u e é esp erad a d e todas as e m p re sa s, é assim d e ta lh a d a pelo
Instituto em seu site :

• se r tra n sp a re n te ;
• ter co m p ro m isso p ú b lic o ;
• envo lver-se co m instituiçõ es q u e representam interesses co le tivo s;
• ser c a p a z d e atrair e m a n te r c o la b o ra d o re s p a rticip a tivo s e v o ­
lu n tário s;
• d e se n v o lv e r um alto grau d e m o tiva çã o e c o m p ro m isso d os ato res
so ciais;
• ser ca p a z d e lid ar co m situ a çõ e s d e c o n flito s;
• e n v o lv e r toda a d ire ç ã o d a e m p re sa ;
• e sta b e le ce r m etas d e cu rto e longo p razo q u e vise m ao d e se n v o l­
vim e n to h u m a n o .

O Instituto vai m ais além e c o n sid e ra q u e tal o rie n ta çã o é im p o rta n ­


te p o rq u e aju d a a:

• d im in u ir os c o n flito s;
• e stim u lar e re c o n h e c e r o cap ital h u m a n o e so c ia l;
• v a lo riz a r a m arca e a im agem in stitu c io n a l;
• c o n q u ista r a le ald ad e d o c o n su m id o r;
• agregar v a lo r aos p ro d u to s;
• a lc a n ç a r o d e se n v o lv im e n to su ste n tá ve l;
• p ro m o v e r a in clu são so cia l.

Passando, a seguir, para a região C e n tro -O e ste , p e rce b e m o s q u e


tod os os seus estados têm algum a a tu a çã o em te rm o s d e R e sp o n sa ­
b ilid a d e S o cia l, m as em n e n h u m d e le s há a tu a çã o tão forte q u an to
em outras regiões. C o n ce n tra m o -n o s, a q u i, no estad o d e G o iá s, para
d e m o n strar q u e h o u ve in co rp o ra ç ã o d o c o n c e ito e d o ideal d e R es­
p o n sa b ilid a d e So cial co m o parte integ rante d a q u ilo q u e tod a e m p re sa
d eve ser, m as q u e ain d a há m uito esp aço para se e xp a n d ir tal atu ação .
Ten d o por m issão "P ro m o v e r o d e se n v o lv im e n to e c o n ô m ic o , so cia l,
cu ltu ral e in d u strial do Estado, fo rta le c e n d o o asso ciativism o sin d ic a l,
fo m e n ta n d o os negócios das e m p re sas e d e fe n d e n d o os interesses p o ­
lítico s d a classe in d u strial g oian a" (F IE G , 2 0 0 6 ), a Fe d e ra çã o da In d ú s­
tria do Estado d e G o iá s (Fieg), por e x e m p lo , tem todo um setor vo ltad o
e sse n cia lm e n te para:

• d iscu tir as q uestões re lacio n ad as co m a e la b o ra ção e a e x e c u ç ã o


das políticas d e R esp o n sab ilid ad e Social Em presarial em âm b ito fe-
d eral, estadual e m u n icip a l, pro p o nd o açõ es e d esen vo lven d o arti­
cu laçõ e s em b en efício da ativid ad e industrial q u a n d o n ecessário ;
• d e fin ir e o rie n ta r as p o lítica s e estratégias d e tra b a lh o d as in stitu i­
çõ es d o Sistem a Fieg, em tem as re la cio n a d o s co m a R e sp o n sa b i­
lid ad e So cial Em p re sa ria l;
• co la b o ra r para o d e se n v o lv im e n to da c u ltu ra e d a p rática da R e s­
p o n sa b ilid a d e S o cial Em p re sa ria l nas in d ú strias;
• re p re se n tar a fe d e ra ç ã o , p e ra n te as in stitu içõ e s p ú b lica s e p ri­
va d a s, em q uestõ es re la cio n a d a s co m a R e sp o n sa b ilid a d e So cial
Em p re sa ria l.

A listagem das açõ es c o n te m p la d a s pela Fieg se co m p le ta c o m :

• d e se n v o lv e r se m in á rio s, e n co n tro s e palestras v isa n d o c o n sc ie n ti­


z a r e se n sib iliza r as in d ú strias, q u a n to às boas práticas d e R e sp o n ­
sa b ilid a d e S o c ia l;
• realizar pesquisa de Respo nsabilid ade Social nas indústrias goianas;
• e stim u la r a re a liz a ç ã o d e a çõ e s d e R e sp o n sa b ilid a d e So cial nas
in d ú strias;
• d ivu lg ar e x p e riê n c ia s b e m -su ce d id a s na p rática d a R e sp o n sa b ili­
d ad e S o c ia l;
• p ro m o ve r a a p ro x im a ç ã o d as in d ú strias co m as o rg a n iza çõ e s go­
ve rn a m e n ta is e não g o ve rn a m e n ta is (te rce iro setor), vo ltad as para
o trab alh o d e R e sp o n sa b ilid a d e S o c ia l;
• a p o ia r e o rie n ta r as in d ú strias na im p le m e n ta ç ã o d a R e sp o n sa b i­
lid ad e S o c ia l;
• e stim u la r a re a liz a ç ã o d e p a rce ria s para o d e se n vo lvim e n to de
projetos e açõ e s de R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l.

M as q u e tip o d e in co rp o ra ç ã o do c o n c e ito d e RSE foi e m p re e n d id o


aq u i? P arece cla ro , n o v a m e n te , q u e se busca re o rie n ta r a p ró p ria d e fi­
n ição do q u e seja u m a e m p re sa , q u ais suas áreas de a tu a çã o , e co m o
d e v e se re la c io n a r co m os o utros atores so ciais e p o lítico s, tais co m o
O rg a n iza ç õ e s N ão G o v e rn a m e n ta is. A trib u i-se à Fieg, um papel quase
e q u iv a le n te ao do Instituto Ethos, o q ual bu sca e x a ta m e n te essa d is­
se m in a çã o , por toda a so c ie d a d e , de u m a n ova fo rm a d e se p e rce b e r
a e m p re sa e seu p ap el. N esse se n tid o , em sua busca pela d ivu lg açã o
das boas práticas d e R e sp o n sa b ilid a d e S o cia l, ou pela p ro m o çã o de
u m a "a p ro x im a ç ã o en tre in d ú stria e o rg a n iza çõ e s g o ve rn a m e n ta is e
não g o v e rn a m e n ta is", e xp a n d e a Fieg, assim , g ra n d e m e n te seu e sp a ­
ço d e a tu a ção . Pois, m ais d o q u e d e fe n d e r os interesses im e d iato s do
setor in d u strial, p reten d e essa fe d e ra ç ã o re estru tu rar a pró p ria á re a d e
a tu a ção d o setor - não m ais co m o um setor a tu a n d o e sse n cia lm e n te
no d e se n vo lvim e n to d o país através d a p ro d u çã o in d u strial, m as co m o
um setor respon sável p elo p ró p rio so cia l.
C o n tin u a n d o nossa an álise e passand o p ara a Região S u l, p e rce b e -
se um d e talh e in teressan te: as fe d e ra çõ e s de n e n h u m dos três estados
p re o cu p a m -se em e x p lic ita r sua p re o cu p a ç ã o co m a R e sp o n sa b ilid a ­
de S o cial do setor in d u strial. Por e x e m p lo , não se e n co n tra m aqui
co m p ro m isso s e xp líc ito s, na m issão e/ou nos o b je tivo s d e n e n h u m a
das três fe d e ra ç õ e s, co m a d isse m in a çã o d o c o n c e ito d e R e sp o n sa b i­
lid a d e S o cia l. N a v e rd a d e , o te rm o n em a p a re c e em n e n h u m dos três
sites dessas fe d e ra ç õ e s.
N o en tan to, e este é o d ad o interessante, essas fed e raçõ e s d e m o n s­
tram ter in co rp o rad o o interesse e a p re o cu p a çã o co m a R esp o n sab ili­
d ad e S o cial. Porém , a in co rp o ração se dá por m eio da atu ação re sp o n ­
sável do Sesi, p rin cip alm e n te , e do Senai. Em outras palavras, em b o ra
não se d e fin a , por e xe m p lo , o Sistem a Fiesc co m o ten d o , em sua m is­
são e/ou o b jetivo s, a m eta de d e se n vo lve r a R esp o n sab ilid ad e Social
d iretam en te, d uran te a leitura do site som os rem etido s a num erosas
m en çõ es q uanto à atu ação responsável dessas en tid ad es. Inform a-nos
a Fiesc sobre toda a atu ação do Sesi neste setor: suas açõ es so ciais, sua
p re o cu p ação co m a p ro m o ção da c id a d a n ia , seu interesse em divulgar
a n ecessid ad e de práticas d e negócios so cialm e n te responsáveis, e assim
por d ian te. C o m o p rin cip al e xe m p lo dessa re spo n sabilid ade co nstru íd a
pela in teração com o Sesi, tem os a seguinte d e scrição sobre seu papel
co m o co nd u to r da R esp o n sab ilid ad e Social d entro da fe d e ra ção :

O Sesi, que é um serviço social, procura adequar-se à nova realidade


e agregar valor às suas ações. Sem afastar-se de suas atividades finalísti-
cas, voltadas para a qualidade de vida do industriário, oferece suporte
às empresas no que respeita ao novo conceito de responsabilidade
social e para isso desenvolve modernas ferramentas de gestão da tec­
nologia do social (FIESC, 2006).
A lé m desse statem ent in ic ia l, o q u e m ais ch a m a a te n çã o q u an to
ao te m a da R e sp o n sa b ilid a d e S o cial no site é q u e esse te m a a p a re ce
c o m o a b so lu tam en te e sse n c ia l: e n fa tiza m -se , por e x e m p lo , a p re o cu ­
p ação co m a d ivu lg ação das açõ e s do Sesi, ou os p rêm io s d istrib u íd o s
pelos Sesi às em p resas q u e ap re se n tam as m e lh o re s p ráticas so c ia l­
m ente resp o n sáveis, ou q u a isq u e r o utras d e suas açõ e s re sp o n sáve is.
Portanto, por m ais q u e n ão se possa c o m p a ra r o grau d e in co rp o ra ­
çã o da Fiesc co m o utras fe d e ra çõ e s aq u i a n a lisa d a s, tam b é m não seria
co rre to a firm a r q u e , nesse ca so , h o u ve p o u ca ou n e n h u m a ab so rção
da R SE. N a v e rd a d e , o grau de in co rp o ra çã o p a re ce q u ase q u e ain d a
m aior, pois a te m á tica d a re sp o n sa b ilid a d e a p a re c e , lite ra lm e n te , a
todo instante no site. Po rém , essa in co rp o ra çã o o co rre de u m a m a n e i­
ra bem e sp e c ífic a : em v e z de se re d e fin ir, e à in d ú stria m e sm o , co m o
"a q u e la q u e é so c ia lm e n te re sp o n sá ve l" d e m a n e ira in o va d o ra in d e ­
p e n d e n te m e n te d e seu en sem b le in stitu cio n a l, a p re o cu p a ç ã o co m
a RSE d a Fe d e raçã o Estadual das Ind ústrias d e Santa C a ta rin a o p era
e n tre la ça d a com o sistem a Sesi, o q u e , na v e rd a d e , d ife re n cia a Fiesc.
A rg u m en tam o s a n te rio rm e n te q u e é d ifíc il e n co n tra r um a ju stific a ti­
va p lau sível para as d ife re n ça s e n tre fo rm as e e xte n sã o da R e sp o n sa b i­
lid ad e S o cial nas d iversas fe d e ra ç õ e s: por q u e , por e x e m p lo , d e v e ria o
estado d o A c re se co n stitu ir co m o m o d e lo e x e m p la r d e in co rp o ra çã o
do c o n c e ito de RSE? E co m o d e v e ría m o s en te n d e r, por o utro lad o , o
fato d e o Rio G ra n d e d o Sul não p a re ce r d e m o n stra r g rand e p re o cu ­
p ação co m o tem a? A o m e sm o te m p o em q u e se to rn a d ifíc il e n c o n ­
trar u m a e x p lic a ç ã o cau sal p ara o grau de interesse d ife re n c ia d o entre
os estados é im p o ssível não p e rce b e r q u e há um p re d o m ín io ó b vio na
d isse m in a çã o d a RSE e n tre os estados d o Sud este.
E im p o rtan te ressaltar, p o ré m , q u e a Fe d e raçã o d as Ind ústrias do
Espírito Santo (Findes) segue até ce rto ponto um m o d e lo se m e lh a n ­
te ao d e Santa C a ta rin a : e n q u a n to o te m a d a R e sp o n sa b ilid a d e S o ­
cial a p a re c e a tod o instante no site , tam b é m é cla ro q u e tal o co rre ,
p rin cip a lm e n te , através d a in co rp o ra ç ã o , ao site d a Find es, d e tod o o
trab alh o na área d e R e sp o n sa b ilid a d e S o cial d e se n vo lvid o pelo Sesi
d a q u e le estad o . E se é ve rd a d e q u e o sistem a Find es ach o u por bem
in stitu ir seu p ró p rio C o n se lh o de C id a d a n ia E m p re sa ria l, a in d a assim ,
no m o m en to d e c o le ta r in fo rm açõ e s so b re a R e sp o n sa b ilid a d e So cial
na Fin d es, som os re m etid o s aos atos do Sesi.
Por o utro lad o , a fe d e ra ç ão a rtic u la a m issão a pelo m e no s um p ro ­
g ram a c u ja im p o rtâ n cia não se p o d e d e sco n sid e rar. To m a n d o co m o
m issão "c ria r um m o vim e n to e u m a re d e local d e d ifuso res d a cu ltu ra
da re sp o n sab ilid ad e so cial e tam b é m d e fo m en to s das a çõ e s das e m ­
presas ca p ixa b a s, a m p lia n d o o n ú m e ro das q u e já in ic ia ra m d iversas
a tivid a d e s nesse c a m p o " , a Find es crio u um b alcão a m b ie n ta l q u e tem
por fin a lid a d e "p ro p o rc io n a r às m icro e p e q u e n a s e m p re sas ca p ixa b a s
tod a a assessoria n ecessária ao a te n d im e n to das e xig ê n cia s a m b ie n ­
ta is", assu m in d o q u e "u m a p ro d u çã o m ais lim p a (...) se re flete p o siti­
v a m e n te na so c ie d a d e " (F IN D E S , 2 0 0 6 ).
Já o utros três estados, M in a s G e ra is, Rio d e Jan e iro e São Paulo d e ­
m onstram co m p ro m isso a in d a m ais e x p líc ito co m a d isse m in a çã o da
R e sp o n sa b ilid a d e So cial em suas m ais d ife re n te s fo rm as e , in d e p e n ­
d e n te m e n te da re lação co m o Sesi, trab alh am por si nessa d ire ç ã o . Por
esse m o tivo , não faria sen tid o e fe tu a rm o s a a n á lise , a q u i, de ap en as
um caso e xe m p la r. Torna-se n e ce ssá rio , pelo co n trá rio , o b se rvar as
fe d e ra çõ e s dos três estados em c o n ju n to , o q u e possib ilita um q u ad ro
geral d a co n stru ção da R e sp o n sa b ilid a d e S o cial no sistem a das F e d e ­
raçõ es Estad uais das Ind ústrias nessa região.
N os três estados, tal trab alh o d e d isse m in a çã o se dá d e m o d o se m e ­
lh an te, por e x e m p lo , através da c ria ç ã o d e C o n se lh o s d e R e sp o n sa b i­
lid a d e So cial (tal q ual o C o n se lh o de C id a d a n ia Em p re sarial do Espírito
Santo ), en carre g ad o s d e d ivu lg ar o c o n c e ito e a u x ilia r as e m p resas
interessadas a e x p a n d ire m suas a tivid a d e s nessa d ire ç ã o . A ssim , no
estado do Rio de Ja n e iro , crio u -se um C o n se lh o Em p re sarial d e R e s­
p o n sa b ilid a d e S o cial q u e atu a em c o n ju n to , d e n tro do sistem a Firja n ,
co m u m a A ssessoria de R e sp o n sa b ilid a d e S o cial Em p re sa ria l, p ara:

Conscientizar, motivar, facilitar e orientar as empresas para a prática


continuada e crescente da responsabilidade social. Neste sentido, a
responsabilidade social é considerada como uma estratégia de cres­
cimento e longevidade, de apoio ao desenvolvimento integral do es­
tado do Rio de Janeiro e de contribuição às políticas públicas do país
(FIRJAN, 2006).

N o te-se, a q u i, a p re o cu p a ç ã o em e x p a n d ir o c o n c e ito d e R e sp o n sa ­
b ilid a d e S o cial q uase até seu lim ite lógico, pois m ais d o q u e u m a série
d e p ráticas d e negócios é ticas e so c ia lm e n te c o n scie n te s, o q u e se
busca aq u i é nad a m eno s do q u e in flu e n c ia r o p ró p rio ru m o das p o lí­
ticas p ú b licas no estad o . B u sca essa q u e , re ce n te m e n te , ve m a tra in d o
a te n çã o até da m íd ia não e sp e c ia liz a d a , q u e em reportagens re ce n te s
d ivu lg ou o in ten so tra b a lh o d e p esq u isa c o n ju n tu ra l d e se n vo lvid o pela
Firjan sobre a crise no estad o do R io de Ja n e iro , e q u e in clu sive busca
sugerir p o líticas m ais a d e q u a d a s do q u e a q u e la s e m p re e n d id a s pelo
p ró p rio g overno.
A p e sa r d e o real sig n ificad o dessa fo rm a d e a tu a çã o da Firjan não te r
sid o m e n c io n a d o pela m íd ia , é im p o rtan te ressaltar o q u a n to de tra n s­
fo rm a çã o no pap el da in d ú stria e da p ró p ria Firjan está pressuposto
nesse p ro cesso . A o c o n d u z ir suas pesquisas so b re as m ais im p o rtan tes
q uestõ es so cia is no estad o , e ao p ro p o r so lu çõ e s em term o s de p o líti­
ca p ú b lica , a Firjan se c o lo c a , e x p lic ita m e n te , co m o apta a lid a r com
tais p ro b lem as so ciais, e co m o te n d o v o z ativa na d e fin iç ã o d e q u ais
p o líticas d e ve m ser ad o tad as para re so lve r q u ais p ro b le m as em q u ais
co n te xto s. O u seja, atrib u i-se à Firjan um pap el não de todo d e sse m e ­
lh an te ao papel do g overn o .
S eg u in d o um a m esm a lin h a , o C o n se lh o d e C id a d a n ia Em p resarial
e V o lu n tário s d as G e ra is da Fiem g nos in fo rm a q u e : "o Sistem a Fiem g
a c re d ita q u e a q u a lid a d e d e um a e m p re sa va i a lé m do seu d e se m p e ­
nho o p e ra c io n a l. E nas d ive rsas fo rm as d e e x e rc íc io da c id a d a n ia q ue
o m e io e m p re sa ria l se co m p ro m e te co m a g e ração d e riq u e za so cia l,
a ju d a n d o a d im in u ir as d e sig u ald ad e s d e nosso p aís" (F IE M G , 2 0 0 6 ).
E c o m p le m e n ta :

Acreditando que a prática da Responsabilidade Social é um instrumen­


to eficaz de transformação social, o Sistema Fiemg, em 2000, cria o
Conselho de Cidadania Empresarial e de Voluntários das Gerais, com
o objetivo de mobilizar os empresários e oferecer estratégias que facili­
tem a atuação social de suas empresas. Dessa forma, o Conselho contri­
bui para a formação de um grande movimento que visa canalizar ações
para a construção de um país mais justo e igualitário (FIEM G, 2006).

O u se ja , p e rce b e -se aq u i e x a ta m e n te o m e sm o tip o d e pressuposto


d e q u e ca b e ao sistem a das Fe d e raçõ e s Estad uais das Ind ústrias c o n ­
trib u ir para nada m eno s q u e a re so lu çã o d a q uestão so cial em nosso
país - a q u ilo q u e a Fiem g e n te n d e co m o "tra n sfo rm a çã o d a re a lid a d e
so c ia l". N esse se n tid o , a R e sp o n sa b ilid a d e So cial pro pag ad a por tais
fe d e ra çõ e s vai m u ito além d a q u e la c o n c e b id a por agentes d isse m in a-
d o res d o c o n c e ito , tal co m o o Instituto Ethos. Pois, a q u i, m ais do q u e
a re d e fin iç ã o das p ráticas in tern as à e m p re sa em d ire ç ã o a m ais res­
p o n sa b ilid a d e e é tic a , o q u e tem o s é a p re su n çã o d e q u e ca b e a tais
fe d e ra çõ e s d e c id ir o ru m o d o estad o e do país, por m e io d a to m a d a
d e re sp o n sab ilid ad e p eran te as p o lítica s p ú b lica s.
Tal p re o cu p a ç ã o co m o pap el p o lítico das fe d e ra ç õ e s tam b é m a p a ­
re ce no sistem a Fiesp . N o en ta n to , a ê n fase aq u i - a p e sa r d e a R e s­
p o n sa b ilid a d e S o cial d a Fiesp tam b é m in c lu ir pressupostos a c e rc a da
re sp o n sab ilid ad e do sistem a para co m a c o n stru ção d e um a re a lid a d e
so cial m ais justa e m eno s desigual - está na q u estão d a c o rru p ç ã o e
da (i)leg alid ad e , por m eio do tra b a lh o d e três co n se lh o s, e n fo c a n d o
p re cisa m e n te algum as d as q uestõ es m ais c a n d e n te s no c e n á rio p o líti­
co b rasileiro atu al. Estes são o C o n se lh o S u p e rio r d e R e sp o n sa b ilid a d e
S o cial (C o n so c ia l), o C o n se lh o S u p e rio r d e M e io A m b ie n te (C o se m a)
e o C o m itê d e R e sp o n sab ilid a d e S o cial (C o re s).
Por m eio do "P ro g ram a Sou L e g a l", a Fiesp ve m p ro m o v e n d o um a
ve rd a d e ira c a m p a n h a pela leg alid ad e nas re la çõ e s p o lítica s, é ticas e
so ciais no país:

O objetivo da campanha é promover de forma permanente e transver­


sal o diálogo entre empresários e sociedade civil quanto à precarização
das relações de trabalho, promover o consumo consciente buscando
o combate à pirataria e a proteção do produto paulista. As ações en­
volvem também informar as empresas sobre aspectos legais e morais
dos financiamentos de campanhas eleitorais, riscos e consequências
do não cumprimento de obrigações tributárias. Essas ações visam for­
talecer o compromisso das empresas com a ética e o exercício da ci­
dadania (FIESR 2006).

Para c o n c lu ir esta etap a, re to m e m o s a a n á lise d a Firja n , q u e d e n tre


todas as fe d e ra çõ e s p esq u isad as p a re ce ser a q u e la q u e m ais se d e s­
taca em term os d e sua atu ação em re sp o n sa b ilid a d e so cial na região
e, p o ssive lm e n te , no país. A im p o rtâ n cia da a tu a ção em R SE da Firjan
se d á , p rin c ip a lm e n te , pelo fato d e q u e tod a a sua a tu a ção se fa z em
n o m e das p o líticas p ú b lica s e p o líticas so cia is, o q u e d á ao c o n ce ito
d e R e sp o n sab ilid ad e S o cial um grau m uito m a io r d e p e n e tra çã o na
so c ie d a d e d o q u e se im ag in aria p o ssível:

Agindo organizadamente para o avanço social, a Firjan apóia políticas


sociais de diferentes instâncias do poder público. São parcerias que
resultam na valorização da cidadania e beneficiam diretamente cen­
tenas de famílias em todo o Estado. O envolvimento do Sistema Firjan
na defesa das reformas trabalhista, tributária, da Previdência Social, do
sistema político e do judiciário gerou ações concretas como a proposta
para flexibilizar as relações de trabalho (FIRJAN, 2006).

C O N S ID E R A Ç Õ E S F I N A I S

C o m base nessas in fo rm açõ e s, p a re ce -n o s, p o rtan to , q u e esse novo


o lh a r dos e m p re sá rio s para a q uestão so cial está m esm o bastante in ­
c o rp o ra d o nas e n tid a d e s d e classe co rp o ra tiva s estad u ais d a in d ú stria,
a d esp eito d e este te r sid o um d iscu rso o rig in ad o fora d o sistem a c o r­
p o rativo e sua ên fase e c o n ô m ic a por v á ria s d é ca d a s d esd e os anos
1 9 4 0 , sem falar nas e sp e c ific id a d e s lo cais. C a d a fe d e ra ç ã o tem certas
p e c u lia rid a d e s no q u e d iz respeito à fo rm a e ao co n te ú d o desse e n ­
vo lv im e n to , m as, su rp re e n d e n te m e n te , em vário s caso s, a a p ro p ria çã o
passou pela in co rp o ra ç ã o dos re cu rso s d o antigo Sistem a S na nova
postura d as em p resas e d as e n tid a d e s.
A o lado das a tivid a d e s típ ica s d o Senai e do Sesi, o e n vo lv im e n to
co m R e sp o n sab ilid ad e S o cial d e fe n d id o pelas e n tid a d e s co rp o ra tiva s
c o m p re e n d e u m a série d e o utras a tivid a d e s. Estas p o d em ir d esd e o
tratam en to d e d e p e n d e n te s até a c o la b o ra ç ã o nas p o lítica s p ú b licas
estad u ais de d e se n v o lv im e n to , passando pelo co m b a te à c o rru p ç ã o ,
p irataria e o utros p ro b lem as. D e um lad o , em q uase todos os casos,
ressalta-se a im p o rtâ n cia d e q u e in icia tiva s nesse se n tid o sejam le v a ­
d as a cab o por m e io de p a rce ria s co m a so c ie d a d e e co m o Estado,
a in d a q u e , d e o u tro , as fe d e ra çõ e s tam b é m a p a re ce m c o m o fo m e n ta ­
d oras da a d o çã o d e p ráticas so cia lm e n te re sp o n sáveis, o q u e sugere a
e xistê n cia d e um c o m p le xo processo q u e acab a d e se in iciar.
A in d a q u e não te n h a sido possível re la cio n a r as várias posturas so ­
c ia lm e n te resp o n sáveis das d iversas fe d e ra çõ e s co m fe n ô m e n o s so-
c ia is m ais a m p lo s, co m o in d ica m o s alg um as v e z e s, p a re ce -n o s possível
c o m p a ra r essa n ova fo rm a d e "o lh a r so c ia l" co m a q u e le q u e p e rp a s­
sou nossa in d u stria liza ç ã o , ou se ja , a q u e le q u e e n ca ra v a o "so cia l"
através d a fá b ric a ou através dos ram os ou seto res e c o n ô m ico s. Pelo
q u e foi e xp o sto , d e fin itiv a m e n te tal não é m ais o caso . Pelo co n trá rio ,
o q u e tem o s agora é u m a postura ou m o d e lo e m p re sa ria l de resposta
às m ais d iversas questões so ciais q u e não só perpassa as e m p resas
in d iv id u a lm e n te m as tam b ém suas m ais tra d icio n a is e n tid a d e s re p re ­
s e n ta t iv a s - a lé m d as O N G s co n stitu íd a s re ce n te m e n te , tam b é m pelos
e m p re sário s. O u seja, os e m p re sá rio s c o m o q u e re vo lu cio n a ra m sua
visão d o social e o fize ra m d e m a n e ira ab so lu ta m e n te vo lu n tá ria , o
q u e só re fo rça o p o ten cial o rg ânico dessa re n o va ç ã o .
Ten d o em vista q u e tal m u d a n ça o co rre no m o m e n to d e a firm a ç ã o
da re d e m o cra tiz a çã o e da lib e ra liza ç ã o e c o n ô m ic a , por ú ltim o , q u e re ­
m os le v a n ta r a h ipótese de q u e esse a m p lo m o vim e n to d e R e sp o n sa ­
b ilid a d e S o cial Em p resarial pode re p re se n ta r u m a in é d ita c a p a c id a d e
d o e m p re sa ria d o de re sp o n d e r aos d esafio s in e re n te s às m u d an ça s
p o líticas e e c o n ô m ica s d e nossa "tra n siçã o d u a l" , re co n stru in d o a s­
sim a leg itim id ad e da e m p resa co m m issões, o b je tivo s e açõ e s m eno s
ce n tra d a s na d efesa dos interesses e c o n ô m ico s, no caso , no nível d e
seus resp ectivo s estados. Ind o um p o u co a lé m nessa ú ltim a re fle xã o ,
p o d e-se co n sid e ra r q u e a re n o va çã o das e m p re sa s e das fe d e ra çõ e s
ab re u m a porta p ara um jogo d e so m a positiva e n tre elas, su g erin d o a
p o ssib ilid ad e d e um m aio r fo rta le cim e n to da su se n ta b ilid a d e d o d e ­
se n vo lv im e n to b rasile iro .
R E F E R E N C IA S
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2006.
A M O D ER N IZA Ç Ã O
DE SÃO P A U LO EM
DOIS TEXTO S DE
J O Ã O A N T Ô N IO
( 1937- 1996)
leda Magri
O presente artigo aborda a modernização de São Paulo presente no texto de
João Antônio "Abraçado ao meu rancor", de 1986, lido em perspectiva com
"Malagueta, Perus e Bacanaço", de 7963. As personagens de ambos os textos
percorrem as mesmas ruas de São Paulo com duas décadas de distância histó­
rica, o que permite mapear o surgimento de novos materiais como a fórmica e
o plástico, presentes nos bares e restaurantes modernizados, como também o
apagamento do malandro e dos salões de bilhar ou sinuca, que dão lugar tanto
à limpeza dos novos prédios de negócios como à prostituição em pleno dia no
centro da cidade. A análise do texto literário, assim, permite ler as mutações da
cidade e da cultura recente.
Palavras-chave: cidade, cultura, modernização, anos 1980

This article discusses the modernization of São Paulo in the present text of João
Antônio ",Abraçado ao meu rancor", 7986, read in perspective with "Malague­
ta, Perus e Bacanaço", 1963. The characters of both texts go through the same
streets o f São Paulo with two decades o f historical distance, which allows you
to map the emergence of new materials present in bars and restaurants moder­
nized, as well as the deletion of the trickster and lounges billiard or pool, giving
rise to both the cleaning of new buildings as the prostitution business in broad
daylight in the city center. The analysis o f literary texts, thus, allows to read the
changes o f recent city and culture.
Keywords: city, culture, modernization, 80 years
INTRO DU ÇÃO

Ten d o in ic ia d o sua c a rre ira lite rá ria em 1 9 6 3 co m a p u b lica ç ã o de


M alagueta, Perus e Bacan aço , João A n tô n io , no in íc io da d é ca d a de
1 9 7 0 , era re co n h e c id o escrito r d e q u e m não se e n co n tra va um ú n ico
e x e m p la r nas livrarias b ra sile ira s. Seu p rim e iro livro causo u im p acto
antes m esm o de ser p u b lica d o já q u e seus co n to s fre q u e n ta ra m c o n ­
curso s literário s d e várias c id a d e s b rasileiras e c irc u la ra m nos su p le ­
m entos m ais im p o rtan tes do Rio d e Jan e iro e d e São Pau lo , co m o
in fo rm a Rodrigo L a c e rd a na o re lh a d a m ais re ce n te e d iç ã o do livro ,
a de 2 0 0 4 . Em 1 9 6 2 , ganhou o P rê m io Paulo Prado p ara C o n to s, o
m aio r d a é p o c a p ara o rig in ais in é d ito s. U m a v e z p u b lica d o , re ce b e u
d ois Ja b u ti: A u to r R e ve la çã o 1 9 6 3 e M e lh o r Livro d e C o n to s.
D u ra n te o p erío d o em q u e foi um e scrito r sem livros no m e rca d o
b rasileiro , alguns dos seus co n to s eram p u b lica d o s em antologias na
T c h e c o slo v á q u ia , Esp an h a, A rg e n tin a , A le m a n h a O c id e n ta l e V e n e ­
z u e la . O d esco n fo rto co m a situ a çã o do e scrito r b ra sile iro , q u e , se ­
gundo João A n tô n io , era e x p lo ra d o pelas e d ito ra s, ca la d o pela d ita d u ­
ra e ignorado pela m aio ria d a p o p u la çã o , q u e não p o d ia ler p o rq u e
p re o cu p a d a co m a so b re v iv ê n cia d iá ria e , a d e m a is, a n a lfa b e ta , só ia
c re sce n d o d u ran te a seg und a m e tad e da d é ca d a d e 1 9 6 0 .
D e p o is d e passados 12 ano s d a p u b lica ç ã o d e seu p rim e iro livro , a
essa altu ra u sand o a d esig n ação d e escritor, m u ito e m b o ra d e le não se
vissem m ais os livro s, João A n tô n io a c u m u la v a a profissão d e jo rn a lista .
C o m passagens pelo Jornal d o Brasil e pelas revistas Cláudia, M an ch ete
e Realidade, p u b lica , em 1 9 7 5 , o livro Leão-de-chácara - q u e h avia
g an h ad o , a n o antes, o P rê m io Paraná - e , em seg uid a, M alhaçâo d o
Judas C arioca, além d e e d ita r o Livro de cabeceira d o hom em pela C i­
v iliz a ç ã o B ra sile ira e ter n ova e d iç ã o d e M alagueta, Perus e Bacanaço.
Em b o ra tivesse escrito , m uito p ro v a v e lm e n te , a m aio ria dos co nto s de
Leão-de-chácara a in d a na d é ca d a an terio r, a d é ca d a d e 1 9 7 0 será a
d e sua m aio r p ro d u çã o : em 1 9 7 6 p u b lica C asa d e lo u co s, em 1 9 7 7 ,
Lam bões d e caçarola, em 1 9 7 8 , O C opacabana, alé m d e v ia ja r para
a m a io ria dos estados b rasileiro s a co n v ite d e estu d an tes e d e curso s
d e Letras para fa ze r palestras e c o n fe rê n c ia s so b re seu s livros e sobre
a p ro d u ção lite rária b ra sile ira . E neste p e río d o , d e 1 9 7 5 a 1 9 7 9 , q u e
se lo ca liza sua fase d e m aio r m ilitâ n c ia p o lítica em prol da profissio-
n a liza ç ã o d o escritor, do in ve stim e n to gráfico e m id iá tico no e scrito r
b ra sile iro , n u m a e sp é cie d e v a lo riz a çã o do "p ro d u to n a c io n a l", e na
p ro d u çã o d e um a literatu ra co m p ro m e tid a co m o q u e ele c h a m a d e
le va n ta m e n to das re alid a d e s n a cio n a is. O livro M alhação do Judas
Carioca é o e p ice n tro d e sua p ro d u çã o no p e río d o , o q u e m e lh o r
a p re se n ta seu p ro jeto e sté tico -p o lítico , por co n te r o te xto "C o rp o -a -
co rp o co m a v id a ", no q ual o a u to r in te rvé m no d e b a te em to rno da
literatu ra.
N a d é ca d a d e 1 9 8 0 , João A n tô n io p u b lico u d ois livro s q u e d e ra m
novo sig n ificad o à sua c a rre ira , p rin cip a lm e n te pelo in ve stim e n to f ic ­
cio n a l d e d ic a d o à m aio r parte dos texto s q u e os c o m p õ e m : D edo-
duro e A braçado ao m eu rancor.

P u b licad o em 1 9 8 6 , co m p re fácio d e A lfre d o B o si, d e p o is d e ganhar


o P rê m io N a cio n a l de Literatu ra C id a d e d e B e lo H o rizo n te , em 1 9 8 4 ,
A b raçad o ao m eu ran cor m arca u m a d ife re n ça em re la çã o aos livros
a n te rio re s d e João A n tô n io , q u e ve m a p o n ta d a por João Lu iz Lafetá em
re sen h a p u b lica d a no c a d e rn o Ilustrad a, da Folha de São Paulo : sete
dos d e z co ntos são ce n trad o s em perso nagens da classe m é d ia . A in d a
q u e tod os e n fo q u e m o co n traste e n tre a m iséria e a riq u e za , a in d a q u e
o n arra d o r esteja c ritic a n d o a c h a m a d a classe m é d ia ou se ressen tind o
d e p e rte n c e r a ela , essa é u m a n o v id a d e em João A n tô n io .
Em "A b raçad o ao m eu ra n c o r", o co n to m ais longo d o livro , v is iv e l­
m e n te au to b io g ráfico , o n arra d o r d iz, d e fin itiv o : "M a s da classe m é d ia
v o c ê não vai escap ar, seu . A a rm a d ilh a é in te iriç a , a ra p u ca b lin d a d a ,
d e p o is q u e v o c ê c a iu " (1 9 8 6 , p. 9 2 ). A ssim , co m essa n ova c o n s­
c iê n c ia - o p e rte n c im e n to a o u tra classe so cial e , por co n se g u in te , o
d ista n c ia m e n to , m arcad o p ela d e p e n d ê n c ia e sta b e le cid a pelas novas
n e ce ssid ad e s de c o n su m o , d o e sp a ço e do m o d o d e v iv e r d e um a
é p o c a a n te rio r o n arra d o r in vo ca o m u n d o p e rd id o d e "M a la g u e ta ,
Perus e B a c a n a ç o ", co n to d e seu livro d e e stre ia , d e 1 9 6 3 , o m u n d o
p e rd id o da m alan d rag e m . N u m longo re c o n h e c im e n to d a c id a d e n a ­
tal, vai re m e m o ra n d o h istó rica e g e o g raficam e n te os p ercu rso s.
A c id a d e q u e João A n tô n io a n u n c ia , para além da geografia pisada
no p re sen te, c o m p re e n d e a q u e le e sp a ço já g rand e c o n h e c id o dos le i­
tores d e Malagueta, Perus e B acanaço:
Osasco, Lapa, Vila Ipojuca, Água Branca, Perdizes, Barra Funda, cen­
tro, Pinheiros, Lapa na volta. Roteiro é este, com alguma variação para
as beiradas das estações de ferro, dos cantos da Luz, dos escondidos
de Santa Efigênia. Também um giro lá por aquele U, antigamente fa­
moso, que se fazia entre as Ruas Itaboca e Aimorés, na fervura da zona
do Bom Retiro (A N TÔ N IO , 1996, p. 77).

N a sua a n d a n ç a d esse d ia d e re ssa ca , vai a in d a a lé m da L a p a , em


p e n sa m e n to , e n q u a n to pisa o asfalto das im e d ia ç õ e s d a S o ro ca b a -
n a: P re sid e n te A ltin o , Jag u aré , A n a s tá c io , M o rro d a G e a d a , O sa sc o
(p. 8 0 ), b airro s e c id a d e c o n h e c id o s seu s da in fâ n c ia e agora re le m ­
b rad o s p ela p re c a rie d a d e dos se rv iço s d e tra n sp o rte s, logo no in íc io
d e sua c a m in h a d a d e re cé m "d e sg u iad o da m a n a d a ", o g ru po de
jo rn a lista s b ra sile iro s c o n v id a d o s p ara u m a se m a n a d e c o q u e té is e
a p re se n ta ç õ e s da c id a d e d e São Pau lo no c irc u ito d o tu rism o de
n eg ó cio s (p. 8 0 ). M as, c u m p rin d o o ro te iro a n u n c ia d o no in íc io do
c o n to , e na te n ta tiv a d e re a v e r a c id a d e in te rio r, a d e o u tro ra , en tra
n um p ré d io , o M a rtin e lli, à p ro c u ra d o M o u risc o , um sa lão d e b i­
lh ar q u e c o stu m a v a te r ao re d o r d e suas m e sas fam o so s sin u q u e iro s :
"B ra h m a , T a rza n , Ita p e v i, C a ló i, E stilin g u e , B o c a M u r c h a ..." . A s re ­
tic ê n c ia s fin a is d ão a id e ia d e q u e a lista c o n tin u a . N esse p e rcu rso
tem in íc io u m a d as m ais b elas c e n a s d o te x to , q u a n d o o au to r, d o íd o
p ela d e sc o b e rta d e q u e o p ré d io está m e io a b a n d o n a d o , sem m ais
o ru m o r d as b o las d e s in u c a , v a i, no e le v a d o r, re c ria n d o a q u e la at­
m o sfera co m "o e co lo n g ín q u o d as bolas b a te n d o no p a n o v e rd e " .
O a m b ie n te o p rim id o , e sc u ro , em preto e b ra n c o , d e q u e nos d á a
id e ia d e sc re v e n d o o e le v a d o r co m o u m a c a ix a im u n d a , c o m um a s­
c e n so rista a n d ra jo so , se to rn a , no ritm o d as b o las e d o c o ra ç ã o , um a
sin fo n ia d e c o re s c o m a n d a d a p ela b o la b ra n c a :

É que começa, vindo lá de longe, o eco longínquo das bolas se baten­


do no pano verde. Subo. Q ue o elevador me leve. Mas ele é uma caixa
imunda, e o ascensorista, andrajoso, encolhido, pele enferrujada. Meu
coração batendo.
Bolas vêm vindo e vão indo, barulham e se chocam, formam com bina­
ções e fazem colocação para a branca. A ponta do taco, a cabeça toca
na branca e bate macio, é bonito, vai que vai embora a branca, colori-
damente, que se multiplica em duas, três, quatro, seis cores. Amarelo,
verde, marron, azul, rosa, preto (p. 89).

N essa ce n a fica m uito e v id e n te o co n traste do salão ilu m in a d o , c o ­


lo rid o , ru m o re ja n te , co m as suas "m a je sta d e s" de o u tro ra , e o a b a n ­
d o n o e a d e c a d ê n c ia de h o je , o d ia em q u e o au to r tenta re ave r a sua
c id a d e e não can sa d e d e sco b rir q u e ela d eu em o u tra. O ritm o d e
c o ra ç ã o b aten d o , m arcad o pelas frases o rg an izad as em d ois m o v i­
m entos no in íc io (bolas vê m v in d o e vã o in d o / b a ru lh a m e se c h o ca m
/ fo rm am c o m b in a ç õ e s / e faze m c o lo c a ç ã o / p ara a b ran ca) e q u e se
vai a c e le ra n d o no fin al do parágrafo (q u e se m u ltip lica em d uas / três
/ q u atro / seis / co res / A m a re lo / ve rd e / m arro n / a zu l / rosa / p reto ),
dão bem o tom d o te xto e da o sc ila ç ã o , q u e vai de um a m e la n co lia
p o u co d issim u lad a pela nostalgia ao ra n co r d e p e rte n c e r a um te m p o
q u e não acessa m ais o antigo, n em e x te rn a m e n te , pois q u e a cid a d e
m u d o u , nem in tim a m e n te , pois q u e o e scrito r tam b é m m u d o u . A b a ­
tid a do c o ra ç ã o q u e a c e le ra , no e n ta n to , não é só peso, só p e rd a . Em
outras passagens do te xto , co m o ve re m o s a d ia n te , há u m a a c e le ra ç ã o
q u e e sq u e ce a m e la n c o lia e se entrega a re v iv e r o passado de fo rm a
p le n a , e sq u e ce n d o os ran co re s do p re se n te . A in d a nesse p e q u e n o
frag m en to do texto , é possível p e rce b e r a b atid a se ca d o taco na bola
através d a frase d e u m a só p a lavra : "S u b o ." Esse co rte , essa p a ra d a ,
ou essa p artid a q u e põe im e d ia ta m e n te o te xto em m o vim e n to pelas
frases q u e se seguem a ela , ju n ta m e n te co m a rim a e o ritm o da batida
na lata d e g raxa, co lo ca m "A b raçad o ao m eu ra n c o r", e n q u a n to texto
m e sm o , em sua ling uag em , no a m b ie n te d e jogo, d e n tro dos salõ e s.
V erem o s a d ia n te co m o o au to r in te rcala esses m o vim e n to s do jogo e
da c a m in h a d a , co m o fa z o texto " a n d a r" , num ritm o de passo largo
ou d e p arad a para olhar, sentir, o b se rvar a c id a d e , co m o faz o n a rra ­
dor, no nível d o co n te ú d o , q u e , assim , está re fle tid o na estru tu ra e no
ritm o da ling uag em .
D e p o is do M a rtin e lli, n ova c a m in h a d a , re ch e a d a d e p en sam en to s
q u e passam a lim p o u m a vid a d e escrito r, d e p u b licitá rio , d e jo rn a lis­
ta; e u m a c id a d e q u e se e sc a n c a ra para q u e o e scrito r a v e ja , se v e ja .
E e n tão , ganha o v a le do A n h a n g a b a ú , o Largo do C o rre io - o n d e se
assusta co m a p ro stitu ição m a tu tin a , "a p u taria fu le ira " (p. 9 6 ) - , a
A v e n id a São João . O Largo do Paissandu m ostra novo co n traste pela
d ig n id ad e da igreja dos negros. Entra no Ponto C h ie , um dos p o u co s
b o teq u in s q u e restam , e ra p id a m e n te vai a o utro te m p o , o d e "rap az
d e d in h e iro c u rto ", q u a n d o c o m ia o sa n d u íc h e fam o so , o b a u ru , e
d e p o is to m ava o c h o p e g elado . São m e no s d e 11 hOO, o texto in d ica ,
e o n arrad o r p ed e c h o p e p ara c o m b a te r a ressaca. D e p o is, na e sq u i­
na d a São João co m a A v e n id a Ip irang a, beb e um ca fé no Je ca e vai
à P raça da R e p ú b lic a , o n d e p ro cu ra o M a ra v ilh o so , um dos salões
g randes d a c id a d e . A o contar, a n e d o tic a m e n te , u m a p artid a d e sin u ca
q u e não teve v e n c e d o r e n tre C a rn e Frita e L in c o ln , m ostra a d e stre za,
a p a c iê n cia dos d ois jo g ad o res, co m p a ra n d o sua a b u n d â n c ia co m a
falta ab so luta d e q u a lid a d e s dos jo rn alistas de h o je . M e sa d e sin u ca
e escritó rio d e e d iç ã o , jo g ad o res e e scrito re s: p a re ce -lh e não h ave r
n ad a em c o m u m .
Está no m eio do c a m in h o e no á p ic e d o te x to : o ra n co r d estila o
xin g am e n to ab erto do escrito r q u e toca na m aio r fe rid a d e sua p ro ­
fissão : o sem -saíd a dos assuntos re p e titivo s, e n c o m e n d a d o s, a re c o ­
m e n d a çã o para c o lo c a r o povo na pauta do d ia , sem q u e p ara isso
se im p o rtem os jo rn alistas e ed ito re s a c o n h e c ê -lo , a se n tir o q u e ele
se n te ; os 3 0 0 m il e xe m p la re s d e jo rn a is v e n d id o s num país q u e tem
m ais de 1 2 0 m ilh õ e s d e h ab itan tes. O tira r o co rp o fo ra , co isa q ue
jo g ad o r n e n h u m fa z.
O salão está m u d ad o , e m b e le z a d o . D e fó rm ic a e a c rílic o , para o
n arrad or, o salão viro u fa rm á c ia . C o m o é assép tico tam b é m o texto
q u e dá as n o tícias sem "ir fu n d o no d ra m a dos q u e so fre m ." O roteiro
segue pela Praça d a R e p ú b lic a , Rua dos T im b ira s, R ua A u ro ra , Praça
Julio de M e sq u ita , Largo do A ro u c h e . As seis horas da ta rd e , resolve
ir p ara casa, a antiga, a dos pais. P raça P rin ce sa Isabel, A la m e d a C le -
v e la n d , o trem d o su b ú rb io . E x p e rim e n ta o u tra v e z o c a m in h o tão
c o n h e c id o . D e tre m , passa as estaçõ es d e B arra Fu n d a, L a p a , D o m in ­
gos de M o rae s, L e o p o ld in a , A ltin o . A n te s d e su b ir o M o rro da G e a d a ,
a in d a faz sua ú ltim a p ara d a :

A noite caiu. Entro, peço grande e repito, espero arder na garganta.


Q ue lá em cima venta bravo.
E toco a subir no escuro o Morro da Ceada. Um pensamento me pas­
sa, que empurro. Se tivesse de viver de novo aqui, de onde me viria
a força? (p. 141).
O texto se e n ce rra co m a noite q u e c a i. É um texto d iu rn o , po rtan to .
O c ic lo a n o ite c e r-a m a n h e c e r é re co rre n te na o bra de João A n tô n io :
"M alag u e ta, Perus e B a c a n a ç o " tra n sco rre n u m a n o ite , c u jo fin a l, q u e
prolonga o o lh a r do m e n in o Perus no v e rm e lh o q u e a n u n c ia o n a sci­
m ento do sol, é m u ito c o m o v e n te . " G a le ria A la sc a " se fe c h a tam b é m
co m essa p rom essa e m ostra a m o v im e n ta çã o na g aleria d u ra n te vin te
e q uatro horas: d a ch eg ad a do le ite , no a m a n h e c e r, até o fim d a m a ­
d ru gad a desse d ia e a n ova ro tina a n u n c ia d a p ela nova m a n h ã . T a m ­
bém "Jo ão zin h o d a B a b ilô n ia " v ê os pard ais a n u n c ia n d o o d ia d e sol
q u e está n asce n d o . O re co lh im e n to do n arra d o r - q u e sab em o s ser o
do escritor, p elo itin e rário e pelos d ad o s bio gráfico s e xiste n te s no texto
e q u e são os m esm o s dos d o cu m e n to s - nessa n o ite e o texto q u e se
fech a co m a frase da m ãe , na fo rm a d o d iscurso d ire to livre a sua
arte não p erm ite d ois a m o re s", in d ic a , ao q u e p a re ce , a p arad a para
re fle xã o p ro fu n d a , a le m b ra n ç a n o va m e n te latente do e scrito r q u e
está d iv id id o co m o jo rn a lista .
A frase dá ên fase , o utra v e z , ao d u e lo q u e o texto e n ce rra - e n tre
o passado e o p resen te, o jo rn a lism o e a lite ra tu ra , a c id a d e antiga
e a d e h o je , a le m b ra n ça co lo rid a e a re a lid a d e em preto e b ran co
e xp e rim e n ta d a am arg am en te nesse d ia , a classe m é d ia e os pobres
q u e não têm n ad a, e n tre os q u e ja n ta m nos re stau ran tes fin o s e os
q u e o lh am no lad o d e fo ra, en tre os q u e p o d em c o m p ra r roupas fin as
e os q u e se v ira m co m d u as ca m isa s, e n tre o co n su m o d e se n fre a d o
o fe re c id o pelo fo lh eto p u b licitá rio e a total falta d e acesso a ele para
as co isas m ais im e d iatas, en tre o tra b a lh o p ara so b re v ive r e o trab alh o
para e n riq u e c e r, c o m o q u a n d o d iz q u e as prostitutas ve n d e m ap en as
o co rp o (p. 8 4 ), e n q u a n to "a c a n a lh a d a " - os p u b licitá rio s d a c a m p a ­
nha d o tu rism o de negócios - não joga lim p o co m o e la s, e, nisso, dá
a e n te n d e r q u e e le se re c o n h e c e te n d o ve n d id o sua c a p a c id a d e de
e sc re v e r q u a n d o se d e d ico u ao jo rn a lism o para so b reviver. N o nível
da estru tu ra do te xto , tam b é m é e v id e n te esse d u e lo no ritm o ora m ais
lento e ora m ais v e lo z , na d isp o siçã o dos assuntos q u e se in te rp e n e ­
tram , ganham o p rim e iro p lano para d e p o is sair d e c e n a e d ar a ve z
para novo assunto q u e , assim , se re ve za co m a in d a o u tro s, se m p re
num jogo d e vai e v e m .
O texto se in ic ia por um a busca em fo rm a d e pergunta jogada no
a r: "P o r o n d e an d a rá G e rm a n o M atias? M ag ro , irre q u ie to , sarará, sua
ginga d a Praça da Sé, jogo d e c in tu ra d a c rio u la d a da Rua D ire ita ? E
o q u e foi q u e fe z , m a lu c o , a zo a d o , d e seu sam ba le va d o na lata de
g raxa?" (p. 7 7 ). Essa q uestão é u m a e sp é cie d e e strib ilh o , co m o nas
c a n ç õ e s, nos sam bas, e é tam b é m um a b a tu ca d a q u e le m b ra o sam ba
"le v a d o na lata d e g ra xa ". C o m p e q u e n a s va ria ç õ e s, a p a re ce vá ria s
v e z e s no te xto :

Por que se escondeu Germ ano Matias, saído sambista e malandreco,


repinicando na lata de graxa? E aprendeu onde, com quem? Lá no Lar­
go da Banana, dos carroceiros, do bebedouro de burros, das empre-
gadinhas que subiam de braço dado a Alameda Olga e para a gafieira
do Garitão e ensaios da escola de samba, do pessoal da vida suada da
estrada de ferro? O u o sarará aprendeu descobrindo, sozinho pegan­
do, prendendo aquele repinicado da lata de graxa? (p. 98).

O u a b re v ia d o em fo rm a d e p e rg u n ta : " O n d e e n fia ra m os sa m b a s
d e G e rm a n o M a tia s ? " (p . 9 1 ). A c e rta a ltu ra , na e s q u in a d a São
Jo ão c o m a A v e n id a Ip ira n g a , o n a rra d o r v ê "u m m a lu c o d e ca p a
e s fia p a d a , b a te n d o -lh e nos p é s ", q u e " b e rra um p e d a ç o d e m a r­
c h a c a rn a v a le s c a q u e n in g u é m o u v e , m as q u e o n a rra d o r p e rse g u e ,
te n ta n d o b u sc a r s e n tid o . Essa fra se su b stitu i p o r a lg u m a s p á g in a s o
re frã o d o G e rm a n o M a tia s e está g ra fa d a a o m o d o d o d isc u rso d i­
reto liv re , c o m o se q u e m a d isse se in c o rp o ra s s e ao te x to e e x ib iss e
su a p re s e n ç a : V o c ê c o n h e c e o p e d re iro V a ld e m a r? " Ela a p a re c e ,
in sis te n te , três v e z e s na m e sm a p á g in a , p a ra d e p o is ir a c a lm a n d o
o ritm o , o g rito , e se fa z e r m a is e s p a ç a d a até q u e o p e d re iro V a l­
d e m a r se ju n ta c o m G e rm a n o M a tia s : " C a d ê G e rm a n o , q u e fa z ia
b a tu c a d a na lata d e g ra xa e fa la v a na P ra ç a d a Sé?/ - V o c ê c o n h e c e
o p e d re iro V a ld e m a r? " (p . 1 1 9 ).
D u as im p lic a ç õ e s sérias dessa b u sca, tan to do sam bista q u a n to do
p e d re iro , estão dispostas assim no texto d e João A n tô n io :

Aposentaram os bondes, enlataram a cerveja, correram com o sambis­


ta, enquadraram até os poetas. Lanchonetaram os botequins de mesi­
nhas e cadeiras; pasteurizaram os restaurantes sórdidos do centro e as
cantinas do Brás, mas restaurante que se prezava era de paredes sujas,
velhas! Plastificaram as toalhas, os jarros, as flores; niquelaram paste-
larias dos japoneses, meteram tamboretes nos restaurantes dos árabes.
Formicaram as mesas e os balcões. Puseram ordem na vida largada e
andeja dos engraxates. Na batida em que vão, acabarão usando luvas.
Caso contrário, farão cara de nojo ao bater a escova no pisante do fre­
guês. Ficharam, documentaram os guardadores de carros. Silenciou-se
a batucada na lata de graxa. Acrilizaram a sinuca. E um sambado nas
ruas, grita para ninguém:
- Você conhece o pedreiro Valdemar? (pp. 115-116).

A c o m e ç a r pelo ritm o gingado da e scrita , pela d isp o siçã o d as frases


curtas e n tre m e a d a s pelas m ais longas, p elo uso d o ponto e vírg ula,
q u e in d ica um a pausa m e n o r q u e a do ponto e m aio r q u e a da vírg u la,
n um e n ca d e a m e n to sutil d e ritm o s, esse frag m en to do texto m ostra
a h a b ilid a d e d e João A n tô n io no uso d a ling uag em , q u e é a estrela
p rim e ira da g ran d eza d o q u e e sc re v e . A e n x u rra d a d e ve rb o s na te r­
c e ira pessoa do p lural d o p retérito p erfeito do in d ica tivo em co ntraste
co m os no fu tu ro do p resen te dá a id eia e xa ta de ca u sa e c o n se q u ê n ­
c ia se m p re re fo rçad a pelos ve rb o s in ve n ta d o s: a c riliza r, fo rm ica r, lan-
ch o n etar. As frases todas no passado ou no fu tu ro , se m p re no p lu ral,
co lo ca m em d estaq u e as d uas q u e re m e te m a G e rm a n o M atias e ao
p e d re iro V ald em ar. "S ile n c io u -se a b a tu ca d a na lata d e g ra x a ." A a u ­
sê n cia d e d e fin iç ã o d o su jeito das frases q u e estão no plural in d ica um
tom fú n e b re , a in d a re fo rçad o pela so n o rid a d e d a re p e tiçã o d e aram .
N ão sile n c ia ra m a b a tu ca d a . S ile n cio u -se a b a tu ca d a . C o m o se a in d a
se estivesse investig and o q u a is dessas a çõ e s, ou se todas ju n ta s, fo ram
ca p a ze s de sile n c ia r a b atu ca d a . A so lid ão e n fe ix a d a co m a ú ltim a
frase q u e a n u n c ia a pergunta in cisiv a , q u e im p lica o le ito r na c e n a ,
V o cê c o n h e c e o p e d re iro V a ld e m a r? ", a im agem d o h o m e m q u e grita
a m a rc h in h a na rua q u a n d o n ing uém o o u v e , c o lo ca a q u e le q u e o u v e
na c o n d iç ã o de m e lh o r o u v in te . Ele tam b é m é a q u e le q u e vê m elhor,
pois p e rce b e a a ção do progresso e acu sa a tra n sfo rm açã o e v id e n te
q u e está por trás dessa assepsia dos antigos b o te q u in s: afastar os fe io s,
os sujos e p re p arar a c id a d e para o tu rism o , m a q u iá -la , m ostrar a fa ce
d e cartão -p o stal, tão m eno s indigesta. A q u e le q u e vê m ais, q u e sai da
ig n o rân cia, tam b ém sofre m ais.
A se n te n ça é esta: p u seram o rd e m em tu d o . A p alavra pisante fu n ­
c io n a na se q u ê n c ia d e frases co m o o re sq u ício de o utra é p o c a . A gíria
m alan d ra dos m e n in o s, tão so n o ra q u an to a b a tu ca d in h a dos e n g ra xa ­
tes q u e tiravam sam b a no sapato do freg uês, está sile n c ia d a . O e co em
ão do prognóstico fu tu ro d a assepsia p a re ce um a v a ia .
M a is a d ia n te , ao e n file ira r u m a passagem d o fo lh e to tu rístic o co m
a letra d a m a rc h in h a q u e p e rg u n ta d o p e d re iro , Jo ão A n tô n io e x ­
põe d e n o vo c o m o a m a n ip u la ç ã o p u b lic itá ria v e n d e a c id a d e p elo
q u e e la n ão é , ou p elo q u e a p a re c e d e fo rm a m e n o s su til e m ais
v e n d á v e l:

"Ela é mais. É a rua das butiques elegantes e passarela do charme local.


Um ponto de apontamento dos motoqueiros e das gatinhas increm en­
tadas nas garupas que arrancam e voam no rumo dos bairros-jardins".
- Você conhece o pedreiro Valdemar?
Do que o sol nasce a que morre, esta gente trabalha. Uns entram a
trabalhar pela noite nas indústrias, gramam ali, buscando horas extras.
Moram em Carapicuíba, Jandira, Itapevi, Osasco e lidam no outro lado
da cidade. Queimam hora, hora e meia de trem. Viajam de pé, marmi­
ta de baixo do braço e os tarecos necessários. Ninguém se fala. Andam
sonados, destroncados de cansaço. Tristes uns, inexpressivos outros.
Feito coisas. Feito bichos, olhos parados de boi (pp. 136-137).

N ad a m ais co n trastan te d o q u e "gatinhas in cre m e n ta d a s nas g aru­


pas" ru m o aos b airro s-jard in s e o transp o rte ap e rtad o d e um d ia c a n ­
sativo d e trab alh o dos p e d re iro s V ald e m ar, q u e se re p ete ad infinitum .
A p ergunta, dessa v e z , p a re ce e n d e re ç a d a aos p u b licitá rio s e aos in ­
cauto s q u e p referem a c re d ita r na p ro p ag an d a a v e r a re a lid a d e d ura
dos o p e rário s d as fá b ricas, d o s m igrantes n o rd estin o s, das d iaristas q ue
não p o d em sen tar no trem para não d o rm ire m d e c a n sa ço e p e rd e r a
estação d e d e se m b a rq u e (p. 1 3 7 ).
A te m á tica d a vio le n ta tra n sfo rm açã o da c id a d e , q u e joga p ara a
p eriferia e para o m u n d o do c rim e os antigos m a la n d ro s, os b o ê m io s,
os p o b res, os sem -n ad a no m u n d o alé m d a rua, está e x p líc ita nas o bras
d e João A n tô n io e a o p ção d e e sc re v e r essa tra n sfo rm açã o através do
o lh a r e da fala desses se m -n a d a , vê-los do ponto de vista d eles m e s­
m os, é o q u e a salva do c lic h ê de m ostrar as m a ze la s da p o b re za b ra­
sile ira n u m a catarse c a p a z de a p a zig u a r a angústia d e u m a so cie d a d e
burguesa im p lica d a nessa re a lid a d e .
Em "A b raçad o ao m eu ra n c o r", o p e d re iro V a ld e m a r e o sam bista
G e rm a n o M atias fu n cio n a m co m o sím b o lo s da m u ltid ão q u e p a lm ilh a
a grand e c id a d e . M o stran d o -o s na sua sin g u la rid a d e , João A n tô n io faz
co m q u e e xistam co m o in d ivíd u o s, sem um ju lg am e n to m oral q u e
os se p ara, num gueto o n d e se m a n te ria m a n ô n im o s o utra v e z , dos
h u m ilh ad o s, d a im en sa m aio ria dos in ju stiça d o s, dos v e n d e d o re s d e
carro s d a Bolsa do A u to m ó v e l, q u e o fo lh eto p u b licitá rio ve n d e co m o
exo tism o e o p çã o de "n eg ó cio s d a C h in a " (p. 1 3 2 ).
Se a p u b lic id a d e só co n seg u e v e r o p o b re co m o um p ro b le m a so cial
da g rand e c id a d e q u e , co m o tal, m e re c e ser e lim in a d o , e sc o n d id o ,
tra n c a fia d o em n om e d e u m a id e ia falsa de seg u ran ça dos q u e têm
seu esp aço leg islado, os h ab itantes das ruas são m o strados em outros
texto s d e João A n tô n io - co m o em "M alag u e ta Perus e B a c a n a ç o ",
"P a u lin h o Perna To rta", "M a ria d e Jesus d e S o u za (P e rfu m e d e G a rd ê ­
n ia )", para c ita r alguns - e n fre n ta n d o os m an do s vio le n to s do Estado,
m esm o q u e saib am ser esta u m a luta d iá ria na q ual já e n tra m p e rd e n ­
d o. M as, num ato de d ig n id a d e , d e co ragem e tam b ém de v io lê n c ia ,
astu cio sam e n te - co m p ic a rd ia , d iria e le - , João A n tô n io m ostrou o
m a la n d ro , o b a n d id o , a prostituta d e sa fia n d o a o rg a n iza çã o do cartão-
postal, e xig in d o um esp aço um p o u co seu , tra p a c e a n d o co m as arm as
q u e tem - o co rp o e a linguagem - para se m an te r v iv o . O efeito não
p ed e p ie d a d e , é c o rro sivo . N esse te xto , João A n tô n io não e n co n tra
m ais os m alan d ro s de o u tro ra , só a "p u ta ria fu le ira " q u e to m o u o La r­
go do C o rre io em p lena luz do d ia e a "v ira ç ã o brab a" dos tra b a lh a ­
d o res das fá b ricas, dos em ig ran te s, dos en g raxates q u e sile n cia ra m a
b atu cad a, dos v e n d e d o re s d e balas e d e a u to m ó v e is, d o lú m p e n .
A ssim , a p re se n ça d o aleg re sam b ista - o m a la n d ro - no te xto , d á
lugar ao p e d re iro , ao tra b a lh a d o r a ssalariad o . Essa a d e sco b e rta d u ra
do n arra d o r: não há m ais m ala n d ro s se v ira n d o na sin u ca , há h o m e n s
e xp lo ra d o s, q u e fo ram ab so rvid o s pelo sistem a ca p ita lista , m o vid o s
pelo c o n su m o . M ais a d ia n te o p e d re iro V a ld e m a r sai do texto e o
grito do "m a lu c o " fic a para trás, lá na Rua Ip irang a, para d a r lugar a
um o utro grito, insistente e tam b é m d e n u n c ia d o r: " - B a le iro . B a le iro ,
b a la !" (p. 1 3 3 ). São os m e n in o s q u e ten tam so b re v iv e r ve n d e n d o ba­
las na Estação Julio Prestes sob o o lh a r co n stran g e d o r d e um p o licia l:
"H á um p raça, arm a ao o m b ro , ca ra q u a d ra d a nos e sp ia , raivo so ou
d e b o ch a d o . S en tirá n o jo ?" (p. 1 3 4 ).
A a d m in is tra ç ã o fu n c io n a lis ta d as c id a d e s re je ita to d o s os d e ­
trito s, as p arte s in d e s e já v e is q u e b o rra m a b e le z a q u e as e x p õ e
c o m o p ro d u to . O s p o b re s são e x c lu íd o s , re c h a ç a d o s , e m p u rra d o s
ao s g uetos s u b u rb a n o s , aos m o rro s e a o s in te rio re s d a fa c e m a q u i-
la d a d as c id a d e s . Por isso são tã o m a rc a n te s e d e n u n c ia d o ra s as
p e rg u n ta s so b re o sa m b ista e so b re o p e d re iro . H á lu gar p a ra e le s ,
p ara a a le g ria d o sa m b a e d a to a d a c a rn a v a le s c a d e o u tro ra nessa
c id a d e q u e jo ã o A n tô n io n ão re c o n h e c e m ais e m "A b ra ç a d o ao
m eu ra n c o r" ?
A p o b re z a , a d e sp e ito d e u m a o rg a n iza ç ã o fo rç a d a da c id a d e , q u e
ten ta se p a ra r os p o b res dos m e n o s p o b re s e dos rico s, m istu ra as d i­
fe re n ç a s p in ta n d o a c id a d e co m as c o re s q u e as e m p re sa s d e tu rism o
e a e sp e c u la ç ã o im o b iliá ria não e s c o lh e ria m . N essa g u e rra d e per-
te n c im e n to , a c id a d e não e sc o lh e seus h a b ita n te s, é a c e ita ç ã o . N ela
há lugar p ara to d o s, uns bem fo lg ad o s em seu s e sp a ço s im e n so s,
o u tro s a p e rta d íssim o s, v iv e n d o d o s restos. A o p ç ã o d e ler a c id a d e a
p artir dos q u e c a m in h a m n ela e fa ze m d e sse c a m in h a r na rua o m ote
d e sua e x is tê n c ia ín tim a na c id a d e , ou d a q u e le s q u e são o b rig ad o s a
g an h á-la a travé s dos tre n s e dos ô n ib u s p re cá rio s d o su b ú rb io , é um a
fo rm a d e re e sc re ve r, re c o n c e itu a r a c id a d e p e rd id a . L e r a c id a d e
a tra vé s dos seu s "p ra tic a n te s o rd in á rio s " (C E R T E A U , 1 9 9 4 , p. 1 7 1 ) é
a d m itir-lh e o u tra e x is tê n c ia q u e n ão a q u e la q u e a c o n stitu iu : o tra ço
p la n e ja d o , a lim p e z a , suas p rá tica s o rg a n iza d o ra s. E c o n tra d iz e r o
fo lh e to p u b lic itá rio .
O q u e o n arrad o r e n co n tra na c id a d e está em g rand e co n traste co m
o q u e o fo lh eto d e p u b licid a d e o fe re c e . Ele está em bu sca da sua
c id a d e c o n h e c id a , p a lm ilh a d a , o n d e viu suas perso nagens n asce re m ,
a c id a d e q u e o alim e n to u no in íc io d a c a rre ira . N ão a e n co n tra . Ele
b u sca, m esm o q u e para c o n tra d izê -la , a c id a d e q u e o fo lh e to v e n d e .
Tam b ém não a e n c o n tra : "A c id a d e d eu em o u tra. D e u em o u tra a
c id a d e , co m o certo s d ias d ão em c in z e n to s, d e re p e n te , num la n ce "
(A N T Ô N IO , 1 9 8 6 , p. 8 0 ). Em vin te frag m en to s, uns m ais longos e
lentos, ch e io s d e am arg u ra , o utros m ais breves, co m ce rta v io lê n c ia e
num ritm o bem v e lo z , "A b raçad o ao m eu ra n c o r" é a saga de um dia
na vid a d e um jo rn alista e e scrito r q u e , c o n v id a d o a passar u m a se m a ­
na em São Paulo a fim de c o n h e c e r e passar a v e n d e r a c id a d e co m o
polo tu rístico , se d e p a ra co m a am arg u ra d e re c o n h e c e r q u e p erd eu
a sua a m a d a 9. C o m o no tango q u e e le lem b ra e c ita : "Esto u m e le m ­
b ran d o d e u m a letra d e tan g aço . C a rre g a d a . E em q u e o osso, o b u ­
raco e o n ervo da co isa fic a m m ais e m b a ix o . D iz , co rta, rasga q u e m e
q u e ro m o rrer a b ra ça d o ao m eu ra n c o r". O te xto en saia os m o v im e n ­
tos d o tango. U m tango ab ra sile ira d o c e rta m e n te , um tango q u e está
no lugar da b atu ca d a . C o m o o sa m b a , o tango tam b é m n asceu nos su ­
b ú rb io s d e u m a grand e c id a d e , B u e n o s A ire s, e viro u ritm o n a cio n a l.
A m b o s foram ab so rvid o s pelo tu rism o e v ira ra m , não raro , sím b o lo d e
e xo tism o . A s letras tra d icio n a is dos d ois ritm os le m b ra m o co tid ia n o
d e gente d o lo rid a e to cam o n arra d o r no q u e há nele d e se n síve l. N ão
é à toa q u e as p alavras osso, b u ra co , n e rvo , co rta e rasga, estão e n file i­
radas em d u as lin h as e o parágrafo q u e as co n té m está e n tre um q u e
fala da d e c a d ê n c ia d o Largo do C o rre io e q u e se fe ch a le m b ra n d o "os
d e so cu p a d o s e tristes" e outro q u e se in ic ia co m a frase "v ira ç ã o de
m u lh e re s às d e z e m eia da m a n h ã " (p. 9 5 ). O n arra d o r d ó i.
D o m od o co m o João A n tô n io estru tu ro u o te xto , o leito r va i sa b e n ­
d o aos p o u co s das m in ú cia s d o e n re d o , fic a n d o em p rim e iro p lano a
se n sação , a d o r latente, o rancor, a am arg u ra, a m e la n c o lia , a tristeza,
a fru stração , a e sp e ra n ça p e rd id a , a busca d e alg uém q u e já não e n ­
co n tra o q u e p ro cu ra , c o m o se d ize n d o q u e isso não se v e n d e . A ssim ,
no p rim e iro frag m en to d o texto e n tre ve m o s o n arra d o r à p ro cu ra d e
G e rm a n o M atias. N o seg und o, ele d á o ro te iro , o p e rcu rso dessa bus-

9 É conhecida a personificação das cidades nos textos de João Antônio. Como


aparece no texto "Amsterdam, ai", por exemplo, em várias passagens o narra­
dor trata a cidade por você e estabelece uma relação de desejo entre aquele
que caminha e aquela que o recebe. E também assim que se inicia O Copa­
cabana!: "M eu amor. / Hoje acordei encapetado. E me ganiu, profunda, alta,
uma vontade de brigar contigo, te chutar a barriga, sua marafona engalicada!
Vontade não: gana. Urrar e vomitar sobre você. Você e tu. M ijar na tua cabe­
ça, tronco e membros, te socar contra a parede, te fazer sangue. Ao te beijar
ficou perdido de amor é o cacete. Pelas manhãs tu és a vida a cantar é uma
pinóia, uma ova, uma bosta. A tua cara decadentosa parece o mapa do Chile,
estrepe velho, tralha, cadela arrombada, esmerdeada, meu horror. / Mas és
para ser entendida só por aqueles que não tiveram dinheiro nem para comer
um prato feito. E, isto sim, é a pior das sacanagens. / E eu te bato porque te
amo" (Antônio, 1978, p. 11). Aqui João Antônio faz um aproveitamento paro-
dístico do samba-canção Copacabana (1947), de Braguinha e Alberto Ribeiro.
c a , q u e é o m esm o de "M a la g u e ta , Perus e B a c a n a ç o " (vo ltarem o s a
isso). N o te rc e iro já en tram o s d e c h e io na razão de e le estar em São
Paulo, na c a m p a n h a p u b lic itá ria , já sab e m o s do fo lh e to . M as é só no
q u a rto , o m ais longo até a q u i, d e p o is d e sab er q u e a c id a d e q u e ele
p ro cu ra d eu em o u tra, q u e há a co n fissão do m o tivo da dor, ou do
ra n co r d o títu lo :

Ninguém pergunta o que me dói.


Ela redói. A cidade me bate fundo aqui e o que me irrita foi me pas­
sarem, empurrarem, ontem, depois do coquetel, antes do porre, um
folheto colorido, publicidade de turismo sobre ela. Quem a conhece
que a possa açambarcar tão, tão simplesmente? (p. 83).

A ssim fica ju stifica d o o p o rre , a dor, a busca pela c id a d e re al, v e r­


d a d e ira , q u e ele julga ser a m e sm a da le m b ra n ç a e vai aos p o u co s
p e rce b e n d o q u e se en g an a. Em cad a antigo ponto de sin u q u e iro s, em
ca d a e sq u in a , vê m ais m iséria e m ais d o r do q u e estava a co stu m a d o a
v e r noutros tem p o s. Essa c id a d e q u e tem m aze las a in d a p io res do q ue
as e sp erad as, co ntrasta ain d a m ais co m o fo lh e to q u e a v e n d e . Em bo ra
a p a re ça m no texto em frag m ento s distantes e n tre si, e n u m e ro aqui a l­
gum as passagens re la cio n a d a s ao c o n su m o a q u e o fo lh eto a p e la , para
d e p o is c o m p a ra r co m o q u e o n arra d o r vê ou q u e r m ostrar, a fim de
a n a lisa r o m o vim e n to proposto por João A n tô n io no te x to :

Com pre em São Paulo o que o mundo tem de melhor (p. 86).
Preços do princípio do século com mensagens de paz inteiramente de
graça (p. 103).
Em São Paulo comer é um despotismo (p. 104).
Imaginamos que você é uma pessoa muito sofisticada, que deseja
realçar sua beleza ou dar a alguém um presente maravilhoso (p. 123).

C a d a um desses frag m ento s está em re la çã o co m u m a situ a çã o de


p o b reza e xtre m a . A ssim , e n q u a n to a c id a d e o fe re c e "o q u e o m u n d o
tem d e m e lh o r", "os b aian o s ca m e la m a rre p ia d o s d e frio , assustados
d e frio , e stran h an d o o frio ". O a n ú n c io d e preço s d e o utra é p o ca é se ­
guido pela d e scriçã o dos re stau ran tes da A v e n id a São João , às q uatro
horas da m a n h ã , a p in h ad o s d e gente c o m e n d o do bom e do m elho r,
e n q u a n to "os vag ab u n d o s e os e ira -se m -b e ira , os vid as-to rtas passam
e p en sam . A q u e le s viv e m um v id ã o ". E d e novo a le m b ra n ça dos m i­
g rantes: "A ra p a zia d a cheg ad a nos p au s-d e -a ra ra e d e scid a no M o rro
d e A ltin o c o m e fe ijã o sem n a d a ". Essa le m b ra n ç a é p ro lo ng ada pela
im agem da avó do n arrad or, q u e aju d a os n o rd estin o s, lá ch a m a d o s
de b aian o s, co stu ra n d o ro u p as, in cre m e n ta n d o o fe ijã o co m c e b o la e
o utros te m p e ro s, para se fe c h a r co m a frase q u e ganha toq u es d e c i­
n ism o , m a ld a d e m al d isfarçad a dos q u e já não se se n sib iliza m em um
país d e tanta d e sig u a ld a d e : " C o m e r em São Paulo é um d e sp o tism o ".
Esse tem a e esse co n traste é m ais u m a v e z re p e tid o q u atro frag m entos
d e p o is, a in sistir para q u e não se fe c h e m os o lho s p ara u m a re a lid a d e
tão g ritante.
T alve z, exp o sto assim , c ru a m e n te , o tem a d o texto d e João A n tô n io
p a re ça por d e m a is p a n fle tário , sem a m e d ia ç ã o n e ce ssária a um texto
lite rá rio . M as o texto é m u ito m aio r do q u e o tem a a q u e se d e d ic a ,
pois está arq u ite tad o d e m odo a d e ix a r a p a re n te s as o scila çõ e s dessa
im ensa co n stru ção d e c o n c re to q u e é a c id a d e de São Paulo e q u e é
tam b ém o B rasil. C o m o se esp iásse m o s, na le itu ra , as vigas d e su ste n ­
tação repletas d e seres in d ese ja d o s a a b a la r a estru tu ra v e n d id a co m o
sím b o lo de re sistê n cia. M ais um a v e z p au tad o pela se n sa çã o , João
A n tô n io aposta no co ntraste d a c id a d e a p a re n te e d a su b te rrâ n e a , q u e
só p arece e sco n d id a aos q u e não q u e re m e n xe rg a r a lé m do ce n tro
c o m e rc ia l c o n h e c id o em tod o o p aís10.
O leito r já sabe d esd e o in íc io q u e o q u e tem nas m ãos é o texto de
um jo rn alista às voltas co m seus ra n co re s, d esig nad o para fa ze r um a

10 É conhecida a imagem de Gustav Le Bon para designar a massa: "Com


poder unicamente destruidor, as massas atuam como aqueles micróbios que
aceleram a desintegração dos organismos debilitados ou dos cadáveres. Assim,
quando o edifício de uma civilização está minado pelos vermes, as massas são
as que produzem a derrocada final" (apud C A LD A S, 1991, p. 32). Embora não
estejamos discutindo o conceito de massa e nem a mesma época histórica do
texto de Le Bon, a imagem do edifício minado serve para a imagem da cida­
de, com seus pobres indesejáveis a solicitar atenção, seja pela feiura das suas
misérias, seja pela violência. Não mais a massa bárbara e inculta reivindicando
o poder, mas a massa empobrecida, desafiando o poder instituído, abalando
as estruturas do sistema capitalista com o simples espetáculo de sua presença
indesejada.
m atéria sob re a c id a d e d e São Paulo e sua p ro p e n são para o turism o
d e n eg ó cio s. Já sabe q u e o n arra d o r a ce ito u o tra b a lh o em partes p o r­
q u e o c lim a da re d ação não é o m e lh o r do m u n d o na é p o c a : "N o u tro
te m p o , bem o u tro , a re d a çã o fora um lugar d e e n tu sia sm o , ru m o r e
m o v im e n to . Isso, sem a d ita d u ra . A gora tran sp irava-se n o jo , d erro ta.
(...) S a ir p ara a ru a, a tra b a lh o , era um a lív io " (p. 7 9 ). M as na m e d id a
em q u e o texto se d e se n v o lv e , a a tm o sfera d e pressão q u e ro n d a o
jo rn a lism o vai se to rn a n d o m ais c la ra .
O n arra d o r parte d e um p ro b le m a pessoal seu co m a p ro fissão , na
q ual já não a c re d ita , e vai d e stila n d o o rancor, m o tiva d o e sse n c ia l­
m ente pelo q u e vê d e entrega à c a m p a n h a p u b licitá ria nos o utros
colegas, até ch eg ar a u m a e sp é cie d e c lím a x em q u e os ag rid e, n um a
esco lh a nad a sutil d e v o c a b u lá rio . A ssim , tem o s no q u in to frag m ento
u m a e sp é cie d e co n fissã o : "Esta profissão não presta. C o m o te m p o ,
v o c ê vai e m p u rra n d o a co isa co m a barriga, m e io p esad ão . Sem a le ­
gria, garra ou c re n ç a , c u tu c a d o pela n e ce ssid a d e d a so b re v iv ê n cia .
A p e n a s" (p. 8 1 ). N o d é c im o sexto frag m en to , d e p o is d e te r p e rco rrid o
g rand e parte d a c id a d e te n ta n d o re avê -la , em b u sca, q u e m sa b e , de
u m a m o tivação para fa ze r a m a té ria q u e d e se ja e não a e n c o m e n d a ­
d a , o n arra d o r passa p elo q u e restou do E d ifíc io A n d ra u s d e p o is de
um in c ê n d io e o u tra v e z a le m b ra n ç a do tra tam e n to q u e se d á nas
re d a çõ es a c a la m id a d e s desse tip o a u m e n ta a d e scid a ao poço da
d e silu sã o :

Quiquirica-se ainda nas redações a necessidade de matérias humanas.


Com historinhas, empostam. Humanas e boas. Nenhum sabido da
profissão fez o inventário dos sonhos impossíveis que embalaram es­
sas vidas perdidas no incêndio. Um homem empanturrado não pode
entender um faminto. Disso sei. Mas já sabiam antes de mim os russos
e escreveram isso há mais de cem anos. Em todo caso, me permito:
um incêndio, o sente quem já teve a casa pegando fogo e, depois, só
a roupa do corpo (p. 121).
É c o n h e c id a a história d o in c ê n d io na casa d e João A n tô n io e sua so ­
frid a reescrita do co n to "M ala g u e ta , Perus e B a c a n a ç o "11. A o c o lo ca r
em c e n a sua história pessoal, o au to r e x p lic ita d e fo rm a irrevo gável a
tese d e seu te xto : e n q u an to a profissão exig e q u e os jo rn alistas e sc re ­
vam para v e n d e r m até rias, e le re iv in d ic a o co m p ro m isso co m a q u ilo
q u e se e sc re v e . Esse co m p ro m isso , a q u e m uitos d a m e sm a profissão
não se sen tem atre lad o s, toca fu n d o a João A n tô n io por te r v iv id o as
m esm as d o res d as vítim a s c u ja s "h isto rin h a s" saíram no jo rn a l. Se nas
re d açõ e s ap elam "p ara a n e ce ssid a d e d e h isto rin h as h u m an as e b o a s",
viro u p ra xe e sc re v e r sob re os p ro b le m as sem se e n v o lv e r co m eles.
Assim co m o tod o jo rn a lista , tod o e scrito r d e v e ria fa ze r sua profissão
de fé co m o povo, pelo p o vo . Eram te m p o s em q u e n ing uém gostava
d e assu m ir ser d e o u tra classe. Se, d e lib e ra d a m e n te , João A n tô n io a s­
su m iu sua id e n tid a d e d e "e scrito r q u e c h e ira a p o v o ," n u n ca a d m itiu
q u e usassem esse ep íteto para estar na m o d a, ou para a te n d e r e x ig ê n ­
cias d e m e rca d o .
N o auge d e seu xin g a m e n to , c u ja s p alavras m ais d u ras não p recisam
ser su b lin h a d a s neste tra b a lh o , co m o se o te xto se tratasse d e um a
carta ab erta aos jo rn alistas, vai assim o seu re ca d o :

11 Na edição da Cosac Naify para Malagueta, Perus e Bacanaço há uma apre­


sentação de João Antônio intitulada "D e Malagueta, de Perus e de Bacanaço",
escrita em 1963, mas só publicada pela primeira vez na terceira edição do li­
vro, pelo Círculo do Livro, em 1980. Nela, o autor dá notícias do incêndio: "[o
livro] estava pronto em 12 de agosto de 1960, data em que veio um incêndio,
queimou minha casa, lambeu tudo. Fiquei sem roupas, sem casa, sem livro.
/ Naquela casa, naquele meu quarto, eu trazia guardadas as coisas que me
acompanhavam desde os cinco anos de idade" (A N TÔ N IO , 2004, p. 14). No
encarte que acompanha o livro e traz um histórico de sua composição e lança­
mento, Rodrigo Lacerda esclarece que, ao contrário do que diz João Antônio,
só os originais do conto homônimo foram perdidos no incêndio: "João Antô­
nio, malandramente, manipulou tal coincidência de títulos, deixando que o
mal entendido se propagasse" (p. 7). Ilka Brunhilde Laurito confirma a versão
de Lacerda: "Em princípios de agosto, depois de um largo silêncio, recebo
um telefonema desesperado de João Antônio. Sua casa havia pegado fogo.
E, junto com a perda de seus objetos queridos, seu quadros, seus livros, sua
máquina de escrever, ele também perdeu os originais do conto que lhe cus­
tara tantos meses de trabalho e sofrimento" (Remate de Males, 1999, p. 49).
Evitem certos tipos, certos ambientes. Evitem a fala do povo, que vocês
nem sabem onde mora e como. Não reportem povo, que ele fede. Não
contem ruas, vidas, paixões violentas. Não se metam com o restolho
que vocês não vêem humanidade ali. Q ue vocês não percebem vida
ali. E vocês não sabem escrever essas coisas. Não podem sentir certas
emoções, como o ouvido humano não percebe ultra-sons (p. 110).

O u e n tão , n ou tro to m : "H u m ilh a d o e o fe n d id o é um a ova! C o m ­


prad o e v e n d id o . Safard an a e o m isso " (p. 1 0 1 ). A parte a re iv in d ic a ­
çã o do lugar p rivileg iad o d e re p re se n ta n te do povo co m o ú n ico ca p a z
d e c o m p re e n d ê -lo , sem levar em co n ta q u e o q u e sen te d o e r em si
p od e ser e xp e rim e n ta d o por o utras pessoas q u e co m p a rtilh a m a m e s­
m a se n sib ilid a d e , o p rim e iro e x c e rto m ostra ser leg ítim o o d ire ito de
c h a m a r a a te n çã o para a fa b ric a ç ã o d e p o siçõ es d e g ab in ete, a çã o q ue
iguala os p o lítico s e os jo rn alistas. A m a n ip u la ç ã o d as e m o çõ e s, a fa ­
b rica çã o d e m atérias p au tad as por interesses de m e rca d o - co m o está
re fo rçad o no segundo e x c e rto - , o c in ism o m al d issim u la d o p are ce m
ser ju stam e n te o q u e im p u lsio n a a escrita d o te xto . E um n arra d o r q ue
e xp õ e suas e n tra n h as. O títu lo já a n u n c ia v a isso: a e xp o siç ã o dos ra n ­
co re s. N isso vai a c u sa ç ã o , a ce rto d e co n ta s, revisão d a v id a , d a p ro fis­
são. D e lib e ra d a m e n te , João A n tô n io c o lo c a em c e n a um n arra d o r q ue
se co n fu n d e co m e le p ró p rio , o q u e a u m e n ta o grau d e a u te n tic id a d e ,
v e rd a d e , e faz d o texto algo q u e intriga, q u e é re ce b id o co m ce rto in ­
c ô m o d o , pois não há co m o en treg ar à perso nagem os e q u ív o co s dessa
passagem a lim p o d e um a situ a çã o q u e e n vo lv e o leitor, d e um ce n á rio
m uito co n h e cid o dos brasileiros e d e um a re alid ad e q u e não é ignora­
d a. A c ru e za do tem a exige q u e se leia o texto partilhan d o esse rancor,
m as tam b ém essa dor, toda a im p o tên cia q ue se e xp a n d e a cad a lin h a.
Se, a p rin c íp io , fic a m ais ou m e no s e sta b e le cid o q u e seu ra n co r se
dirige aos jo rn alistas - q u e re d u z a um tip o d e p u b licitá rio s q u e tanto
se d e ixa m levar pelas c a m p a n h a s e fa ze m d elas seus m otes d e e sc ri­
ta co m o não se c o m p ro m e te m co m os p ro b lem as q u e p o d e riam ser
atacad o s pelos jo rn a is d iá rio s, q u e , por sua v e z , c u m p riria m , assim ,
sua fu n çã o d e in fo rm ar e d e n u n c ia r, le va n d o a p o p u la çã o a e xig ir m u ­
d an ça s co n cre ta s - , no m o vim e n to do texto o n arra d o r trata de d e ix a r
c la ro q u e se d e ix a le v a r pela e m o çã o q u e e x p e rim e n ta na c a m in h a d a .
S e g u id am en te usa exp ressõ e s q u e m ostram esse d esab afo em m e io à
c a m in h a d a : "m as m e c a lo " (p. 1 1 6 ), "dou por m im " (p. 1 0 0 ), "ganho o
an d a d o d e n o v o " (p. 1 2 0 ) e tc. O te x to , e scrito tod o no p re se n te , co m
algum as digressões q u e d ão co n ta da c id a d e d e São Paulo em o utra
é p o c a , an ed o tas d e jogos d e sin u ca fam o sos e d e co m o foi e sca la d o
para a m atéria q u e d e v e ria escre ve r, vai re ve n d o p o sicio n a m e n to s do
c o m e ç o ao fim , e é assim q u e , co m o se n u m a to m a d a d e c o n sc iê n c ia ,
a m e n iz a o d e sp re zo re servad o aos jo rn alistas em passagens a n te rio ­
res: "Logo c a io em m im . N ão fo ram os jo rn alistas q u e e n co m e n d a ra m
d ita d u ra , m as são eles, p rin c ip a lm e n te , q u e a têm no lo m b o . N e m
p e d iram p o lítico s b iô n ico s. Tam b ém não in ve n ta ra m a so c ie d a d e de
c o n su m o " (p. 1 2 4 ). O u e n tã o , num d e svio do p e n sa m e n to , q u a n d o
se sen te o p rim id o - "e m p u rra d o e e sp re m id o " - no trem ru m o à casa
m atern a e lem b ra-se da p ro ib içã o d o uso d a p alavra vag ão :

A palavra vagão, proibida aos jornais pelos órgãos oficiais, só deve ser
usada para transporte de carga ou animais. Assim, que culpa terão os
jornalistas com uma ditadura no lombo, além dos patrões? Alguns,
mais afoitos ou rebeldes, estão comendo processos ou cadeia (p. 134).

Essa to m ad a d e c o n sc iê n c ia q u e se dá à m e d id a q u e a raiva vai


p assand o, p e rm ite -lh e a m p lia r o o lh a r do â m b ito do jo rn a lism o para
todo o c o n te xto social da é p o c a . N ão é tão fácil a p o n ta r um cu lp a d o
para a situ ação e ela se to rn a m ais c o m p le x a . O s leito res q u e a cu sam
a saíd a pela tan g en te, a o p çã o sim p lista d e c u lp a r a d ita d u ra , logo
atentam p ara a fin e za d a c o m p a ra çã o e n tre o c lim a gerad o por esta
- d e m e d o , su fo co , in d ig n açã o , im p o tê n c ia - e o do in te rio r do trem
d e su b ú rb io lo tad o :

Enquanto sou apertado, bato os olhos lá fora, e medo.


Se me escruncharem os bolsos, se me pisarem, se me chutarem, me
arrancarem os botões da roupa, se me tirarem os sapatos, se me co-
tovelarem, sequer conseguirei endireitar o espinhaço, me empertigar.
E um grito seria um rilhar de dentes, um estalo de boca, nada. Suo
(pp.134-135).

O texto d e João A n tô n io , na m e d id a em q u e parte d e um a c o n te c i­


m ento q u e d e se n ca d e ia u m a to m a d a d e c o n s c iê n c ia , u m a a va lia çã o
d e p e rsp e ctivas, se asse m e lh a a um ro m a n ce d e in ic ia ç ã o . C o m o se,
d ep o is desse d ia , a p erso n ag em -h eró i não pudesse m ais ser a m e sm a.
H á um a passagem d e um estad o a o utro e esse c lim a é re fo rça d o pelo
fin al sim b ó lic o q u e re m ete à vo lta do filh o p ró digo : co m o citam o s no
in íc io da an á lise desse texto , ao te r ch eg ad o à casa m a te rn a , o n a rra ­
d o r é perg u ntad o sob re se vo lto u para ficar. N ão d iz nad a e é a m ãe
q u e c o n c lu i: A sua arte não p e rm ite dois a m o re s" (p. 1 4 2 ). A c o n ­
clu são d a m ãe in vo ca a frase q u e d e fin e a lite ratu ra c o m o u m a m u lh e r
e xig en te d e d e d ic a ç ã o e x c lu s iv a . A vo lta , assim , e n ce rra m uito s luga­
res d e origem in d ica d o s no te xto : vo lta à Pre sid e n te A ltin o , lugar a q ue
o n arrad o r co nfessa não te r fo rças p ara v o lta r; à profissão d e jo rn a lista ,
q u e o aguard a no Rio d e Ja n e iro , e vo lta à linguagem lite rá ria , q u e o
au to r d iz ter p e rd id o no e x e rc íc io do jo rn a lism o : "P e rd i a linguagem
no v e rb a lism o p alavro so da p ro fissão " (p. 1 2 2 ).
A ap a re n te falta d e m e d ia çã o e n tre o v iv id o e a c ria ç ã o literária pode
ser refu tad a tan to pelo fin al sim b ó lic o , q u e re m e te ao q u e está além
do te xto , q u an to pela c u rva d ra m á tica q u e , à m a n e ira a risto té lica , faz
c re sc e r a a ção d e m o d o a ating ir o c lím a x p ara d e p o is e n c a m in h a r o
d e sfe ch o (A R IS T Ó T E L E S , 2 0 0 0 , p. 5 9 ). A ssim , o n arra d o r vai e x p o n d o
seu ra n co r d e m od o antes m e la n c ó lic o , d esejo so de e n c o n tra r a c i­
d ad e d e lin e a d a em sua im ag in ação e c a lc a d a no passado , c re sce n d o
para um ím p eto agressivo e se fe c h a n d o d e m odo m e la n c ó lic o o utra
v e z . N ão há lugar para três ce n a s lin e a re s - c o m e ç o , m e io e fim - ,
c o m o na teo ria clássica d e A ristó teles, são m uitas as idas e vin d a s no
in te rio r de assuntos d ife re n te s e n tre si: a b usca d e G e rm a n o M atia s e
d e sua m ú sica, q u e co n té m em si digressões tanto para os c e n á rio s em
q u e o m ú sico co stu m ava ser e n co n tra d o q u a n to para a c u ltu ra da b a ­
tu ca d a e n co n tra d a nas ruas d e o u tro ra : na lata d e g raxa, na frig id e ira,
no sapato sen d o e n g ra xa d o ; a b usca dos salões d e sin u ca e d e seus
jo g ad o res, com digressão p ara a a n e d o ta da p artida de sin u ca q u e teve
m uitas apostas, m as não te ve v e n c e d o r; a a n á lise da situ a çã o atual do
jo rn a lism o b ra sile iro ; a vo lta à casa m a te rn a ; a d e sc riç ã o d a c id a d e de
São Paulo e seus co ntrastes e n tre ricos e p o b res. Todos esses assuntos
não têm n e ce ssa ria m e n te u m a re la çã o d e cau sa e c o n se q u ê n c ia . O
texto está arm ad o d e m o d o a d ar a im p ressão d e um m onólogo in ­
tern o q u e se vai co n stru in d o c o n fo rm e os passos do narrad o r. A m b o s,
texto e n arrad or, p arecem n ão se g uiar por um ro teiro , m as serem im-
p elid o s p elo q u e su scitam as im agens co m q u e se d e p a ra m . A a n á lise
sim p les da linguagem e d o ritm o , ora v e lo z ora le n to , ora le m b ra n d o
um tango, ora um sam b a, acu sa o trab alh o do au to r em busca d o e fe i­
to estético rigorosam en te p la n e ja d o .
H a v e n d o ou não id e n tific a ç ã o co m o n arrad o r, o q u e o leito r a c o m ­
p an h a nessa c a m in h a d a a pé, na e n tra d a nos p réd io s a b a n d o n a d o s
ou m o d e rn iza d o s, no p ercu rso d o tre m , é a d e c a d ê n c ia do m u n d o de
"M alag u e ta, Perus e B a c a n a ç o ". C o m o se n a q u e le texto - o p rim e iro
livro , a p rom essa d e u m a c a rre ira d e sucesso - o m u n d o fosse c o lo ­
rid o , a e xe m p lo d a passagem em q u e re m e m o ra as bolas de sin u ca
m a rcan d o o seu ritm o na m esa do M o u risc o , e agora fosse tod o em
preto e b ra n c o : "E p re to -e -b ra n co fa ze n d o o lado re al, por d e n tro "
(A N T Ô N IO , 1 9 8 6 , p. 1 3 3 ).
Em M alagueta , Perus e Bacanaço João A n tô n io d e d ic a toda a ú ltim a
parte do livro à sin u c a , com q uatro co n to s: "F rio ", "V is ita ", "M e n in ã o
d o c a ix o te " e "M alag u e ta, Perus e B a c a n a ç o ". A c rític a b rasileira é
u n â n im e em c o lo c a r este ú ltim o e n tre os m e lh o re s co n to s do autor.
N e le , três m alan d ro s v iv e m a noite paulista à p ro cu ra d e um jogo de
sin u ca q u e possa re n d e r algum d in h e iro . O p ercu rso tem in íc io na
Lap a , em um sáb ado à tard e , co m Perus e B a c a n a ç o , q u e "avistavam -
se todas as tard e s" no C e le stin o , um salão antigo d a q u e le b airro p o ­
bre. Ficam ali até o lu sco -fu sco , sem d in h e iro para n ad a , Perus co m
fo m e e sem m u ito q u e fazer. O ritm o lento d á lugar a um a atm o sfera
v ic ia d a , d e e sp e ra, o n d e nad a a c o n te ce e a re p e tiçã o é bastante m a r­
c a d a tanto na estru tu ra do co n to q u an to e x p lic ita m e n te pelas im a ­
gens: " O m e n in o Perus re p etia cig arro s" (A N T Ô N IO , 2 0 0 4 , p. 1 5 7 ).
N a c e n a in icia l do co n to , q u e se prolonga e d e sc re ve até m e sm o os
gestos do m e n in o Perus em sua p rim e ira fa la , "três d ed o s e n fia ra m -se
nos ca b e lo s. - Q u e nada! Tou q u e b ra d o , m eu - os d e d o s vo lta ram a
d e scan sar nos jo e lh o s" (p. 1 4 9 ), Perus e B a c a n a ç o ten tam se e n te n d e r
para um jogo. M as não há o c a p ita l. S o m e n te q u a n d o a c id a d e se
ilu m in a - "A lapa tro cava d e c o r" (p. 1 5 7 ) - é q u e B a c a n a ç o se lem b ra
de M alag u eta. A ssim , João A n tô n io vai m a rc a n d o , d e m o ra d a m e n te , a
en trad a dos personagens e as horas p assan d o : "S e te horas. C ap io n g o
e m e io n u , co m o se m p re m e io b ê b a d o , M alag u eta a p a re ce u (...) - A
gente se ju n ta , m e u s. Faz m arm e lo e pega os tro u x a s" (p p. 1 5 8 - 1 5 9 ).
En co n tra d a a p rim e ira so lu çã o , q u e c o lo ca B a c a n a ç o c o m o patrão do
jogo, e m p e n h a n d o seu relógio, e Perus e M alag u eta co m o p arce iro s
d issim u la d o s, os três saem à p ro cu ra d e salões o n d e não são c o n h e c i­
dos e p o d eriam g an har algum d in h e iro .
A ssim c o m e ç a a a ve n tu ra e o p ercu rso se este n d e para A gua B ra n ca
e , no Joana d 'A rc , en tram no jogo da v id a , "o jo g u in h o m ais lad rão de
q u an to s há na sin u ca " (p. 1 6 4 ). A li, se e m p e n h a m , se a rrisca m , q ue
a roda do jogo era de L im a , p o licial ap o se n tad o q u e d e sco n fio u do
c o n lu io dos d o is. M as a cab a ra m g an h an d o "três m il em notas m iú d a s"
e seguem para B arra Fu nd a à p ro cu ra de novos salõ e s. N essa parte do
c o n to , a atm o sfera d e a b a fa m e n to , tensão pelo q u e p o d eria v ir pela
fre n te , se a c e n tu a : " U m a noite q u e n te , ch a ta . Z o a d a d e m oscas assa­
n had as nos salõ e s" (p. 1 7 9 ). E B arra Fu nd a não d eu jogo, o brig an d o -o s
a seguir p ara C id a d e .
João A n tô n io se d e m o ra d e sc re v e n d o a São Paulo n o tu rn a : A ve n id a
São João e sua c o stu m e ira z o n a de p ro stitu içã o , a Rua Ip irang a, o Je ca ,
d e scrito no co n to co m o o "b o te c o d e c o n c e n tra ç ã o m a io r d e toda
a m alan d rag e m , fe c h a -n u n c a , bo ca do in fe rn o , o lh o a ce so por toda
a m ad ru g ad a" (p. 1 8 4 ). V ã o para o A m e ric a n o , na A m a d o r B u e n o ,
d e p o is ao Paratodos, no Largo Santa Efig ê n ia, o n d e e n co n tra ra m , em
v e z de jogo, a p o lícia e "a q u e le silê n c io e sq u isito d e e sp o rro q u e vai se
d a r" (p. 1 9 0 ). A li fo ram e xto rq u id o s. "Q u a se três h o ras" e os três seg u i­
ram para o M a rtin e lli, o n d e tam b é m não d eu jogo. D a li, partiram para
P in h e iro s e , jo g and o só os três, to p aram co m R o b e rtin h o , q u e lhes
tiro u tu d o . M a la n d ro m ais m a la n d ro q u e os três, n aq u e la noite com
a m esm a in te n ç ã o , a p lico u a m e sm a sua d issim u la ç ã o , o brig an d o -o s
a vo ltar à L ap a , ao C e le stin o , ao ponto d e p a rtid a , a in d a co m fo m e e
p e d in d o três cafés fiad o s.
E fácil p e rce b e r q u e em "A b raçad o ao m eu ra n c o r" o n arra d o r faz o
m esm o p ercu rso dos três m a la n d ro s, nessa n o ite , na C id a d e (A ve n id a
São João co m Ip irang a, o Je ca , o M a rtin e lli, o M a ra vilh o so , na e sq u in a
em q u e os três e n co n tra m C a rn e Frita, re ve re n c ia d o ) e q u e "A b raçad o
ao m eu ra n c o r" faz le m b ra r o utra v e z as fa ça n h a s do jogador.
Q u a n d o M alag u eta, Perus e B a c a n a ç o cheg am à C id a d e já é m a d ru ­
gada: " U m a , d uas, três, m il luzes na A ve n id a São Jo ã o !" (p. 1 8 2 ) e "a
cid a d e e x p u n h a seus h om en s e m u lh e re s da m ad ru g ad a" (p. 1 8 3 ). O s
m aland ro s se m o vem bem ali e o n arra d o r em te rce ira pessoa (jogando
sem p re co m o ponto de vista das personagens) se e sm era em m ostrar
bem esses h om en s e m u lh eres vira d o re s, m alan d ro s, prostitutas, as cur-
riolas. D e scre ve -o s, os faz falar, re le m b ra aned o tas a ce rca de um ou de
outro q u e se c ru za co m a vid a de um dos três m alan d ro s, aq u i a "m u ­
lher d a zo n a " de B a c a n a ç o , ali a m u lh e r q u e d e ve favo res à M alag u eta.
A C id a d e está ilu m in a d a , ilu m in ad o s os três m aland ro s q u e cre sce m
nessa parte do texto . A cid a d e d e São Paulo, e seu ce n tro e sp e cifica ­
m e n te, é personagem à altura dos três e g an ha, no co n to , os co ntorno s
q u e a d e lin e ia m : é a p in h ad a de gente, os m aland ro s estão em todos os
seus cantos, ela é p ro p ícia ao jogo e à p ro stitu ição , pode-se a n d a r lo n ­
gos percursos a pé, à n oite, há perigos e há p o liciais co rru p to s, há calor,
sam b a, sin u ca . H á bondes passando, os salões são grandes e ilu m in a ­
dos co m o a c id a d e . "E q u an d o é m adrugada até um ca ch o rro na Praça
da R e p ú b lica fica m ais b elo. Lu z e lé trica joga ca lm a em tu d o " (p. 1 8 3 ).
M isturam -se ali todos os tip o s: m u lh e re s d e vestido d e b aile , vad io s,
otários, "m alan d ro s p é -d e -ch in e lo p ro m iscu íd o s co m fin o s m aland ro s
do jogo d e tu rfe " (p. 1 8 3 ). A co r ve rd e está em tu d o : nas co rtin as e nas
m esas e até nos olhos d e u m a m u lh e r bonita q ue atravessa a rua, nos
olhos claros do m e n in o Perus. E há o co lo rid o das bolas.
Em "A b raçad o ao m eu ra n c o r", a P ra ça da R e p ú b lica só reserva ao
n arra d o r um grupo d e estud antes q u e fa ze m "p e sq u isa so cial de c a m ­
p o ", q u e p e rce b e , c o m o v id o , q u e a c id a d e lhe foge e q u e lh e falta
in tim id a d e para re avê-la.

Torço as mãos e ando. Houvesse tempo esperaria o aparecimento das


luzes elétricas, os globos de três a três, gringos, na cabeça dos postes.
Assim, de um lance, dançando, jogando mais escuros que claros, es­
condendo as deformações dos edifícios e o sumiço de alguns estabe­
lecimentos, talvez a luz elétrica fizesse surgir de novo a outra cidade
(AN TÔ N IO , 1986, p. 117).

A re fe rê n c ia à c id a d e d e M ala g u e ta , Perus e B a c a n a ç o , a q u i, é a in d a
m ais e v id e n te . Interessante p e rce b e r q u e o su rg im ento da luz e lé trica ,
o ato de a c e n d e r a lu z d o poste, tem um sen tid o p rim e iro d e ilu m in ar,
m as o su rg im ento da c id a d e q u e o n arra d o r v islu m b ra p o d e r a in d a v e r
não seria p ro p o rcio n a d o p ela luz q u e se a c e n d e e sim p ela n o ite, q u e
e sco n d e o q u e a p a re c e d u ran te o d ia . V er m eno s seria o n ecessário
para re ave r a c id a d e d e o u tro ra . T ro ca r a c la rid a d e do d ia e seus ho-
m ens ap ressad o s para a so b re v iv ê n cia no tra b a lh o pelo e scu ro e seus
o utros h o m en s q u e so b re vive m d a n o ite, m ais fam in to s, m as talvez
m ais alegres. A exp ressão "h o u v e sse te m p o e sp e ra ria o a p a re cim e n to
d as lu zes e lé trica s" re m e te a o u tro te m p o q u e não o c ro n o ló g ico , já
q u e o n arrad o r ap e n as a n d a , o lh a , re le m b ra , sem d estin o ce rto , sem
hora m a rc a d a , sem um "a o n d e ir" . C o m o se não h ou vesse m o d o de
re c u p e ra r o te m p o p e rd id o , a c id a d e q u e não m ais p e rte n ce a e le , o
h om em q u e já é o u tro . Por isso não é c o m p le ta - e n ão é para se m p re
a vo lta para casa - "p a re c e im p o ssível o re to rn o a q u e m já transpô s o
lim ia r da classe" (B O S I, 2 0 0 2 , p. 2 4 2 ).
A o m esm o te m p o em q u e ressoam as perguntas "o n d e a n d a rá G e r­
m an o M atias?, "v o c ê c o n h e c e o p e d re iro V a ld e m a r? ", "q u e c id a d e
é essa q u e não re co n h e ç o m a is?", tam b é m ve m o u tra : "fo i ela q ue
m u d ou ou fui e u ? ".

Detestável ir a todos esses buracos, desentocaiar vagabundos, localizar


salões de sinuca e me mover de carro. (...) Quando conheci essa gente
e gostei deles, quando me estrepei e sofri na mesma canoa furada, a
perigo e a medo, eu não tinha esses refinamentos, não. M udei, sou
outra pessoa; terei tirado de onde essas importâncias ou finuras? (AN­
T Ô N IO , 1986, pp. 82-83).

O novo co n te xto h istó rico a b re e sp a ço para o novo d iscu rso , para


um novo m o d o d e ver, q u e , no te xto d e João A n tô n io ve m m arcad o
pela su b stitu ição d o uso d a palavra po vo por p o p u la çã o ou m u ltid ã o :
"O u tra p alavra no fo lh eto b rilh o so , m u ltid ã o " (p. 1 3 2 ).

Se humilharam as nossas cidades e as fizeram perder a identidade e a


vergonha, se mais da metade da população - isto, dance conforme a
música e use população e não povo, lavrador e não camponês - passa
fome ou não tem onde morar, isso não está dizendo nada. O escriba
fará trabalhos edificantes e modernosos (pp. 101-102).

N o q u e pese a a c e le ra ç ã o d a m o d e rn iz a çã o d e São Pau lo , João A n ­


tô n io fala ju stam en te a partir do te m p o da su b stitu ição dos m ateriais,
do gosto pelo a c rílic o , pelo asfalto, pelo n é o n . Já se fa ze m notar os
efeito s da in d u stria liza ç ã o e d o co n su m o q u e se este n d e m por to d o o
país e , ap esar da visível d e te rio ra çã o das re laçõ es h u m an as na c id a d e ,
a m o d e rn iza çã o é in co rp o rad a ao d iscurso co m o fato r positivo d e c i­
v iliz a ç ã o . Se na d é ca d a an terio r alard eava-se o povo, agora a nova o r­
dem é d iz e r p o p u lação , m u ltid ã o . Ficam para trás as im p lica çõ e s p o líti­
cas ligadas ao vo cá b u lo e acen tu a-se o v a zio da d e sp e rso n a lizaçã o .
V ale a p en a u m a p e q u e n a in cu rsão p elo uso d o vo c á b u lo po vo ao
longo d a h istó ria, pois co m ela fic a rá a in d a m ais e v id e n te as im p lic a ­
çõ es do c o n c e ito no novo te m p o q u e João A n tô n io a cu sa .
Seg u nd o Jesús M a rtin -B a rb e ro (2 0 0 3 ), é co m a Ilu stração q u e o
povo g anha um sig n ificad o p o lítico : co m o grand e n ú m e ro , e le passa
a re p re se n tar u m a a m e a ça por sua co n sta n te e b u liç ã o , to rn an d o -se
"in stâ n c ia leg itim an te do g overn o c iv il" . N o â m b ito da c u ltu ra , e n ­
tretan to , o povo re p resen ta tu d o a q u ilo q u e é co n trá rio à ra zã o : as
c re n ç a s , su p e rstiçõ e s, a ig no rância e a d e so rd e m .
A d esco b erta do p o vo , assim , te ve d ois lados e q u iv a le n te s: "A ra­
c io n a lid a d e q u e inaug ura o p e n sa m e n to ilustrad o se c o n d e n sa in teira
neste c irc u ito e na c o n tra d içã o q u e e n c o b re : está co n tra a tira n ia em
n o m e da vo n ta d e p o p ular, m as está co n tra o povo em n o m e d a ra zã o "
(M A R T IN - B A R B E R O , 2 0 0 3 , p. 3 6 ). R e sp o n d e-se ao povo c o lo ca n d o -
o a b a ixo da ra zã o : e le p recisa ser g o ve rn ad o , a e le é p re ciso d ar a
ilu stração , o d ive rtim e n to e as c o n d içõ e s m ín im a s d e so b re v iv ê n cia .
O povo é a "n e ce ssid a d e im e d ia ta ", e n q u a n to a p e q u e n a burg uesia é
a d eten to ra d o sab er q u e p recisa ser d ad o a ele co m o c o n h e c im e n to .
São os ro m ân tico s q u e faze m p ro g red ir a id e ia de q u e para alé m
d a cu ltu ra o fic ia l dos ilustrad os existe u m a o u tra c u ltu ra . O povo é
p e n sad o , pelos ro m â n tico s, co m o a lm a , e n tid a d e não a n a lisá ve l so ­
c ia lm e n te , a b a ixo ou a c im a d o m o vim e n to so cia l, e sua cu ltu ra é vista
co m o algo q u e não se m istu ra, n ão se c o n ta m in a co m o c o m é rc io ou
co m a c u ltu ra o fic ia l. Logo, a c u ltu ra do p o vo , n u m a id e ia ro m â n tica ,
é a q u e la p rim itiva , fo lc ló ric a , é a cu ltu ra -p a trim ô n io .
A sig n ificação de p o vo , tan to no sen tid o ro m â n tico co m o no da Ilu s­
tra çã o , se d issolve no c o n c e ito de classe so c ia l, na o p o siçã o e n tre p ro ­
letariad o e burguesia a partir d a re vo lu çã o in d u strial. P a ra le la m e n te ao
c o n c e ito de classe so cia l, n asce o de m assa. M a rtin -B a rb e ro lo ca liza
os usos dos d ois term os ligando "classe so c ia l" ao m a rxism o , à e sq u e r­
da q u e busca p en sar o p ro leta ria d o pelas re laçõ e s d e p ro d u çã o , q u e
pensa as d ife re n ça s so ciais a p artir das d ife re n ça s d e classes g eradas na
o p ressão q u e u m a im p õ e à o u tra ; e m assa, a um p e n sam e n to p o lítico
d e d ire ita d e se n ca d e a d o "so b os efeito s d a in d u stria liza ç ã o ca p ita lista
so b re o q u a d ro d e v id a das classes p o p u la re s" (p. 5 5 ).
Paolo V irn o , p en sad o r italian o q u e tem se d e d ic a d o ao estud o do
co m p o rta m e n to na so c ie d a d e u rb an a c o n te m p o râ n e a , sustenta q ue
a m u ltid ão atual se c a ra c te riz a p rin cip a lm e n te pela ling uag em , pelo
in te le cto , e situa no n ascim e n to d a in d ú stria cu ltu ra l o m o m e n to em
q u e trab alh o - poiésis - e p o lítica - p ráxis - d e ix a m de ser c o n ce ito s
se p arad o s para c o n ve rg ire m . E nesse m o m e n to q u e o tra b a lh a d o r se
torn a um virtu o so (e xe cu ta n te sem pro d u to m aterial) através d a lin ­
guagem , p o rq u e a fa cu ld a d e c o m u n ic a tiv a torna-se um c o m p o n e n te
e ssen cial d e c o o p e ra ç ã o p ro d u tiva :

Con el nacimiento de la industria cultural, el virtuosismo se convierte


en trabajo masificado. Es ahí que el virtuoso comienza a marcar su
tarjeta de ingreso. De hecho, en la industria cultural, la actividad sin
obra, es decir la actividad comunicativa que se cumple en sí misma, es
un elemento central y necesario. Y justamente por este motivo es en la
industria cultural donde la estructura dei trabajo asalariado coincidió
con la de la acción política (VIRN O , 2003, p. 56).

O uso d o v o c á b u lo m u ltid ã o na d é ca d a de 1 9 8 0 , a cu sa d o por João


A n tô n io , está em sin to n ia co m a e n tra d a do Brasil nos m o d elo s da in ­
d ústria c u ltu ra l m u n d ia liz a d a , em q u e ganha m a io r v a lo r o tra b a lh a d o r
v irtu a l, co m o está bem c a ra c te riza d o no texto o agente p u b licitá rio ,
um v e n d e d o r d e p alavras, c o m o o são tam b é m o jo rn alista e o escrito r.
A tensão e n tre trab alh o m aterial e im ate rial tam b é m está p resen te na
c e n a em q u e o n arra d o r se pergunta se os jo rn alistas seriam c a p a ze s
d e e n c a ra r o trab alh o dos carre g ad o re s (A N T Ô N IO , 1 9 8 6 , p. 1 2 2 ).
A b u sca d o progresso té cn ico /te cn o ló g ico a todo custo e a pró p ria
o rg a n iza çã o do esp aço u rb a n o , co m seus novos préd io s d e scarac-
te riza d o re s e a re n o va çã o dos bares, dos antigos pés-sujos - a cu ja
m o d e rn iz a çã o João A n tô n io c h a m a de a c riliz a ç ã o , fo rm ic a ç ã o , e v i­
d e n c ia n d o a m u d an ça d e fa ch a d a - tam b é m são gerad oras d e m ais
m arg in a liza çã o so cia l, afastand o os q u e já não tem nada do b ar q u e se
re n o va para a te n d e r os c lie n te s q u e estão in clu íd o s d e alg um a m a n e i­
ra no p ro jeto d e m o d e rn iz a ç ã o : os q u e p e rte n ce m a algum a classe, os
q u e co n seg u e m se d e fin ir no sistem a co m o tra b a lh a d o re s assalariad o s
ou co m o a u tô n o m o s, m as, de q u a lq u e r m o d o , in serid o s no m u n d o do
tra b a lh o . A re m o d e la çã o d a c id a d e in clu i d isp o sitivo s an tim e n d ig o s
(não a in d a os q u e v iria m a ser c ria d o s alguns anos m ais tard e , co m o os
b an co s de fe rro , as luzes ou os jatos de água nas p o rtarias dos préd io s).
M en o s so fisticad o s, re p e le m pelo asp ecto assép tico .
C o m o se pode c o n firm a r pelas análises d e m uitos estud io sos dos
efeito s d a m o d e rn iz a çã o d o país, o cie n tista p o lítico R a y m u n d o Faoro
re su m e bem o processo g erad o r dos co n trastes exp o sto s no te xto de
João A n tô n io :

Em vez de buscar a modernidade, o Brasil padece de ímpetos de mo­


dernização, através dos quais se tenta queimar etapas no processo de
desenvolvimento. Uma nova modernização sepulta a anterior e ne­
nhuma consegue fazer com que o País encontre o caminho para o
desenvolvimento. Impostas por elites pseudodissidentes em favor dos
seus interesses, essas modernizações mantêm a maioria da população
alijada de benefícios sociais elementares (FAO RO , 2009).

Todo o te xto e v id e n c ia a ca d a frag m en to ju sta m e n te o p ro b le m a


da m o d e rn iz a çã o , d o c h a m a d o progresso q u e ignora o d esco m p asso
p ro d u zid o pelo afastam en to ca d a v e z m a io r en tre os q u e são b e n e fi­
cia d o s p elo projeto d e m o d e rn iz a çã o e os q u e são a p e n a s ignorados
por não se a d e q u a re m a e le : "Tem c in e m a s, teatros, livra ria s, plástico s,
restau ran tes, h otéis, a c rílic o s, n eo n s, boates, fó rm ica s e os m e lh o re s
cim e n to s arm ad o s do país. Isso a q u e dão o n o m e d e progresso, terá
a v e r co m a gente, co m o nosso a n d ra jo , fo m es e c o m p lic a d a so li­
d ão ?" (A N T Ô N IO , 1 9 8 6 , p. 1 2 0 ). A m istura das listas, a dos se rviço s
e a dos m ateriais ca ra cte rístico s da m o d e rn iz a ç ã o , re a lça a in d a m ais a
e xistê n cia de d uas forças q u e se re p e le m : o d e se jo d e m o d e rn iz a çã o
a q u a lq u e r custo - pro jeto d as elites d irig en tes - e d o re síd uo q u e p e r­
m a n e ce co m o p ro b le m a , co m o resto h u m a n o . O a n d ra jo e a fo m e são
ca ra cte rístico s da p o b reza q u e não a ce rta o passo co m o progresso.
M as a so lid ão figura a í co m o algo q u e ultrapassa a q uestão m aterial e
q u e tam b é m é d e n u n c ia d o no te x to : o tra b a lh o q u e passa a te r co m o
ú n ico o b je tivo a so b re v iv ê n c ia , a a v id e z do d in h e iro , a c id a d e q u e
im p õ e pressa.
N ão se p o d e negar q u e nos anos 1 9 7 0 o B ra sil, à se m e lh a n ç a de
o utros países d a A m é ric a La tin a , en tro u d e fin itiv a m e n te no processo
d e u rb a n iza ç ã o e d e d e se n v o lv im e n to d as fo rm as d e vid a vin c u la d a s
aos m eio s d e c o m u n ic a ç ã o d e m assa, p rin c ip a lm e n te a te le visã o , q ue
se to rn o u um dos p rin cip a is d ivu lg ad o re s d a so c ie d a d e de co n su m o ,
im p o n d o m od as e novas fo rm as de co m p o rta m e n to . U m a dessas m o ­
d as foi a re d esco b erta do p o vo , m ais visível nos jo rn a is tanto im pressos
q u an to te le visiv o s. Isso fic a e v id e n te tanto nesse texto de João A n tô ­
n io , em passagens citad as a n te rio m e n te , co m o em en trevistas.
O in vestim en to do Estado na in d ú stria c u ltu ra l, na d é ca d a d e 1 9 7 0 ,
p ro m o v e n d o o "c lim a e u fó ric o e ufanista do 'm ilag re b ra sile iro "'
(H O L L A N D A , in N O V A E S , 2 0 0 5 , p. 9 9 ) e , c o n tra d ito ria m e n te , " a li­
m e n ta n d o o su rg im ento e o sucesso da 'im p re n sa n a n ic a ', co m v e í­
cu lo s co m o O Pasquim , O p in iã o , M ovim en to , q u e cre sce ra m na resis­
tê n cia ao au to ritarism o do Estado e ao seu b raço c e n s o r" (C A M A R G O ,
2 0 1 0 ), gerou um c lim a d e d e b a te , d e m o b iliza ç ã o pela p ro fissio n a li­
za ç ã o d o escrito r e crio u p e rsp e ctiva s para a d ivu lg açã o da lite ra tu ra ,
fa ze n d o c re r no cre scim e n to do acesso d a p o p u la çã o à cu ltu ra letrad a,
na d im in u iç ã o das taxas d e a n a lfa b e tism o . João A n tô n io p articip o u
a tiva m e n te dos d eb ates e foi u m a e sp é cie d e figura q u e m arco u o
d iscu rso d e tod a a d é c a d a .

C O N S ID E R A Ç Õ E S F I N A I S

Em "A braçado ao m eu ra n co r", João A n tô n io já está distante d aq u ele


m u nd o de "M alag ueta, Perus e B a c a n a ç o ", da cid a d e d e São Paulo, está
frente a frente co m as im po ssibilid ades de vo ltar a ser q u em foi e d e fa­
z e r aq u ela literatura, q ue ele já co n sid era ro m ântica. Está às voltas com
rancores e vive n cio u certas coisas q ue não perm item cre r n um a m u d an ­
ça satisfatória na so cied ad e , m enos ain d a o p erad a pela literatura. Isso
fica claro tanto pelo q ue escre ve em cartas aos am igos, co m o pelo pró­
prio texto literário, q u e m escla a v iv ê n cia real do escrito r co m n uances
poéticas, co m n ítido trabalho de ca rp in ta ria literária, e pelo novo tom
presente na sua p articip ação na im prensa escrita. O clim a de d ebate se
acalm a e João A n tô n io escreve resenhas, e xe rcita n d o a í sua ve ia crítica e
re ivin d ican d o a p u b licação e o re co n h e cim e n to dos escritores n acio n ais
co m o antes; p erceb e-se, no entanto , q u e o tom já é outro.
"A b raçad o ao m eu ra n c o r" se ria , assim , além de u m a vo lta à casa
p atern a, à c id a d e n atal, tam b é m u m a vo lta ao texto "M a la g u e ta , Perus
e B a c a n a ç o "; o q u e traz a c o n sc iê n c ia , sen ão do fracasso (p ró p rio e
da so c ie d a d e ), d a falta d e en erg ia para se e m p e n h a r d e novo num
p ro jeto d e tran sfo rm ação q u e a c re d ita m alogrado e m e sm o , ta lv e z , da
im p o ssib ilid a d e d e e sc re v e r d e novo sem a m ágoa q u e e x p e rim e n ta
na nova d é ca d a .
O s ano s 1 9 8 0 , a p a re n te m e n te d e m e n o r b a d a la çã o em to rn o do
n o m e d e João A n tô n io , fo i, na sua p rim e ira m e ta d e , o m o m e n to d e
m aio r re c o n h e c im e n to d o escrito r, tanto pelo v a lo r d e D ed o -d u ro e a
prom essa d a vo lta ao literário q u a n to pelo prestígio in te rn a cio n a l q u e
o au to r a lc a n ç o u : em 1 9 8 5 foi à E u ro p a, re a liza n d o c o n fe rê n c ia s na
H o la n d a , em Portugal e na A le m a n h a . Em 1 9 8 7 foi a C u b a , integ rando
o jú ri do c o n c u rso C a sa d e las A m é ric a s e, a in d a no m e sm o a n o , v o l­
tou à Eu ro p a, desta v e z a B e rlim O c id e n ta l, o n d e p e rm a n e ce u um ano
sob cu steio da D e u tsc h e r A k a d e m isc h e r A u stau sch D ie n st (D A A D ).
R EFER EN C IA S
A N TÔ N IO , João. Abraçado ao meu rancor. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

A N TÔ N IO , João. Leão-de-chácara. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 1980.

AN TÔ N IO , João. Malagueta, perus e bacanaço. 4. ed. São Paulo: Cosac Naify,


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A N TÔ N IO , João. Malhação do Judas Carioca. Rio de Janeiro: Civilização


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A RISTÓ TELES. Poética. In: A RISTÓ TELES. Os pensadores. São Paulo: Nova
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scielo.br/scielo.php?pid= S010 3-4 0141992000100002& script= sci_arttext> .
Acesso em : 19 Jun. 2009.

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REMATE DE M ALES: revista do Departamento de Teoria Literária. Campinas:


Unicam p, n. 19, 1999.

VIRN O , Paolo. Gramática de la multitud: para un análisis de las formas de


vida contemporâneas. Madrid: Traficantes de Suenos, 2003.
DISCURSOS S O B R E O
H A IT I: O Q U E ‘O G LO B ff E
SEUS LEIT O R ES T IV ER A M
A D IZE R S O B R E O
TER R EM O TO DE 20 10
Larissa M o rais
O que os textos produzidos pelos leitores de uma notícia convencional na In­
ternet têm a dizer sobre essa notícia de diferente do já assinalado pela mídia
que a veicula? Até que ponto os leitores reproduzem, nas suas falas, o discurso
do veículo por onde navegam e até onde exercem sua capacidade crítica, esta­
belecendo um debate público pertinente e contribuindo para a renovação do
jornalismo, na atualidade? E até que ponto são capazes de contribuir para uma
compreensão mais abrangente do noticiário? É o que procuramos investigar,
neste ensaio, que toma como objeto de análise uma notícia publicada no site
de O Globo sobre o terremoto que atingiu o Haiti em 13 de janeiro de 2010 e
os mais de 6 00 comentários de leitores que ela suscitou. O principal ponto de
apoio teórico está na metodologia de Análise do Discurso do teórico francês
Dominique Maingueneau, aqui posta em diálogo com autores de referência da
Comunicação Social.
Palavras-chave: jornalismo online, terremoto no Haiti, Análise do Discurso

What do the texts produced by readers o f a common internet news have to say
about that news other than what has already been mentioned by the media
that transmitted it? Up to what extent do readers reproduce, in their own wor­
ds, the discourse of the medium they visited and up to what point do they exer­
cise their critical thinking, thus establishing a relevant public debate and con­
tributing to the renewal o f journalism in present times? And up to what degree
are they able to contribute to a broader understanding of the evening news?
That is what we examine in this essay which takes, as the object o f analysis, a
news published on The Globo website about the earthquake which hit Haiti on
January 13th 2010, and the more than 6 00 comments posted it triggered. The
main theoretical tool used for analysis is found on the French scholar Domini­
que Maingueneau's Discourse Analysis (DA) methodology, presented here in a
dialogue with authors o f reference in the field o f Social Communication.
Keywords: online journalism, Haiti earthquake, Discourse Analysis
IN TR O D U Ç Ã O

- lava justamente pensando: só fazem matérias no Haiti mostrando


caos, tragédia, lixo, destruição. Mas é só isso lá?
- Claro que não. Também tem saques, fome, miséria, guerra de gan-
gues. Por outro lado, há outras coisas que não tem por lá tipo água
potável, remédios... (Diálogo entre os jornalistas Jorge Henrique Cor­
deiro e Carlos Vasconcelos, publicado em 18 janeiro de 2010 no Fa-
cebook12).

O terrem o to q u e atingiu o H a iti em 13 d e ja n e iro d e 2 0 1 0 foi um


dos tem as de m aio r d estaq u e na im p re n sa n acio n a l d u ran te os dias
q u e se seg u iram . Im agens d e casas e e d ifíc io s tran sfo rm ad o s em pó,
d e co vas co le tiva s a céu ab erto ab arro tad as d e h aitian o s m ortos e de
longas filas para d istrib u içã o d e a lim e n to s e re m é d io s, e n tre outras,
im p ressio n aram a o p in iã o p ú b lica e m o tivaram a p a rticip a çã o d e um
g rand e n ú m e ro d e leito res em site s , blogs, Tw itter, Facebook e todo
gênero d e m íd ia q u e ab re esse tip o d e e sp a ço in te ra tivo .
N o d ia do te rre m o to , algum as n o tícias cheg aram a gerar ce n te n a s
d e co m e n tá rio s. "E m 2 0 d ias de c o b e rtu ra , o site re ce b e u c e rc a d e 3 0
m il c o m e n tá rio s so b re o te m a ", co n to u o d ire to r d e In te ra tivid a d e de
O G lo b o , Paulo M u sso i13. Só a n o tícia p rin c ip a l, q u e p e rm a n e ce u co m o
m a n ch e te do site d u ran te boa parte do dia do te rre m o to , gerou 6 6 6
registros d e p a rticip a çã o .
O co n ju n to desses c o m e n tá rio s14 e a m a té ria q u e os p ro vo co u são
tom ad o s co m o o b jeto , neste e n sa io , c u ja proposta é a n a lisa r d ife re n ­
ças e pontos d e ligação e n tre o d iscu rso de O G lo b o e o d e seus le i­
tores no ep isó d io do terre m o to do H a iti. O q u e os texto s p ro d u zid o s
pelos leitores de u m a n o tícia c o n v e n c io n a l na in te rn e t têm a d iz e r
so b re esse co n te ú d o d e c o m p le m e n ta r ao q u e já assin alam texto s da

12 Jorge Henrique Cordeiro é autor do blog independente O Escriba e colabo­


rador do Blog do Planalto, da Presidência da República. Carlos Vasconcelos é
jornalista da TV Brasil.
13 Dados fornecidos por e-mail em 8 de fevereiro de 2010.
14 Os comentários deixados na página de O Globo devem ter um tamanho
máximo de 500 caracteres.
m íd ia h e g e m ô n ica , no esp aço in terativo c ria d o p ara c o lh e r suas o p i­
n iõ es e im pressões? To m am o s co m o ponto d e ap o io e p rin cip a l re fe rê n ­
c ia o te ó rico d a A n á lise d o D iscu rso D o m in iq u e M a in g u e n e a u - em
e sp ecial seu m ais re ce n te livro p u b lica d o no B ra sil, Análise de textos
de co m u n ica çã o . M ain g u e n e a u está ligado à lin h a prag m ática da A n á ­
lise d o D iscu rso , q u e se c a ra c te riz a por re q u e re r do in te rp re tan te de
um texto - verb al ou não - não ap e n as c a p a c id a d e de in te rp re ta çã o
se m â n tic a , m as tam b é m a an á lise do co n te xto em q u e está in serid o e
as regras im p lícita s e e xp líc ita s q u e e n vo lv e ra m sua fo rm u la ç ã o .
R e co rre m o s às p rin cip a is c h a ve s d e in te rp re ta çã o propostas por
M ain g u e n e au para a v a lia r e c o m p a ra r os texto s de O G lo b o e dos
leito res, p ro cu ra n d o c o m p re e n d ê -lo s co m o d iscurso s m aio re s in se ri­
dos no c o n te xto do jo rn a lism o p ro d u zid o na w e b , na a tu a lid a d e . U m
c e n á rio em q u e leito res n ão são a p e n a s re ce p to re s no se n tid o clá ssico
do te rm o , m as têm a p o ssib ilid a d e d e p ro d u zir e v e ic u la r c rític a s e
co n te ú d o , num m o m en to em q u e o estatuto do jo rn a lism o tra d icio n a l
ve m c o n sta n te m e n te sen d o posto em x e q u e .
A in d a no q u e se refere à m e to d o lo g ia, foi n e ce ssário se le cio n a r, e n ­
tre todos os co m e n tá rio s gerados pela n o tícia do te rre m o to , os q u e
c o n sid e ra m o s m ais re p resen tativo s d o to d o . O m a io r d e safio foi b u s­
ca r u m a u n id a d e in terp retativa num v o lu m e tão g rand e d e falas d is­
persas, d e ixa d a s por leitores d e perfil d e sc o n h e c id o . S ab e m o s ap en as
q u e e le s: a) São leito res da e d iç ã o onlin e d e O G lo b o , o q u e não q u e r
n e ce ssa ria m e n te d iz e r q u e eles a p re c ie m a lin h a do jo rn a l. A o c o n trá ­
rio, m uitos p are ce m usar a á re a de co m e n tá rio s a p e n a s para c ritic a r o
v e íc u lo ; b) T ê m o im p u lso não a p e n a s de ler n o tícias, m as tam b é m d e
co m e n tá-las e/ou p a rticip a r das d iscussõ es q u e su scita m . Para p o d er
fa ze r isso, p re e n c h e ra m um cad astro no site, o ú n ico re q u isito n e ce s­
sário para q u e m q u e r d e ix a r um c o m e n tá rio 15; c) O te m a em q uestão
d esp erto u neles in teresse, ou não te ria m se d ad o ao trab alh o d e e n via r
ao jo rn al um ou m ais dos co m e n tá rio s q u e a n a lisa m o s a q u i.

15 Nesse cadastro, o internauta deve preencher nome, e-mail e endereço re­


sidencial. O Globo manda em seguida uma senha de acesso que permite a
leitura de reportagens no site e acesso às áreas de comentários de notícias e
blogs, bem como o envio de contribuições à seção de jornalismo participativo
Eu-Repórter.
D e p o is d e ler todos os co m e n tá rio s d e ixa d o s, fize m o s a o p çã o m e ­
tod o ló g ica d e tra b a lh a r com os 1 0 0 p rim e iro s. Essa am ostra nos o fe re ­
ceu um bom m aterial d o ponto d e vista q u a lita tivo e, ao m e sm o te m ­
po, tem re p re se n ta tivid a d e do ponto d e vista q u a n tita tivo . O n ú m e ro
re d o n d o tam b é m facilito u a e la b o ra çã o d e um q u a d ro -re su m o dos
registros d e p a rticip a çã o , co n fo rm e a c la ssifica çã o em oito te m a s16:
• D e m o n stra çã o d e so lid a rie d a d e e/ou p ê sam e s pelo te rre m o to e/
ou a m orte de Z ild a A rn s (3 7 c o m e n tá rio s);
• C rític a s ao g overn o , à a çã o b rasile ira no H a iti ou à p o lítica em
geral to m an d o a trag édia co m o g an ch o (23 c o m e n tá rio s);
• C rític a s a (co m e n tário s d e) o utro s leito res (16 c o m e n tá rio s);
• C o m e n tá rio s (não crítico s) te cid o s a partir d e falas d e o utro s le i­
tores (6 c o m e n tá rio s);
• C rític a s à m atéria ou à im p re n sa em geral (6 c o m e n tá rio s);
• C rític a s à Pastoral da C ria n ç a (6 co m e n tá rio s);
• Elogio à a ção b rasileira no H aiti (2 c o m e n tá rio s);
• O u tro s (tem as d iverso s, p o u co re le va n te s para a d iscu ssão p ro ­
posta, 2 c o m e n tá rio s).

Q u a n d o h ou ve so b rep o sição de d ois ou m ais assuntos num m esm o


c o m e n tá rio , o p tam o s, a títu lo de c la ssific a çã o , pelo q u e nos p are ce u
p re vale ce r, no c o n te xto da d iscu ssão . E x e m p lo : se um leito r d iz q ue
Z ild a A rn s é u m a grand e m u lh e r e fa z disso um g an ch o para d iz e r q u e
o terrem o to d e v e ria ter a c o n te cid o em B ra sília , a m atéria foi c la ssific a ­
d a na categ o ria q u e p revê crítica s ao g overno ou a p o lítico s.
A leitu ra desse m aterial in d ica q u e boa parte dos leito res q u e registra
um ou m ais co m e n tá rio s em u m a n o tícia lê não só a n o tícia d e re fe ­
rê n c ia , m as tam b é m p elo m e no s u m a p a rce la dos co m e n tá rio s q u e ela
su scito u . Tanto q u e um p e rce n tu a l re le va n te d e texto s e n via d o s (2 2 % )
tem co m o m ote p rin cip a l a fala d e o utro leitor. Essa co n sta ta çã o fo rta ­
leceu nossa d isp o sição em e n c a ra r a á re a de co m e n tá rio s co m o um a
e sp é cie d e p ro lo n g am en to in te ra tivo d a n o tíc ia , c a p a z d e e x p lic ita r
p o te n c ia lid a d e s, m as tam b é m lim ita çõ e s, da m íd ia e le trô n ic a co m o
a re n a p ú b lica de d iscussõ es.

16 A tabela completa de classificação de comentários, com exemplo de cada


categoria, está nos Anexos deste artigo.
N esse co n te xto , a p a rticip a çã o do le ito r - fig ura c o lo ca d a fo ra do
fo co da p ro b le m á tica d a c o m u n ic a ç ã o em geral e do jo rn a lism o em
p a rticu la r até m u ito re c e n te m e n te 17 - é to m ad a co m o e le m e n to c a ­
p az d e su scitar um o lh a r m ais c o m p le x o para a p ro d u çã o jo rn a lística
c o n te m p o râ n e a .
D e p o is d o trab alh o de le itu ra e c la ssific a çã o , b u scam o s, em M ain -
g u e n e a u , alg um as ch a ve s de in te rp re ta çã o q u e , ju n to a um ap arato
te ó rico d a c o m u n ic a ç ã o , nos a u x ilia m a d ar m aio r m a te ria lid a d e à
q uestão p roposta, no co n te xto d e u m a d iscu ssão m aio r sobre a c o n ­
trib u iç ã o dos leito res para a re n o va çã o do jo rn a lism o . U m a q uestão
posta é : até q u e ponto a p a rticip a çã o do leitor, a m p la m e n te in c e n tiv a ­
da e a c o lh id a no c o n te xto dos m eio s e le trô n ico s, co n trib u i para um a
c o m p re e n sã o m ais ab ran g en te das n otícias?
A ntes d e in ic ia r essa an álise te xtu a l, c o n tu d o , falare m o s b re ve m e n te
sobre o c a m p o da A n álise do D iscu rso , se m p re p ro cu ra n d o e stab e le ce r
um paralelo deste cam p o d e estudos co m o da C o m u n ic a ç ã o S o cia l.

1 B R EV E PERCURSO H IS T Ó R IC O -FILO S Ó FIC O

A d o ta m o s neste trab alh o o pressuposto te ó rico d e q u e , para in te r­


p retar um te xto , não im p o rtam a o rg a n iza çã o te xtu al em si n em a
situ ação p a rticu la r d e c o m u n ic a ç ã o , m as a asso cia çã o e n tre as d uas
co isas. A v a lia r essa co n ju g ação é , para M ain g u e n e a u (2 0 0 8 ), a m e lh o r
m an e ira de v e r em erg ir, d o te xto , a c o m p le x id a d e das re laçõ e s e n tre
sen tid o e co n te xto .
N o u n iverso da c o m u n ic a ç ã o , co rre sp o n d e a d iz e r q u e não basta
a n a lisa r o c o n te ú d o d e u m a m e nsag em , m as tam b é m não ad ia n ta se
fix a r no processo d e e m issã o -re ce p ç ã o . Para e n te n d e r a c o m u n ic a ­
ção co m o processo c o m p le x o , esse c o n ju n to d e e le m e n to s d e ve ser
le vad o em co n ta c o n sid e ra n d o m icro e m a c ro : m ensag em , c o n te xto
g e n é rico e d etalh es da situ açã o p a rticu la r d e c o m u n ic a ç ã o .
N em sem p re se pensou assim . R e fle tin d o um p arad ig m a q u e to ­
m ava as c iê n c ia s exatas co m o m o d e lo e a linguagem c o m o ap arato

17 Como aponta Sousa (2002), o leitor só é valorizado no campo da Com u­


nicação Social como vetor importante do processo comunicativo no fim dos
anos 1980, com os Estudos de Recepção.
c a p a z d e tran sm itir co n te ú d o s tra n sp a re n te s, as p rim e ira s teo rias da
c o m u n ic a ç ã o , fo rm u lad a s no in íc io d o sé c u lo X X , v a lo riza ra m ora a
m ensagem em si, ora o m o d o d e to rn a r sua e m issão m ais e fic a z .
N as teo rias d a linguagem e d a re p re se n ta çã o , p re va le ce u por m uito
te m p o a id eia d e q u e ca d a e n u n c ia d o era p o rtad o r d e um sen tid o
estável q u e p o d e ria ser in te rp re ta d o por q u a lq u e r pessoa d o ta d a do
m esm o có d ig o ling uístico do em issor. G u ilh e rm e N e ry A te m 18 d ivid e
essas teo rias em q u atro g randes fases:

1. N um p rim e iro m o m e n to , os estudos d e ix a ra m as q uestõ es de


o rd em m e tafísica e se vo ltaram para a bu sca d e u m a estrutura
lógica da ling uag em . D e sta ca ra m -se no p e río d o auto res co m o
G o ttlo b Frege (1 8 7 2 - 1 9 2 5 ), G e o rg e E d w a rd M o o re (1 8 4 8 - 1 9 5 8 )
e Bertrand Russel (1 8 7 2 - 1 9 7 0 ).
2 . Em o utra fase, h o u ve o a p ro fu n d a m e n to da p ro cu ra d e um a
estru tu ra lógica tran sp a re n te q u e p ro cu ra va d ar co n ta d o re al.
A m ate m ática é to m a d a co m o m o d elo de c iê n c ia . Pensad o res
co m o o p ró p rio Russel, Lu d w ig W ittg en stein (1 8 8 9 - 1 9 5 1 ) e M o-
ritz S c h lic k (1 8 8 2 - 1 9 3 6 ), e n tre o utro s, cria m o c h a m a d o p o siti­
vism o lógico, q u e b u scava e n co n tra r as fo rm as lógicas d a ling ua­
gem "p e rfe ita ".
3 . N essa fase se d á a c h a m a d a vira d a p rag m ática, q u e c o rre sp o n ­
d e à segunda fase do p e n sa m e n to d e W ittg e n ste in . A m a rca é a
p u b lica ç ã o d o livro Investigações filosóficas, de 1 9 5 3 . O filó so fo
c o m e ç a a d u v id a r d e q u e a b usca da p recisão ab so luta garante
o c o n h e c im e n to v e rd a d e iro . W ittg en stein passa a se p re o cu p a r
co m os jogos d e lin g u ag e m 19 q u e se dão d u ran te re la çõ e s h u m a ­
nas co n cre ta s. O jogo d e x a d re z é to m ad o co m o m e táfo ra para
p en sar a n atu re za da ling uag em : u m a p e ça im p o rta d e p e n d e n ­
do do lugar q u e o c u p a no ta b u le iro n u m a jo g ada e sp e c ífic a . D o

18 Anotações tomadas no curso de Teorias da Análise do Discurso, ministrado


no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense no se­
gundo semestre de 2009.
19 Por jogos de linguagem o autor entende a multiplicidade de ferramentas
linguísticas e seus modos de emprego (B U EN O ; PEREIRA, in REZEN D E, 2001,
p. 250).
m esm o m o d o , o sig n ificad o d e u m a palavra d e p e n d e d o uso q u e
faze m o s em d ad a situ açã o .
4 . A m p lia ç ã o e a p ro fu n d a m e n to d a p rag m ática. Estudiosos co m o
G ilb e rt R yle (1 9 1 0 - 1 9 7 6 ) e John A u stin (1911 - 1 9 6 0 ) v a lo riz a m a
linguagem co tid ia n a e vo ltam a d a r im p o rtâ n c ia , nos estud o s d a
ling uag em , a q uestõ es d e o rd e m su b je tiv a .

A exp ressão A n á lise d o D iscu rso surge em 1 9 5 2 , usada pelo lin ­


guista n o rte -a m e rica n o Z e lig H a rris, m as só passa a d esig nar um novo
ca m p o te ó ric o nos an o s 1 9 6 0 , co m o utro filó so fo , d e in sp ira çã o m ar­
xista, o fra n cê s M ic h e l P ê c h e u x . Para e le , se a id eo lo g ia está in scrita na
líng ua, co m o c o n c lu iu M ik h a il B akh tin anos antes, é n e ce ssário e x p o r
os pontos d e co n tato e n tre a m b a s. Segund o P ê c h e u x , a língua não
p aira sob re a h istó ria; ela é h istó ria, e se co n stitu i h isto ric a m e n te . C o m
o filó so fo , a c o n te ce um d e slo ca m e n to d e fo co no ca m p o da ling ua­
gem . A s ate n çõ es antes vo ltad as para a língua, co m seus e n u n cia d o s
p ossíveis, re caem sob re o d iscu rso , co m suas e n u n c ia ç õ e s n ecessárias
e co n tin g en tes. D e sd e en tão alguns p rin cíp io s da A n á lise d o D iscu rso
se re ve la ra m co n stan tes:

• A fala é tão so cial e c o le tiva q u a n to a língua e , no c o n te xto de


a n á lise , im p o rta tanto q u an to e la ;
• O fo co d as an álise s está nas sin ta xe s p a rticu la re s e não na língua
u n iv e rsal;
• O sab er ling uístico é asso ciad o ao sa b e r h istó rico ;
• A s an álise s u tiliza m corpora co n cre to s, d atad o s no e sp a ço e no
te m p o ;
• A in te rd isc u rsiv id a d e (relação d e um d iscu rso co m o utro s q u e o
su ce d e ra m ) sobressai à in tra d iscu rsiv id a d e (o d iscu rso no d isc u r­
so, a partir d o q ual o c o n h e c im e n to a c u m u la d o d o su je ito p e rm i­
te a co n stru ção d e m ú ltip lo s efeito s de se n tid o );
• São ressaltadas as regras sociais, coletivas, das fo rm açõ es discursivas;
• O s d iscursos são tidos co m o o p aco s e não ó bvios e transparentes;
• O e n u n c ia d o não p od e ser iso lado do m o m e n to de sua e n u n c ia ­
ç ã o , nem d e suas c o n d içõ e s d e p ro d u çã o .
C o n v é m d e stacar q u e , em M a in g u e n e a u , tam b é m está p resen te a
id eia sugerid a a in d a por B arth es (2 0 0 4 ), Eco (1 9 8 6 , 1 9 7 6 ) e Fo u ca u lt
(2 0 0 6 ) - d e q u e todo d iscurso é fo rm a d o d e d iscurso s a n te rio re s q ue
p o ssib ilitaram sua e n u n c ia ç ã o . Para e le , o in tertexto d e um d iscurso
re vela co m q u ais texto s an te rio re s ele d ialo g a, num d e te rm in a d o u n i­
verso d iscu rsiv o . O s su jeito s - no caso dos texto s q u e vam o s analisar,
o jo rn a lista e seus leitores - são ch a m a d o s a se e xp re ssa r d e n tro de
d e te rm in a d o sistem a d e re striçõ es se m ân ticas.
A A n á lis e do D isc u rso so fre g ra n d e in flu ê n c ia do filó so fo russo
m a rxista M ik h a il B a k h tin . Em M arxism o e a filosofia da linguagem 20,
d e 1 9 2 9 , e le a firm o u a n a tu re za irre d u tiv e lm e n te filo s ó fic a d o s sig­
nos lin g u ístico s. Para B a k h tin , os p e rm a n e n te s jogos d e signos d a e
na so c ie d a d e ca rre g a va m in te n sas lutas d e cla sse s c o d ific a d a s . "As
p a lav ra s são te c id a s a p a rtir d e u m a m u ltid ã o d e fio s id e o ló g ico s e
se rve m d e tram a a to d as as re la ç õ e s so c ia is em to d o s os d o m ín io s"
(B A K H T IN , 1 9 9 2 , p . 4 1 ). B a k h tin p o stu la q u e os siste m as d e signos
se rve m p ara e xp re ss a r id e o lo g ia s e , ao m e sm o te m p o , são m o ld a d o s
p o r e la s. Su a p ro p o sta é p e n sa r as re la ç õ e s c o n c re ta s e n tre lin g u a ­
gem e so c ie d a d e .
M ich e l Fo u ca u lt tam b é m dá u m a c o n trib u iç ã o fu n d a m e n ta l nesse
p ercu rso te ó ric o , ao postular, em As palavras e as coisas, em 1 9 6 6 ,
q u e "os códigos fu n d a m e n ta is d e u m a cu ltu ra - a q u e le s q u e regem
sua ling uag em , seus e sq u e m a s p e rce p tivo s, suas tro cas, suas té cn ic a s,
seus valo re s, a h ie ra rq u ia d e suas práticas - fix a m , logo d e e n tra d a ,
para ca d a h o m e m , as o rd e n s e m p íric a s co m as q u a is terá d e lid a r e nas
q u a is se há de e n c o n tra r" (F O U C A U L T , 1 9 9 5 ). Fo u ca u lt e n fa tiza q u e o
h o m em e n q u a d ra co g n itiva m e n te o m u n d o co n fo rm e "as co n d içõ e s
d e p o ssib ilid ad e " de q u e d isp õ e .
Tais id eias fo ram fu n d a m e n ta is para a co n stru çã o da A n á lise d o D is ­
cu rso co m o d isc ip lin a q u e to m a a linguagem co m o algo o p a c o , c a p a z
d e tran sm itir m ensagens c u jo se n tid o não está d ad o , m as é c o n stru í­
do pelo olhar. M ain g u e n e a u fala d a A n á lise do D iscu rso co m o te o ria
co n stitu íd a por um a d u a lid a d e da ling uag em : ao m e sm o te m p o o p aca
e atravessad a por em b ates su b je tivo s e so cia is. N ão ca b e p ro p riam e n -

20 Na época, o livro foi publicado como de autoria de V. N. Volochínov, discí­


pulo de Bakhtin.
te d esven d ar, nos texto s a n a lisa d o s, um se n tid o o cu lto ú n ic o , m as p is­
tas d e sen tid o s possíveis, em d e te rm in a d o co n te xto d e in te rp re ta çã o .

2 A N Á LIS E

Como se vê, enunciar não é somente expressar ideias, é também ten­


tar construir e legitimar um quadro de enunciação (M AIN G UEN EAU,
2008, p. 93).

C o m o vim o s, o contexto é u m a das m ais im p o rtan tes c h a v e s de


in te rp re ta çã o d e um texto , para M a in g u e n e a u . Em d ive rso s e x e m ­
plos (M A IN G U E N E A U , 2 0 0 8 ), o au to r d e m o n stra q u e , m esm o para
os e n u n cia d o s a p a re n te m e n te m ais sim p le s e d ire to s, a in te rp re ta çã o
v a ria co n fo rm e a situ ação . U m a p laca o n d e se lê em letras ve rm e lh a s
d e im p ren sa a exp ressão "E p ro ib id o fu m a r", posta na sala de esp era
d e u m a re p artição p ú b lica , será lida co m o u m a in te rd içã o , m as o m e s­
m o d iz e r escrito na p ared e em ca n e ta h id ro co r não será le va d o tão a
sé rio . O co n te xto está re la cio n a d o ao m o m e n to e ao lugar físico da
e n u n c ia ç ã o , m as tam b é m ao su p o rte - nesse caso , um a p laca "sé ria "
ou um d iz e r escrito em h idroco r. Tam b ém tem ligação co m os sab eres
an te rio re s ao m o m e n to da e n u n c ia ç ã o - no e x e m p lo , o c o n h e c im e n to
do fo rm ato dos avisos d e in te rd içõ e s.
O s texto s q u e a n alisam o s c o m p õ e m o n o tic iá rio online d o p rin cip a l
jo rn al do Rio d e Jan e iro , co m u m a c irc u la ç ã o m é d ia d e 281 m il e x e m ­
p lares im pressos e u m a das m aio re s a u d iê n c ia s, e n tre os jo rn a is o n li­
ne. U m v e íc u lo in fo rm ativo tra d ic io n a l, p e rte n ce n te ao m ais po d ero so
grupo m id iá tic o do país, co m a tu a çã o em te vê , rád io , m íd ia im p ressa
e in tern et, sen d o m o n o p o lista em algum as d elas. Isso sig n ifica q u e o
m od o d e d ize r desse v e íc u lo é tid o co m o re fe rê n c ia no fa ze r jo rn a lísti­
co n a c io n a l; d esn a tu ra lizá -lo não é tarefa fá cil para esta p e sq u isad o ra
q u e é tam b ém jo rn a lista .
O texto d a m atéria p rin cip a l a n a lisa d a é bastante c o n v e n c io n a l, re ­
digido nos p ad rõ es d o jo rn a lism o h e g e m ô n ico . Em fu n çã o d a co n stru ­
ção h istó rica da a tivid a d e jo rn a lística no país21, dessa le itu ra a p rin cíp io

21 Ribeiro (2003) e Oliveira (2005) analisam a legitimação do jornalismo como


fala autorizada perante a sociedade brasileira nos anos 1950.
se esp era u m a n arração o b je tiva e e m b asad a do q u e é n o tic ia d o . O
fato em q u estão , p o r sua v e z , é um a catástro fe d e g randes p ro p o rçõ es
p ro vo cad a por um fe n ô m e n o g eo ló gico in e sp e ra d o - te m a d e grande
interesse jo rn a lístico , d en tro de um co n ju n to vigente d e crité rio s de
n o tic ia b ilid a d e 22.
Sobre o co n te xto de o n d e parte o o lh a r dos leito res para esse a c o n te ­
cim e n to in tern acio n al nos p are ce re levan te d e s ta c a ra o c o rrê n c ia , m e ­
nos de duas sem anas antes, no Réveillon d e 2 0 0 9 para 2 0 1 0 , de te m ­
pestades q u e d e ixa ra m m ais d e 1 0 0 m ortos e m ilh ares d e desabrigados
em Angra dos R eis, no Rio d e Jan e iro , e em d e ze n a s de m u n icíp io s
d e São Paulo. Em b o ra as perdas d e co rre n te s das ch u va s no Brasil não
sejam co m p a rá ve is às d o te rre m o to , a cre d ita m o s na hipótese de que
os p ro b lem as lo cais, gerados tam b é m por um e ven to im p o n d e rá ve l,
podem ter gerado u m a sen sação de m aio r p ro xim id a d e e so lid a rie d a d e
co m a p o p u lação h aitian a, en tre os leitores do site de O C lo b o .
Palco d o m ais v io le n to te rre m o to das ú ltim as d é ca d a s, o H aiti não
co stu m a a p a re c e r na m íd ia b ra sile ira , e x c e to q u a n d o a n o tícia e n vo lve
alg um a a ção n acio n al no país - e n vio d e tro p as, a ju d a h u m a n itá ria ou
visita o fic ia l, por e x e m p lo . O u q u a n d o o co rre m catástro fes ou ain d a
e ven to s p o lítico s d ra m á tico s, co m o o golpe m ilita r q u e , em 2 0 0 4 , d e s­
titu iu pela seg und a v e z Je a n -B e rtra n d A ristid e do cargo d e p re sid e n te
do país. N o B rasil, o H aiti co stu m a ser le m b ra d o co m o país su b d e se n ­
v o lv id o , e x p lo ra d o , m altratad o ao e x tre m o .
"P e n se no H a iti, reze pelo H a iti. O H a iti é a q u i" , can ta o co m p o sito r
C a e ta n o V eloso, p ara d e p o is e m e n d a r co m o verso " O H a iti não é
a q u i" 23. N o seu pior, está d ito no su b texto da c a n ç ã o , não se e sq u e ­
çam d e q u e o Brasil se p a re ce co m o H a iti. E co m o se C a e ta n o d isses­
se : cid a d ã o b ra sile iro , não fiq u e a liv ia d o d e não estar no H a iti, pois
nossos p ro b lem as não são tão d ife re n te s dos d eles.

22 Por definição, noticiabilidade é o conjunto de critérios que determinam


se um assunto vai ou não virar notícia. Segundo Traquina (2002), os princi­
pais critérios de noticiabilidade são: morte, notoriedade, proximidade (tanto
geográfica como cultural), relevância, novidade, atualidade, notabilidade, o
inesperado, conflito (físico ou simbólico), infração.
23 A letra completa pode ser acessada em http://letras.terra.com.br/caetano-
veloso/44730/.
O H aiti foi d o m in ad o p rim eiro pela Espanha, q u e "d esco briu" suas
terras em 1 4 9 2 , e depois pela França, a q uem os esp anhó is ce d e ram o
território em 1 6 9 7 . A in d a sofreu o d o m ín io dos Estados U n id o s - que
o cuparam o país em 1 9 1 5 e m ais tarde ap o iaram o governo do presiden­
te François D u valier. Papa D o c, co m o era ch a m ad o D u valier, se tornou
co n h ecid o m u n d ialm en te co m o o mais sanguinário ditad or da A m é rica
Latina. Ele se m anteve no poder d e 1 9 5 7 a 1 9 7 1 , ano de sua m orte.
A p rim eira eleição livre do país, em 1 9 9 0 , foi ve n cid a pelo padre sale-
siano Jean-Bertrand A ristide, ligado à teologia da libertação, m as apenas
um ano depois ele foi deposto por um golpe militar. Retornou ao po ­
d e r em 1 9 9 4 , com apoio d e forças internacionais, mas não conseguiu
livrar o país da instabilidade política e de seus graves problem as sociais.
D esd e 2 0 0 4 , q u an d o foi deposto pela segunda v e z, desta v e z acusado
de fraude eleitoral, a O rg an ização das N ações U n id as (O N U ) m antém
forças de paz no H aiti. O Brasil é um a das 1 6 nações q ue participam da
m issão. E nesse co ntexto socio po lítico q u e o co rre o terrem oto de 2 0 1 0 .
A lé m d e e n v ia r co n tin g en te m ilita r ao H a iti, o Brasil co n trib u i co m
p ro jeto s d e c u n h o so c ia l. A san itarista Z ild a A rn s - fu n d a d o ra e c o o r­
d e n a d o ra n acio n a l da Pastoral da C ria n ç a 24 - estava no país em m issão
h u m a n itá ria d u ran te o te rre m o to . A p re se n ça d o Brasil ali a u m e n ta o
ap elo d a co b e rtu ra m id iá tica do te rre m o to e ju stifica a o p çã o do jo rn al
p o r ab rir a m atéria sobre o te rre m o to fa la n d o da m orte d e Z ild a A rn s
e de m ilitares brasileiro s em m issão.
O texto em q u estão d estaca a in d a o d e sa p a re cim e n to do fu n c io ­
n ário d a O N U L u iz C a rlo s d a C o sta - c u ja m orte foi c o n firm a d a m ais
tard e . Essa e sco lh a de lea d 25 te rm in a por fu n c io n a r co m o um m odo
d e v a lo riz a ç ã o d a p o lítica e xte rn a n acio n al - o q u e , co m o ve re m o s,
será co n testad o por alguns leito res - e d a p ró p ria c o n trib u iç ã o d e b ra­
sileiro s à re cu p e ra ç ã o do país. M e sm o sem u tiliza r a d je tivo s para falar
de Z ild a A rn s e dos outros brasileiro s m ortos, o texto co n trib u i para
a c o n stru ção d e u m a im agem d e h eró is para esses perso nagens. A

24 A Pastoral da Criança é um dos organismos de ação social da Confederação


Nacional dos Bispos do Brasil - CN BB.
25 O lead é o primeiro parágrafo de uma notícia impressa no jornalismo e, por
definição, deve conter as principais informações sobre a matéria: quem fez o
que, como, onde, quando e por quê.
seguir, o p rim e iro parágrafo d a m a té ria . O s texto s su b lin h a d o s são hi-
perlinks para outras m atérias d e O G lobo.

Zilda Arns e ao menos 11 militares brasileiros morrem após terre­


moto no Haiti; há muitos soldados desaparecidos
RIO e BRASÍLIA - A fundadora e coordenadora internacional da Pasto­
ral da Criança, Zilda Arns Neum ann, de 75 anos, morreu no terremoto
que atingiu na noite de terça-feira os arredores de Porto Príncipe, ca­
pital do H aiti. De acordo com o Ministério da Defesa, onze militares
brasileiros morreram e vários outros ficaram feridos em decorrência do
tremor de 7 graus na escala Richter. Em coletiva de imprensa, o chan­
celer Celso Amorim disse que trata como desaparecido o brasileiro Luiz
Carlos da Costa, que ocupa o segundo maior cargo da representação
da O N U (Minustah) no Haiti. Costa é atualmente o brasileiro com pos­
to mais alto nas Nações Unidas. O presidente do Haiti, Rene Preval,
afirmou que o chefe da missão de paz da O N U no país, o tunisiano
Hedi Annabi, morreu no terremoto, mas a O N U ainda não confirm a.
Mais cedo, o governo haitiano chegou a divulgar que os mortos pode­
riam chegar a centenas de milhares. Mais tarde, no entanto, o presi­
dente do Haiti afirmou que as vítimas do terremoto devem ficar entre
30 e 50 mil (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010).

O s brasileiros m ortos são id entificad o s no texto pela n ob reza de


suas fu n çõ es. A sanitarista Z ild a A rn s é logo apresen tad a co m o fu n d a ­
dora e co o rd e n ad o ra in ternacio n al d a Pastoral d a C ria n ç a - instituição
q u e , na m atéria, d ispensa m aio res ap resen taçõ es. Sua id ad e é citada
- o q u e é m uito in co m u m entre m atérias do v e ícu lo . N ossa hipótese
é q u e isso aco n tece p o rqu e, no caso, o fato de ela ter 75 anos e estar
trab alhand o no H aiti em m issão h u m an itária refo rça sua boa im agem .
M enos co n h e cid o no Brasil, o fu n cio n ário da O N U Luiz Carlo s da C o s­
ta é p rim eiro id entificad o co m o "b rasile iro " e, logo depois, co m o "o c u ­
pante do segundo m aior cargo d a representação da O N U " . No m esm o
parágrafo, novam en te é m e n cio n ad a sua n acio n alid ad e. Só então a m a­
téria fala da m orte, ainda não co n firm ad a, do chefe da m issão da O N U
no país e traz a estim ativa de haitianos m ortos em fu n ção do terrem oto.
C a b e c h a m a r a a te n çã o p ara o fato d e q u e o texto não é assin ad o .
N o c a b e ç a lh o , ap e n as a in d ic a ç ã o de q u e foi redig id o em c o n ju n to
p elas re d açõ e s do jo rn al no Rio e em B ra sília , p ro va ve lm e n te co m
a a ju d a d e ag ê n cias in te rn a c io n a is d e n o tícias (em b o ra isso não seja
e x p lic ita d o no texto ) 2b. Q u e m c h a n c e la o m aterial é o p ró p rio v e íc u ­
lo q u e o a n co ra - q u e su p o stam e n te ap u ro u esse m aterial d e fo nte
c o n fiá v e l, c h e c o u in fo rm açõ e s e as ed ito u c o n fo rm e um c o n ju n to de
p ro ce d im e n to s-p a d rã o d o u n ive rso jo rn a lístico . São n o rm as im p lícita s
q u e e sta b e le ce m a c re d ib ilid a d e d e um v e íc u lo d e im p re n sa .
N o m esm o site , a crítica sobre um program a h um o rístico , por e x e m ­
plo, alteraria o co n texto em questão , por e n vo lv e r um outro tipo de
contrato d e leitu ra2
27. A fin al, a crítica é um tipo d e co n te ú d o sem o m es­
6
m o co m p ro m isso com a o b je tivid a d e ; prevê a o p in iã o co m o elem en to
co nstitutivo . E o tem a h u m o r prevê certa dose de ironia e b rin ca d e ira.
Tudo m uito bem d osado, para evitar o estran ham ento do leitor.
M ain g u e n e a u e x p lic a q u e o c o n h e c im e n to de um c o n ju n to de "re ­
gras do jog o" é fu n d a m e n ta l para q u e o le ito r (q u e e le c h a m a tam b é m
de d estin atário e, p re fe re n c ia lm e n te , de c o e n u n c ia d o r) consiga in te r­
p retar um a e n u n c ia ç ã o . Isso se faz por um a co rd o tácito q u e re m o n ta
a sab eres m u tu a m e n te c o n h e c id o s. Essas regras p e rm ite m tam b é m a
transm issão de c o n te ú d o s im p lícito s. N u m e x e m p lo cita d o pelo autor,
u m a p laca d iz e n d o "n ã o so n h a r", posta na sala d e esp era de um guru
in d ia n o , p ro vo caria e stra n h e za e le va ria o visita n te a b u scar ali um a
in te rp re ta çã o d istin ta d a c o n v e n c io n a l.
O co n te xto em q u e se dão os co m e n tá rio s dos leitores é tam b é m d i­
fe re n te , por fa ze r parte d e um e sp a ço co m regras d ife re n te s (re to m a ­
rem o s o tem a no p ró xim o item ). D e alg uém q u e d e ix a seu c o m e n tá rio
em u m a m atéria não se esp era a p u ra ç ã o , ch e ca g e m ou o b je tiv id a d e
n arra tiva. O leito r tem esp aço p ara d iz e r o q u e quer, seg uind o um
c o n ju n to bastante fle x ív e l d e n o rm as. São vetad o s a p e n a s excesso s
co m o insultos e p a lav rõ e s28.

26 O Globo costuma recorrer a agências internacionais como suporte para a


cobertura de fatos em países onde não mantém correspondentes internacionais.
27 Usamos "contrato de leitura" nos termos de Eco (1986).
28 Abaixo do espaço de cada comentário que um leitor envia está escrito:
"Normas para publicação: acusações insultuosas, palavrões e comentários em
desacordo com o tema da notícia serão despublicados e seus autores poderão
ter o envio de comentários bloqueado".
As p a rticip a çõ e s en tram no site sem filtragem p révia e , q u a n d o in ­
fring em as regras, são e x c lu íd a s por re c o m e n d a ç ã o d e um p ro fissio ­
nal e n carreg ad o dessa leitu ra ou dos pró prio s leito res. N esse co n trato
in fo rm al, leito res não têm a m e sm a c re d ib ilid a d e q u e os jo rn alistas.
O jo rn a l p u b lica o q u e d iz e m , co n ta n to q u e não haja e xce sso s; está
im p lícito q u e não tem co m p ro m isso co m a q u e la in fo rm a çã o .
O nível d e co m p ro m isso do co m e n ta rista de um te xto para co m
seu p ró p rio c o m e n tá rio tam b é m é b a ix o , já q u e e le po d e registrar sua
p a rticip a çã o u sand o in clu sive n o m e falso - o q u e é m u ito c o m u m .
Isso não q u e r d iz e r q u e os leito res não a ch e m o q u e d iz e m . A leitura
desses co m e n tá rio s nos faz crer, ao co n trá rio , q u e e les têm grande
c o n v ic ç ã o das o p in iõ e s q u e registram . O a n o n im a to os lib era d e certas
regras de p o lid e z e pode levá-lo s, c u rio sa m e n te , a d iz e r e xa ta m e n te o
q u e q u e ira m , sem co n stran g im en to s so ciais.
U m e x e m p lo h ip o té tic o : um fu n cio n á rio p ú b lico , João , tem in c lin a ­
çã o p o lítica co n trária à d e seu ch e fe im e d ia to . Em b o ra e le seja con-
c u rsa d o , portanto não su je ito a d em issão sem justa ca u sa , seu bom
re la cio n a m e n to co m o su p e rio r lhe garante p e q u e n o s b e n e fício s q ue
fa ze m d ife re n ça no seu d ia a d ia , co m o tira r fé ria s d u ran te os m eses de
férias do filh o ou sair alguns m in u to s m ais ce d o no d ia em q u e fa z um
cu rso e xtra . N ão há co m o negar q u e a assim etria d e p o d er co lo ca ria
João em d esvan tag em num e ve n tu a l e m b a te e n tre os d o is, e m b o ra
não exista u m a regra q u e diga q u e um fu n c io n á rio não d e ve d isco rd a r
d e seu su p erio r.
João m an té m , p ortanto, u m a re la çã o cu id a d o sa co m o c h e fe , e evita
a todo custo os tem as p o lítico s - q u e sa b id a m e n te d e sp e rtam a p aixão
d e am b o s. Fala no assunto a p e n a s q u a n d o se im p õ e situ ação in e v itá ­
vel e , nesses caso s, tom a bastante c u id a d o ao e xp re ssa r suas o p in iõ e s.
S en d o tão cau te lo so , João não usa o p ró p rio n o m e q u a n d o tem v o n ­
tad e de d e ix a r um c o m e n tá rio num site jo rn a lístico co m o O C lo b o .
Escolh e um p se u d ô n im o : "fu n c io n a rio p a d rã o ", por e x e m p lo . D esse
m o d o , po d e e xtra va sa r o q u e pensa co m tod a a v e e m ê n c ia d e ix a d a
d e lado no c o tid ia n o .
Entre as ch a m a d a s leis d o d iscu rso , M a in g u e n e a u cita a su bm issão
a um co n ju n to d e regras de p o lid e z . O s fe n ô m e n o s da p o lid e z fo ram
estu d ad o s por B ro w n e Le vin so n (1 9 8 7 ) co m in sp ira çã o na c h a m a ­
d a teo ria das faces, fo rm u la d a pelo sociólog o a m e ric a n o E. G o ffm a n
(1 9 7 4 ). N esse m o d e lo , co n sid e ra -se q u e tod o in d iv íd u o possui u m a
face negativa, que corresponde ao território de sua intim idade, e uma face
p o sitiva, re la cio n a d a à boa im agem so cial q u e q u e r d e ix a r na re la ­
ção com o o u tro . U m a e n u n c ia ç ã o p ressu p õ e, po rtan to , no m ín im o
q uatro faces - a positiva e a negativa de ca d a um dos in d ivíd u o s q u e
in te rag e m ; no caso da in te ra çã o q u e in te rp re ta m o s, estão e n vo lv id a s
a fa ce negativa e a positiva do jo rn al e de ca d a um dos leito res q u e
d e ixa m co m e n tá rio s no site. M ain g u e n e a u c h a m a a a te n çã o p ara o
fato d e q u e tod o ato d e e n u n c ia ç ã o p o d e c o n stitu ir u m a a m e a ç a a
u m a ou várias dessas faces:

Dar uma ordem valoriza a face positiva do locutor, desvalorizando a


do interlocutor; dirigir a palavra a um desconhecido ameaça a face ne­
gativa do destinatário (é uma intrusão no seu território), mas também
a face positiva do locutor (que pode ser visto como sendo excessiva­
mente desinibido) (M AIN G UEN EAU, 2008, p. 38).

Para M ain g u e n e a u (2 0 0 8 ), visa n d o p re se rvar suas pró p rias fa ce s e as


d e seus in te rlo cu to re s, as pessoas se ria m levad as a b u scar um aco rd o
tácito , a negociar. H á um c o n ju n to d e estratégias d iscu rsivas q u e p o ­
d em ser u tilizad as com a fin a lid a d e d e e n co n tra r um ponto d e e q u ilí­
brio e n tre e xig ê n cia s co n tra d itó ria s. N a m atéria q u e an a lisa m o s, co m o
em o utros p rodutos jo rn a lístico s, não há u m a a m e a ç a à fa ce positiva
dos leito res. D ife re n te m e n te do q u e o co rre no texto p u b licitá rio , q u e
d e certo m od o in vad e o esp aço do d e stin a tá rio , o texto jo rn a lístico é
a n te c ip a d a m e n te leg itim ad o - o p ró p rio leito r o p ro cu ra : c o m p ra o
jo rn a l, sin to n iza o te le jo rn a l, b u sca um site in fo rm ativo . O jo rn a l, por
sua v e z , p ro cu ra ap resen tar-se co m o q u e m re sp o n d e a d e m a n d a s de
seus leitores.
O p ró p rio m od o n arrativo do jo rn a lism o im presso fo rta le ce essa fa ce
p o sitiva, à m e d id a q u e va lo riz a a in fo rm a çã o q u e o fe re c e co m um
d ista n cia m e n to c a ra c te rístic o d e q u e m fala a um p ú b lico h etero g ên eo .
Já os leitores, co m o v im o s, não p re cisam a ssu m ir o m esm o c o m p ro ­
m isso. A leitu ra da área d e c o m e n tá rio s d e m o n stra q u e , a li, o re cu rso
da p o lid e z é u tiliza d o d e m o d o bem m ais fro u x o do q u e em outros
tipos d e in te ra çã o . Tam p o u co n otam o s a d isp o siçã o de n eg o ciar q u e
M ain g u e n e au a c re d ita existir.
Boa parte dos leito res não se sen te co nstran g id a em c ritic a r a b e rta ­
m ente seus pares, a p o n ta r falh as na repo rtagem ou c ritic a r o g o vern o ,
por e x e m p lo . Em g eral, os q u e c la ra m e n te não usam os p ró p rio s n o ­
m es são os m eno s p re o cu p a d o s em e x p o r a p ró p ria "fa c e negativa" e
p re se rvar a "fa c e po sitiva" d o in terlo cuto r. C o m o no e x e m p lo a seguir
em q u e , além de in sin u a r q u e um leito r tem p ro b le m as se x u a is, um a
leitora m a n d a , em inglês, q u e ele ca le a b o ca. A tro ca d e m ensagens é
tran scrita a b a ix o , sem c o rre çã o te x tu a l:

Segundo relatório da Pastoral, cerca de 71% dos recursos sai do Ministé­


rio da Saúde (leia-se, dinheiro de impostos). O que a Pastoral faz (como
quase todas as obras pilantrópicas) é dar esmola com o dinheiro dos
outros. Não sou contra projetos que reduzam a miséria. Mas sou contra
o governo bancar projetos de instituições religiosas que só servem como
propaganda destas multimilionárias intituições (Site de O Globo, 13 de
janeiro de 2010. Comentário enviado por "Daniel Barbosa Reynaldo").

Daniel Reynaldo: qual o seu problema? Erétil? O que o senhor tem


feito de útil pelos seus semelhantes? Nada, aposto. Então, shut up!
(Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por
"M isbel", grifo nosso).

No com en tário q ue se segue, o leitor "Lu n d e n d o rff" faz de um a e x­


pressão supostam ente pertencente ao repertório da ed u cação - m eu
caro - um recurso para ironizar um a fala em q ue o leitor "dionísio rocha"
com parou o terrem oto no H aiti a desastres naturais no Japão. D ize r q ue o
outro "precisa ler m ais sobre a história do Japão" eq uivale a sustentar que
ele está d and o opiniões levianas, sem ter co n h ecim en to do que d iz.

O maior sinal da incompetência de um ser humano é saber como ele


encara as dificuldades da vida. Atribuir o atraso de um país à natureza,
ao passado histórico e até a língua que falam é de estupidez sem igual. O
Japão, por exemplo, foi vítima da exploração colonial, arrasado na IIGM, e
sofre com terremotos e tufões quase mensalmente. Entretanto, é uma das
maiores potências mundiais. Portanto, O PO VO HAITIANO, infelizmente,
é o maior culpado pela sua pobreza (Site de O Globo, 13 de janeiro de
2010. Comentário enviado por "dionisio rocha").
O Japão, meu caro, jamais foi vítima de exploração colonial. Você
precisa ler mais sobre a história do Japão antes de colocar certas coisas
(Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por
"Lundendorff").

Na fala q u e re p ro d u zim o s a seguir, o leito r q u e assina co m o " N e l­


son M a ia " c h a m a o leito r " B y e B y e B ra s il" , q u e d e ix a ra um c o m e n tá rio
d e c rític a ao g o vern o , de "re c la m ã o ", "m a u ric in h o de p ija m a ", "sa ­
b ich ã o " e "m a u riç o la p re co n c e itu o so ", e n tre o utro s a d je tivo s. Algo
in im ag in ável e n tre as regras d e p o lid e z vig en tes em q u a lq u e r e sp aço
m ais o ficia l d o jo rn a lism o . A seguir, o diálogo e n tre os d o is:

O mais tragicomico disto é que os nossos srs da guerra se apresentaram


imediatamente a dar noticias, se dizendo informados, que nada havia
acontecido com nenhum brasileiro. Os nossos ministros e o presidente só
servem para comedia pastelao, e olhe lá. Somos um povo, graças a Deus
nao todo, com uma falta de senso de ridículo que chega a dar dó. O pior
é a empafia com que se apresentam nessas ocasioes (Site de O Globo,
13 de janeiro de 2010. Comentário enviado por "ByeByeBrasil").

ByeByeBrasil, Somos de fato um povo ridículo se colocamos a lupa so­


bre sujeitinhos reclamões como vc. Sua rabugice típica de mauricinho de
pijama é capaz de colocar a culpa do terremoto no governo brasileiro.
Confessa aí que vc até tentou encontrar um gancho pra isso, vai sabi­
chão. Cada uma. A casa cai no Haiti e o mauriçola preconceituoso não
perde a viagem pra destilar rancor e frustração (Site de O Globo, 13 de
janeiro de 2010. Comentário enviado por "Nelson Maia", grifos nossos).

O s co m e n tá rio s dos leitores e x p lic ita m a in d a um dos p rin cip a is pos­


tu lad o s da A n á lise do D isc u rso : q u e um m esm o c o n te ú d o p o d e ser
to m ad o de m od o ra d ic a lm e n te distinto por pessoas d ife re n te s. C a d a
leito r m o b iliza seus c o n h e c im e n to s a n te rio re s, seu re p ertó rio d e e x p e ­
riê n c ia s, e lê, n um a m esm a m ensag em , um a m ensag em d ife re n te . A
leitu ra do te xto sob re terrem o to a uns e vo ca so lid a rie d a d e para co m o
p o vo h aitian o e/ou a fa m ília dos brasileiro s m ortos no te rre m o to ; a o u ­
tros, o d esejo d e c ritic a r o g o ve rn o ; a o utro grupo , o d esejo d e elogiar
a a ção b rasile ira no e p isó d io , só p ara c ita r alg um as p o ssib ilid ad e s.
N a m atéria so b re o te rre m o to , não há in d ica d o re s q u e le ve m o le i­
tor a d u v id a r d o q u e está d ito a li. A o c o n trá rio , co m o vim o s, o texto
é co n stru íd o para leg itim ar a pró p ria e n u n c ia ç ã o . A s fo ntes de in fo r­
m ação são c o n sta n te m e n te e x p lic ita d a s, co m o nas e xp re ssõ e s: "D e
a co rd o co m o M in isté rio da D e fe sa ", "em co le tiva de im p re n sa , o
c h a n c e le r C e lso A m o rim d isse" e " O p re sid e n te d o H a iti, R e n é P re va l,
a firm o u q u e " , e n tre outras.
A in d a co n fo rm e vim o s, o texto jo rnalístico tem por regra se ap re se n ­
tar co m o algo a ser levado a sério - e co m a notícia em questão não é
d iferen te. O q u e ocorre de curio so , neste caso , é o fato d e ain d a assim
o leitor m uitas vezes q uestio n ar a leg itim idad e da im p rensa. Exem p lo s:

Eu nao sabia que o Haiti e um pais vizinho do Brasil. Acho que nao
estudei, direito, geografia. Caramba, como sou burro!!! ou e o repór­
ter???? (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010. Comentário enviado
por "olivio pafuncio").

O título da matéria é inadequado e evidencia despreparo do Redator, pois


sugere que Zilda Arns não é brasileira. Seria mais adequado: "Cinco bra­
sileiros, inclusive Zilda Arns, morrem..." É preciso selecionar e capacitar
melhor os redatores, pois há muitos desses casos (Site de O Globo, 13 de
janeiro de 2010. Comentário enviado por "Roberto Lopes de Abreu").

A p rim e ira fala ab u sa d a iro n ia para ap o n ta r um erro - q u e não


e n co n tra m o s na m até ria, po rtan to su p o m o s q u e foi co rrig id o . O leito r
d iz q u e não sab ia q u e o Brasil é v iz in h o do H aiti p o rq u e não estud o u
d ire ito e é b u rro . É o m esm o q u e xin g a r o redator. O rigor q u e o leito r
d e m o n stra co m o c o n h e c im e n to geográfico não está presen te em sua
p ró p ria escrita , q u e registra "é " e "p a ís" sem a ce n to , "n ã o " sem til,
"o u " d e p o is d a e xc la m a ç ã o sem c a ix a alta e "re p ó rte r" sem ace n to .
O seg und o c o m e n tá rio , assin ad o por "R o b e rto Lo p es de A b re u " , q ue
não sab em o s se é n o m e real ou fic tíc io , ap o n ta o e rro em term o s m ais
respeitosos, e m b o ra d uros.
As ch a m a d a s leis do d iscu rso são ad ap tad as ao g ênero d iscu rsivo em
q u e se in se re m . C o m o e x e m p lific a M ain g u e n e a u (2 0 0 8 ), é possível
in su ltar o p ú b lico n u m a peça de te atro , m as não n u m a c o n fe rê n c ia .
D o m e sm o m o d o , vim o s q u e é a c e itá v e l q u e um le ito r c ritiq u e um
jo rn alista na área d e co m e n tá rio s de n o tícia . A m esm a postura será
vista co m bem m ais estran h am e n to num program a sério d e en trevistas
co m a p a rticip a çã o d o p ú b lico .
O ra , se a regra d e p a rticip a çã o na á re a d e co m e n tá rio s de um site
d iz q u e não são p e rm itid as "a c u sa çõ e s insultuo sas, p alavrõ e s e c o ­
m e n tário s em d e sa co rd o co m o te m a d a n o tíc ia ", há u m a p erm issivi-
d ad e im p lícita q u an to a n orm as vigen tes em o utro s co n te xto s d o jo r­
n alism o . A s crítica s m in im a m e n te e d u ca d a s a g overno s, fo ntes, outros
leito res, p ro ce d im e n to s jo rn a lístico s e tc. estão livre s. M ais d o q u e isso,
são esp erad as.
Para M a in g u e n e a u , certo s rótulos p o d em a ju d a r na in te rp re ta çã o ,
e m b o ra não d evam ser tom ad o s de m o d o ab so luto . Ele ressalta q u e há
d ife re n te s tip o lo g ias, alg um as bastante abstratas. U m a s se ap re se n tam
p ela fu n çã o de linguagem q u e e x e rc e m p re d o m in a n te m e n te (e m o ti­
va, fá tica , p o ética e tc .), outras pela fu n çã o so cial q u e d e se m p e n h a m
(lú d ic a , religiosa e tc.) - e m uitas ve ze s é d ifíc il tra ç a r u m a fro n te ira
n ítid a e n tre elas.
Existem a in d a rótulos q u e se re ferem a ce rto s d isp o sitivo s de c o ­
m u n ica ç ã o q u e a p a re ce m q u a n d o ce rtas c o n d içõ e s só cio -h istó rica s
estão presen tes. E o caso d e certo s g êneros jo rn a lístico s, co m o o fait
divers, o talk sh o w e o ed ito ria l - para c ita r alguns e xe m p lo s usados
pelo te ó ric o . Para e le , "é possível c a ra c te riz a r u m a so c ie d a d e pelos
g êneros de d iscu rso q u e ela to rn a possível e q u e a to rn am p o ssível"
(M A IN G U E N E A U , 2 0 0 8 , p. 6 1 ).
A lg un s au to res em p reg am in d ife re n te m e n te g ênero e tipo d e d is­
cu rso , m as M ain g u e n e a u p refere d istingui-lo s. Para e le , os gêneros
p e rte n ce m a certo s tipos de d iscu rso asso ciad o s a setores d e a tivid a d e
so c ia l. O talk s h o w , por e x e m p lo , co nstitu i um g ênero d e d iscu rso no
in te rio r d e um tip o de d iscu rso te le visiv o q u e , por sua v e z , está in se ­
rid o n um tip o a in d a m ais ab ran g en te de d iscu rso , q u e é o m id iá tico
- q u e engloba tam b é m as m íd ias ra d io fô n ica , im pressa etc.
N este tra b a lh o , to m are m o s tanto a n o tícia d e O C lo b o q u a n to os
co m e n tá rio s q u e gerou co m o parte de um d iscu rso m id iá tic o jo rn a ­
lístico , p ro d u zid o para a w e b . Em bo ra am b o s estejam num jo rn al de
in te rn e t, não é ó b via a o p ção d e classificá-lo s co m o jo rn a lístico s. M u i­
tos p ro fissio n ais e te ó rico s d irão q u e o p in iã o e jo rn a lism o não se m is­
tu ram . A q u i nos arrisca m o s, co n tu d o , a c la ssific a r as falas dos leito res
tam b ém nessa tip o lo g ia, pela sua in se rçã o n u m a d iscussão q u e d iz
respeito a um fato atual d e in teresse p ú b lico tratad o no âm b ito d e um
v e íc u lo de c o m u n ic a ç ã o re c o n h e c id o . Tudo isso num c o n te xto em q ue
as antes rígidas fro n teiras da a tiv id a d e têm sid o postas em x e q u e pelo
su rg im ento de novos m eio s q u e d ificu lta m as cla ssifica çõ e s e os ju ízo s
d e fin itiv o s. Q u a n to ao g ên ero , in ve stim o s na id e ia d e q u e p e rte n ce m
ao g ênero o p in a tiv o , e n q u a n to o m aterial p ro d u zid o pelos jo rn alistas
d e O G lo b o será c la ssifica d o co m o u m a n o tícia in te rn a c io n a l.
Para M a in g u e n e a u , tão ou m ais im p o rtan te d o q u e cheg ar a um a
c la ssific a çã o d iscu rsiva é estar atento às c o m p e tê n cia s d e d e co d ifica -
çã o q u e um texto m o b iliza : a c o m p e tê n c ia e n c ic lo p é d ic a , a c o m p e ­
tê n cia g en érica e a in te raçã o dessas d uas c o m p e tê n cia s.
A c o m p e tê n cia e n cic lo p é d ic a d e um in d ivíd u o , tam b ém ch a m ad a de
associativa, perm ite q u e ele m o b ilize um co n ju n to de co n h e cim e n to s
fu n d am en tais sobre o m u n d o . C o n h e cim e n to s q u e vão além dos da
língua e q u e são básicos para a d e co d ific a çã o dos textos q u e acessa. A
leitura da notícia sobre o terrem o to pressupõe, por e x e m p lo , o c o n h e ­
cim e n to do q u e seja um terrem o to , bem co m o co n h e cim e n to s m ínim o s
sobre o H aiti e os personagens en vo lvid o s na história. U m pressuposto
básico do jo rn alism o é q ue o leitor não tem obrigação d e te r c o n h e c i­
m entos prévios sobre n en h u m assunto tratad o ; ain d a assim , há certo
nível m ín im o d e co n h e cim e n to s para além do co n h e cim e n to da língua
q u e é esp erad o para q ue um a m atéria possa ser assim ilada.
N os texto s da in tern et, a re a liz a ç ã o desse tip o d e a sso cia çã o tem
a ju d a d o re cu rso tecn o ló g ico dos hiperlinks. C o m o e x p lic a M a rc o s Pa­
lácios (2 0 0 2 ), a h ip e rte xtu a lid a d e é um a das p rin cip a is ca ra cte rística s
do texto d a w e b 29. Perm ite q u e o le ito r n aveg u e fa cilm e n te em busca
d as in fo rm açõ e s d e q u e n ecessita p ara a co m p re e n sã o p le n a d e um
texto , q u e m o b ilize sab eres a n te rio re s dos q u ais não está seguro ou
sim p le sm e n te não d isp õ e . N a m atéria em q uestão há n ove hiperlinks;
só q u e todos eles para outras m atérias d e O G lo b o (o leito r p o d e c o m ­
p le m e n ta r seus c o n h e cim e n to s d e n tro do p ró p rio site).
Já a c o m p e tê n c ia g e n é rica , ou c o m u n ic a tiv a , co nsiste em se c o m ­
portar co m o c o n v é m nos m ú ltip lo s gêneros de d iscu rso s. Ele e xp li-

29 As outras características são instantaneidade, interatividade, memória, mul-


timidialidade e personalização.
ca q u e , m esm o não d o m in a n d o ce rto s g ênero s, so m os c a p a ze s d e
id en tificá-lo s e ter um c o m p o rta m e n to a d e q u a d o em re la çã o a e les,
d e se m p e n h a n d o os p ap éis esp erad o s.
A p re n d e m o s, em M a in g u e n e a u , q u e os e n u n c ia d o s são su stentados
p ela vo z d e um su jeito q u e está para a lé m do te xto - no caso da m a ­
téria em q u estão , não um jo rn a lista em p articu lar, m as u m a v o z q u e
su stenta o p ró p rio ethos jo rn a lístico em seu co m p ro m isso d e in fo rm ar
a so c ie d a d e sob re fatos d e interesse p ú b lico .
A p e rso n a lid a d e do e n u n c ia d o r re vela-se por m e io da p ró p ria e n u n ­
c ia ç ã o . O texto de O G lo b o respeita seu co n trato g e n é rico e ado ta o
ethos d ista n cia d o do jo rn a lism o tra d ic io n a l. Isso fic a c la ro a p artir do
uso de recu rsos n arrativo s co m o a cita ç ã o d e fontes q u a lifica d a s co m o
re sp o n sáveis por d ad o s da m a té ria , co m o d issem o s, o ap ag am en to do
n arrad o r, e o uso d as aspas e do re cu rso in d ire to para d ar m a io r c re ­
d ib ilid a d e a essas in fo rm açõ e s. E n fim , um c o n ju n to d e recu rso s q u e
c u m p re m a fin a lid a d e d e assegurar u m a n arrativa ao m esm o te m p o
o b jetiva e em b asad a dos fatos, su sten tan d o a p ró p ria c re d ib ilid a d e
jo rn a lística . Q u a n to m ais d u vid o sa u m a in fo rm a çã o , n o rm a lm e n te
m aio res são as c h a n ce s d e ela v ir a trib u íd a a u m a fo n te e sp e c ífic a .
V eja no tre c h o a b a ixo :

(...) O governo haitiano estima que até 50 mil pessoas morreram no país.
- Espero que isso não se confirme, porque espero que as pessoas te­
nham tido tempo de se salvar - disse o primeiro-ministro Jean-Max
Bellerive.
A primeira-dama, Elisabeth Debrosse Delatour, relatou que "a maior
parte de Porto Príncipe está destruída" e que muitos prédios do gover­
no desabaram (Site de O Globo, 13 de janeiro de 2010).

N os textos dos leitores surge um co m p o rtam en to rad icalm e n te oposto


- engajado e crítico . O leitor e x e rce p len am en te seu d ireito a expressar
o p in ião no espaço d e co m en tário s. N esse caso , c re d ib ilid a d e não im ­
porta tanto q uanto o próprio e x e rc íc io da d o b rad in h a crítica e o p in ião .
O leitor não co m p ete com o jo rn alism o em sua fu n çã o de levar o p in ião
im parcial ao p ú b lico , m as o co m p le m e n ta ao ser ca p a z de p ro m o ver
um d ebate p ú b lico q ue tam b ém é fu n çã o pressuposta do jo rn alism o . E,
nessa fun ção , q uem d iz e co m o d iz im porta m enos do que o que é dito.
A lg um as v e z e s, o n o m e q u e um le ito r e sco lh e para assin a r seus c o ­
m e n tário s acab a a ju d a n d o a co m p re e n d ê -lo s. Por e x e m p lo , o leito r
" B y e B y e B ra s il" , c u jo n o m e sugere d isp o siçã o d e d e ix a r o país, p rati­
c a m e n te só faz co m e n tá rio s c rítico s ao g o vern o . D e ce rto m o d o , seu
n o m e a ju d a a co n stru ir um ethos p ró p rio , um a p e rso n a lid a d e e sp e ra ­
d a. Já o le ito r q u e assina "A n ti-P S D B " (p artid o d e o p o siçã o ao governo)
co stu m a e n tra r em c e n a para d e fe n d e r a a d m in istra ç ã o fe d e ra l. E o
leito r "d ire ita ç o " b rin ca co m a p ró p ria in c lin a ç ã o p o lítica , tam b é m
an tig o vern ista. E cu rio so o b se rvar q u e os p ró p rio s leito res co b ra m uns
dos outros ce rta c o e rê n c ia em re la çã o aos perso nagens q u e c ria ra m .
A o re b ater um c o m e n tá rio em q u e o leito r "C o p p e rn ic o " d iz q u e o
Japão não v iv e ria c o n se q u ê n c ia s tão catastró ficas se fosse p alco de
um terrem o to das m esm as p ro p o rçõ e s, o leito r " C a rd o s o 2 0 0 9 " d iz,
assim em ca ixa alta, co m o q u e m grita: " C O P P E R N IC O , M U D E D E
P S E U D Ô N IM O . N Ã O E N V E R G O N H E O C IE N T IS T A Q U E T E V E ESTE
N O M E , ELE N Ã O M E R E C E . V Á SE T R A T A R !"

C O N S ID E R A Ç Õ E S F I N A I S

C o m o p o n tu are m o s a seguir, a a n á lise d a n o tícia d o te rre m o to no


H aiti no site d e O G lo b o e do co n ju n to de co m e n tá rio s q u e ela d e s­
pertou nos leva a v e r as áre as de co m e n tá rio s c o m o um e sp a ço re ­
levan te d o jo rn a lism o na a tu a lid a d e . A li, no esfo rço por e x p rim ir a
p ró p ria o p in iã o so b re um assunto e to m a r co n tato com o utros pontos
d e vista, os leito res têm a p o ssib ilid a d e d e (re )e la b o ra r o q u e leram e
e x e rc e r sua c a p a c id a d e c rític a .

• M a is d a m e tad e (51 % ) d o s co m e n tá rio s a n a lisa d o s é m a rca d a por


algum tipo d e c rític a , seja ao g overno (2 3 % ), à im p re n sa (6 % ), a
outros leitores (1 6 % ) e até à Pastoral d a C ria n ç a (6% ) - q u e não
co stu m a ter sua a ção co n te stad a na grand e im p re n sa .
• D o p o n to d e vista da linguagem u tiliza d a , os leito res são bastante
ve e m e n te s, ch eg an d o m u itas ve ze s a fe rir as regras d e p o lid e z .
• O s p rin cip a is p rin cíp io s n arrativo s d o jo rn a lism o , tais co m o o b ­
je tiv id a d e e n e u tra lid a d e , estão presentes na m atéria a n alisad a,
m as não nos co m en tá rio s dos leito res. A o c o n trá rio , as falas d e ­
les são e m in e n te m e n te o p in ativas e em o tivas. O s leitores estão ali
para d ize r o q u e ach aram e, ao fa ze r isso, abusam d e u m a série
d e e lem en to s te rm in a n te m e n te p ro ib id o s na n arrativa jo rn alística
c o n v e n c io n a l, tais c o m o : a d je tivo s, pontos d e e xc la m a ç ã o e in te r­
rogação, c a ix a alta (q ue por c o n v e n ç ã o , na in tern et, rep resenta o
grito), ironias e até m esm o xin g am en to s brandos (co m o "m a u rici-
nho d e p ijam a" e "sa b ic h ã o "), já q ue os pesados não passam pelo
filtro ce n so r do site. Fica cla ro q u e o leitor não assim ila, no d isc u r­
so q u e p ro d u z, o m odo de n arrar d o jo rn a lism o c o n v e n c io n a l.
D ife re n ç a s no uso d esses re cu rso s te xtu a is e x p lic ita m q u e jo rn a ­
listas e leito res seguem regras d ife re n te s, nos d ife re n te s esp aço s
d e e n u n c ia ç ã o em q u e estão in scrito s. D o m e sm o m o d o , assu ­
m em d ife re n te s ethos para le g itim ar seus d iscu rso s.
O s p ap é is q u e e x e rc e m tam b é m são m u ito d istin to s. O s leito res
pod em até c ritic a r os jo rn a lista s, m as não fa ze m de sua p a rticip a ­
ção u m a fo rm a d e c o n c o rrê n c ia . N ão estão ali para in fo rm a r nada
a n in g u ém , m as para o p in a r e debater. Seu pap el é c o m p le m e n ­
tar. Essa d isp o sição ao d e b a te fic a cla ra pelo g rand e n ú m e ro de
co m e n tá rio s tecid o s a p artir das falas d e o utro s leito res.
A em o çã o dos leitores ap a re ce tam b ém nas m uitas falas la m e n ­
tan d o o terrem o to e a m orte de Z ild a A rn s (em 3 7 % do total são o
m ote p rin cip al do co m e n tá rio ). H o u ve u m a forte d em o n stração de
so lid aried ad e em re lação ao a co n te cim e n to . Por outro lado, esse
grande n ú m e ro d e co m en tário s pode ser resultado tam b ém da
"h e ro ic iz a ç ã o " da personagem , d e tectad a na n otícia de O G lobo.
A im agem d o H aiti co m o n açã o fra c a e d e se stru tu ra d a , q u e n e ­
cessita ser a c u d id a pelos esfo rço s d o Brasil e da O N U , a p a re ce
tanto na reportagem de O G lo b o , co m o nas falas dos leito res.
Ela a p a re c e m esm o nas falas dos n ove leito res q u e se m o straram
co n trário s à a ção b rasileira no país. Para c in c o d eles o arg um en to
cen tral da in a d e q u a ç ã o é a falta de se n tid o de a ju d a r o utro país,
q u a n d o in te rn a m e n te há tantos p ro b le m as (trech o s d e c o m e n tá ­
rio s: "o q u e o Brasil foi fa ze r lá co m tanta m iséria por a q u i" ; "vai
fa ze r c a rid a d e co m o im posto dos o u tro s"). Três leito res asso ciam
a ação do g overn o no H a iti à in te n ção b rasileira de co n seg u ir um
assento no C o n se lh o d e Seg u ran ça da O N U (trech o s d e c o m e n ­
tário s: " Q u e r assento no co n se lh o da O N U ? C o n stró i uns 4 0 0
m ísseis q u e eles ab rem lugar na m esa ra p id in h o ").
R e to m an d o nossa in d ag ação in ic ia l, so b re se a p a rticip a çã o do leito r
co n trib u i para u m a co m p re e n sã o m ais a b ran g en te do n o ticiá rio on li­
n e , p a rece-n o s q u e , m esm o nos caso s em q u e o leito r registra o p in iõ e s
su p e rficia is ou a p a re n te m e n te p o u co re le va n te s nas áreas de c o m e n ­
tários d e n o tícias, há u m a in c lin a ç ã o favo ráve l nesse se n tid o . Sab em o s
q u e nem todos os leito res acessam as áreas de co m e n tá rio s e, e n tre os
q u e a c e ssa m , nem todos p a rticip a m . A a n á lise desses esp aço s tam b ém
in d ica q u e há os q u e registram suas falas sem m u ita p re o cu p a ç ã o em
ler e/ou in teragir co m as d e m a is. Por o utro lad o , é p e rce p tíve l q u e há
um n ú m e ro re le va n te d e leito res en gajad o s em p a rticip a r d o processo
in terativo por m eio do d iálogo.
A c re d ita m o s q u e o p ró p rio m o vim e n to d e , apó s c o n c lu ir a leitu ra de
u m a n o tícia - e ten d o tid o a p o ssib ilid ad e de n avegar nos hiperlinks
in d ica d o s co n su lta n d o arq u ivo s de m e m ó ria e c o n te ú d o s m u ltim íd ia
- , in ic ia r um a seg und a leitu ra so b re o q u e pensam os o utros internau-
tas te n d e a a p ro fu n d a r a re la çã o e sta b e le cid a co m o texto in icia l e
co m o p ró p rio v e íc u lo .
Esse ap ro fu n d am e n to tend e a ser m aior nos casos em q ue há diálogo
e co ntrap o sição de o p inões bem fu n d am en tad as e m e no r nos casos em
q u e os co m en tário s d eixad o s se lim itam aos registros m ais sim p ló rio s (no
caso analisad o , aq u eles q u e ap en as lam entam a m orte d e Z ild a A rns).
Isso não q u er d ize r q u e m esm o os m ais despretensiosos não tenham
re levân cia do ponto de vista dessa relação travad a co m a n otícia.
A p re n d e m o s co m au to re s co m o Eco (1 9 7 6 ) e B arth es (2 0 0 4 ) q u e é
no processo d e leitu ra q u e se dá a sig n ifica çã o de um te xto , va riá ve l
c o n fo rm e o re p ertó rio de cad a u m , co m o nos lem b ra ta m b é m M ain -
g uen eau (2 0 0 8 ). A o b se rvaçã o dos co m e n tá rio s d e leitores e x p lic ita
essas d ife re n ça s no m odo co m o u m a m esm a n o tícia é in terp retad a
por in d ivíd u o s distintos e, ao m esm o te m p o , ap o n ta para os d iverso s
m od os d e se lid ar co m ela. Essa p lu ra lid a d e te n d e a co n trib u ir, a nosso
ver, para fa ze r do jo rn a lism o da in te rn e t um e sp a ço p ú b lico p o te n c ia l­
m ente a m p lia d o , em re la çã o ao e sta b e le cid o em v e ícu lo s d a m íd ia
im p ressa q u e , até por im p o ssib ilid a d e te cn o ló g ica , não têm co m o a c o ­
lh er d o m esm o m od o a p a rticip a çã o d o le ito r c o n te m p o râ n e o , cad a
v e z m ais ávid o por p a rticip a r a tiva m e n te do processo c o m u n ic a tiv o .
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A N EX O S
1 C L A S S IF IC A Ç Ã O D E C O M E N T Á R IO S - T A B U L A Ç Ã O E E X E M P L O S

C la ssifica ç õ e s Q uantidade Exem plos (te x to s lite ra is dos


to ta l de le ito re s, sem co rreçõ e s)
p articip a çõ e s

Leitores lamentam 37 "Foram numa missão preparados para


o terremoto e/ou a um inimigo e tombaram por outro
morte de Zilda Arns (37%) inimigo da humanidade. Sem chances
de defesa. Que suas famílias pos­
sam superar logo essa dor e seguir
suas vidas em paz. Brasil. Acima
de tudo!" (Enviado por "Orcca")
"Zilda Arns é realmente uma grande
perda para o país. Fará muita falta."
(Enviado por "VIVAOBRASIL")
Crítica ao governo, 23 "Pergunta o que não quer calar. 0 que
sua ação no Haiti diabos o Brasil esta fazendo naquele
ou à política (23%) fim de mundo?
em geral Se quer combater a violência ou
fazer lindas obras sociais pode
fazer aqui mesmo. Pois o que não
no Brasil é miséria e violência."
(Enviado por "Arcanjol3")
"Zilda Arns......? que perda! E em
Brasília nenhum tremorzinho?"
(Enviado por "CarmendeBizet")
Críticas a 16 "Querer comparar a milenar cul­
(comentários de) tura japonesa com a violentada
outros leitores (16%) cultura haitiana é de uma ingenui­
dade ainda maior meu caro dioní-
sio." (Enviado por "bixudepe")
Comentários (não 6 "Geraldo da Silva Vilas Boas
críticos) a respeito 13/01/2010 - l l h 49m
de comentários de (6%) Concordo com você, vivemos um mun­
outros leitores do que tecnologicamente é capaz de
prever e defender-se bem de desastres
naturais como os terremotos. Mas para
isto é preciso investimento e respeito
político pelo povo. Isto não existe no
Haiti e em vários lugares do mundo. É
a pobreza e a corrupção que poten­
cializa tragédias de todos os tipos."
(Enviado por "Ricardo Badini Serodio")
Crítica à matéria 6 "Eu não sabia que o Haiti e um pais
ou à imprensa vizinho do Brasil. Acho que nao
(6%) estudei, direito, geografia. Caramba,
como sou burro!!! ou e o repórter????"
(Enviado por "olivio pafuncio")
"a desgraça vende jornal!" (Envia­
do por "Lidia Soares Cardoso")
Críticas à Pastoral 6 "Segundo relatório da Pastoral, cerca
da Criança de 71% dos recursos sai do Minis-
(6%) tério da Saúde (leia-se, dinheiro de
impostos).
0 que a Pastoral faz (como quase todas
as obras pilantrópicas) é dar esmola
com o dinheiro dos outros.
Não sou contra projetos que reduzam
a miséria.
Mas sou contra o governo bancar
projetos de instituições religiosas que
só servem como propaganda destas
multimilionárias intituições." (Enviado
por "Daniel Barbosa Reynaldo")
Elogio à ação do 2 "Espero que o mundo olhe para
governo no Haiti o Haiti de forma efetiva e tome
(2%) como exemplo o papel que o Brasil
já vem desempenhando naque­
le país." (Enviado por "Loya")
Outros temas 4 "E AINDA TEM GENTE QUE NÃO
ACRDITA NO AQUECIMENTO GLO-
(4%) BAL, POIS AS FORÇAS DA NATURE­
ZA ESTÃO ALTERADAS..." (Enviado
por "roberto de carvalho")

2 A ÍN T E G R A DA N O T ÍC IA A N A L IS A D A

TRAGÉDIA

Zilda Arns e ao menos 11 militares brasileiros morrem após terremoto no H ai­


ti; há muitos soldados desaparecidos

Publicada em 13/01/2010 às 20h23m

O Globo Agências internacionais

RIO e BRASÍLIA - A fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da


Criança, Zilda Arns Neumann, de 75 anos, morreu no terremoto que atingiu
na noite de terça-feira os arredores de Porto Príncipe, capital do Haiti. De
acordo com o Ministério da Defesa, onze militares brasileiros morreram e
vários outros ficaram feridos em decorrência do tremor de 7 graus na escala
Richter. Em coletiva de imprensa, o chanceler Celso Amorim disse que trata
como desaparecido o brasileiro Luiz Carlos da Costa, que ocupa o segundo
maior cargo da representação da O N U (Minustah) no Haiti. Costa é atualmen­
te o brasileiro com posto mais alto nas Nações Unidas. O presidente do Haiti,
Rene Preval, afirmou que o chefe da missão de paz da O N U no país, o tunisia-
no Hedi Annabi, morreu no terremoto, mas a O N U ainda não confirma. Mais
cedo, o governo haitiano chegou a divulgar que os mortos poderiam chegar a
centenas de milhares. Mais tarde, no entanto, o presidente do Haiti afirmou
que as vítimas do terremoto devem ficar entre 30 e 50 mil.

(Prédios do governo e de organizações internacionais no Haiti não resistiram


aos tremores)

O Brasil vai enviar até quinta-feira aviões com ajuda humanitária, carregados
de alimentos, roupas e medicamentos. O ministro da Defesa, Nelson Jobim,
embarcou nesta quarta-feira. As aeronaves deverão aterrissar na República
Dom inicana, já que as condições do aeroporto de Porto Príncipe são pés­
simas, e seguir por terra ao Haiti. O governo haitiano estima que até 50 mil
pessoas morreram no país.

- Espero que isso não se confirme, porque espero que as pessoas tenham tido
tempo de se salvar - disse o primeiro-ministro Jean-Max Bellerive.

A primeira-dama, Elisabeth Debrosse Delatour, relatou que "a maior parte de


Porto Príncipe está destruída" e que muitos prédios do governo desabaram.

Leia também:

A repercussão internacional da crise no Haiti

Necessidades são infinitas, diz embaixador haitiano

Terremoto no Haiti pode ter matado centenas de milhares de pessoas

A médica pediatra e sanitarista viajara para o Haiti no último domingo a fim


de realizar uma palestra na Conferência Nacional dos Religiosos do Caribe. Na
quinta-feira, a brasileira teria um encontro com representantes de O NGs e, no dia
seguinte, com o arcebispo de Porto Príncipe. No momento do tremor, Zilda esta­
va fazendo uma vistoria, acompanhada de um tenente, em uma área da capital.
A embaixatriz Roseana Teresa Aben-Athar, mulher do embaixador do Brasil no
Haiti, foi quem encontrou o corpo de Zilda Arns. Ela localizou o corpo na manhã
desta quarta-feira soterrado entre escombros de um prédio onde funcionava um
serviço de ajuda humanitária. O corpo deve chegar ao Brasil nesta quinta-feira.

Na terça-feira, Zilda teria deixado a embaixada em companhia de um militar e da


assessora e ido até o prédio que desabou. Com o terromoto, uma laje do edifício
caiu e atingiu a coordenadora da Pastoral da Criança. Ela não resistiu e morreu.

O arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, disse que sua
irmã "está no coração de Deus", segundo a secretária pessoal do arcebispo,
irmã Devanir.

Míriam Leitão: 'Zilda Arns combateu o bom combate pelas crianças'

(Pastoral de luto após morte de Zilda Arns)

Entre os mortos - sete deles de um batalhão de Lorena (SP) - estão também:


o primeiro-tenente Bruno Ribeiro Mário, o segundo-sargento Davi Ramos de
Lima, o soldado Antonio José Anacleto, o soldado Tiago Anaya Detimermani,
segundo-sargento Leonardo de Castro Carvalho, cabo Douglas Pedrotti Ne-
ckel, cabo Washington Luis de Souza Seraphin, cabo A rí Dirceu Fernandes
Júnior, soldado Kleber da Silva Santos, subtenente Raniel Batista de Camargos
e coronel Emilio Carlos Torres do Santos.

Segundo o chanceler Celso Amorim disse que trata como desaparecido o bra­
sileiro Luiz Carlos da Costa, que ocupa o segundo maior cargo da representa­
ção da O N U (Minustah) no Haiti.

(Veja as imagens da destruição)

Leia mais: Crises políticas e naturais assolam Haiti

Os feridos confirmados até o momento são: o tenente-coronel Alexandre José


Santos, da 1- Brigada de Infantaria de Selva de Boa Vista, Roraima; o capitão
Renan Rodrigues de O liveira, do 6â Batalhão de Infantarias Leves de Caça-
paba, São Paulo; o terceiro-sargento Danilo do Nascimento de O liveira, do
29Q Batalhão de Infantarias Leves de Campinas, São Paulo; o cabo Eugênio
Pesaresi Netoiane, do 29Q Batalhão de Infantarias Leves; e o cabo Welington
Sopares Magalhães, do 5g Batalhão de Infantarias Leves.

Militares brasileiros que servem na missão de paz da Organização das Nações


Unidas (O N U) no Haiti estão desaparecidos. O ministério informa ainda que
os brasileiros que participam da Minustah, como é conhecida a missão da
O N U , passaram a madrugada desta quarta-feira no trabalho de resgate aos
soterrados e ajuda à população local e autoridades haitianas. Ainda não se
sabe quantas pessoas morreram, mas estima-se que milhares de pessoas não
tenham resistido ao forte tremor.

Prédio da ONU ruiu


A sede da missão da O N U na capital ficou totalmente destruída com o
abalo sísmico. De acordo com a entidade, pelo menos 14 pessoas morreram
nas ruínas do prédio de cinco andares, 56 ficaram feridas e 150 ainda estão
desaparecidas. Inicialmente, temia-se que todos que estavam no local estives­
sem mortos. O chefe da missão das Nações Unidas no Haiti, Hedi Annabi,
ainda está desaparecido.
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, viajou nesta quarta-feira para Porto
Príncipe com militares e o embaixador do Brasil no Haiti, Ygor Kipman. Eles
vão avaliar os danos causados pelo terremoto.
O governo brasileiro está enfrentando dificuldades para obter informações,
uma vez que os sistemas de telefonia fixa e móvel, além do abastecimento de
energia elétrica, estão comprometidos. Por determinação do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva serão enviados US$ 10 milhões como ajuda humanitária
para o Haiti. (Sede da missão da O N U no Haiti sofreu graves danos; funcio­
nários estão desaparecidos)

Soldados de outros países também estão desaparecidos


O Brasil, que lidera as tropas de paz da O N U no Haiti, participa da M inus­
tah com 1.266 militares. O contingente total da missão é de 9.065 pessoas,
sendo 7.031 militares, segundo dados de novembro.
Segundo a mídia estatal da China, 8 soldados chineses da missão de paz
morreram e outros 10 estão desaparecidos, depois que um prédio de cinco
andares usado pela organização desabou.
Soldados filipinos também estariam desaparecidos. A informação é do coro­
nel Romeo Brawner Jr., das Forças Armadas das Filipinas.

Mulher registra de cima o momento do terremoto. Assista!


http://oglobo.globo.eom/mundo/mat/2010/01/13/zilda-arns-ao-menos-11 -
m ilitares-brasileiros-m orrem -apos-terrem oto-no-haiti-ha-m uitos-soldados-
desaparecidos-915 51 64 3 7.asp
observações sob re
A CHAMADA
'MORTE DO AUTO I?
Paulo Cesar Duque-Estrada
O presente artigo pretende desenvolver algumas considerações em torno de
certos pressupostos básicos que dão sustentação ou justificam o tema da "mor­
te do autor". Tendo em vista a atualidade desse tema e as várias formas de re­
sistência crítica manifestadas contra esse mesmo tema, as observações aqui de­
senvolvidas se desdobram em uma dupla direção: por um lado, elas procuram
pôr em evidência um conjunto de pressupostos e procedimentos teóricos que
configuram um certo ambiente intelectual em que muitos pensadores, malgra­
do suas respectivas diferenças, encontram-se de acordo em relação ao tema
da "morte do autor". Por outro lado, tenta-se também mostrar a inconsistência
das argumentações críticas endereçadas ao referido tema.
Palavras-chave: filosofia, crítica, morte do autor

This present article intends to develop some considerations concerning some


of the basic presuppositions supporting or justifying the theme of the "death
of the author". In view of the current relevance of this subject matter and the
various forms of critical resistance against this very subject, the observations
elaborated here unfold in two directions. On one side, they are aimed to shed
some light on a certain number of assumptions and theoretical practices that
shape a certain intellectual environment where many thinkers, despite their
different backgrounds, find themselves in agreement regarding the theme of the
"death of the author". On the other side, they address the inconsistencies of
critical arguments aimed at that same subject matter.
Keywords: philosophy, critical, death o f the author
INTRO DU ÇÃO

P ro p o n h o a p re se n tar neste artigo algum as o b se rvaçõ e s a re sp eito do


q u e se c o n v e n c io n o u ch am ar, a partir d e ce rta lin h a o u , m elho r, de
certo a m b ie n te d e p en sam e n to , d e "m o rte do a u to r". Trata-se d e um
tem a cad a v e z m ais p rese n te , d ire ta ou in d ire ta m e n te , nas re fle xõ e s
atu ais sob re a p ro d u ção d e texto s - co m im p lica ç õ e s q u e in cid e m d i­
re tam en te sob re q uestõ es re la cio n a d a s ao p ro b le m a do se n tid o , às d i­
feren te s fo rm as d e le itu ra , atravessad as pela já clássica o p o siçã o entre
"re la tivism o " e "u n iv e rs a lis m o ", e n tre o parad ig m a d a in te rp re ta çã o e
o p aradigm a d o m éto d o e tc. - n o ta d a m e n te nos âm b ito s da filo so fia
e d a te o ria lite rária.

T alvez seja legítim o a firm a r q u e o tem a da "m o rte d o a u to r" foi


tratad o pela p rim e ira v e z , e n q u a n to tal, no âm b ito d a te o ria lite rá ria ,
m ais e sp e c ific a m e n te em um p e q u e n o te xto d e R oland B arth es c h a ­
m ad o "A m orte d o a u to r". Pode-se d iz e r q u e esse te xto , p u b lica d o
em 1 9 6 8 na revista M anteia, d e ve ser lido m ais co m o u m a e sp é cie de
m an ifesto , d e vid o não so m e n te à n o v id a d e q u e e le a p re se n ta , co m o
tam b é m à b re vid a d e de sua a rg u m e n ta çã o .
V ejam o s c o m o B arth es ap re se n ta esse te m a logo no in íc io d o seu
te xto :

Na sua novela Sarrasine, Balzac, falando de um castrado disfarçado de


mulher, escreve esta frase: "Era a mulher, com os seus medos súbitos,
os seus caprichos sem razão, as suas perturbações instintivas, as suas
audácias sem causa, as suas bravatas e a sua deliciosa delicadeza de
sentimentos". Quem fala assim? Será o herói da novela, interessado
em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? Será o indivíduo
Balzac, provido pela sua experiência pessoal de uma filosofia da mu­
lher? Será o autor Balzac, professando ideias "literárias" sobre a fem i­
nilidade? Será a sabedoria universal? A psicologia romântica? Será para
sempre impossível sabê-lo, pela boa razão de que a escrita é destrui­
ção de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse com ­
pósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco
aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela
do corpo que escreve (BARTHES, 1984, p. 49).
Essa passagem d o texto d e B arth es sin te tiza vá rio s arg um en to s q u e ,
por um lad o , irão c o n trib u ir d e cisiv a m e n te para a co n fig u ra çã o de
certo a m b ie n te in telectu al no q ual v á ria s linh as d e p e n sa m e n to , a in d a
q u e d ife re n te s e n tre si, não d e ix a rã o de g u ard ar u m a a fin id a d e em
torno do te m a da "m o rte do a u to r" ; ao m esm o te m p o em q u e , por
outro lad o , irão , ig u alm en te, c o n trib u ir para a re u n iã o de d ife re n te s
linh as d e p en sam en to q u e se ag lu tin arão em to rno d e u m a re je içã o
c o m u m a, p re cisa m e n te , esse m e sm o tem a da "m o rte do a u to r". Po­
d em o s e n u m e ra r os vário s arg um en to s im p lica d o s nesse e m b a te in ­
telectu al co m o a q u e le s q u e ve rsa m , b a sica m e n te , sob re os seguintes
te m a s: o d e sa p a re cim e n to d o e scrito r; a a u to n o m ia d o processo da
escrita em re lação à p ró p ria su b je tiv id a d e do escrito r, po rtan to , o d e ­
sapossam ento d e si nas m alhas da te x tu a lid a d e ; o p o d er da linguagem
d e se o rg an izar sem n e n h u m a in te rve n çã o su b je tiv a ; a in te rte x tu a lid a ­
d e em lugar da su b je tiv id a d e do su je ito no p ro cesso de p ro d u çã o de
todo texto .
Todos esses tem as se d e sd o b ra m a partir d e u m a lin h a d ivisó ria e n tre
as arg u m en taçõ es a firm a d o ra s ou co n trá ria s à "m o rte do a u to r", linha
essa q u e se esten d e através de certas q uestõ es p arad ig m áticas co m o ,
por e x e m p lo , as q u e são in d ica d a s por Seán B u rk e :

Quando um autor escreve ou pensa estar escrevendo, estaria ele, si­


multaneamente, sendo também escrito? (...) O autor é o produtor do
texto ou o seu produto? Falamos a linguagem ou somos falados por
ela? O autor reflete a cultura e a história ou, antes, é construído na e
através da cultura e da história? (BU RKE, 1995, p. xv)30.

N o q u e se refere à c rític a q u e se vo lta c o n tra essa arg u m e n ta çã o


ce n tra d a na id e ia d e "m o rte d o a u to r", p o d e-se d iz e r q u e ela p are ce
c o m p o rta r um pressuposto h u m a n ista . A q u i e a li, trata-se se m p re de
algum tip o d e d efesa d o H o m e m , já q u e a "m o rte do a u to r", o seu
d e sa p a re cim e n to ou a sua d isso lu çã o na o rd e m a u tô n o m a da e scrita ,
vai significar, tam b é m e n e ce ssa ria m e n te , a m orte do p ró p rio va lo r
" H o m e m " ; o q u e é o caso , aliás, não só nos texto s d e R oland B arth e s,
m as tam b é m nos de Fo u cau lt, D e rrid a e m uito s o utro s. A c é le b re e

30 Todas as traduções são minhas.


p o lê m ic a frase q u e e n c e rra o livro As palavras e as co isas, d e Fo u cau lt,
é e m b lem ática a esse respeito : "...e n tã o se pode apostar q u e o hom em
se d e svan e ce ria, co m o , na orla do mar, um rosto de areia" (F O U C A U L T ,
2 0 0 0 , p. 5 3 6 ). D e todo m od o, tais autores, a in d a nas palavras de B u rke ,
estariam d e aco rd o q uanto ao seguinte fato:

(...) o conhecimento e a consciência surgem como metáforas ou efei­


tos intralinguísticos, como subprodutos de uma ordem linguística que
teria evoluído por milhares de anos antes que qualquer sujeito viesse a
falar. O homem já não pode mais ser conhecido como o sujeito de sua
obra, já que ser o sujeito de um texto ou de um conhecimento signi­
fica ocupar um lugar que é idealmente exterior à linguagem (BURKE,
1998, p. 15).

S en d o assim , em resposta a tal a firm a ç ã o de um pro cesso a n ô n im o


e a u tô n o m o d e e scrita, seria p reciso d e fe n d e r, resgatar, ressitu ar ou
re fo rm u la r os c o n ce ito s d e autor, d e su je ito e , em p rim e ira in stâ n cia ,
o p ró p rio c o n c e ito d e H o m e m . N o q u e se re fere ao autor, o e m p re ­
e n d im e n to a seu favor, no se n tid o d e sua d efesa e resgate, irá sem p re
associá-lo à id e ia , h u m an ista por e x c e lê n c ia , d e c ria tiv id a d e . Pierre
M a c h e re y sin tetiza co m m u ita p re cisão a lógica h u m an ista na q ual o
v a lo r "H o m e m " e o ideal de c ria tiv id a d e e n co n tra m -se in tim a m e n te
re la cio n a d o s:

A afirmação de que o escritor ou o artista é um criador pertence a


uma ideologia humanista. Nesta ideologia, o homem é libertado da
função que ocupa em uma ordem que lhe é exterior e restaurado para
as suas assim chamadas capacidades. Circunscrito apenas aos recursos
de sua própria natureza, ele se torna o realizador de suas próprias leis.
Ele cria. E o que ele cria? O homem. O pensamento humanista (tudo
feito pelo e para o homem) é circular, tautológico, inteiramente de­
dicado à repetição de uma única imagem. "O homem faz o homem"
(neste sentido Aristóteles é o teórico do humanismo): através de uma
contínua e ininterrupta investigação, ele liberta, a partir dele mesmo,
o que já existe; criação é automultiplicação (M ACH EREY apud BURKE,
1975, p. 230).
Seria interessante, ab rin d o aqui um parêntese, situar possíveis c o n ­
trastes e afin id ad es en tre essa perspectiva crítica do pensam ento fran cês
com o m odo em q u e a interseção entre in d ivíd u o e linguagem foi p e n ­
sada, e por um viés h um an ista, pela trad ição alem ã da h e rm e n ê u tica 31.
Em seu livro Verdade e m éto d o , G a d a m e r (1 9 9 8 ) se refere ao esforço de
D ilth e y em estab elecer o elem e n to d e sustentação para a u n ive rsalid a ­
de própria às ciê n cia s h um an as a partir do m o d elo das vivê n cia s in trín ­
secas à m anifestação da vid a dos in d ivíd u o s. O esforço de D ilth e y será
em b le m ático para situar o in d ivíd u o - e, por exten são , o autor-sujeito
- a partir de um a sin g u larid ad e32 q u e escapa ao q u e se en co n tra sim ­
p lesm ente "fora" ou "d en tro " de si m esm o. Nas palavras de G a d a m e r:

(...) uma estrutura psíquica, como por exemplo um indivíduo, forma


a sua individualidade na medida em que desenvolve suas tendências
naturais ao mesmo tempo em que sofre o efeito condicionador das
circunstâncias. O que daí resultará, a própria "individualidade", isto
é, o caráter do indivíduo, não é uma mera consequência dos fatores
causais, nem pode ser entendida meramente a partir dessa causalida­
de, mas representa uma unidade compreensível em si mesma, uma
unidade vital que se expressa em cada uma de suas manifestações33
e que pode, por isso, ser compreendida a partir de cada uma delas.
Independentemente da ordem das relações de causa e efeito, algo se
integra aqui em uma configuração única (GADAM ER, 1998, pp. 344-
345; ligeiramente modificado).

31 Tradição essa que tem Heidegger como um de seus herdeiros; autor de


uma importância indiscutível na configuração do pensamento francês con­
temporâneo. Q ue Heidegger, contudo, tenha sido um crítico do humanismo,
isto não impediu que Derrida, por exem plo, situasse o seu pensamento como
a mais potente forma de insistência no valor "Hom em ", para além do próprio
humanismo. Não sendo possível entrar aqui nessa questão, remeto o leitor ao
texto de Derrida (1991) "O s fins do homem". Tento situar essa discussão de
Derrida, a propósito de Heidegger e o humanismo, em "Derrida e a crítica
heideggeriana do humanismo" (N ASCIM EN TO , 2005).
32 Poderíamos chamá-la de singularidade hermenêutica.
33 Ou seja, tendo em vista a nossa presente discussão em torno do tema do
autor, em cada um de seus textos, de seus documentos, em cada uma de suas
obras.
D ito isso, e sem p o d erm o s nos d e te r aq u i no tra tam e n to d e possíveis
co ntrastes e a fin id a d e s co m a tra d içã o do p e n sa m e n to h e rm e n ê u ti­
c o 34, vo ltem o s a nossa a te n çã o p ara o texto d e B arth es.
Em ve rd a d e , o tem a da "m o rte do a u to r" não se d estina, co m o parece
su por a crítica h um an ista, ao e xte rm ín io ou a n iq u ila m e n to de n ad a 35.
Ele não preten d e "m a ta r" o autor ou o sujeito e, m uito m eno s, o H o ­
m e m , m as sim d esfazer a ilusão d e sua posição ce n tral, privileg iada, a
partir da qual ele se en co n traria - p ro p riam e n te , e sse n cia lm e n te , q u e r
d izer, inserido em sua suposta n atu reza, co m o na passagem d e M ach e -
rey an terio rm en te referid a - em co n d içõ e s d e im p rim ir m o vim en to e
ord em à escrita. Em outras palavras, o q ue Barthes faz é ap o n tar para
algo q u e sem p re disse respeito à e x p e riê n cia q u e se faz em toda língua -
m esm o a língua do su jeito, dos autores, dos h um an ism o s - , m as q u e , no
en tan to, não pode ser pensado através desses co n ce ito s de autor, sujeito
ou h o m em . Sem d ú vid a, d iz Barthes, foi se m p re assim ,

(...) desde o momento em que um fato é contado, para fins intransi­


tivos, e não para agir diretamente sobre o real, quer dizer, finalmente
fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo,
produz-se este desfazimento, a voz perde a sua origem, o autor entra
na sua própria morte, a escrita começa (ibid .).

34 Uma importante iniciativa feita nesse sentido, ainda que restrita às obras
de Derrida, pelo lado francês, e Gadamer, pelo lado alemão, encontra-se em
M ichelfelder; Palmer, 1989.
35 A crítica humanista pode ser, aliás, por vezes feroz, como retrata John Johnston,
a propósito da reação de "marxistas e humanistas liberais", ao voltarem suas
baterias contra o chamado "pós-estruturalismo" - entenda-se, Nietzsche,
Heidegger, Barthes, Lacan, Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard etc.; enfim,
todo um universo de autores que, apesar de suas singularidades e de suas múl­
tiplas diferenças, não teriam problema em aceitar o tema da "morte do autor"
e, por isso, se comprimem sob o selo de "pós-estruturalistas". Uma amostra
dessa crítica: "O pós-estruturalismo parece não fornecer, afinal, nenhuma crí­
tica; em vez de articular novos pontos de resistência em torno dos quais, pos­
sivelmente, um sujeito crítico possa emergir (...), o pós-estruturalismo dissolve
o sujeito ainda mais completamente nas aporias sem fim da textualidade (...),
e celebra essa dissolução com insolência e risada nietzscheanas como se fos­
sem gestos de transgressão" (JO H N STO N , 1990, pp. 68-69).
D e a co rd o co m B arth es, essa situ a çã o va ria em cad a c u ltu ra . A ssim ,
por e x e m p lo , "n as so cie d a d e s etn o g ráficas, não há n u n ca u m a pessoa
en carre g ad a da n arra tiva, m as um m e d iad o r, x a m ã ou re citad o r, de
q u e p o d em o s em rigor a d m ira r a 'p re sta çã o ' [q u e r d izer, a d m ira r o
d o m ín io do código n arrativo ], m as n u n ca o 'gênio ' (,ib id ., é m eu o
a c ré sc im o e n tre co lch e te s). A in d a seg und o B arth e s, o a u to r é u m a
p ro d u ção d a nossa so c ie d a d e q u e , por m e io d e vá ria s d e te rm in a ç õ e s,
co m o o e m p irism o inglês, o ra cio n a lism o fra n cê s e a fé pessoal d a
R e fo rm a , a cab a p o r levar ao prestígio pessoal do in d iv íd u o o u , "c o m o
se d iz m ais n o b re m e n te , d a 'pesso a h u m a n a '". N esse se n tid o , é tão
so m en te através d e um n ão re co n h e c im e n to siste m á tico d e seu c a rá ­
ter d e co n stru ção q u e o au to r acab a por se a firm a r co m o figura d o m i­
n an te e o rg an izad o ra q u e , no d iz e r d e B arth es,

(...) reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de


escritores, nas entrevistas das revistas, e na própria consciência dos
literatos, preocupados em juntar, graças ao seu diário íntimo, a sua
pessoa e a sua obra: a imagem da literatura que podemos encontrar
na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa,
na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões... (ibid.).

Portanto, é a obra m esm a q u e so fre, não p ro p ria m e n te um a n iq u ila ­


m e n to , m as um o b scu re c im e n to p ela figura do autor. Figura essa q u e ,
p re te n sam e n te u n itária e id ê n tica a si m e sm a, origem d e sua c ria ç ã o -
no sen tid o antes re ferid o por M a c h e re y - , se im p õ e c o m o p rin cíp io de
e x p lic a ç ã o 36 da o b ra, em d e trim e n to da p ró p ria a u to n o m ia da m esm a

36 A propósito de uma possível comparação com a tradição da hermenêutica,


sugerida antes, seria o caso de interrogar se aquilo a que chamamos de "sin­
gularidade herm enêutica", ou seja, a singularidade do indivíduo - o sujeito-
autor - tal como pensada por Dilthey, mesmo não sendo um sujeito pontual,
auto-idêntico, não convergiria do mesmo modo para um esvaziamento, por
assim dizer, da própria obra, justo por se afirmar como o seu princípio de
explicação. Afinal, como lemos na passagem citada de Verdade e método ,
o indivíduo constitui "uma unidade compreensível em si mesma, (...) que se
expressa em cada uma de suas manifestações e que pode, por isso, ser com ­
preendida a partir de cada uma delas". Entendida como sua expressão, a obra
deverá então ser reduzida à individualidade do autor.
e n q u a n to o b ra. Q u a n to ao te xto , o au to r-su je ito e n c a rn a ria , p o rtan to ,
o seu h o rizo n te d e se n tid o , e sta b e le ce n d o -se , assim , o seu "q uerer-
d iz e r" co m o um m e ca n ism o d e se g u ran ça, um a o rie n ta çã o obrig atória
d e le itu ra, q u e im p e d iria a a b e rtu ra d o te xto a o u tras e in e sp e ra d as -
p o d er-se-ia d izer, im p ró p ria s - re -sig n ificaçõ e s. D esse m o d o , a figura
do au to r v iria a d e te rm in a r, se m p re d e a n te m ã o , a d e vid a c o m p re ­
en são d o te xto . N u m a p a la v ra , tod a o b ra e todo texto re d u z-se , pois,
ao seu autor. É, p o rtan to , nesse sen tid o q u e se o tem a d a "m o rte do
a u to r" p re te n d e m atar alg um a co isa, trata-se ú n ic a e e x c lu siv a m e n te
da d o m in a çã o tirâ n ic a desse im p é rio da figura do autor.
Tal se m â n tic a , aliás, do e x te rm ín io , do a n iq u ila m e n to , q u e p reten d e
se a p ro p ria r do tem a da "m o rte do a u to r", foi e n e rg ica m e n te refutada
por Jacq u e s D e rrid a n aq u ilo q u e d iz re sp eito à sua preten são d e re fe ­
rê n cia a um suposto fato, n eutra e o b je tiv a m e n te v e rific á v e l; ou se ja ,
a liq u id a ç ã o do su je ito :

(...) não sei a que conceito filosófico pode corresponder esta palavra
["liquidação" do sujeito] que eu compreendo melhor em outros códi­
gos: finanças, banditismo, terrorismo, crim inalidade civil ou política;
e não se fala, portanto, em liquidação senão que se colocando na
posição da lei e mesmo da polícia (D ERRID A , 1992, p. 270, é meu o
acréscimo entre colchetes).

Tal liq u id a ç ã o , co m o se alega, te ria sido e x e c u ta d a por certa v e r­


tente do p en sam en to c o n te m p o râ n e o , e p rin cip a lm e n te na Fran ça.
C o n tra tal p reten são , D e rrid a é e n fá tic o :

Se no curso dos últimos vinte e cinco anos, na França, as mais notórias des­
tas estratégias37 procederam, de fato, a um tipo de explicação com "a ques­
tão do sujeito", nenhuma delas procurou "liquidar" o quer que seja (ibid.).

Essa d iscussão em torno d a id e ia e m e sm o d e u m a se m â n tica da


"liq u id a ç ã o " do su jeito se in scre ve no c o n te xto d e u m a in icia tiva de

37 Derrida se refere às estratégias discursivas de autores como Barthes, Lacan,


Althusser, Foucault, Deleuze e dele próprio em que a centralidade reivindica­
da pelo conceito de sujeito é posta em questão.
Je a n -L u c N a n c y q u e e n vio u a 19 filó so fo s fran ce se s a p erg u n ta: "Q u e m
ve m após o su je ito ? "38 A pergunta d e N a n c y m o tiva-se pelo fato d e
u m a das p rin cip a is ca ra cte rística s do p e n sa m e n to co n te m p o râ n e o
consistir, ju sta m e n te , em c o lo c a r em q uestão a in stâ n cia do su jeito .
U m tal q u e stio n a m e n to , c o n tu d o , insiste D e rrid a em sua resposta, está
longe de sig n ificar u m a liq u id a ç ã o , a b o liçã o ou e x te rm ín io do s u je i­
to. Trata-se, antes, d e u m a susp eita q u e se vo lta co n tra o pretenso
ce n tra lism o d o su je ito . Para a q u e le s q u e não a d m ite m a a u sê n c ia de
re fe rê n cia s fixa s, isso será c o n sid e ra d o , e m esm o d e n u n c ia d o , co m o
u m a falta g rave, um a agressão à ra zã o . O d e sce n tra m e n to do su jeito
lhes p a re ce rá u m a e scan d alo sa liq u id a ç ã o do m e sm o .
Q u a n to a B arth es, em sua p e rsp e ctiva d e fa ze r fre n te 39 ao c e n tra lis­
m o tirâ n ic o do au to r - em nossa c u ltu ra , co m o ele d iz , a im agem da
literatu ra "é tira n ic a m e n te ce n tra d a no a u to r" - e , assim , p o d er a b rir
um c a m in h o p ara o q u e seria u m a e x p e riê n c ia m o d e rn a da ling ua­
g em , u m a e x p e riê n c ia não m ais ce n tra d a na figura do autor, e le se
refere a um a im p o rtan te c o n trib u iç ã o da lin g u ística, para a q u a l:

(...) a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na


perfeição sem precisar ser preenchido pela pessoa dos interlocutores;
linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquilo que
escreve, tal como o Eu não é senão aquele que diz Eu: a linguagem
conhece um 'sujeito' não uma 'pessoa', e esse sujeito [é vazio fora da
própria escrita que o define]" (ibid., o texto entre colchetes está ligei­
ramente modificado).

38 Uma compilação das respostas dos 19 filósofos, incluindo a de Derrida,


encontra-se em Cadava; Connor; Nancy, 1991.
39 E Mallarmé é, para ele, um autor exem plar neste sentido. Como diz: "Ape­
sar de o império do Autor ser ainda muito poderoso (...), é evidente que certos
escritores já há muito tempo que tentaram abalá-lo. Na França, M allarm é, sem
dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de
pôr a própria linguagem no lugar daquele que até então se supunha ser o seu
proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não é o autor;
escrever é, através de uma impessoalidade prévia (...) atingir aquele ponto
em que só a linguagem atua, "performa", e não o "eu": toda a poética de
Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escrita (...)" (BARTHES,
1984, p. 51).
Pode-se p e rce b e r a q u i, a propósito desse pro cesso v a z io da e n u n ­
c ia ç ã o , um a d u p la au sê n cia q u e é in e re n te à p ró p ria e scrita : a a u s ê n ­
cia d o su jeito - do su jeito e n q u a n to tal, fo ra do pro cesso da escrita - e
a a u sê n c ia do in terlo cuto r. Essa d u p la a u sê n cia não e scap o u à ate n çã o
d e Jacq u e s D e rrid a . Em Assinatura A co n tecim en to C o n texto , e le tenta
c a ra c te riz a r essa d u p la a u sê n c ia q u e , c o m o d iz , "p a re c e in te rvir de
m a n e ira e sp e cífica no fu n cio n a m e n to d a escrita " (D E R R ID A , 1 9 9 1 , p.
3 5 6 ). D e fato, q u an to ao in terlo cu to r, ou d e stin a tá rio d a e n u n c ia ç ã o ,
é ab so lu tam e n te n ecessário q u e a c o m p re e n sib ilid a d e do e n u n c ia d o ,
sua in te lig ib ilid ad e ou le g ib ilid a d e , in d e p e n d a da sua p re se n ça . D e r­
rid a, aliás, in va lid a a p ró p ria id e ia d e q u e a p re se n ça , m ais ou m enos
d e te rm in á v e l, do d estin atá rio seja u m a c o n d iç ã o para q u e a estrutura
m esm a da escrita possa se c o n stitu ir e n q u a n to tal. Ele vai en fatizar, por
co n traste, q u e o d e cisiv o - na co n stitu içã o da estru tu ra d a escrita - é
o fato d e a e n u n c ia ç ã o ter d e ser re p e tíve l m e sm o "n a ausência a bso­
luta do d e stin atário ou do c o n ju n to e m p iric a m e n te d e te rm in á ve l dos
d e stin atário s" (ibid. o itálico é m e u ). A fin a l, co m o d iz, "u m a escrita q ue
não seja estrutural m ente legível para além da m orte d o d estinatário não
seria u m a e sc rita ". Em síntese

Q ualquer escrita deve, portanto, para ser o que é, poder funcionar na


ausência radical de qualquer destinatário empiricamente determinado
em geral. E essa ausência não é uma modificação contínua da presen­
ça [ou seja, digo eu, em acréscimo ao texto de Derrida, da presença
modificada enquanto presença adiada; portanto, enquanto presença
ausente do destinatário], é uma ruptura de presença, a "morte" ou a
possibilidade da "morte" do destinatário inscrita na estrutura da marca
[ou seja, da estrutura significante, do texto] (ibid., os textos entre col­
chetes são meus).

O m esm o o co rre do lado do em issor, isto é, d o su je ito da e n u n c ia ­


ç ã o . Tam b ém a q u i, há q u e se le va r em co n ta u m a a u sê n cia estrutural
ao fu n cio n a m e n to da escrita , já q u e , d o m e sm o m o d o , ela d e v e ser
c o m p re e n sív e l in d e p e n d e n te m e n te da p re se n ça d a q u e le q u e a e n u n ­
c ia , in d e p e n d e n te m e n te , p o rtan to , d o q u e re r d ize r ou da in te n ção de
sig n ificação do seu autor. N as p alavras de D e rrid a ,
Escrever é produzir uma marca que constituirá uma espécie de má­
quina por sua vez produtiva, que a minha desaparição futura não im­
pedirá de funcionar e de dar, de se dar a ler e a reescrever. Quando
digo "a minha desaparição futura", é para tornar esta proposição mais
imediatamente aceitável. Devo poder dizer a minha desaparição sim­
plesmente, a minha não-presença em geral, e, por exem plo, a não-
presença do meu querer-dizer, da minha intenção-de-significação, do
meu querer-comunicar-isto, na emissão ou na produção da marca.
Para que um escrito seja um escrito, é necessário que continue a "agir"
e a ser legível mesmo se o que se chama o autor do escrito não respon­
de já pelo que escreveu, pelo que parece ter assinado, quer esteja pro­
visoriamente ausente, quer esteja morto ou que em geral não tenha
mantido a sua intenção ou atenção absolutamente atual e presente, a
plenitude do seu querer-dizer, mesmo daquilo que parece ser escrito
"em seu nome" (ibid ., p. 357).

V o ltan d o a B arth es, e le e n te n d e q u e o e scrito r m o d e rn o , ou se ja ,


a q u e le q u e já não se e n co n tra sob d o m ín io d o parad ig m a do autor,
"n a sc e ao m esm o te m p o q u e o seu te x to ". Ele não se e n co n tra em
algum lugar a n te rio r ao processo d e sua e scrita ; ele não é , d e m odo
alg u m , co m o d iz o p ró p rio B arth e s, "o su jeito d e q u e o seu livro seria
o p re d ic a d o " (B A R T H E S , 1 9 8 4 , p. 5 1 ). A esse re sp eito , M ic h e l Fou-
ca u lt se refere ao au to r co m o u m a fu n çã o q u e se co n stitu i na co n fig u ­
ração do m od o de e x is tê n c ia , c irc u la ç ã o e fu n cio n a m e n to d e alguns
d iscurso s d en tro d e um c o n te xto so cia l. A p e n a s para situ arm o s essa
c o n c e p ç ã o fu n c io n a l, na an á lise d e Fo u ca u lt, e le e n fa tiza q u e o auto r
não e n ca rn a um m esm o p ad rão d e re la çã o co m o te xto . Em O q ue é
um a u to r? ele se re fere ao fato d e a figura do a u to r surgir h isto ric a m e n ­
te - em co n traste co m os personagens m ítico s, co m as g randes figuras
sa cra liza d a s e sa cra liza n te s - no m o m e n to em q u e a escrita passa a
ser passível d e ce n su ra e o in d ivíd u o d e p u n içã o pelo q u e e sc re v e .
O u seja, a figura do au to r a p a re c e a partir do m o m e n to em q u e os
d iscurso s passam a p o d er ser transgressores:

Os textos, os livros, os discursos começam efetivamente a ter autores


(outros que não personagens míticos ou figuras sacralizadas e sacra­
lizantes) na medida em que o autor se tornou passível de ser puni-
do, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores
(FO UCAULT, 1992, p. 47).

N esse caso , d iz Fo u ca u lt, "a fu n çã o -a u to r e n co n tra -se ligada ao sis­


tem a ju ríd ic o e in stitu cio n a l q u e e n c e rra , d e te rm in a , a rtic u la o u n iv e r­
so dos d iscu rso s". Por o utro lad o , d iz a in d a Fo u ca u lt,

(...) houve um tempo em que os textos que hoje chamaríamos "literá­


rios" (narrativas, contos, epopeias, tragédias, comédias) eram aceitos,
postos em circulação, valorizados sem que fosse colocada a questão
do seu autor; o anonimato não constituía dificuldade, sua antiguidade,
verdadeira ou suposta, era para eles garantia suficiente (ibid., p. 48).

Por co n traste, prossegue Fo u ca u lt, os d iscurso s literário s m o d e rn o s


não pod em m ais ser ace ito s se n ão q u a n d o p ro vid o s da fu n çã o -a u to r:

Perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que


veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir
de que projeto. O sentido que lhe conferirmos [ao discurso literário], o
estatuto ou o valor que lhe reconhecermos dependem da forma como
respondemos a estas questões. E se, na sequência de um acidente ou
da vontade explícita do autor, um texto nos chega anônimo, imedia­
tamente se inicia o jogo de encontrar o autor. O anonimato literário
não nos é suportável; apenas o aceitamos a título de enigma (ibid., pp.
49-50, é meu o acréscimo entre colchetes).

Interessante n otar q u e , se m e lh a n te aos texto s lite rário s m o d e rn o s, os


texto s c ie n tífic o s na Id ad e M é d ia só m a n tin h a m um v a lo r d e ve rd a d e
se fossem d e v id a m e n te m a rcad o s pelo n o m e d o seu au to r - "H ip ó c ra -
tes d isse "; "P lín io co n ta" - co m o ín d ice s dos d iscurso s ace ito s co m o
p ro vad os. Já a partir dos sé cu lo s X V II e X V III e les, os texto s c ie n tífic o s,
passarão a ser aceito s por eles m esm o s, ou seja,

no anonimato de uma verdade estabelecida ou constantemente de­


monstrável; é a sua pertença a um conjunto sistemático que lhes
confere garantias, e não a referência ao indivíduo que os produziu.
Apaga-se a função do autor, o nome do inventor serve para pouco
mais do que para batizar um teorema, uma proposição, um efeito no­
tável, uma propriedade, um corpo, um conjunto de elementos, uma
síndrome patológica (ibid ., p. 49).

H á , p o rtan to , q u e se p en sar em u m a série de o p e ra çõ e s e s p e c ífi­


cas e c o m p le xa s q u e en tram em jogo na c o n stru ção d a fu n ção -au to r,
in te rd ita n d o , assim , a id eia d e u m a re la çã o sim p le s e d ireta e n tre o
texto e o au to r co m o um in d ivíd u o real e x te rio r e a n te rio r ao te xto .
A fin a l, co m o d iz Fo u ca u lt: " O n o m e do a u to r não está situ ad o no e s­
tad o civil dos h o m en s nem na fic ç ã o da o b ra, m as sim na ru p tu ra q u e
instaura certo grupo de d iscurso s e o seu m o d o d e ser sin g u la r". M ais
e n fa tic a m e n te

O que no indivíduo é designado como autor (ou o que faz do indiví­


duo um autor) é apenas a projeção, em termos mais ou menos psico-
logizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproxima­
ções que operamos, os traços que estabelecemos como pertinentes, as
continuidades que admitimos ou as exclusões que efetuamos. Todas
estas operações variam consoante as épocas e os tipos de discurso40
(ibid., p. 51).

40 A esse respeito, como propõe Foucault, a exegese cristã serviu em grande


parte como paradigma para o modo em que a crítica literária moderna defi­
niu, ou construiu, a figura do autor: de acordo com a De Viris lllustribus de
São Jerônimo, "se entre vários livros atribuídos a um autor, houver um inferior
aos restantes, deve-se então retirá-lo da lista das suas obras (o autor é assim
definido como um certo nível constante de valor); do mesmo modo [deve-se
igualmente retirar da lista das suas obras] se alguns textos estiverem em contra­
dição de doutrina com as outras obras de um autor (o autor é assim definido
como um certo campo de coerência conceituai ou teórica ); deve-se igualmen­
te excluir as obras que são escritas num estilo diferente, com palavras e manei­
ras que não se encontram habitualmente nas obras de um autor (trata-se aqui
do autor como unidade estilística); final mente, devem ser considerados como
interpolados os textos que se referem a acontecimentos ou que citam perso­
nagens posteriores à morte do autor (aqui o autor é encarado como momento
histórico definido e ponto de encontro de um certo número de acontecim en­
tos). O ra, a crítica literária moderna, mesmo quando não tem a preocupação
de autenticação (o que é a regra geral) não define o autor de outra maneira"
(ibid., pp. 52-53, são meus o itálico e o acréscimo entre colchetes).
Essas o b se rvaçõ e s ap o n tam para o fato d e q u e , ao co n trá rio d o q u e
alega a c rític a h u m a n ista , o te m a da "m o rte d o a u to r" não inaugura
n e n h u m p e n sam e n to in u m a n o . H eideg ger, aliá s, ap re se n ta co m m uita
c la re z a a e c o n o m ia v ic ia d a d e p e n sa m e n to em q u e se a p o ia a q u e ix a
h u m an ista. A o e sc la re c e r q u e q u a n d o se põe o h u m a n ism o em q u e s­
tão não se está b a n d e a n d o co m o p e n sa m e n to para o lado oposto do
h u m a n o , ta m p o u co d e fe n d e n d o a d e su m a n id a d e e d e g rad an d o a dig ­
n id ad e do h o m e m , ele d e n u n c ia a "ló g ica " sim p lista da a rg u m e n ta çã o
h u m an ista. D iz H eid eg g er:

Porque se fala contra o "hum anism o", teme-se que se defenda o inu­
mano e se glorifique a brutalidade e a barbaridade. Pois, o que é "mais
lógico" do que isto: a quem nega o humanismo, não resta senão afir­
mar a desumanidade?
Porque se fala contra a "lógica" crê-se que se pretenda renunciar ao
rigor do pensamento, para entronizar em seu lugar a arbitrariedade
dos impulsos e sentimentos, e, assim, proclamar, como o verdadeiro,
o "irracionalismo". Pois o que é "mais lógico" do que isto: quem fala
contra o lógico, defende o ilógico?
Porque se fala contra os "valores" surge uma indignação em face de
uma filosofia que - assim se pretende - se atreve a desprezar os bens
mais elevados da humanidade. Pois, o que é "mais lógico" do que
isto: um pensamento que nega os valores, terá necessariamente que
declarar tudo sem valor?
(...)
Porque, em tudo isso, sempre se fala contra o que é sagrado e elevado
para a humanidade, tal filosofia ensina um niilismo irresponsável e
destruidor. Pois, o que é "mais lógico" do que isto: quem, assim, sem­
pre nega o ente verdadeiro, coloca-se do lado do não-ente e prega,
com isso, que o simples Nada é o sentido da realidade? (H EID EG G ER ,
1967, pp. 74-75).

Essas p alavras d e H eidegger, e m b o ra d atem d e 1 9 4 7 , p o d e ria m se


a p lic a r p e rfe ita m e n te à resistên cia h u m a n ista , por assim d izer, d e um
au to r co m o A la in R e n au t, por e x e m p lo . Para e le , a c rític a d a su b je tiv i­
d ad e co nstitui um n iilism o p a ra lisa n te , um e n tra ve , co m o d iz , a "u m a
re ab ilita çã o p ositiva da a çã o h u m a n a n e ce ssária p ara u m a n o ção viá-
vel d e d e m o c ra c ia " (R E N A U T ; F E R R Y in : P E T E R S , 2 0 0 0 , p. 7 8 ). R e n au t
d e fe n d e , nesse se n tid o , o resgate da a u to n o m ia , in te n c io n a lid a d e e
c o n sc iê n c ia do h o m e m 41. O q u e co nstitu i a m o d e rn id a d e , a firm a R e ­
n au t, "é a m a n e ira p ela qual o h o m e m se pensa co m o fonte d e suas
re p re se n ta çõ e s e d e seus atos, co m o o seu fu n d a m e n to (sujeito ) ou
en tão co m o seu a u to r" (R E N A U T , 1 9 8 8 , p. 5 6 ). A s leis do h o m e m m o ­
d e rn o são, p ara e le , pro d u to d e sua razão . O ra , se, co m o q u e re m os
c rítico s d o su je ito , o h o m em passa a ser a p e n a s o pro d u to resultante
d e fo rças so ciais, h istó ricas, p sicoló g icas, p u lsio n a is, ou m e sm o d a e s­
c rita , isso sig n ifica, nada "m a is ló g ico ", d iria H eidegger, q u e o h o m em
se v ê d estitu íd o d e sua c o n d iç ã o d e ser ra cio n a l, bem co m o d e sua
a u to n o m ia ético -m o ral e d e sua re sp o n sa b ilid a d e por suas açõ e s e
d e cisõ e s.
M as, ao c o n trá rio d o q u e sustenta R e n a u t42 e tantos o utros q u e e le
tão e x e m p la rm e n te re p resen ta , o q u e se p re te n d e , co m a c rític a do
h u m a n ism o e , por e xte n sã o , do su je ito e do autor, in d e p e n d e n te m e n ­
te das várias o rie n ta çõ e s q u e tal c rític a ve n h a a tom ar, é ju stam e n te
liberar o "h o m e m ", o "a u to r", ou o "su je ito " - todos escrito s e n tre
aspas - para a q u ilo q u e e le se m p re fo i: um p e rm a n e n te d evir, por
vias h e rm e n ê u tic a s, a rq u ivística s, in stitu cio n a is, pedagógicas e tc ., na
e pela escrita. A ssim , em tod o s os casos em q u e se tra b a lh a na p e rs­
p e ctiva da "m o rte d o a u to r" - assim co m o do su je ito , ou d o h o m em

41 Renaut se enquadra, nesse sentido, entre aqueles que, no dizer de Derrida,


assumem uma postura moralista, e mesmo policial, de defensor da boa causa,
contra um delito, uma ilusão ou uma falta: "quiseram 'liquidar' [o sujeito;
portanto, também o autor; o "homem "], acreditaram poder fazê-lo, nós não
o deixaremos. (...) Nós iremos fazer justiça, nós iremos salvar ou reabilitar o
sujeito" (D ERRID A , 1992, p. 270).
42 Como se sabe, juntamente com Jean-Luc Ferry, Alain Renaut publicou um
livro, Pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. O livro
pretende analisar o pensamento representativo da filosofia francesa funda­
mentalmente comprometida com os eventos de maio de 68. Apesar de sua re­
conhecida diversidade, a análise aponta para a afirmação da individualidade
contra a universalidade, a dissolução do Eu como vontade autônoma, a apolo­
gia da marginalidade, como algumas das características, dentre outras, que são
comuns aos diferentes nomes que compõem esse ambiente de pensamento,
como Foucault, Althusser, Lacan, Deleuze, Lyotard, Derrida etc.
- o su je ito , co m o d iz D e rrid a , "é ta lve z re -in te rp re ta d o , re -situad o ,
re -in scrito , m as c e rta m e n te ele não é 'liq u id a d o '" (D E R R ID A , 1 9 9 1 ,
p. 2 7 1 ). N essa p e rsp e ctiva , aliás, o su je ito n u n ca m o rre . Ele d e ix a de
o c u p a r o ce n tro d a c e n a da escrita - esta sim , se tal situ ação o co rresse
d e fato , co n stitu iria a sua m o rte - para se re -co n fig u rar e seguir no
jogo de re co n fig u ração q u e é jogado pela p ró p ria e scrita . N ão q ue
"o su je ito " se re co n fig u re por m e io do jogo d a e sc rita ; ele não é o u ­
tra co isa do q u e esta re co n fig u ra çã o m e sm a. E D e rrid a a v a n ça um a
q u estão in teressante q u e não é sem a fin id a d e co m a p ro b le m á tica da
c o n stru ção do au to r referid a por Fo u ca u lt. Se o su jeito é co n stru íd o
seg und o m ú ltip las o p e ra çõ e s, é p re ciso q u e stio n a r as in vestid as p re ­
te n sam e n te n eutras - por parte d aq u e le s q u e não a d m ite m p en sar
sem re fe rê n cia s fixas - d e d efesa e resgate do autor, ou seja, d o h o ­
m e m , do su je ito . E p reciso in dag ar so b re "q u e m " investe dessa fo rm a ,
co m base em q u ais pressupostos e em vista d e q u ais va lo re s; é p reciso
indag ar sobre "q u em ou o q u e 're sp o n d e ' à q uestão 'q u e m '?" 43 (/b/cí.,
p. 2 7 3 ). E não ap en as isso. D e rrid a la n ça tam b é m u m a susp eita sobre
a p reten sa c e rte za a respeito d o q u e se d iz, q u a n d o , em m uitos d isc u r­
sos, se a firm a a n e ce ssid ad e d e se d e fe n d e r, resgatar, re to rn a r ao autor,
ao h o m em ou ao su je ito :

Não aceitaria entrar em uma discussão no curso da qual ter-se-ia a


pretensão de saber o que é o sujeito, este "personagem" que se to­
maria como o mesmo para Marx, Nietzsche, Freud, Heidegger, Lacan,
Foucault, Althusser e alguns outros, e que todos estariam de acordo
em "liquidar" (ibid ., p. 273).

D esse m o d o , p a re ce q u e e n co n tra m o s a q u i, n u m a re fle x ã o sobre


a escrita q u e se faz no c ru za m e n to e n tre filo so fia e lite ra tu ra , um a
im p lica ç ã o é tica q u e se d e sd o b ra e a c o m p a n h a , co m o u m a so m b ra,
as p o ssib ilid ad es d o d e v ir d o au to r - suas a p ro p ria çõ e s in terp retativas,
p o lítico -in stitu cio n a is, ju ríd ic o -c o n tra tu a is, e d ito ria is e tc. - p ara além
dos m e can ism o s d e co n tro le e d o m in a çã o dos texto s q u e são intrínse-

43 Sobre a importância de se questionar o "quem" questiona, na perspectiva do


pensamento de Derrida, remeto o leitor ao meu artigo "Alteridade, violência
e justiça: trilhas da desconstrução" (D U Q U E-ESTR A D A , 2004).
cos à figura clássica do a u to r co m o in d iv íd u o re al, e x te rio r e a n te rio r à
escrita , e , nesse sen tid o , in stân cia d e co n tro le do q u e n ela, na e scrita ,
e n co n tra-se em cu rso .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

T alvez fiq u e c la ro q u e , a fin a l, o te m a d a "m o rte do a u to r" não traga


n e n h u m a n o v id a d e o u , por o u tra, a sua n o v id a d e está em m an ifestar
o q u e se m p re o c o rre : o m o vim e n to d e a rq u iv a m e n to q u e , em todos
os n íve is, se põe em m a rc h a ; a rq u iv a m e n to do q u e n u n ca esteve lá e
q u e , não obstante isso, o u , antes e por isso m e sm o , e xig e se m p re ser
a rq u iv a d o . A fu n ção -au to r, n u m a p a lavra , a rq u iva -se e re arq u iva -se ,
nisso co n sistin d o o seu d e sce n tra m e n to in trín se co , o seu d e slo c a m e n ­
to co n stitu tivo , e n fim , o seu p o rvir na e pela e scrita.
F in a lm e n te , e vo co m ais u m a v e z Fo u ca u lt para re sp o n d e r à in dig ­
n ação dos c h a m ad o s H u m a n ista s a respeito d o te m a da "m o rte " do
S u je ito , do H o m e m , do A u to r:

Não se trata de afirmar que o homem está morto (ou que vai desapare­
cer, ou que será substituído pelo super-homem), trata-se, a partir deste
tema, que não é meu e que não cessou de ser repetido desde o final
do século XIX [i.e. desde M arx, Nietzsche e Freud, os grandes "mestres
da suspeita"], de ver de que maneira e segundo que regras se formou
e funcionou o conceito de homem. Fiz a mesma coisa para a noção
de autor. Contenhamos, pois, as lágrimas (FO UCAULT, 1992, p. 81, é
meu o acréscimo entre colchetes).
R E F E R E N C IA S
BARTH ES, Roland. A morte do autor. In: BARTH ES, Roland. O rumor da lin­
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N U M ER O S A N T E R IO R E S
EDIÇÃO 9

INTELECTUAIS E ESTRUTURA SOCIAL: UMA PROPOSTA TEÓRICA


Daniel de Pinho Barreiros

CULTURAS URBANAS E EDUCAÇÃO - Experimentações da cultura


na educação
Ecio Salles

RELAÇÕES INTERNACIONAIS - Uma introdução ao seu estudo


Franklin Trein

A EVOLUÇÃO FAZ SENTIDO. INCLUSIVE NA ATIVIDADE FÍSICA?


Hugo Rodolfo Lovisolo

'DESIGNERS', SUJEITOS PROJETIVOS OU PROGRAMADOS?


Marco Antonio Esquef Maciel

EDIÇÃO 10

CIÊNCIA, SAÚDE E CINEMA: TERRITÓRIOS COMUNS


Alexandre Palma

CONFIGURAÇÃO DO MOVIMENTO SERINGUEIRO


NA AMAZÔNIA BRASILEIRA NAS DÉCADAS DE 1970-1980 -
Elementos para pensar políticas públicas sustentáveis
Cláudia Conceição Cunha

IMAGENS OBSESSIVAS EM AUGUSTO DOS ANJOS


Ivan Cavalcanti Proença

A LONGEVIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS


PARA 0 MUNDO DO TRABALHO
Lucia França
ESCOLAS DE SAMBA: CONFORMAÇÃO E RESISTÊNCIA
Máslova Teixeira Valença

EDIÇÃO 11

O SIGNIFICADO AMBIENTAL DO QUADRO JURÍDICO-INSTITUCIONAL


DIANTE DA PRESENÇA DE ESPÉCIES EXÓTICAS NO BRASIL
Anderson Eduardo Silva de Oliveira

MUSEUS: LIMITES E POSSIBILIDADES NA PROMOÇÃO


DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA
Andréa F. Costa
Maria das Mercês Navarro Vasconcellos

PROTEÇÃO SOCIAL DOS IDOSOS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA


Graziela Ansiliero
Rogério Nagamine Costanzi

GLOBALIZAÇÃO E CONVERGÊNCIA EDUCACIONAL


Análise comparativa das ações recentes para a reforma
dos sistemas educacionais no Brasil e nos Estados Unidos
Rafael Parente

INICIATIVAS DE PROMOÇÃO DA SAÚDE


Em busca de abordagens avaliativas e de efetividade
Regina Bodstein

EDIÇÃO 12

HOMICÍDIO JUVENIL E SEUS DETERMINANTES SOCIOECONÔMICOS


Uma interpretação econométrica para o Brasil
Lisa Biron

A EDUCAÇÃO AMBIENTAL CRÍTICA E O CONCEITO DE SOCIEDADE


CIVIL EM GRAMSCI
Estratégias para o enfrentamento da crise socioambiental
Maria Jaqueline Girão Soares de Lima
UMA ANALISE DA EVOLUÇÃO RECENTE DA TAXA DE DESEMPREGO
SEGUNDO DIFERENTES CLASSIFICAÇÕES
Marina Ferreira Fortes Águas

DESENVOLVIMENTO INFANTIL
Uma análise de eficiência
Vivian Vicente de Almeida

EDIÇÃO 13

BIBLIOTECA E CIDADANIA
Ana Ligia Silva Medeiros

ESCOLA E SAMBA: SILÊNCIO DA BATUCADA?


Augusto César Gonçalves e Lima

0 BRASIL, A POBREZA E 0 SÉCULO XXI


Celia Lessa Kerstenetzky

0 MERCADO DE TRABALHO METROPOLITANO BRASILEIRO EM 2009


Lauro Ramos

LINGUAGEM, PENSAMENTO E MUNDO


Ludovic Soutif

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Fax: (21) 21365470
Esta revista foi composta nas tipologias Zapf Humanist 601 BT, em
corpo 10/9/8,5, e ITC Officina Sans, em corpo 26/16/9/8, e impressa
em papel off-set 90g/m2, na 52 Gráfica e Editora Ltda.
, 5 0 0 I B 6 „ 6 081-ZZ,

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