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O Bestiário Medieval: animais fantásticos das culturas pré-cristãs e a

sua ressignificação no Ocidente Latino

Bruno Ercole1

Introdução

O presente trabalho explora a temática dos Bestiários Medievais. Partindo de


uma rápida contextualização acerca do momento e local de produção destas obras,
apresentamos, na sequência, informações acerca dos próprios códices, baseando-
nos na definição fornecida por Varandas (2006).
Em seguida, tratamos de algumas discussões que se constroem acerca dos
bestiários, buscando entender como essas obras deram continuidade e ao mesmo
tempo ressignificaram a narrativa acerca destes animais fantásticos, que são
provenientes das culturas pré-cristãs. Para isso, nos apoiamos nas teorias
desenvolvidas por Le Goff (1983) e Eco (1989).
Por fim, tratamos das obras que tiveram influência para a composição destes
manuscritos, centrando nossa análise em duas obras específicas: o Physiologus,
escrito entre os séculos II e IV em Alexandria e as Etimologias produzidas por
Isidoro de Sevilha na Península Ibérica do Século VII. É a partir de trechos destes
textos que procuramos entender os Bestiários Medievais, em específico o
Manuscrito MS 24, bestiário inglês preservado na Universidade de Aberdeen,
apresentando também trechos desta obra.

O contexto de produção dos Bestiários Medievais

1
Graduando em História pela Universidade Federal do Paraná, membro do Núcleo de Estudos Mediterrânicos -
NEMED. Contato: bruno.ercole.camargo@gmail.com. Este trabalho referente à pesquisa de iniciação científica
desenvolvida durante a graduação. Orientação: Profª Dra. Fátima Regina Fernandes, Profº Dr. Renan Frighetto.
Antes de podermos tratar da representação dos animais fantásticos que
povoam os bestiários, é necessário que abordemos, ainda que de forma bastante
breve, um pouco sobre o contexto de produção destes códices, que se
popularizaram entre os séculos XII e XIII no Ocidente Latino. Tradicionalmente, a
Idade Média foi considerada um período estático, de poucas transformações. Essa
consideração do senso comum deve ser problematizada, uma vez que observamos
grandes mudanças ao longo dos séculos da medievalidade.
Nos detemos aqui em alguns exemplos destas transformações que
verificamos nos séculos que se encaminham para o final do período, como é o
exemplo das Cruzadas, que possibilitaram um maior contato com os povos
Orientais, da Reforma Gregoriana que foi a responsável pela estruturação da Igreja
Católica em moldes mais institucionais, do incentivo para as artes proveniente do
Renascimento do século XII e do surgimento das Universidades, com seu impacto
no nível do pensamento medieval. Estes são alguns exemplos do dinamismo deste
Ocidente que não pode, o nosso ver, ser considerado como estagnado.

O Bestiário Medieval

Neste ambiente de transformações, observamos o desenvolvimento de um


tipo de códice medieval denominado bestiário. No entanto, precisamos questionar
também a acepção da palavra. Via de regra, bestiários foram tratados como a
coleção de animais em diversos meios, como na poesia grega, nas igrejas
românicas e nos mapas da idade moderna. Para esta apresentação, contudo,
abordamos os Bestiários Medievais que se organizam como códices, podendo ser
citados como compêndios de bestas. Conforme definido por Varandas (2006):

O Bestiário organiza-se em torno de pequenas narrativas que descrevem


várias espécies animais, com propósitos morais e didáticos. Neste sentido,
cada uma dessas narrativas é composta por duas partes distintas: uma
parte descritiva de sentido literal (a descrição, proprietas ou naturas) e a
sua moralização e interpretação teológica de sentido simbólico-alegórico
(também designada como moralização, moralitas ou figuras) (VARANDAS,
2006: 1).

É importante salientarmos que não há um texto único para os bestiários, que


são classificados, para Varandas (2006), de acordo com as suas influências e
conteúdo das obras. Conforme variam os manuscritos, alguns deles descrevem,
além de animais, também árvores, pedras, metais.
Os animais descritos nos bestiários são tanto provenientes do cotidiano
medieval, como cães, cavalos, quanto animais que seriam um pouco menos
conhecidos no dia-a-dia, a exemplo do leão e da pantera. Além deles, há outra
categoria de seres de especial interesse para este estudo, que são os animais
fantásticos. Desta forma, entre os fólios destes manuscritos, observamos textos que
falam sobre dragões, basiliscos e fênix. Isso pode chamar a atenção do
pesquisador, uma vez que, tratando de um contexto cristão, como é o caso dos
séculos XII e XIII do Ocidente Latino, podemos ser levados a acreditar que a cultura
do Cristianismo tornou-se hegemônica e substituiu completamente os traços do
paganismo. Devemos nos perguntar, então, sobre como estes serem são
representados em obras que estão sendo produzidas no interior dos mosteiros da
própria Cristandade. É Jacques Le Goff (1986) que nos apresenta uma solução para
essa pergunta, quando afirma que

Nos séculos XII e XIII (...) parece-me encontrar uma irrupção do


maravilhoso na cultura dos doutos (...) O que ao meu ver pode explicar a
irrupção do maravilhoso não é apenas a força da sua pressão, mas sim o
facto de que a Igreja já não tem razão, como de facto tinha na alta idade
média, para levantar barreiras contra o maravilhoso. Ele é agora menos
perigoso, a ponto de a Igreja poder já domesticá-lo, recuperá-lo (1986, p.
22).
É com essa afirmação do historiador francês que nos propomos a analisar os
animais fantásticos dos Bestiários Medievais como continuidade e ao mesmo tempo
ressignificação destes elementos pagãos. Antes de entrarmos em uma análise direta
destes seres, precisamos, contudo, entender um pouco de como os próprios
bestiários recuperaram essa tradição pré-cristã, que foi preservada em obras muito
anteriores aos códices medievais.

Da tradição pagã ao mundo cristão: as influências dos bestiários

O texto de maior influência para o desenvolvimento dos Bestiários Medievais


é o Physiologus. De acordo com Curley (2009), a obra foi produzida provavelmente
na cidade de Alexandria, em algum momento entre os séculos II e IV da era cristã, e
continha relatos sobre animais, plantas e pedras que seriam conhecidos no Norte da
África. Contando com descrições físicas ligadas à uma lição cristã 2, o texto era fruto
de antigas tradições gregas, romanas, egípcias, hebreias e indianas, moldadas para
que representassem uma alegoria cristã. Para Curley (2009), essas lendas pagãs
eram adaptáveis a diversos contextos, o que foi responsável pela sua popularidade
no mundo medieval, representando tradições tão antigas quanto os relatos de
Heródoto.
O autor do texto se denomina Physiologus, que, de acordo com Curley
(2009), pode ser traduzido para algo como o naturalista, ainda que a obra não deva
ser considerada um tratado de ciência natural, para os quais os mundos antigo e
medieval tiveram seus textos. De acordo com o autor, o Physiologus era alguém que
interpretava, “metaphysically, morally, and, finally, mystically the transcendent
signifcance of the natural world” (2009: XV).
O Physiologus teve sua primeira tradução para o etíope no século IV,
recebendo, em seguida, versões em sírio e armênio. Uma versão latina pode ter
existido no século IV, hipoteticamente utilizada por Ambrósio de Milão no seu

2
Se discute entre os pesquisadores se o Physiologus teria recebido a adição das alegorias cristãs
posteriormente à sua criação, porém, para este estudo, utilizaremos a descrição conforme proposta acima pelo
autor.
Hexaemeron. No entanto, os manuscritos mais antigos preservados do texto latino
datam de a partir do século VIII.
Conforme o passar dos séculos, surgiram diferentes versões do Physiologus,
que contavam com mais ou menos seres representados. Para os Bestiários
Medievais, a influência foi da versão B do texto. Como exemplo dessa tradição pagã
representada pelo Physiologus, podemos apresentar a figura da fênix. De acordo
com o texto,

Hay otra ave que se llama fénix. Es figura de nuestro Señor Jesucristo, que
dice en su Evangelio: "Tengo poder para dar mi vida y para recobrarla de
nuevo" [Jn 10, 18]. Por estas palabras se irritaron los judíos y querían
lapidarlo. Hay pues en la India im ave llamada fénix. De ésta dice el
Fisiólogo que cuando ha cumplido quinientos años de vida penetra entre
los árboles del Líbano y llena ambas alas de aromas diversos. Y con
algunas señales se hace saber esto a un sficerdote de la ciudad de
Heliópolis en el mes noveno, es decir, nisan o adar, o sea sarmath o
famenoth, que es el mes de marzo o abril. Y cuando se le ha hecho saber
esto al sacerdote, entra y llena el altar de leña de sarmientos. Y cuando
llega el ave, cargada con todos los eiromas en simbas alas entra en la
ciudad de Heliópolis y enseguida, viendo formado el montón de sarmientos
sobre el altar, se eleva y envolviéndose en los aromas ella misma enciende
fuego y se abrasa. Al día siguiente llega el sacerdote, ve quemada la leña
que había amontonado, observa con atención y encuentra allí un pequeño
gusano que exhala im aroma suavísimo. Al llegar al segimdo día encuentra
ya la forma de una avecilla. Al volver de nuevo al tercer día el sacerdote
encuentra ya íntegra un ave fénix completamente formada. Y
despidiéndose del sacerdote levanta el vuelo y se dirige a su primitivo lugar
(PHYSIOLOGUS).

O que podemos perceber com esse trecho da obra? O mito da fênix que
renasce das próprias cinzas é bastante conhecido no mundo contemporâneo, e
percebemos esta narrativa já presente na obra que foi composta há quase mil anos,
representando um animal que fazia parte desse imaginário pré-cristão. Contudo, a
narrativa está atravessada por uma moralização cristã, na qual a ave aparece
associada a Cristo, tendo também levado três dias para voltar completamente a
vida, da mesma maneira que ocorreu com o messias cristão. É bastante relevante
notarmos que a narrativa sobre a fênix estará presente nos mesmos moldes nos
bestiários medievais.
Outra obra que traz esse imaginário do mundo pré-cristão é a coleção das
Etimologias, escritas por Isidoro de Sevilha na Península Ibérica do século VII. Bispo
de Sevilha, Isidoro produziu os vinte livros das Etimologias, de acordo com Eco
(1989) para preservar o conhecimento da Antiguidade. Para Frighetto (2016), as
Etimologias se configuravam como, “possuindo um caráter enciclopédico, reunindo
todos os conhecimentos, usos e costumes oriundos da tradição cultural romana que
ainda eram utilizados no tempo de Isidoro de Sevilha” (2016, p. 75).
Dentre os livros das Etimologias, figuram textos sobre os animais, homens e
seres prodigiosos, pedras, metais. Notamos que, nos bestiários, há vários trechos
copiados diretamente das dessa obra, incluindo citações do nome do autor – assim
como acontece com o Physiologus. É interessante percebermos, para os propósitos
deste trabalho que, ainda que não conheçamos informações concretas acerca do
autor do Physiologus, Isidoro de Sevilha figurava, de acordo com Frighetto, na alta
hierarquia da igreja. Ainda assim, no livro dos animais das suas Etimologias, não
encontramos a lição cristã da mesma maneira que está presente no texto do
Physiologus, demonstrando o caráter enciclopédico da proposta desta obra. Como
exemplo da narrativa sobre animais fantásticos na obra de Isidoro, podemos
comentar o texto no qual o autor fala sobre o basilisco:

El basilisco es nombre griego, que se interpreta em latín como regulus,


porque es el rey de las serpienes, hasta el punto de que todos escapan de
su presencia porque los mata com su aliento; e incluso alhombre le causa
la muerte si lepone la vista encima. Es más, ningún ave resulta ilesa si
passa volando delante de él, sino que, por muy lejos que esté, cae
abrasada por su boca y és devorada. Sin embargo, resulta vencido por la
comadreja, que los hombres introducen en las cuevas donde de oculta:
huye em su presencia, pero la comadreja lo persigue y lo mata. Nada creó
el Padre de las cojas que no tuviera remedio. Su longitud es de medio pie y
tiene franjas de manchas blancas (ISIDORO DE SEVILHA, 1983: 81-82).

Estes dois textos citados acima são os que mais tiveram influência na
construção dos bestiários dos séculos XII e XIII. Para compreendermos um pouco
melhor essas obras, podemos olhar também para um trecho do Bestiário de
Aberdeen, manuscrito inglês preservado na Escócia que é considerado um dos
melhores exemplos deste tipo de códice medieval. Sobre o dragão, conforme consta
no bestiário:

The dragon is bigger then all other snakes or all other living things on earth.
For this reason, the Greeks call it dracon, from this is derived its Latin name
draco. The dragon, it is said, is often drawn forth from caves into the open
air, causing the air to become turbulent. The dragon has a crest, a small
mouth, and narrow blow-holes through which it breathes and puts forth his
its tongue. Its strenght lies not in its teeth but in its tail, and it kills wth a
blow rather than a bite. It is free from poison. They say that it does not need
poison to kill things, because it kills anything around which is wraps its tail.
From the dragon, not even the elephant with is huge size, is safe. For
lurking on paths along which elephants are accustomed to pass, the dragon
knots its tail around their legs and kills them by suffocation. Dragons are
born in Ethiopia and India, where it is hot all year round. The Devil is like ter
dragon; he is the most monstruous serpent off all; he is often aroused from
his cave and causes the air to shine because, emerging from the depths,
he tranforms himself into the angel of light and deceives the foolish with
hopes of vainglory and wordly pleasure. The dragon its said to be crested,
as the Devil wears the crown of the king of pride. The dragon’s strenght lies
not in its teeth but its tail, as the Devil, deprived from his strenght, deceives
with lies those whom he draws to him. The dragon lurks around paths along
which elephants pass, as the Devil entangles with the knots of sin the way
of those bound of heaven and, like the dragon, kills them by suffocation;
because anyone who dies fettered in the chains os his offences is
condemned without doubt to hell (BESTIÁRIO DE ABERDEEN, 1994, folio
65 v,66r).

Neste trecho da obra, observamos a clara influência do texto de Isidoro, que


aparece aqui quase inalterado, ainda que a obra do bispo cristão não conte com a
relação que se faz entre o dragão e o diabo. Ele é mais um exemplo da maneira pela
qual o Ocidente Latino se apropriou e ressignifou esses seres pagãos para englobá-
los em sua própria visão de mundo. Isso fica claro quando Eco (1989) trata da ideia
de beleza medieval, afirmando que essa se encontra ligada aos ideais de proporção.
Podemos perceber, utilizando as ideias do autor, que esses seres representados no
bestiário fazem parte de uma concepção de mundo cristã e universal. Eles atendem
a um propósito que, embora não seja dado ao homem conhecer, faz parte do plano
divino. É o lugar do feio no conjunto.

Considerações finais

O que podemos concluir com esse texto? Não procuramos aqui buscar a
origem dessas crenças em animais fantásticos, uma vez que de acordo com Le Goff
(1995), “É raro poder seguir-se o desenvolvimento histórico de uma crença mesmo
se (...) ela inclui elementos emanados dessa noite dos tempos onde a maioria das
crenças parece ter a sua fonte” (1995, p. 15). O que buscamos neste breve texto foi
demonstrar a maneira pela qual essas criaturas, cuja crença teve lugar em culturas
da Antiguidade, estiveram também presentes no imaginário medieval, ainda que,
conforme aqui proposto, ressignificadas e adaptadas a uma visão cristã de mundo.
Eco (1989) nos fala que a Idade Média deu continuidade a tradição clássica,
porém que também a inovou. Isso nos parece possível de ser verificado com o texto
dos bestiários, onde os seres adquiriram propósitos de representar ideais cristãos –
sejam eles positivos como a fênix ou negativos como no caso do dragão.
É interessante notarmos também como, ao olharmos para essas obras, a
ideia de uma medievalidade dominada pelo Cristianismo e varrendo os traços do
paganismo cai por terra. A própria Igreja se utilizou destes animais, que figuram até
mesmo na Bíblia, e no final do período medieval a ressignificação destes seres
possibilitou que fizessem parte de uma produção cultural que estava sendo
construída no próprio espaço da religião, como é o caso dos mosteiros.
Por fim, devemos salientar que os bestiários em si ainda geram muitas
dúvidas com relação à sua função - nem sempre considerada didática pelos
pesquisadores -, autoria, local exato de produção e comitente. Contudo, se
configuram como uma excelente documentação para quem se interessa pelo
imaginário medieval.

Referências bibliográficas

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em: <http://www.abdn.ac.uk/bestiary/bestiary.hti>;

ARRANZ, José Julio Garcia. El bestiario astronómico: Los motivos animalísticos em los
mapas celestiales de la edad moderna. Millars, 1996, v. 19. Disponível em <
http://www.raco.cat/index.php/Millars/issue/view/10561>. Acesso em 30 de maio de 2016;

CORRÊA, Paula da Cunha. Um Bestiário Arcaico: Fábulas e imagens de animais na poesia


de Arquíloco. Campinas: Editora Unicamp. 2010;

ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. Tradução Mario Sabino Filho. 2 ed. Rio
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FRIGHETTO, Renan. A Comunidade Vence o Indivíduo: A Regra Monástica de Isidoro de


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MARCOS, Jesus Herrero. Bestiario Románico em España. Cálamo, 2010;


CURLEY, Michael J. Physiologus, A Medieval Book of Nature Lore., Austin & London,
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VARANDAS, Angélica. A Idade Média e o Bestiário. Trabalho apresentado no III Seminário


Aberto 2006, organizado pelo Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de
Lisboa, Lisboa, 2006.

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