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Como o mundo mudou em 2019

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Por Isabella Mayer de Moura


[31/12/2019] [16:51]

Em 2019 o mundo acompanhou uma tentativa fracassada de levante contra o ditador


Nicolás Maduro na Venezuela, protestos em vários cantos do globo, instituições sob
ataque, desastres naturais, uma das igrejas mais famosas do mundo em chamas, a
derrota do Estado Islâmico na Síria e tantas outras histórias surpreendentes. Contudo
alguns acontecimentos tiveram efeitos mais importantes para a geopolítica e continuarão
repercutindo nos próximos anos. Eles merecem ser analisados mais de perto para
entender como o mundo mudou em 2019.

Mais do que comércio: o antagonismo entre EUA e China


Estados Unidos e China encerraram 2019 com um acordo parcial na guerra comercial,
evitando uma nova escalada de tarifas de importação entre as duas maiores economias
do mundo. Mas no decorrer deste ano tornou-se ainda mais evidente que as diferenças
entre eles vão muito além da balança comercial. Trata-se de geopolítica pura. E no âmago
da questão está a internet de quinta geração e uma disputa pelo domínio das
telecomunicações em alta velocidade.

Com a empresa Huawei, a China passou a liderar o desenvolvimento da tecnologia 5G,


com sua própria infraestrutura, cadeias de suprimentos e seus próprios padrões, fazendo
surgir uma competição entre os ecossistemas tecnológicos do Ocidente, construído pelo
setor privado e pouco regulamentado, e da China, dominado pelo estado.
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Com subsídios estatais, a Huawei consegue oferecer tecnologia de ponta com preços bem
mais competitivos do que as suas concorrentes, como a sueca Ericsson. E quanto mais
clientes ela vai conquistando, maior é a influência dos chineses no jogo geopolítico.

Nenhum outro país dedicou mais investimentos para preparar o terreno para a 5G do que
a China - um esforço tecnológico classificado pelo cientista político Ian Bremmer como a
mais importante decisão geopolítica tomada nas últimas três décadas e a maior ameaça à
globalização.

Mas por que a 5G chinesa assusta tanto? Os Estados Unidos argumentam que, se os
equipamentos da Huawei fizerem parte das redes globais 5G, o governo chinês poderá ter
acesso aos dados que passarão pelo hardware da empresa, deixando companhias e
cidadãos suscetíveis à espionagem - motivo pelo qual o governo americano proibiu, em
maio, as empresas americanas de comercializarem com a chinesa.

O fundador da Huawei, Ren Zhengfei, insiste que sua companhia nunca permitiu a
espionagem do governo chinês e não planeja permitir. Mas as autoridades dos EUA estão
céticas quanto à resistência da empresa a uma diretiva do governo, já que existe uma lei
na China que obriga as empresas a compartilharem informações com o governo em casos
de segurança nacional.

Além disso, há um vínculo claro entre a empresa e o centro do poder em Pequim. Uma
reportagem do The Telegraph, publicada em julho, mostrou que funcionários da Huawei
já trabalharam para o governo comunista chinês em áreas estratégicas, como o Ministério
da Segurança de Estado, e em projetos do exército.

Em momento em que os países estão decidindo quais empresas fornecerão a


infraestrutura para a criação de redes 5G em seus territórios, China e EUA começaram
uma cruzada para conseguir aliados. No Brasil, o leilão de faixas de frequência deve
ocorrer no final de 2020 e o governo de Jair Bolsonaro já está sendo pressionado por
ambos os lados.

A desconfiança entre China e EUA também chegou ao setor de defesa.

Sob o governo de Donald Trump, os EUA começaram a dar prioridade à preparação para
um eventual confronto entre grandes potências, como China e Rússia. Isso porque
enquanto os americanos estiveram envolvidos em vários conflitos regionais,
especialmente no Oriente Médio, a China implantou mísseis de precisão e outros sistemas
de contra-intervenção para minar a primazia militar dos EUA - pelo menos na Ásia.
Segundo um estudo da Universidade de Sidney, na Austrália, a balança de forças militares
na região já começa a pender para o lado da China.

Essa postura americana, embora tenha sido desenhada no início da administração Trump,
ainda está sendo implementada. Um dos grandes avanços em 2019 foi a aprovação, pelo
Congresso, da Força Espacial americana, que tem como principal objetivo proteger os
Estados Unidos de um eventual ataque da China ou da Rússia contra seus satélites.

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Pequim, por sua vez, diz que não tem interesse em uma hegemonia regional, mas não
deixou de citar os Estados Unidos em seu mais recente plano militar, apresentado em
julho. No documento, a China afirma que a competição militar global está aumentando e a
culpa é dos Estados Unidos, que está se engajando em "inovação tecnológica e
institucional em busca da superioridade militar absoluta" e ajustando sua postura de
segurança nacional ao considerar a China uma rival.

Sugestões de leitura:

Sonho de liberdade em uma China cada vez mais


autoritária
Manifestante provoca incêndio para impedir que a polícia entre no câmpus da
Universidade Politécnica de Hong Kong | Foto: Philip Fong/AFP
Manifestante levanta cartaz em protesto contra o projeto que autorizaria
extradições para a China | Foto: Philip Fong/AFP
Manifestantes pró-democracia agitam bandeiras dos EUA em Hong Kong | Foto:
Vivek Prakash / AFP
Um manifestante joga tijolos na polícia depois do disparo de gás lacrimogêneo
contra manifestantes, em 5 de agosto de 2019, em Hong Kong | Foto: ISAAC
LAWRENCE/AFP
Manifestante é espancado pela polícia de choque enquanto tenta encontrar uma
passagem segura para fora do campus da Universidade Politécnica de Hong Kong |
Foto: Aung Thu/AFP
Pessoas se reúnem no Victoria Park para uma manifestação pró-democracia em
Hong Kong | Foto: Anthony WALLACE / AFP
Uma mulher segura um desenho representando o presidente da China, Xi Jinping,
beijando a chefe-executiva de Hong Kong, Carrie Lam durante protesto pró-
democracia em Hong Kong | Foto: NICOLAS ASFOURI/AFP
Manifestante detido pela polícia perto da Universidade Politécnica de Hong Kong |
Foto: Anthony WALLACE / AFP
Manifestante pró-democracia mascarado posando para um retrato em Hong Kong |
Foto: NICOLAS ASFOURI/AFP

A expansão global da China, porém, não diminui seus problemas em casa. O partido
comunista está enfrentando um de seus maiores desafios da década com os protestos
pró-democracia que eclodiram em Hong Kong, a pujante cidade semiautônoma que é a
principal porta de entrada de capital estrangeiro na China.

Tudo começou em junho, quando o governo local (pró-Pequim) propôs emendas à lei de
extradição de Hong Kong que permitiriam que fugitivos fossem enviados à China
continental, potencialmente expondo dissidentes e críticos do governo comunista à
perseguição política. O movimento rapidamente ganhou corpo e se tornou maior do que
o "Occupy Central" de 2014, que pedia reformas políticas e eleições democráticas na
cidade.

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Os manifestantes conquistaram duas vitórias importantes nesses seis meses de
protestos: o projeto de emenda foi arquivado e políticos pró-democracia venceram as
eleições locais de novembro. Mas agora a situação chegou a um impasse. Enquanto os
manifestantes não dão sinal de trégua, Pequim e Carrie Lam, líder de Hong Kong, afirmam
que não estão dispostos a fazer mais concessões.

Algumas perspectivas não são nada animadoras. “É provável que o regime leninista agora
reduza radicalmente as liberdades que protegia [sob a política "um país, dois sistemas"] e
imponha controles rígidos para garantir que esse tipo de crise nunca mais aconteça. Ainda
não se sabe se Hong Kong pode sobreviver como um centro financeiro internacional sob
esse regime”, analisou Richard Bush, especialista em assuntos da China no Instituto
Brookings, baseado nos EUA.

Enquanto a incerteza paira sobre Hong Kong, a China continua a busca por uma “completa
reunificação” de seu território. O alvo da vez é Taiwan, a ilha governada
democraticamente que se separou da China em meio à guerra civil de 1949. Ao publicar o
Livro Branco do Ministério da Defesa pela primeira vez em quatro anos, a China afirmou
que está disposta a mobilizar forças militares para "conter a independência de Taiwan" e
combater o que considera forças separatistas no Tibete e na região de Xinjiang, no
extremo oeste de seu território. Ao longo de 2019, a China conduziu exercícios militares
perto da ilha e constantemente critica os EUA por venderem armas militares para a nação
insular.

A agressividade do Partido Comunista Chinês, porém, não é direcionada exclusivamente


aos territórios insulares e aos Estados Unidos. Uma das notícias mais dramáticas de 2019
veio da revelação de como o governo chinês persegue, sequestra, prende e doutrina
minorias religiosas do país. Documentos vazados de dentro da administração chinesa
revelaram a repressão contra os uigures, muçulmanos que vivem principalmente na
província de Xinjiang, e confirmaram violações de direitos humanos em uma escala
enorme. Um exemplo: um homem foi condenado a 10 anos de prisão por “reunir uma
multidão para perturbar a ordem social” e promover “pensamentos religiosos
extremistas” ao pedir aos outros que orassem, se abstivessem de assistir à pornografia e
evitassem usar "palavrões", segundo a sentença.

E a perseguição religiosa não para aí. Neste ano, o governo chinês multou igrejas
protestantes pela posse de Bíblias e panfletos religiosos. Todo o material foi queimado
pelo governo. Em outro caso, bibliotecários de uma cidade no condado de Zhenyuan
queimaram livros e materiais religiosos para demonstrar sua lealdade ao Partido
Comunista.

Sugestões de leitura:

Táticas assimétricas do Irã aumentam a tensão no


Oriente Médio

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Por volta da metade do ano, o mundo viu com apreensão os acontecimentos que se
desenrolaram no Oriente Médio, temendo pelo pior. Irã e Estados Unidos estiveram à
beira de um conflito com potencial de ser o pior em décadas na região. O ímpeto de
guerra, felizmente, foi contido, mas os problemas estão longe de ser resolvidos.

Uma breve recapitulação do que aconteceu: um ano depois que os Estados Unidos
haviam se retirado do acordo nuclear iraniano de 2015, o país persa, amargando uma
crise econômica resultante das sanções americanas à sua economia, inclusive ao petróleo,
resolveu adotar uma postura mais agressiva em relação ao Ocidente. Suspendeu
parcialmente o acordo nuclear, aumentando os níveis de enriquecimento de urânio e do
estoque do material; engajou-se em uma retórica - ainda mais - combativa em relação aos
Estados Unidos; e pressionou os demais países signatários do pacto nuclear a encontrar
maneiras de burlar as sanções dos EUA para continuar comprando petróleo iraniano. É
suspeito de promover uma série de ataques contra navios petroleiros no Golfo Pérsico -
tendo inclusive sequestrado um navio britânico; e tudo indica que esteve por trás dos
ataques às instalações petroleiras da Arábia Saudita, reivindicado pelos rebeldes do
Iêmen, os houthis, apoiados pelo Irã. (Sim, tudo isso aconteceu esse ano, de maio a
setembro.)

O momento mais tenso do conflito ocorreu quando o Irã derrubou um drone militar dos
Estados Unidos que sobrevoava perto de seu espaço aéreo - as autoridades iranianas
alegaram que a aeronave não tripulada havia invadido o país. Horas depois do incidente,
o presidente americano, Donald Trump, disse que estava prestes a ordenar um contra-
ataque contra vários alvos iranianos, mas mudou de ideia por considerar a ação
desproporcional.

Contudo, os ataques às instalações petroleiras da Arábia Saudita tiveram um impacto


global ainda maior pela importância econômica da região, fazendo os mercados oscilarem
em todo o mundo, e pela exposição da vulnerabilidade do país que é o maior comprador
global de armas militares.

Analistas disseram que o ataque, pela sua natureza sofisticada, evidenciou que as armas
fabricadas pelo Irã, especialmente drones e mísseis, são uma ameaça em rápida evolução,
com potencial de atingir infraestruturas críticas com precisão. Por outro lado, os sistemas
de defesa saudita não conseguiram detectar os mísseis de cruzeiro e os drones que
sobrevoaram suas fronteiras, ressaltando a vulnerabilidade do reino à guerra assimétrica
e questionando a eficácia das armas americanas.

De acordo com o vice-presidente do Middle East Institute, Gerald M. Feierstein, com essa
série de movimentos provocativos projetados para revidar a campanha de "pressão
máxima" do governo Trump, os iranianos conseguiram forçar seus principais adversários,
Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, a contemplar os custos potenciais de uma
guerra e optar por recorrer ao engajamento diplomático. No fim das contas, as tensões
acabaram diminuindo e dando espaço para conversas que podem levar à uma saída
negociada para a guerra no Iêmen. Os Estados Unidos, por sua vez, em uma reversão da
sua política de não-intervenção, aumentaram a presença militar no Oriente Médio ao

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enviar três mil soldados para a Arábia Saudita e um porta-aviões para o Golfo Pérsico, sob
a justificativa de proteger os navios comerciais do país e de seus aliados que navegam
naquelas águas.

Mas com Irã e Estados Unidos longe de chegar a um renovado acordo nuclear, a
instabilidade na região permanece crítica. Soma-se a isso o fato de o regime iraniano estar
massacrando sua própria população ao reprimir protestos desencadeados pelo aumento
abrupto do preço da gasolina. Mais de 300 pessoas morreram em uma resposta dura que,
segundo analistas, mostra claramente que o regime islâmico está em pânico ao ver sua
popularidade diminuir. Porém, todas as facções do regime, inclusive os “moderados”,
apoiaram a repressão - o que, de acordo com Alex Vatanka, especialista em assuntos de
segurança regional do Oriente Médio, pode ser considerado o último prego no caixão do
movimento reformista no Irã.

Sugestões de leitura:

Uma nova guerra fria entre EUA e Rússia?


Mais um evento relevante que marcou 2019 e continuará repercutindo no ano que está
chegando: o fim do tratado de armas nucleares de alcance intermediário entre Estados
Unidos e Rússia, conhecido pela sigla INF. O presidente Donald Trump já havia anunciado
em 2018 que retiraria o país do acordo histórico, o que foi oficializado em fevereiro deste
ano. Em 2 de agosto, o pacto deixou de vigorar - a Rússia, por sua vez, não se esforçou
para tentar salvá-lo.

Desde metade dos anos 2000, a Rússia vinha levantando a possibilidade de se retirar do
INF, alegando que o tratado a impedia, injustamente, de possuir armas que seus vizinhos,
como a China, estão desenvolvendo e implementando. A insatisfação fez com que a
Rússia desenvolvesse um sistema de mísseis chamado 9M729. Segundo os russos, seu
alcance é de 480 quilômetros e, portanto, não violaria o INF, que abrange mísseis com
alcance entre 500 e 5.000 quilômetros.

Os EUA e seus aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), porém,


afirmam que este sistema é a prova de que a Rússia está há tempos desobedecendo as
regras do INF. Há seis anos eles vinham pedindo que a Rússia destruísse o novo míssil,
mas o país do presidente Vladimir Putin continuou apegado à sua versão de que a arma
nova não violava o pacto. Sem avanço nas negociações, o INF chegou ao fim antes de
completar 32 anos.

Vinte dias depois de expirado o tratado, os Estados Unidos fizeram um teste de um míssil
de alcance intermediário, disparado de um lançador de solo móvel. Já em dezembro, um
teste semelhante, mas a partir de uma base fixa, demonstrando a intenção e o
comprometimento dos EUA em seguir um caminho pós-INF, em uma clara mensagem
para a Coreia do Norte, Rússia e especialmente para a China. Os EUA têm interesse de
assinar um tratado de controles de armas multilateral que inclua a China no pacote, que

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atualmente investe muito mais em defesa do que a Rússia e que nos últimos anos
expandiu agressivamente seus mísseis de alcance intermediário para consolidar sua
influência no Pacífico.

Na Rússia, há suspeitas de que um acidente nuclear que deixou vários mortos em uma
base militar, em agosto, seja evidência do desenvolvimento de um míssil de alcance
global, anunciado por Putin em 2018.

Agora, só existe um pacto nuclear entre EUA e Rússia ainda em vigor: o Novo Tratado de
Redução de Armas Estratégicas, conhecido como New START, assinado em 2011,
limitando o número de ogivas nucleares estratégicas implantadas pelos dois países. Esse
tratado, porém, vai expirar em 2021. Ele pode ser prorrogado por mais cinco anos, mas a
falta de entendimento entre os americanos e russos indica que seu colapso pode estar
chegando.

Em uma reunião com o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, em 10 de dezembro,
o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, manifestou interesse em
renovar o New Start, mas disse que os EUA não fizeram nenhuma proposta sobre o
assunto. Pompeo, por sua vez, expressou o desejo do governo americano de incluir a
China nas negociações de armas com a Rússia. Pequim já disse que não participará das
conversas, alegando que Moscou e Washington possuem arsenais nucleares
significativamente maiores.

Sugestões de leitura:

América do Sul contra o establishment


Protestos em Bogotá em dia de greve nacional na Colômbia, 21 de novembro
Manifestantes em confronto com a polícia de choque em Quito, 9 de outubro
Militares desertores se posicionam em frente à base militar La Carlota, em Caracas,
30 de abril
Polícia de choque em torno do Congresso em Lima, Peru, após o anúncio da
dissolução do Congresso pelo presidente Martín Vizcarra, 30 de setembro
Oposicionistas pedem impeachment do presidente do Paraguai, Mario Abdo Benitez
Manifestantes protestam contra o governo do presidente do Chile, Sebastián Piñera,
em Santiago, 8 de novembro
Alberto Fernández, já com a faixa presidencial, recebe o bastão presidencial de seu
antecessor, Mauricio Macri, durante posse na Argentina, 10 de dezembro
Confronto entre manifestantes contrários e favoráveis a ex-presidente Evo Morales
em Santa Cruz, Bolívia, 28 de outubro
Luis Lacalle Pou é eleito presidente do Uruguai

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Onda de manifestações no Chile. Protestos com mortes no Equador. Disputa entre
poderes no Peru. Agravamento da crise econômica na Argentina com a volta dos
peronistas ao poder. O ressurgimento das Farc na Colômbia. Um presidente que usa de
artifícios jurídicos para se manter no cargo indefinidamente na Bolívia e é forçado a
renunciar. Um acordo energético que já balançou as estruturas do governo paraguaio. E a
mais grave crise migratória do mundo acontecendo aqui do lado, na Venezuela.
Certamente, 2019 ficará marcado como um ano de grande instabilidade na América do
Sul.

As crises na Bolívia, no Equador e na Colômbia, embora diferentes, tiveram traços


comuns. A economia em grande parte da América do Sul desacelerou, as instituições
democráticas continuam fracas, o público é muito menos tolerante à corrupção e a
polarização está aumentando.

Na Bolívia, o líder esquerdista Evo Morales renunciou após quase 14 anos no poder e o
país agora é comandado por um governo interino da direita conservadora. A renúncia foi
anunciada após 20 dias de conflito que se seguiram à vitória de Evo para um quarto
mandato, na eleição de 20 de outubro, que foi amplamente contestada e acabaria sendo
anulada por irregularidades.

Antes, Evo havia sido pressionado pelas Forças Armadas a renunciar, e até mesmo a
Central do Trabalho da Bolívia, sua aliada histórica, "convidou o presidente à reflexão".

A insatisfação de parte da população começou quando Evo desrespeitou o resultado de


um referendo popular e fez manobras para poder se candidatar a um quarto mandato. A
indignação só aumentou após a declaração da vitória de Evo em meio a suspeitas de
manipulação do processo eleitoral. A oposição foi às ruas em protestos que se
transformaram em confrontos violentos entre os lados políticos polarizados do país; mais
de 30 pessoas morreram.

Evo está no momento na Argentina, como refugiado, e é alvo de uma ordem de prisão na
Bolívia. O ex-presidente denuncia a sua saída como um "golpe". O país aguarda a
convocação de novas eleições.

No Chile, o estopim da onda de protestos foi o aumento do preço da passagem de metrô


na capital. As manifestações foram ganhando fôlego e chegaram a reunir 1 milhão de
pessoas nas ruas de Santiago. O governo decretou toque de recolher e mandou as forças
armadas para controlar os distúrbios, que deixaram mais de 20 mortos e dezenas de
feridos. Os chilenos estão insatisfeitos com serviços públicos como o sistema de
aposentadoria e o ensino público, e exigem a formulação de uma nova Constituição.

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A atual carta magna é herança da ditadura militar do general Augusto Pinochet e
considerada por muitos o fundamento do sistema econômico que privatizou pensões e
grande parte dos serviços de saúde e educação.

O governo de Sebastián Piñera deu um grande passo para acalmar a agitação, aprovando
uma lei que permite a realização de um plebiscito sobre a nova constituição. Porém, os
manifestantes até o momento não deixaram as ruas.

O Equador também passou por seus momentos de agitação social, motivada por um
corte drástico nos subsídios aos combustíveis. A medida atendia uma exigência do FMI de
redução de gastos do governo em meio a difícil situação econômica.

Os protestos deixaram sete pessoas mortas e paralisaram o país. O governo de Lenín


Moreno, enfrentando baixa popularidade, chegou a um acordo com líderes indígenas e
movimentos sociais para colocar um fim aos protestos violentos. O principal ponto do
acordo foi a revogação do decreto que acabava com os subsídios aos combustíveis que
estavam em vigor havia mais de 40 anos.

No Peru, uma disputa entre os poderes Executivo e Legislativo levou a um período de


vácuo de poder no país. Frustrado em suas tentativas de fazer reformas políticas e seguir
com sua agenda anticorrupção em um país em que a classe política foi amplamente
afetada pela Operação Lava Jato, o presidente Martin Vizcarra dissolveu o Congresso e
pediu novas eleições. Os parlamentares retaliaram, colocando a vice Mercedes Aráoz
como chefe do Executivo. O mandato dela, no entanto, durou 36 horas - ela acabou
renunciando. A população acabou apoiando Vizcarra nessa disputa.

Mudança de direção nos vizinhos Argentina e Uruguai. Após uma grande derrota nas
urnas, Mauricio Macri, de centro-direita, passou a faixa presidencial para o esquerdista
Alberto Fernández em dezembro. Fernández terá um grande desafio para recuperar a
economia do país ao mesmo tempo em que atende as demandas da sua base
kirchnerista.

Em sentido oposto, no Uruguai, o governo de esquerda de Tabaré Vázquez deu lugar ao


novo presidente Luis Lacalle Pou, de centro-direita, também em dezembro. Lacalle Pou
deve servir como um elo entre o governo brasileiro de Jair Bolsonaro e o governo
kirchnerista de Alberto Fernández na Argentina, avaliam especialistas. Por ser pouco
polarizado, o Uruguai tem a capacidade diplomática necessária para manter boas
relações com os dois vizinhos. Além disso, embora seja um país pequeno, o Uruguai é a
única nação da região que não passou por turbulências políticas em 2019 - o que
facilitaria o seu papel de mediador.

Outros eventos que marcaram 2019


Novo capítulo na guerra da Síria: Com o fim do chamado “califado” do Estado Islâmico
na Síria e a morte do líder terrorista Abu Bakr al-Baghdadi, os Estados Unidos decidiram
que era a hora de, realmente, diminuir o número de militares na Síria, levando adiante sua
agenda “America First”.
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Em uma decisão que diminuiu a influência americana no conflito e colocou em dúvida a
confiabilidade dos Estados Unidos perante seus aliados, o governo de Donald Trump
retirou as tropas americanas do nordeste da Síria, dando sinal verde para uma operação
da Turquia contra os curdos - aliados dos EUA na guerra ao Estado Islâmico, mas
considerados terroristas pelo governo de Ancara. Milhares de civis tiveram que fugir da
área fronteiriça entre Turquia e Síria, onde Rússia e Turquia estabeleceram uma “zona de
paz” para realocar refugiados sírios que estão em abrigos na Turquia - uma ação que está
sendo criticada por ser uma forma de engenharia social. Setenta e cinco mil ainda estão
deslocados, segundo as Nações Unidas. Este também foi o ano em que o ditador sírio
Bashar al-Assad, com a ajuda dos atores cada vez mais influentes na região Rússia e Irã,
firmou-se no poder.

Otan em crise: Os desenvolvimentos na guerra da Síria suscitaram um comentário


controverso do presidente da França Emmanuel Macron sobre a Organização do Tratado
do Atlântico Norte, que completou 70 anos em 2019. “A Otan sofreu morte cerebral”, disse
ele, questionando o comprometimento dos países-membros da organização com a defesa
mútua em caso de ataque. "O que o Artigo Cinco significará amanhã?", disse o líder
francês em entrevista à revista The Economist no início de novembro. "Se o regime de
Bashar al-Assad [na Síria] decidir retaliar contra a Turquia, nos comprometeremos com
isso? É uma questão crucial”. Na declaração final da cúpula da Otan, realizada no início de
dezembro, os membros se comprometeram com o artigo que diz que “um ataque contra
um Aliado será considerado um ataque contra nós todos”.

Mas a Turquia realmente não está facilitando a vida dos demais países-membros. Neste
ano o presidente Recep Tayyip Erdoğan levou adiante a compra do sistema de defesa
antimísseis da Rússia, o S-400, apesar dos protestos dos Estados Unidos e das
preocupações da Otan de que o sistema russo poderia roubar informações dos caças
americanos que operam na Turquia. A relação entre Ancara e Washington está se
deteriorando rapidamente e Erdogan chegou a ameaçar o fechamento de uma base aérea
turca onde os Estados Unidos mantêm pelo menos 50 ogivas nucleares.

Por outro lado, os investimentos dos aliados da Otan em defesa está aumentando, ao
passo que a pressão exercida pelo presidente Donald Trump para que os países cumpram
a quota de 2% do PIB em gastos com defesa começa a fazer efeito.

Índia mais autoritária: Com um mandato renovado, o primeiro-ministro da Índia,


Narendra Modi, está mais à vontade para expressar seu caráter autoritário. A maior
democracia do mundo está reprimindo protestos e bloqueando a internet. Por meio de
um projeto de lei já aprovado, o governo está concedendo cidadania com base em
religião, com o objetivo de excluir os muçulmanos. A medida era uma prioridade para
Modi, que passou a implementar a agenda de seu partido, a qual enfatiza a primazia hindu
na Índia.

As eleições em Israel: o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e nenhum


partido do parlamento israelense conseguiram formar governo após duas eleições em
2019, levando o país para uma terceira ida às urnas em menos de um ano. E a não ser que
algo extraordinário aconteça, as chances de resultados diferentes são pequenas. O
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professor de História Filipe Figueiredo analisou, em uma recente coluna para a Gazeta do
Povo, que Netanyahu é o fiel da balança. Sem ele, afirma Figueiredo, uma coalizão entre
Azul e Branco e Likud, os partidos mais votados nas últimas eleições, poderia ser formada
rapidamente. Mas existe um importante motivo pelo qual Netanyahu não abrirá mão do
poder: ele foi indiciado formalmente em dois processos e o cargo dá a ele privilégios nos
julgamentos.

Impeachment de Trump: os democratas finalmente conseguiram aprovar o


impeachment de Trump, mas dificilmente o mandato do presidente acabará nas mãos do
Senado, dominado pelos republicanos. O processo é amplamente criticado por ser
politicamente motivado. Isso ficou evidente na votação do impeachment na Câmara dos
Deputados: todos os republicanos votaram contra; e todos os democratas, com exceção
de três, votaram a favor da saída de Trump. São duas acusações que pesam contra o
presidente: abuso de poder e obstrução de justiça. O caso começou com um telefonema
em que Trump pediu ao presidente da Ucrânia, Volodomir Zelensky, para que abrisse uma
investigação contra o filho do seu principal rival político, Joe Biden. Enquanto os partidos
se preparam para as eleições presidenciais de 2020, Trump parece ser o candidato que
mais se beneficiou com essa história toda.

Coisas que achávamos que iam mudar, mas ainda não


mudaram
Venezuela continua sob o regime de Nicolás Maduro. E ao que tudo indica, o ditador
deve continuar no poder ao longo de 2020 - alguns analistas preveem que ele deve
concluir o seu mandato em 2025. Houve um sopro de esperança com a chegada de Juan
Guaidó à presidência da Assembleia Legislativa de Venezuela e sua posterior ascensão à
presidência interina do país. Transformado em líder da oposição ao regime chavista,
Guaidó obteve amplo apoio internacional e reconhecimento de mais de 50 países.
Também viu surgir em sua volta um amplo apoio popular, com manifestações gigantescas
no início do ano e uma tentativa de levante cívico-militar. Porém Maduro o venceu pelo
cansaço. Com o controle total das forças armadas e da imprensa e apoiado pelo
narcotráfico, o ditador se manteve no Palácio Miraflores. Guaidó continua sendo o político
mais popular da Venezuela, mas sua imagem está desgastada por episódios de corrupção
na oposição e pela desesperança da população, abatida pela pobreza.

A saída do Reino Unido da União Europeia, que deveria ter ocorrido em janeiro deste
ano, ainda está pendente. Mas o capítulo final desta novela deve acontecer em breve.
Com uma vitória histórica do partido Conservador nas eleições deste mês, o primeiro-
ministro Boris Johnson agora tem maioria no Parlamento e prometeu o Brexit para janeiro
de 2020, enterrando de vez a possibilidade de um novo referendo sobre a questão. Ele já
conseguiu aprovar o seu plano de saída da UE, que havia sido recusado pela legislatura
anterior. Porém, ainda há muito trabalho para os políticos britânicos e europeus, que
deverão estabelecer que tipo de relacionamento o Reino Unido terá com a União
Europeia.

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Um acordo nuclear entre Coreia do Norte e Estados Unidos não aconteceu e se
tornou ainda mais improvável. A amizade entre Trump e o ditador norte-coreano, Kim
Jong-un, esfriou e ofensas como “homenzinho foguete” e “velho errático” voltaram a ser
ditas. Mas a agressividade não se restringiu à retórica. Os Estados Unidos continuam a
impor sanções à Coreia do Norte, e o regime de Kim voltou a testar mísseis e reativou uma
base de lançamento de foguetes que havia desmantelado no ano passado. Sem avanço
nas negociações bilaterais, Kim prometeu dar aos Estados Unidos um “presente de Natal
inesperado”, que, por enquanto, ainda não chegou. Especialistas esperam pelo pior: a
volta dos testes dos mísseis balísticos intercontinentais, conhecidos pela sigla ICBM.
Segundo uma nova estimativa publicada em junho deste ano, o teste nuclear feito em
setembro de 2017 teve uma potência equivalente a 250 quilotoneladas de TNT - um poder
explosivo 16 vezes maior do que o da bomba que arrasou com Hiroshima na Segunda
Guerra Mundial.

A jornalista Helen Mendes contribuiu para esta reportagem.

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