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PE 58 Web
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Ensaio inédito de
Silviano Santiago
coloca em debate o uso
dos rótulos literários
ENTREVISTA COM FERREIRA GULLAR • A VODCA COMO PRINCÍPIO DO PRAZER • MARTHA MEDEIROS
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2010
GALERIA
R IC A R DO MOU R A
“A fotografia, para mim, não é simplesmente uma escolha: ela se impõe como extensão técnica
do meu olhar, opção única diante de um universo que me obriga a registrá-lo. Sorrateira e
constante, a repetição do cotidiano aguça minha percepção do peculiar e, de forma lúdica e
cortês, as infinitas possibilidades de cenário que a luz revela em sua ampla gama de nuances,
tonalidades e colorações me mantêm alerta. O ato fotográfico, exercício contínuo da produção
de registros instantâneos, me é tão viciante quanto o mais sinestésico dos prazeres, e o clique
- som ao mesmo tempo tenro e frio do obturador, um clímax. Todos os dias, constantemente,
com ou sem uma câmera nas mãos, fotografo.”
www.flickr.com/photos/ricardomfn
Não dá para começar esse editorial sem lem- Este jornal chegará às suas mãos um pouco sUPERiNtENDENtE DE CRiAçãO
brar da nossa satisfação em contar, mais uma depois da nova edição da FreePorto, festival
GOvERNO DO EstADO Luiz Arrais
vez, com Silviano Santiago como colaborador literário anárquico que brinca com o status de DE PERNAMBUCO
EDiçãO
do Pernambuco. Seu nome está por trás de importância e seriedade com que costumamos Governador Raimundo Carrero e schneider Carpeggiani
alguns dos mais elucidativos textos sobre a envolver tudo o que se relaciona com a escrita. Eduardo Campos
literatura brasileira (quantas vezes mesmo já Mas para não deixar o evento passar em branco, REDAçãO
Mariza Pontes e Marco Polo
nos pegamos lendo Uma literatura nos trópicos?) e pedimos a um dos seus organizadores, Welling- Secretário da Casa Civil
também alguns dos livros de ficção mais agudos ton de Melo, que escrevesse uma crônica ou o ARtE, FOtOGRAFiA E REvisãO
Ricardo Leitão
das últimas décadas. Nesta edição do jornal, que mais ele quisesse sobre as ideias por trás Gilson Oliveira, hallina Beltrão, Karina Freitas,
texto inédito do autor sobre a problemática desse evento. O resultado foi divertidíssimo: Militão Marques e sebastião Corrêa
relevância dos rótulos para classificar roman- “Como é? Como se faz festa literária? Que COMPANhiA EDitORA
PRODUçãO GRáFiCA
ces e contos. pergunta! Não. Bebo não. Quero só uma soda. DE PERNAMBUCO – CEPE Eliseu souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto
Como em geral acontece quando lemos Veja, primeiro você precisa chamar uns amigos, Presidente Bandeira e sóstenes Fernandes
Silviano, esse texto descortina nossa visão de gente de quem você goste. O quê? Chamar um Leda Alves
mundo e nos faz perceber o que existe por trás produtor? É, tem essa galera que faz projetos, MARKEtiNG E PUBLiCiDADE
Diretor de Produção e Edição Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão
das palavrinhas que lemos: “Literatura francesa, coloca nos editais e não sei o quê lá. Mas você
brasileira ou angolana – trata-se de evidente não estava falando de festa? Então, tem que ter
Ricardo Melo
COMERCiAL E CiRCULAçãO
cacoete nacionalista. Pelo uso do adjetivo, julga- alma”, provoca o texto. Diretor Administrativo e Financeiro Gilberto silva
se que a produção literária é o instrumento ne- Nesta edição ainda Ferreira Gullar, em entre- Bráulio Menezes
cessário para reafirmar a nacionalidade política vista para Rogério Pereira, editor do jornal lite-
emergente, que passa a ser o fundamento da rário curitibano Rascunho, esclarece os espantos CONsELhO EDitORiAL:
nacionalidade institucionalizada. Na apreciação que formam sua poesia e Eduardo César Maia
Mário hélio (Presidente)
dum conjunto de obras literárias pertencentes a conta o que há por trás do romance do Nobel de PERNAMBUCO é uma publicação da
um estado-nação, de que o Brasil é exemplo, o Literatura Mario Vargas Llosa, que a Editora Alfa-
Antônio Portela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
José Luiz da Mota Menezes Rua Coelho Leite, 530 – santo Amaro – Recife
critério de autenticidade e a avaliação da qua- guara promete lançar por aqui no próximo ano. CEP: 50100-140
lidade são estabelecidos pelo grau de represen- Luís Augusto Reis Contatos com a Redação
tatividade.” É isso, bom 2011 e até janeiro! Luzilá Gonçalves Ferreira 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2010
BASTIDORES
Esta bússola
karina freitas
vai em busca
do mínimo
Em seu novo livro de
poemas, autora fala da arte
de se livrar dos excessos
Micheliny Verunschk
Em 2003, eu aprontava o Geografia íntima do deserto e um língua/ sob a língua/ da terra./ Entre o giz/ e a borracha/
poema que não cabia no livro me incomodava. Esse escolhe fazer-se/ e desfazer-se numa terça severa./
poema, sem título, logo eu soube se tratar do germe Não se chama/ o amigo de morto.
de um novo trabalho que, apesar de novo, dialogaria Na versão publicada, o poema fica não só mais en-
com aquele primeiro, como os movimentos de uma xuto como perde todas as bijuterias e resolve melhor
composição musical ou os atos de uma peça. Hoje, uma questão de ritmo interno no que chamo de “nú-
sete anos depois, A cartografia da noite vem a público e o cleo central”. Nele permanece o essencial, que é a
diálogo é possível perceber já a partir do título, pois se sugestão de um jogo de encaixes, desdobramentos
permanece na esfera das relações entre o ser humano e de objetos que contêm outros e que por outros são
a paisagem, que é, a grosso modo, o fio condutor desses também contidos:
dois livros. Desse modo esclareço já que esses livros O morto está preso / dentro de um dia/ como as
fazem parte de um projeto no qual se busca um jogo palavras/ dentro de uma carta./ O morto está preso
CARTUNS de claro-escuro, suas nuances, seus aprofundamentos. qual caixa vazia/ que se guardaria/ dentro de outra
MIGUEL FALCÃO A cartografia da noite é um livro magro dividido em cinco caixa./ E ainda em outra/ [carta, caixa ou casa] se
miguelfalcao@gmail.com partes: Matemática, Projeções, Cartometria, Mapas deposita o morto/ guardado e resguardado/ como
e Contrarrumo, termos tomados da própria ciência uma casa/ dentro de um dia/ como um dia dentro de
cartográfica e que no livro funcionam como síntese, uma noite/ como uma noite/ dentro de uma carta./
ou bússola, de cada aba a qual se referem. Ao longo O morto/ é/ presa.
do tempo o livro foi sofrendo vários cortes e embora Como não poderia deixar de ser, A cartografia da noite
não tenha contabilizado, acredito que cerca de 10 a 15 sofreu também influências de várias leituras. Em pri-
poemas que estavam na primeira versão viraram sobra. meiro lugar, das impressões que ao longo da vida fui
Finalmente, foram sete versões “oficiais”, e digo oficiais colecionando a respeito da noite, esse arquétipo pode-
porque a última sofreu alterações não documentadas. roso. Assim, convergem nessa leitura, desde a “noite
Hoje, eu ainda retiraria ao menos mais um poema (in- escura da alma” de São João da Cruz, passando por um
titulado Biografia), o que não é possível porque o livro já mergulho no mito órfico, até chegar às vivências da
está ali, impresso, me espiando. noite nas cidades dos meus afetos, Arcoverde, Recife
Durante o processo os poemas também sofreram e São Paulo. Desse modo, é um livro marcado, mais
cortes. Menos é mais, diz a frase, e eu a tomo como que qualquer outro trabalho anterior, pelo intertexto.
método de trabalho. Para ilustrar (e de certo modo Uma citação de Osman Lins, em Avalovara, funciona
homenagear Poe e sua Filosofia da composição), dou como na abertura como uma bússola ou credo. E ao longo
exemplo o poema Rubens, que era composto a princípio das páginas se celebra os encontros com Guimarães
de três partes, condensada afinal em uma única: Rosa, Virginia Woolf, os contos de fadas, Sylvia Plath,
I Sophia de Mello Breyner Andresen, entre outros auto-
O morto está preso/dentro de um dia/ como as palavras/ res. Possivelmente há outras influências das quais não
dentro de uma carta./ O morto está preso dentro do seu dou conta de expor, pois embora escrever um livro seja
dia/ como uma noite/ que se tem guardada/ dentro de para mim como montar um mecanismo, há o seu tanto
uma caixa./ Dentro de outra caixa/ se prende/ outra vez/ de mistério, de matéria que não se pode perscrutar.
o morto/ como uma casa/ dentro de um dia/ dentro de Por fim, é salutar que se diga que o livro que estou
uma noite dentro de uma carta/ que contém o morto./ escrevendo atualmente, Outra arte, de certo modo fe-
O morto é presa. chará a tríade. E ao mesmo tempo em que encerrará
um ciclo, abrirá uma janela para uma outra coisa,
II que eu ainda não sei qual é mas estou muito perto
O dia/ se pendura/ nos lençóis do tempo, / seu pêndulo de descobrir.
de enforcado./Escreve uma quietude pura e paira
S / U / S / P /E / N / S / O
numa mesma sempre rija madrugada./ O dia/ se mata/ O LIVRO
toda noite,/ deus desfigurado/ entre o barro e a estre- A cartografia da noite
la./ Pássaro incendiado/ despenca/ e lembra;/ que Editora Lumme editor
amanhece. Páginas 72
Preço r$ 30,00
III
Não se chama/ o amigo de morto./ Ele mira o azul/
enquanto embala/ o sono das redes. / Inventa/ outra
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2010
ARTIGO
mas derruba
cobrir e não beber. Não sou uma B.V., ou boca virgem, A biografia me exigiu, antes, uns goles de batismo
em vodca. Já fui adolescente que veraneava em casa na tradição da vodca na Rússia. Fico sabendo que
de praia e vodca com Fanta era perfeito para as minhas monges russos tinham alambiques nos monastérios,
paixões platônicas de férias. Fui jovem nas matinês e lá nos anos 1500, mas que o líquido era usado para ex-
duas doses de vodca com Fanta rendiam mais danci- perimentos químicos e descobertas científicas. Hum-
Livro desvenda o fascínio nhas do que quatro cervejas. Fui universitária e meu
salário de estagiária não aguentava mais do que três
hum, sei, sei bem. O que saiu de útil dessas pesquisas
o livro nem conta, mas imagino o que rolava naqueles
pela vodca e não esquece o caipiroscas, por saída. Digo que só agora descobri a
vodca porque, só agora, bebo na fonte. Há uns dez
retiros isolados, no alto das montanhas. Também fico
sabendo que beber vodca era o passatempo preferido
olha atravessado para quem pede uma dose ou uma Guiness. Ah, e era raríssimo ver garrafinhas de Ice evitar o trocadilho: junta a fome com a vontade de
garrafa de vodca, ao invés de Johnnie Walker Red ou isso, Ice aquilo. beber. Encontrei também o “Primeiro Bar de Vodca
vinho Santa alguma coisa. O preconceito atravessou Pouco antes de saber que faria este texto, dou de de Curitiba”. Ou seria o único do Brasil? E o adoles-
o mapa e o tempo. Meu colega de agência, Tota Faria, cara com um anúncio da Smirnoff reproduzido no livro cente que bebe um litro de vodca em 20 segundos,
um admirador incondicional da bebida, já ensinaria: Razão e sensibilidade no texto publicitário, de João Anzanello para aparecer quase morrendo no vídeo que outros
“Ana, toda vodca é discriminada. Alguém sempre acha Carrascoza. A peça veiculada em 1990 traz uma foto adolescentes fizeram e publicaram no YouTube? No som
estranho você pedir. Ainda mais se for pura. Mas eu de Mikhail Gorbachev e um nostálgico texto sobre a do carro, escuto essa semana o anúncio de open bar de
gosto e ainda peço pelo nome, para prestigiar a marca”. queda do Muro de Berlim. A marquinha vermelha no Smirnoff até 1h. Festa estranha, com gente esquisita.
Lá na Rússia, na turma do contra, aparecem es- cocuruto do líder russo, aliás, foi bastante explorada Diz um provérbio russo que “o homem veio do pó
critores e intelectuais. Justamente esses que a gente pelas fábricas de vodca do mundo inteiro. Tanto que, e ao pó voltará. Nesse meio tempo, é bom tomar um
cita em mesa de bar, para sair de sabida. Nos livros, em 2004, Gorbachev chegou a registrar o sinal de gole de vodca”. E eu completaria: e se forem goles,
crônicas e artigos, bebuns são sempre imundos, al- nascença. que sejam de vodca boa. Com todo respeito às nossas
mas perdidas, fracas, que inspiram piedade e causam De fato, não é de uma marca de vodca que a gente conterrâneas Bolvana, Natasha e Slova, mas a ressaca
destruição. Fiódor Dostoiévski, por exemplo, cujo lembra, quando para e pensa num anúncio ou co- dessa aguazinha destilada, verdade seja dita, é uma
pai foi um bêbado cruel, escreve apaixonadamente mercial legal. Mas nesses dias de pesquisa etílico- das piores do mundo. Que o diga Piotr Smirnov e,
sobre os perigos da vodca. O dramaturgo e médico político-cultural, descobri peças elegantérrimas da imagino, aquele casal da mesa ao lado da minha, que
por formação Anton Tchekhov, muito antes de fa- própria Smirnoff, da Absolut, Stolichnaya (carinho- derrubou o litrão de Smirnoff em menos de duas horas.
zer Tio Vânia, escreve uma crônica em que chama a samente chamada de Stoli), Wyborowa e outras (só
vodca de “sangue do diabo”. E Tolstói, que quando na Wikipédia aparecem 250 nomes, das mais diversas Ana braga é jornalista.
jovem foi um bebum de primeira, mudou a casaca procedências, como Israel e México), que deixariam
T EO R A LC
e se tornou, a bem dizer, um evangélico da sobrie- Johnnie Walker, Keep Walking no chão.
T EO R A
c a ip i r s k
dade. Conta o livro que ele teve uma crise religiosa Descobri, por exemplo, Woody Allen e
depois do sucesso de Anna Karenina e resolveu revelar Groucho Marx vendendo uma edição es-
suas transgressões em Confissão. “Mentiras, roubos, pecial da Smirnoff numa revista
c a ip
promiscuidades de todos os tipos, embriaguez, vio- e comerciais de puro
lência, assassinato. Não há um único crime que eu realismo fantástico
ICED D GR
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Bolchevique, em 1917. Dessa vez, a destilaria é confis- Martini de Ja-
LC
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cada e o filho de Piotr, Vladmir, que consegue fugir da mes Bond é fei-
GR E
Ó L LIC
a*
prisão, reabre a fábrica em Paris, onde a grafia da marca to com vodca. No
muda para a que a gente conhece hoje, com dois efes. primeiro filme da
a ç ú ca ICO O 3
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Sabendo desse drama todo, nem o casal, o garçom, série, 007 contra o sa-
meu amigo preconceituoso, eu e você bebemos mais tânico Dr. No, um diálogo
E N * VO r
ca r ++vvodka 35 5
* V D KA+CREM odka ++ li% 6
Smirnoff do mesmo jeito, como uma bebidinha. Uma explica a preferência. Dr.
aguazinha. A propósito, vodca, veja só, é o diminutivo No solicita: “A medium Dry
E DE M lim
O D KA+CREM E DE m
% 0 oo
de água, em várias línguas eslavas. Martini, lemon pell, shaken, not
A vodca me segue e não é no Twitter. Posso lembrar stirred”. E Bond pergunta: “Vodca?”.
60%%
aqui de passagens curiosas para mim. Uma delas em Dr. No, enfaticamente: “Of course”.
oo MEEN
São Petersburgo, antiga Leningrado. Estive lá em 2008,
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I lIke nO Facebook
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a trabalho. Foi a primeira vez, em 12 anos de profissão,
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oses de vodka + pimenta Tab sc
que me deram bebida alcoólica num evento formal. Agora recebo novidades da Smirnoff, Absolut, Wy-
Um, dois, três shots de vodca bem gelada antes do borowa, Stoli e Skyy, pelo Facebook. É tipo relação de
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iinncceennddiiáárriioo**22ddoses de vodka + pimenta Taba
A
almoço, para ficar pensando melhor. Não beber se- apaixonados. Os facebookers trocam informações a
YA
ria uma grosseria da minha parte, com os anfitriões. todo instante. Um clube do uísque, só que vir-
PAPA
Mas impossível foi ver aquela dancinha russa tipo tual e com vodca, claro. Adriaan Barkey Wolf,
PAA
ciranda, num sobe e desce danado, sem ficar tonta. por exemplo, pergunta no perfil da Smirnoff,
Um genuíno porre, com direito a Perestroika e outros se “anyone knows a nice vodka cocktail which
OP
palavrões russos. is not too hard to make?”. Eu mesma respondi
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Nos quatro dias que fiquei em Petersburgo, capital da com dois: Bloody Mary e Sex on the Beach. Meus
Rússia até 1918 (um ano depois da Revolução Russa) e amiguinhos de feice também me contaram que
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M AM
quarta maior cidade da Europa, vi vodca por todos os Paul McCartney e Black Eyed Peas exigiram a
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lados. Disfarçadas em copos da McDonald´s nas mãos vodca premium francesa Grey Goose. E que sir
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dos jovens, vendidas nos supermercados com todos Paul, inclusive, tem uma música cujo título é
os níveis de destilação, pureza e sabores, oferecidas
no frigobar do hotel, exibidas como souvenires no
Morse moose and grey goose.
É claro que, entre tantas histórias ligadas à vod-
FAAT I
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aeroporto. Porém, na única chance de balada que tive, ca, existem esquisitices. Uma delas é vodca com
vi os russos bebendo cerveja long necks. Especialmente sabor de salmão. Criação lá do Alaska. Não consigo
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HALLINA BELTRÃO SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO
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PERNAMBUCO, dEzEMBRO 2010
entrevista
Ferreira Gullar
São os espantos da
vida que forjam o
interior da poesia
Em entrevista por e-mail para o editor do jornal literário
curitibano Rascunho, o poeta maranhense revela que
seus versos resultam da matemática dos seus espantos
divulGação/ FliP
alguma parte alguma, um livro repleto de perple- diz Gullar nesta entrevista concedida por e-
Entrevista a rogério Pereira xidades também encontradas nos poemas de mail ao Pernambuco.
Muitas vozes, de 1999. Gullar retoma (ou conti- Ferreira Gullar é, acima de tudo, um poeta
Ferreira Gullar chega aos 80 anos de vida nua) temas que lhe são muito caros: a pequenez realizado. Em 2010, recebeu o prêmio Camões
(completados em 10 de setembro) com uma do cotidiano em contraposição à imensidão — considerado a mais alta distinção conce-
vitalidade impressionante. E com o olhar ainda do universo e a passagem do tempo, refletida dida a um autor de língua portuguesa — e é
mais aguçado para os espantos que a vida lhe principalmente na morte, contra quem luta celebrado pela crítica como o maior poeta
causa. É a partir destes espantos — a junção munido fortemente de belos versos. “Sei que brasileiro em atividade. “Como o sentido do
entre o inusitado e o sublime do cotidiano — que um dia não estarei mais em nenhuma parte, que escrevemos é chegar ao leitor, ao outro,
nascem os seus versos. Isso há 61 anos, desde o senão no que escrevi. A obra é o outro corpo ganhar um prêmio como esse (o Camões) é a
surgimento de Um pouco acima do chão, sua estreia que criamos para permanecermos presentes comprovação de que chegamos lá”, afirma.
poética em 1949. Agora, lança o inquietante Em quando este, de carne e ossos, desaparecer”, Disso, ninguém duvida.
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PERNAMBUCO, dEzEMBRO 2010
fICÇÃO
kArInA freItAs
INVENÇÃO
Marco O famoso e polêmico romance Catatau, de Paulo
Polo Leminski, é relançado pela Editora Iluminuras
Os defensores da literatura mente e no coração de Renatus
de invenção estão em festa. A Cartesius (como é chamado o
Iluminuras acaba de lançar uma filósofo francês Rene Descartes,
nova edição de Catatau, de Paulo que vem parar no Recife de
Leminski (foto). Subintitulado Maurício de Nassau e vê todo seu
de Um romance-ideia pode ser visto famoso racionalismo “infectado”
também como um romance- pelo caos da realidade tropical).
rio: nele desaguam misturados Ele está sob um árvore, fumando
MELODRAMA DESENHO
CAPA
o conjunto da produção literária de todo e qualquer do substantivo literatura, mas com a finalidade de “Donner un sens plus pur aux mots de la tribu” (Dar
estado-nação, de que é exemplo o Brasil, uma parte estabelecer uma grande diferença. Descarta-se do um sentido mais puro às palavras da tribo). A busca
do “universal” literário. Pela opção estético-estilísti- conceito de estado-nação a inabalável hegemonia de uma pureza redentora da palavra poética, trans-
ca, critica-se o historicismo da postura descrita pelo da elite dominante e precisa-se o conceito de povo formada em sucedâneo laico do Santo Gral, é o modo
adjetivo de cunho nacionalista. Defensor da metodo- dominado. Elite dominante e povo dominado têm como o artista justifica a própria vida e sua obra, ao
logia estilística de leitura, Afrânio Coutinho esclarece o palco tomado pela luta de classes internacional, mesmo tempo em que contribui para o bem geral da
que a literatura não é um “bólide no espaço”, mas enquanto os personagens da classe operária saem nação dos tribalistas. A obra literária de Mallarmé foi
também não é “um epifenômeno da economia ou em busca da supremacia revolucionária universal. elaborada “pour aboutir à un Livre” (para terminar
da vida social”. E conclui: “O essencial é o estudo Entre nós, Antonio Candido buscou um equilíbrio por um Livro). Livro, não se duvide, com inicial
da obra em si mesma”. delicado entre a postura metodológica formalista e maiúscula, como no caso da Bíblia sagrada. Sem
Modelo de historiador pelos sucessivos estilos a conteudística. Sem se descurar dos ganhos es- qualquer adjetivação, a literatura sela pacto com o
literários apresentados em cronologia, o francês téticos garantidos pela análise estilística do texto fracasso estético na contemporaneidade consumista
Gustave Lanson (1857-1934) afirmava que a história literário, ele procura fundamentar os ganhos por e marca encontro com o sucesso na eternidade. O
literária tinha montado até então, para uso próprio, análise ideológica complementar, em que a função que têm a ver esses poucos e apressados exemplos de
uma “paródia” das ciências sociais. O fim da paródia social da literatura alcança preeminência. Eis como rebaixamento estético, desempenhado por qualquer
anunciava o interesse exclusivo pela especificidade o mestre paulista formula o problema fundamental adjetivo acoplado ao substantivo literatura?
estética da literatura. No século 20, a nova anun- da análise literária: “averiguar como a realidade O principal fim da reflexão inicial é otimista e
ciada por Gustave Lanson produziu uma série de social se transforma em componente de uma estru- ideológico. Colocar o leitor de literatura num beco
metodologias de leitura que centravam o foco da tura literária, a ponto dela poder ser estudada em si sem saída. O rebaixamento estético desempenhado
luz crítica na análise do texto – na explication de texte, mesma. E como só o conhecimento desta estrutura pelo adjetivo aponta para o relativismo metodológico
como dizem os pedagogos franceses, acentuando permite compreender a função que a obra exerce”. que, antes de afirmar como essencial o primado
o aspecto formalista da leitura dita científica. As Na conclusão a que chega, afirma-se o equilíbrio: intransferível do gosto individual e de caracterizar
novas metodologias coincidem com o aparecimento “convenço-me cada vez mais de que só através do como inútil a discussão sobre a literatura, alimenta e
dos formalistas russos (1910-1930) e culminam no estudo formal é possível apreender conveniente- torna indispensável o debate público pelo enfraque-
chamado pós-estruturalismo francês (1970-1990). mente os aspectos sociais”. cimento da certeza de que não há um modo absoluto
As sucessivas correntes metodológicas englobadas Desde meados do século 19, com a intenção sabida de se escrever e de analisar e interpretar a literatura.
pelos marcos visavam a aproximar o estudioso do de azucrinar a cabeça dos historiadores e professo- Ela sempre escapa a qualquer modelo que se lhe
conhecimento do texto literário pela “literarieda- res de literatura que se compraziam em qualificar imponha. Como não se deixa explicar por adjetivos,
de” (ou seja, pelo que torna tal texto literário), para a literatura por adjetivação, grandes poetas, como a boa literatura independe também de qualquer um
retomar o conceito clássico dos formalistas russos. Stéphane Mallarmé ou Paul Valéry, têm apresentado dos “manifestos literários” que estiverem na moda
No seu bojo e pelo seu avesso, o fim da história configurações da obra literária em que qualquer ad- e de qualquer uma das metodologias de análise de
literária como “paródia” das ciências sociais trouxe jetivo aposto ao substantivo é logo afastado e negado. texto que predominam nessa ou naquela univer-
também outra série de metodologias de leitura de A finalidade da proposta de origem oitocentista é, por sidade. A produção e o conhecimento da literatura
caráter universalista, que, ao contrário do que se um lado, a de singularizar e enobrecer o instrumento é um trançado que não está isento de repetições
esperava, aumentavam consideravelmente o peso de trabalho do escritor-artista – a linguagem –, e, acumulativas, devaneios utópicos, clarividências
dado aos critérios de ordem econômica e social na por outro lado, a de desacreditar as definições de premonitórias da ciência, equívocos passageiros da
interpretação da obra literária, acentuando o as- literatura de caráter geográfico, histórico ou social. sensibilidade, luta de deserdados pela identidade,
pecto conteudístico da análise. Esses critérios são Citemos Stéphane Mallarmé, o poeta dos poetas. No guerras intestinas pelo poder artístico etc. Em suma,
tomados de empréstimo da adjetivação nacionalista soneto Le tombeau d’Egard Poe, lê-se que cabe ao poeta é um beco sem saída.
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2010
CAPA
FOTOS: DIVULGAÇÃO
A cultura passa
a ser o local por
excelência das
reivindicações
políticas dos
subalternos étnicos
no Ocidente
a temos entendido no Ocidente, não poderia ter um
sucedâneo substantivo em culturas não-ocidentais,
ou este sucedâneo só seria considerado positiva-
mente se fosse invenção do próprio Ocidente? Os
ocidentais não deveriam dialogar mais com o seu
outro (não-ocidental), e vice-versa?
Entre nós, é iluminador o modo como jovens pes-
quisadores universitários têm escutado e reproduzido
textos de indígenas brasileiros. Definem-se pontos
em comum entre cultura ocidental (europeia) e cul-
tura não-ocidental (indígena) no Brasil, pontos estes
que desandam o norte da bússola teórica, ao mesmo
tempo em que certezas humanas são robustecidas.
Cláudia Neiva de Matos, que tem coligido literatu-
ra indígena na região amazônica e, em troca, tem
ensinado literatura brasileira aos seus habitantes
originais, disse-me que, de todos os trechos de ro-
mances e poemas da nossa literatura que oferece nos
seus “cursos”, há um que sempre causa pouquíssima
estranheza aos novos e distantes leitores. Trata-se
de uma passagem da rapsódia Macunaíma, de Mário
de Andrade. Estaria isso acontecendo se Mário não
tivesse re-substantivado, com a apropriação em sua
rapsódia de mitos indígenas da região de Roraima, o
adjetivo brasileiro, de nítida feição ocidentalizada,
na expressão literatura nacional?
O terceiro fim da discussão sobre o adjetivo que
qualifica a literatura é engajado politicamente. Reme-
te-nos a este encontro no Recife, Literatura regionalista
e o escritor contemporâneo: O regionalismo na contemporanei-
dade, cujo título, tanto a nível progressista quanto
a nível pragmático – e mercadológico –, expressa
a busca de inesperados e atuais adjetivos para o
substantivo literatura.
Na política contemporânea, a questão regional fica
aquém e além do estado-nação; fica também aquém
e além do conceito neoliberal de globalização. A du-
biedade espacial – decorrente da configuração do que
seja o objeto identidade regional na atualidade – afeta
de modo sistemático a compreensão dos problemas
que a literatura (e as artes em geral) coloca. Antes de
ser um enigma artístico ou literário, a atualidade do
regional tornou-se arma política de muitos gumes.
Alguns afiadíssimos. Outros poucos, cegos.
Defender hoje a regionalização do literário pode
significar uma atitude crítica em relação ao atual
governo da nação brasileira, atitude semelhante à
tomada nos anos 1930 pelos escritores “tenentis-
tas”, como Graciliano Ramos. Durante os quase
dez anos em que o Estado Novo sequestrou a nação
Vidas Secas O segundo fim é esperançoso. Mostra como o rela- ditoriamente no plano da geografia planetária que para moldá-la da sala presidencial do palácio do
acentuou o tivismo metodológico e, por consequência, ideológico, está sendo globalizada pela economia neoliberal Catete, os romances de Graciliano tanto acentuaram
regionalismo é a garantia de que novas brechas de esperança podem que pipocam inacreditáveis reviravoltas literárias. o regionalismo combativo das “vidas secas”, quanto
combativo e ser abertas na massa compacta do saber constituído Citem-se, por exemplo, as reviravoltas culturais que a “angústia” alagoana, assassina do milionário e
Macunaíma sobre a literatura. Depois dos anos 1960, quando as sugerem o livro Orientalismo – O oriente como invenção patrioteiro Julião Tavares. Eis dois exemplos notáveis
buscou explicar políticas advogadas pelos grupos minoritários vieram do ocidente, de Edward Said. A cultura passa a ser o de sabotagem regional e literária aquém e além do
o Brasil à luz da discussão coletiva, outros e originais adjetivos local por excelência das reivindicações políticas projeto de estado-nação getulista.
juntaram-se ao substantivo literatura. Literaturas da dos subalternos étnicos no Ocidente (de que são De década e meia para cá, estamos vivendo sob a
mulher, afro-americana, judaica, gay, lésbica etc. exemplo, no caso latino-americano, os índios e os implantação de novo projeto nacional. Até 2002 ela
Trata-se de compromisso indelével do texto literário africanos), ou dos excluídos pela ocidentalização foi feita sob a responsabilidade do PSDB; a partir de
com a constituição de novas e até então impensáveis do mundo não-ocidental pelo slogan democracia 2003 temos uma versão modificada, que está sendo
identidades – raciais, linguísticas, sociais, sexuais e liberdade. Parodiando Caetano Veloso, que disse enraizada sob a responsabilidade do PT. A diferença
etc. –, que nada têm a ver com as antigas identidades só ser possível filosofar em alemão – será que só se política na atitude dos escritores regionalistas bra-
nacionais ou regionais e têm pouco a ver com as meto- pode fazer e pensar literatura valendo-se exclusiva- sileiros (o contrassenso na adjetivação se impõe) de
dologias de análise que se afirmavam pelo centramento mente das línguas escritas ocidentais responsáveis hoje reside no questionamento do modo como as
no ocidentalismo étnico e fálico da literatura. pela exclusão das tradições não-ocidentais? A lite- várias e diferentes regiões do vasto território brasileiro
Se poucas e desastrosas reviravoltas financei- ratura da tradição escrita ocidental não deveria ser estão sendo atualmente selecionadas, priorizadas e
ras têm acontecido na performance operada pelo mais permeável às manifestações da tradição oral premiadas nos planos econômico, social e cultural,
centramento econômico da globalização, é contra- não-ocidental, e vice-versa? A literatura, tal como pelo processo de implantação do estado nacional
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2010
DIVULGAÇÃO
globalizado. A luta tem os tons ardorosos e suicidas não mencionar Abril despedaçado, Baile perfumado, Amarelo casulos de resistência maniqueísta, o mais evidente Artistas como
da guerra fratricida e, ao mesmo tempo, os tons manga e Cinema, aspirinas e urubus). Contraditoriamente? deles sendo o da disputa pelo mercado entre o produto Ariano Suassuna
ardentes e vitais da melhoria para todos os cidadãos Nem tanto. Através do cinema, a temática regionalista nacional e o importado, entre o produto “natural” e reaprendem
brasileiros, indiscriminadamente. procura o diálogo com a nação brasileira. o enlatado, entre cantores “caipiras” e cantores “ser- as artes do
Tentemos compreender com simpatia e afeto o Com a mesma simpatia e afeto, focalizemos agora tanejos”. Programas como os de Inezita Barroso e de palanque
escritor contemporâneo nosso (em particular o que se a luta pelos valores regionais (em particular os de tantos outros cantores caipiras, apesar de gravados em político nos
instala em políticas e estéticas regionais, como as que caráter cultural). Essa luta expressa o modo como videoteipes, se dão como lazer de operários ao ar livre programas da
se afiguram como fortes aqui nos estados do Nordes- o artista ataca com a mesma lança a duas feras: o do parque do Ibirapuera, em São Paulo, e são contra as TV Cultura.
te). Ele se despede novamente do projeto nacional, monstro da globalização a partir do modelo norte- crueldades praticadas contra o boi e espetacularizadas
para abraçar a crítica radical aos processos pelos quais americano e o seu filhinho também monstruoso, o em rodeio pelos cantores sertanejos, como Chitãozinho
os tentáculos da globalização, ao tomarem conta dos modelo nacionalista posto em prática, em particular, e Chororó, ou por algumas novelas da Globo. O povo
estados nacionais latino-americanos, mcdonaldizam pelo penúltimo governo do planalto central. operário no gramado do Ibirapuera se confunde com
as diversas formas da diferença regional, com um Nos novos tempos, permanecer aquém do projeto o povão eletrônico, ambos combatentes de causas
fim julgado não revolucionário, antiecológico e in- nacional em vigor é para os artistas regionalistas ter nobres e humanas.
justo econômica e socialmente. É como se o escritor como alvo algo que está além dos partidos políticos Já que estivemos falando da atualidade do regiona-
regionalista estivesse nos dizendo que, lá de cima, nacionais. No seu radicalismo programático, o proje- lismo pela primeira vez no Rio Grande do Sul – estado
a globalização econômica amamenta cá no terra a to regional desconfia do projeto nacional globalizado emblemático do Brasil fronteiriço –, retomemos o
terra o retorno mítico das identidades regionais que, que está sendo realizado pelos Três Poderes, por ter fio da meada aqui no Nordeste no mesmo clima de
por seu turno, são obrigadas a se insurgirem contra o sido ele colocado sob o domínio do monetarismo, do simpatia e afeto. Agora, para falar de outra projeção
estado-nação instalado em Brasília e a globalização consumismo e das bolsas de valores. Desqualifica-o da cultura regional, por certo mais ardilosa e arris-
determinada pelo Primeiro Mundo. com os instrumentos precários que tem a bordo: a cada, já que, por um lado, não segue os parâmetros
Artistas de nítida dicção regionalista, como Aria- zabumba nordestina, a viola caipira mineira ou a da luta popular estabelecidos pelo finado século 20,
no Suassuna e Antônio Nóbrega, depois de longos sanfona gaúcha. Não o acata como intermediário e, por outro, descaracteriza como falsas as formas
anos de trabalho regional, reaprendem as artes do ou parceiro na luta contra a globalização econômica agudas do regionalismo e do nacionalismo engaja-
palanque político nos programas da TV Senac ou da pelo Primeiro Mundo. O liliputiano enfrenta o gi- dos e combatentes, pregadas também pelo finado
TV Cultura. As peças de teatro de Ariano, como o gante, sem a mediação ou a parceria dos partidos século. Falemos de substantivas culturas nacionais,
Auto da Compadecida, reganham o sucesso que conhe- políticos nacionais – se me permitem a comparação agora devidamente regionalizadas em outro e mais
ceram antes da ditadura militar, em pleno período tomada ao inglês Swift. O liliputiano o enfrenta amplo contexto geográfico, o da União Europeia ao
populista pré-64. Por outro lado, a cidade de Porto com a parceria das proliferantes organizações não norte ou o do Mercosul entre nós. Há o regionalis-
Alegre se tornou a sede de encontros internacionais governamentais (ONGs) que, como instituições mo, o nordestino, dentro de um estado-nação, o
contra a globalização pela economia neoliberal. São supranacionais, agregam os subalternos de todos Brasil, de que já falamos, e há o regionalismo do
sucedâneos festivos, paródicos e críticos dos austeros os matizes políticos, com a intenção de levá-los ao próprio estado-nação, o Brasil, dentro duma união
seminários econômicos organizados pelo FMI, como combate de igual para igual com o gigante. Começar de estados-nações, que está sendo formada, o Mer-
o de Davos, na Suíça, ou dos organizados pela OMC, por discriminar matizes talvez seja a forma de tornar cosul. Essas culturas nacionais, se devidamente
como o de Seattle, nos Estados Unidos. Esse estado mais relevante essa luta desigual, que às vezes tem regionalizadas, se tornariam aliadas e mais fortes
de coisas gera uma consequência artística regional. o tom justo do cinza-chumbo e às vezes os tons sem ter por projeto a desconstrução dos respectivos
Os jovens cineastas urbanos, formados pelo padrão grandiloquentes do verde-amarelo. estados-nações, como sempre esteve sendo proposto
nacional de qualidade Globo, nascem para a arte sob A cultura regional como terreno de luta estética pelos regionalismos (no primeiro sentido da palavra).
o signo do regionalismo nordestino (v., entre muitos, abre cisão no tecido uniforme da indústria cultu- De acordo com essa recente projeção política, o
os filmes Auto da compadecida e Lisbela e o prisioneiro, para ral hegemônica, e se apresenta como produtora de conceito de regional ao adjetivar cultura adquiriria
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2010
CAPA
estariam aquém
a correspondente cultura nacional. Num segundo sendo um dos mais felizes meios de expressão que
momento, cada cultura nacional coesa, robustecida o homem encontrou para melhor conhecer a si e
e não enfraquecida pelas diferenças circunstanciais falar da sociedade em que se inscreve e do mundo
– embora no
internas, se articularia a outras culturas nacionais em que vive.
num contexto geográfico mais amplo (o do Merco- A transformação se daria na aproximação das
sul ou o dos estados-nações de língua portuguesa, antigas belles lettres das novas configurações do que
enfeixados pela Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa, eis dois bons exemplos). O novo todo
(necessariamente fragmento do processo de globali-
mesmo plano – da seja cultura, estabelecidas sob o signo da antropolo-
gia social. Para sobreviver ao peso da tradição que a
fundou na antiga Grécia e a tornou objeto maleável e
zação econômico levado a cabo pelo neoliberalismo)
é constituído de alianças e de constelações, cujo
intuito político, social, econômico e cultural é o da
indústria cultural instigante ao correr dos séculos até a modernidade,
a literatura ocidental acabou bebendo água da fonte
da juventude das culturas marginalizadas, optando
troca regional de recursos e valores no combate à contextos supranacionais propostos, como o do por um frescor que, antes de ser genealógico, é ca-
uniformização pelo Primeiro Mundo. Mercosul? Literatura sul-americana e literatura do tastrófico e construtivamente desterritorializador.
Repitamos. As partes regionalizadas, de que são Mercosul seriam adjetivos imprecisos e narcisis- No século 20, os processos de desterritorialização
exemplos os estados-nações dos países sul-america- tas, reminiscentes do cacoete nacionalista a que nas artes e na literatura foram comandados pela sua
nos, se somam para formar um todo supranacional, o nos referimos no segundo parágrafo. Literatura das contaminação por culturas marginalizadas e não
Mercosul, que, fortalecido pela soldagem das partes margens, talvez fosse a melhor proposta, pois não só ocidentais. Veja-se o papel das culturas africanas nas
em jogo, pode combater de maneira mais eficaz a levaria em conta a margem que o adjetivo regional artes plásticas da vanguarda europeia; regionalize-se
fonte do todo globalizado. representa dentro do respectivo estado-nação, como a perspectiva com o papel da mitologia indígena em
Estamos falando de uma projeção política de também a margem que ganha o novo significado Macunaíma. Esses e muitos outros exemplos foram
cultura que, estrategicamente, toma assento em de regional no momento em que passa a adjetivar catalogados sob a rubrica de hibridismos. Desne-
instituições supranacionais a serem construídas o estado-nação dentro duma aliança de estados- cessário é relembrá-los nos seus detalhes, tão mar-
pelos estados-nações já envolvidos e a serem envol- nações periféricos. Num terceiro movimento essa cantes foram e continuam a ser para a constituição
vidos em alianças, cujas pontes foram idealizadas literatura das margens lançaria outras pontes de con- de identidades nacionais destruídas em virtude da
coletivamente e em reação ao poder esmagador da vivência com as diversas culturas e literaturas que se colonização ocidental do mundo.
globalização econômica em processo. Juntos, os sentem também marginalizadas pelo atual processo Não estamos querendo retornar ao tema do hi-
estados-nações aliados saem em busca de outra e econômico e político em marcha pelo planeta terra, bridismo nacionalista. Estamos falando de algo
nova identidade, ao mesmo tempo nacional e su- como as literaturas africanas, ou asiáticas, ou como utópico e inesperado – as literaturas regionais do
pranacional. O companheirismo (político, social, a literatura palestina ou afegã. Mercosul, ou as literaturas regionais dos estados-
econômico e cultural) nunca aceitará sem luta os Se no campo propriamente dito da cultura as qua- nações de língua portuguesa, que se encontram na
princípios hollywoodianos ou mcdonaldizados da lidades políticas dessa postura devem ser realçadas, CPLP. Algo a ser construído pelas novas gerações,
universalidade. talvez seja preciso precaução no seu uso aplicado ao ainda que fragmentária e precariamente. Algo de
Ao propor o estado-nação na qualidade de região campo das artes, ou melhor, ao campo estreito do concreto – política, social e economicamente – a
que é parte dum conjunto supranacional, estaremos que se convencionou chamar, desde o século 19, de ser alicerçado nas frágeis bases da cultura. Mais uma
dialogando positivamente (e desejamos que o diálogo literatura, ou de belles lettres. manifestação do abjeto “culturalismo”? Talvez sim,
seja também crítico) com o modelo que está sendo Ou não. se o contexto ideológico ainda fosse o dos anos 1930.
criado e proposto pela União Europeia e que, no Ao final do século 18, tomada pelo impulso da Estamos falando da possibilidade de reconstrução do
início do novo milênio, recebeu excelente estudo estética, a literatura se tornou objeto único, rarefeito mundo com tijolos que não são os convencionais,
por parte do filósofo Jürgen Habermas, em Après l’État- e original no contexto do saber humano. Mais perdia com tijolos não formatados pelo poder hegemônico
nation – Une nouvelle constellation politique. À diferença do clientes, mais ganhava em intensidade e profun- da economia neoliberal globalizada. Reconstruir o
nosso raciocínio, que se atém por princípio à questão didade. As obras literárias de Stéphane Mallarmé, mundo pelas margens, pelas manifestações cultu-
cultural, a análise de Habermas, como não poderia de James Joyce e de Guimarães Rosa estão aí e não rais e pelo desejo – este, sim, universal – de justiça
deixar de ser, centra-se nos aspectos propriamente nos deixam mentir. Em oposição, as consecutivas para todos. Um sonho. Talvez não. Mais um sonho
econômicos da fase seguinte à do apogeu do estado- adjetivações de literatura também estão aí e não nos culturalista. Talvez sim.
nação europeu. deixam mentir. Essas adjetivações visavam a tornar
Voltemos à nossa proposta inicial. Para o bem a literatura menos única, rarefeita e original. Mais pé Silviano Santiago é autor de Uma literatura nos trópicos
e para o mal, como adjetivar a literatura num dos no chão. Quanto mais a literatura adjetivada ganhava e Cosmopolitismo do pobre.
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2010
PRÊMIO
A literatura
MAÍRA GAMARRA
infantil é um
negócio sério
Concurso literário da Cepe
coloca em primeiro plano
a ficção para os pequenos
Diogo Guedes
RESENHA
um romance
suas impressões de leitor sobre o já consagrado romance anterior. O fato é que, durante a Primeira Guerra Mun-
O coração das trevas, de Joseph Conrad, publicado pela dial, Casement estabeleceu vínculos estratégicos com
primeira vez em 1902. Essa impactante narrativa se a inteligência militar alemã – rival maior da Inglaterra
desenvolve na época da aventura colonial europeia na – a fim de conseguir treinamento militar e armamento
África – durante o governo de Leopoldo II, rei da Bélgica, para os independentistas. Seus planos não saíram
anunciado
que à época possuía como domínio colonial o Congo (o como planejara e ele acabou sendo acusado de traição
qual equivalia a mais de 75 vezes o tamanho da Bélgica). e condenado à morte na Inglaterra.
A experiência real de Joseph Conrad como funcionário A conversão ao nacionalismo gaélico de Casement
da marinha mercante de Leopoldo II transformou-se, que, em sua juventude, esteve muito identificado com
nove anos depois, em material literário e deu luz a uma os ideais do Império Britânico de levar civilização e
Como o Nobel da hora das obras-primas do século 20. A marca que essa obra
deixou em Vargas Llosa transparece durante todo o seu
progresso aos países que colonizava, é um dos te-
mas mais interessantes do livro. O rapaz idealista, que
2010/2011
INÉDITOS e não saber se certas coisas acon-
teceram, ou é apenas impressão,
confusão da memória. Tenho medo
de esquecer como eu vivi tudo isso,
de não me lembrar bem de como é
ser estrangeiro, nem do quão estra-
OU DE
nho foi descobrir que pode existir
alguém bem parecido comigo na
Finlândia. Ou ainda, esquecer a
alegria que foi comprar uma má-
quina de lavar roupas.
Mas o que eu mais temo na ver-
dade, com a volta pra casa e o reen-
contro com a velha rotina, é esque-
cer tudo que descobri. Não pense
que eu estou me repetindo e sendo
redundante. Entenda bem, há uma
diferença grande entre esquecer o
QUANDO OS
quê e como vivi e esquecer o que
descobri. As descobertas são o que
podemos levar de melhor de um
ciclo para outro. Descobri muitas
coisas que não sabia e outras tantas
que já desconfiava. Descobri que
PERSONAGENS
existem muitos mundos que giram
em paralelo. Confirmei também
aquela velha frase de consolação:
nós nos habituamos facilmente a
quase tudo. Pois é, aprendi que
SOMEM
certos clichês são de fato verda-
deiros. Agora, por exemplo, tenho
certeza que é impossível ser feliz
sozinho (confesso: na falta de uma
brasilidade cotidiana, tive uma pe-
quena recaída pela bossa nova).
Comprovei que de fato a gente não
Fellipe Fernandes
ENTRE UMA
apegar às pessoas. Acho que é por
isso que não acompanho seriados:
detesto quando os personagens so-
mem entre uma temporada e ou-
tra. Mas o que me deixa tranquilo é
que nesta viagem também descobri
que, não importa onde eu esteja,
TEMPORADA
certas pessoas sempre vão estar
comigo. Por isso, na tentativa de
traduzir a palavra saudade para a
língua estrangeira, acabei apren-
dendo que ela tem mais a ver com
E OUTRA
presença que com falta de.
Mesmo assim, tenho certeza que
vou sentir bastante a ausência do
mar neste réveillon. Apesar de ter
passado a maioria das festas de
fim de ano na praia, nunca pulei
sete ondinhas. Ao invés disso o
que costumamos fazer é dar um
mergulho no mar antes da vira-
Este fim de ano vai ser comple- enfim, chega de tentar discutir a Para ser bem franco, não fosse o da do ano, por volta das dez horas
tamente diferente para mim. Não concepção subjetiva do tempo... fato de estar escrevendo esse texto da noite. O último banho de mar
que todos os anos fossem sempre Só mais um parêntese antes de e os comentários de alguns amigos, do ano. Bom mesmo é quando a
iguais, não mesmo. Mas é que esse voltar a falar deste meu fim de ano: talvez nem percebesse que esta- maré está cheia e ficamos exaustos
réveillon vai ser singular. Antes de acabei de me dar conta que ape- mos apenas a alguns dias da festa apenas na tentativa de permanecer
me explicar melhor, preciso dizer sar de sempre ter sido um menino de réveillon. Afinal de contas, não em pé. Deixamos no mar tudo que
que quando criança sempre me sabido, nunca me intrigou o fato vi o congelador cheio de comida, não queremos levar para o ano se-
perguntei se no réveillon a gente que a cada réveillon toda minha fa- nem percebi a agitação dos fami- guinte. O último mergulho de 2010
comemorava o ano que passava mília chora. Na verdade, só depois liares programando as músicas e eu já dei há alguns meses, afinal,
ou o ano que chegava. Aos poucos de algum tempo descobri que há as bebidas das festas. Este ano, na cidade onde estou só existem
fui entendendo que, ainda que a pessoas que não choram na virada enquanto minhas tias vão para a montanhas no horizonte. E neste
festa seja em homenagem ao ano do ano. Para mim, como a roupa praia pegar o bronze do natal (mi- réveillon, acho que elas vão ser as
que está chegando, uma coisa não branca, o choro na hora de desejar nha mãe não, ela não gosta de sol), únicas a se vestir de branco.
vem sem a outra. O presente tem feliz ano novo sempre foi natu- eu compro uma luva mais grossa Na falta de rituais, sobra apenas
que virar passado para o futuro vi- ral. Depois do último minuto do para enfrentar o frio que está por a renovação de ciclos. Ainda não
rar presente. Mas semana passada ano que passou e antes do quinto vir. Com o oceano de distância dos sei ao certo o que vai acontecer
uma conversa me assustou. Uma minuto do ano que começa todo meus fins de ano habituais pude em 2011, mas tenho a impressão
amiga me dizia que não existe pre- mundo desaba. E depois conti- entender melhor essa questão de que este ano foi apenas a primei-
sente. Aquela visão bastante cética nua a festa. Acho que são os ciclos ciclos. Principalmente porque, de ra temporada de um novo ciclo.
que considera o tempo apenas uma que nos fazem chorar. Ou melhor, fato, me aproximo do fim de uma Quando eu penso no próximo ano
sucessão de segundos. Já tinha ou- a renovação deles. O fim de ano temporada. Em janeiro, depois de vem uma sensação estranha, uma
vido esse discurso antes, mas ele joga uma lupa sobre essa ques- um ano em terras francesas, volto ansiedade. Como se eu estivesse
Nesta seção, foi respeitado não me convence. Ou melhor, não tão, escancara. Então dá aquele pra casa. O réveillon não vai ser meu voltando para o desconhecido, en-
o texto original dos autores
me agrada. Talvez eu já seja ansioso friozinho na barriga pelo ano que último dia aqui, mas depois dele tende? Talvez eu até volte pra velha
e nostálgico demais para pensar vai chegar. E é exatamente nes- tudo será apenas despedidas. rotina, mas sei que ela não vai ser
que vivemos de passado e futuro. se momento que começamos a Quando eu sei que alguma fase mais a mesma. Muita coisa já não
Ao mesmo tempo, não compartilho criar inúmeras expectativas para está passando, acabando, a minha é igual. Mas acho que só quando
SOBRE O AUTOR
aquela ideologia “carpe diem” dos a próxima temporada. Talvez a reação imediata é ter um pouco de eu voltar pra casa vou saber o que
Fellipe Fernandes que vivem o presente como reali- gente faça isso justamente para medo. Temo esquecer o que vivi. mudou realmente. E pode ser que
estuda cinema na dade única. Bocejo. Não. Acho que evitar transformar o tal friozinho Eu sei que com os anos sempre va- apenas no Brasil eu vá perceber
Universidade Blaise deve existir por aí um meio termo. em angústia ao calcular quantas mos perdendo os detalhes e quanto qual foi a minha maior descoberta.
Pascal na França. Simpatizo bastante com a noção das expectativas do ciclo passado mais antiga é a lembrança, mais Pode ser que eu ainda não esteja
de ciclos. E como as temporadas ficaram pelo caminho. ela adquire um aspecto de sonho. entendendo nada direito. Pode ser.
de séries de TV, os ciclos podem É, este fim de ano vai ser com- Tenho medo de um dia me lembrar Enfim, não vejo a hora de mergu-
durar meses ou apenas 24h. Mas pletamente diferente para mim. do meu primeiro ano fora de casa lhar no mar de novo.
20
PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2010
INÉDITOS
ASA,
Daniel dos Santos Lima
HALLINA BELTRÃO
ABISMO E VOO
REsENhAs
REPROdUÇÃO
BALANÇO DA FREEPORTO
Mariza Festa literária do Bairro do Recife ampliou
Pontes a discussão crítica de forma provocativa
Depois de dois anos ocupando de Melo, Bruno Piffardini e
o calendário de eventos Arthur Rogério - afirmam
literários não oficiais do que a empreitada é uma etapa
Recife, transmudado em Nova de um processo irreversível
Bulgária , com mapa (foto) e de renovação e discussão
cargos honoríficos vendidos que se abriu na cidade. Eles
a peso de humor saudável e negam a intenção de se
provocativo, a FreePorto faz transformar numa produtora
prateleira
MELHORES CONTOS : ARY QUINTELLA
O diplomata e escritor Ary Quintella é um dos recentes
destaques da coleção iniciada pela Editora Global há
mais de uma década. Jornalista, romancista, contista,
ensaísta e novelista, seus textos abordam o Brasil dos
anos 1940 a 1970, numa linguagem fragmentada,
de estilo telegráfico. Suas crônicas do cotidiano
do Rio de Janeiro apresentam ações intensas, mas
passageiras, compondo um estilo pessoal e exclusivo,
em que as palavras ganham força de gestos, em que
se misturam propositadamente realidade e ficção.
Para a organizadora da obra,
a professora Mônica Rector,
ele buscava principalmente
provocar emoção, sua
forma de entender a arte.
Cru, como a vida pode ser Na contramão do simples A premiada atriz e diretora de teatro descreve sua
experiência com jovens da Fundação Casa, antiga
Febem, de São Paulo, apresentando um registro
Tudo pode terminar (autobiográficas? O Ceticismo, o metódicas e rigorosas textual e fotográfico da produção literária dos
com um príncipe ficcionais?) tratam, Epicurismo e o das doutrinas, Chauí internos na Unidade do Tatuapé. Nos anos 1980,
encantado montado num sobretudo, da relação com Estoicismo, escolas conduz o leitor e quando a entidade passou por mais de 20 rebeliões,
cavalo branco levando o outro, do estar presente filosóficas que datam nunca o abandona em a autora aceitou o desafio de tirar aqueles jovens
“Mariazinha” para longe no mundo, e a temática do período helenístico, prol de hermetismos das páginas policiais e levá-los para as páginas de
de sua vida absurda, da homossexualidade foram apreendidos e complexidades cultura. O livro traz reportagens
assim como, tudo pode masculina encontrada pelo senso comum arrogantes. Exige- sobre as atividades, incluindo
começar com a história na maioria dos contos de forma bastante se, apenas, o esforço produção de textos teatrais e
de um menino que, ainda revela um eixo por onde limitada. Ainda hoje, necessário ao saber montagens de espetáculos.
bebê, fora acolhido e narrativas, ora românticas, o público leigo reduz formal. Nem mais, naquele período.
batizado de “Mariazinha” ora perversas, se mostram a reflexão de Epicuro, nem menos.
por um casal de idosos, invariavelmente cruas. por exemplo, a uma (Gianni de Melo) Autora: Annamaria dias
porque Vovó e Vovô (Raquel Monteath) nova proposta de Editora: Vida & Consciência
sempre quiseram uma filha. vivência hedonista; Páginas: 528
Enredos como esse, banalização presente, Preço: R$ 49
que beiram o fantástico inclusive, nos verbetes
e o incoerente, estão de alguns dicionários. MARGENS TEÓRICAS: MEMÓRIA E ACERVOS
presentes em Histórias O segundo volume LITERÁRIOS
desagradáveis, reunião de da coleção Introdução O livro reúne artigos de professores e alunos
dez contos escritos pelo à história da filosofia vinculados ao projeto Acervo de Escritores
artista plástico Gladstone da professora da Mineiros, da Universidade Federal de Minas Gerais,
Machado, que se Universidade de São que completa dez anos. Os autores analisam obras
aventura em sua terceira Paulo, Marilena Chauí, de escritores mineiros e clássicos da literatura
experiência editorial. surge na contramão nacional e estrangeira, dentro de uma perspectiva
Entre situações cotidianas, de simplismos como o fenomenológica propiciada pelo desenvolvimento
aparentemente pacatas, citado. cultural da sociedade e pela mídia, que coloca
surgem reviravoltas como No livro, a os novos escritores como
as de Toni, um menino que desmistificação em BIOGRAFIA personagens, diminuindo
diante da situação que lhe cONTOS E cRôNIcAS torno dos conceitos cada vez mais a distância
é imposta pela separação próprios destas Introdução à história da filosofia 2 entre realidade e ficção.
dos pais deseja, ainda Histórias desagradáveis escolas helenística é – As escolas helenísticas
que secretamente, ter um Autor: Gladstone M. de Menezes o ponto de partida e, Autora: Marilena Chauí Autor: Roberto Said e Sandra
“amigo” igual ao do pai Editora: LGE Editora sobretudo, o convite ao Editora: Companhia das Letras Nunes (organizadores)
quando crescer. Preço: R$ 25 pensamento filosófico. Preço: 46 Editora: UFMG
As histórias Páginas: 152 A partir de análises Páginas: 388 Páginas: 197
Preço: R$ 38
crônica
Schneider Carpeggiani
Resgatai-me do vácuo
Queria agradecer à La Selva e ao seu letreiro tom vermelho mesmo, ninguém morreu. Se não fosse por Martha,
cansado e também a todas as outras livrarias de aeroporto não teria recitado tantas vezes, e com tamanho fervor,
deste país. Pelo que me lembro, em suas prateleiras nunca o mantra “use-se”. Aeroportos são minas emocionais,
foi difícil encontrar algum pocket book de Martha Medeiros. onde não sabemos se, após uma despedida, iremos
Quantas vezes Martha me ajudou naqueles momentos em sobreviver à sala de embarque ou se voltaremos para
que, senhoras e senhores, chegamos ao vácuo – da viagem casa com gripe suína ou outra praga típica dos viajantes.
e da vida. Foi durante um voo meio estranho, daqueles em Por isso é bom saber que Martha está ali, pertinho!
que era melhor ter ficado embaixo da cama para-todo- Ela anda com novo romance, Fora de mim. Estou
sempre, amém, que ela me ensinou a ter cuidado com esperando uma viagem para começar sua leitura –
pessoas desabitadas, essas aí bonitinhas feito um rótulo ok, minha atitude pode parecer maniqueísta, mas
de chocolate, sorridentes, mas sem nada por dentro. certos autores e certas experiências exigem ritual,
“Uma pessoa habitada é uma pessoa possuída, não convenhamos... Sei que o livro é sobre separação, então
necessariamente pelo demo, ainda que satanás esteja me adiantei e enviei algumas perguntas para ela.
longe de ser má referência. Clarice Lispector certa vez “Somos maniqueístas nas separações, temos a tendência de
escreveu uma carta a Fernando Sabino dizendo que faltava achar que sempre há uma vítima e um carrasco, e o papel
demônio em Berna, onde morava na de carrasco geralmente é o de quem vai embora. Só que
ocasião. A Suíça, de fato, é um país as coisas nem sempre são tão simples. Quem foi embora,
de contos-de-fada, onde tudo quem desistiu, pode continuar amando, só que chegou no
funciona, onde todos são belos. seu limite, não tolera mais certas situações. A verdade é que
Mas falta uma ebulição que a uma relação a dois implica em mil outras coisas além do
amor. Isso é o que Fora de mim quer mostrar”, respondeu a
mulher que gosta de nos lembrar (e nessa conversa voltou
a fazer isso) que “as coisas nem sempre são
tão simples” como exigiria o 2 + 2 da razão.
O que me faz um leitor fidelizado de Martha
Medeiros é certa voz narrativa onipresente
em suas crônicas, poemas e romances que
não toma ar de pedagoga, psicóloga ou irmã
mais velha. Ela surta, problematiza e
salve do marasmo”, leva - fácil - a gente junto. Ler
me esclareceu num trecho de seus livros em trânsito
uma de suas crônicas. Nunca só é recomendável
havia pensado na expressão “habitar” para quem,
para designar estados de espírito, mas foi
bom saber que, às vezes, estamos prestes
a virar uma casa abandonada. Resgatei minhas
malas, três horas depois, bem mais aliviado.
Numa outra viagem, menos dramática, outro livro
me trouxe a grande lição use-se, antes que algum como eu, acredita
engraçadinho chegue e faça isso por você. Numa crônica, que aviões são como
Martha lembra um dia, na praia, quando escutou duas aquelas máquinas de transformação, você entra
mulheres conversando em tom dramático sobre uma uma coisa e volta outra. Utopia, sim, mas não é para
conhecida que, coitada, fora “usada.” Indignada acreditar ou repensar alguma coisa que a gente lê e/
com o tom de coitadinha do diálogo, escreveu: ou viaja? Talvez por isso as livrarias de aeroportos
“Use-se para progredir na vida. Alguma coisa tenham um ethos próprio: há coisas que só lá mesmo!
você já deve ter aprendido até aqui. Nossa conversa por e-mail continuou: “O ‘para sempre’
Encoste-se na sua deixou de ser um objetivo de vida. Hoje as pessoas
própria experiência compreendem que não há como estagnar-se numa
e intuição, honre situação sem sofrer as interferências da passagem do
sua história de vida, tempo. Somos mutáveis, e nem por isso somos frívolos.
seu currículo, e se ele não for tão Se duas pessoas que estão juntas vão evoluindo da
atraente, incremente-o”. E mais importante das mesma forma, no mesmo ritmo, pro mesmo lado, é o
lições, ao menos para mim: não enviuve-se de si paraíso. Mas às vezes não acontece assim, cada um se
desenvolve por um caminho distinto, e nesses casos é
preciso reavaliar: um dos dois estaria disposto a abrir
mão dos seus sonhos? Se estiver e isso não for opressivo,
tudo bem. Mas, se for, naturalmente eles irão preferir
ser amigos e ir adiante sozinhos, dando chance a novas
vivências. Sei que, dito assim, parece tudo fácil e asséptico,
só que vivenciar essas rupturas é sempre sofrido.”
Sim, rupturas sempre são sofridas, mas ainda bem que nem
todas as viagens dependem do “quanto mais difícil melhor”
ou de uma alguma passagem traumática escondida
no meio do caminho. Mas, se isso acontecer,
sempre é possível encontrar algum
livro de Martha 15 minutos antes de
embarcar. Obrigado, La Selva.
HALLINA BELTRÃO