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Sobre

Memória e
Sociedade
Paulo de Salles Oliveira

REVISTA USP • São Paulo • n. 98 • p. 87-94 • JUNHO/JULHO/agosto 2013 87


dossiê Memória

RESUMO ABSTRACT

O artigo sugere reflexões a respeito do The article presents a set of reflections about
livro Memória e Sociedade: Lembranças the book Memory and Society. Remembe-
de Velhos, de Ecléa Bosi, aqui conside- ring of the Elderly, by Eclea Bosi, a master
rado como obra-prima da psicologia piece of social psychology and human
social e das ciências humanas. Destaca sciences. It tries to point out the original
as originalidades de natureza teórico- theoretic and methodological approach
-metodológica do texto, a começar por by bringing out poetry into the scientific
uma composição singular que incorpora construction, redefining the relationship be-
poesia na construção científica, passando tween subject and object of knowledge with
por uma redefinição das relações entre the original development of the changing
sujeito e objeto do conhecimento, ao de- condition between them in the research
senvolver a perspectiva de alternância da construction. It also shows how Ecléa Bosi’s
condição entre ambos, no desdobramen- study is based on close bonds between the
to da pesquisa. Mostra, também, como o researcher and the interviewed elderly, in a
estudo de Ecléa Bosi se fundamenta em way to build up a destiny community.
estreitos vínculos entre a pesquisadora
e os idosos pesquisados, de modo a se
formar entre eles uma comunidade de Keywords: Ecléa Bosi, social psychology,
destino. social memory, elderly, society.

Palavras-chave: Ecléa Bosi, psicologia


social, memória social, idosos, sociedade.

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A
Universidade de São Maior repercussão, ainda, teve Memória PAULO DE SALLES
OLIVEIRA
Paulo possui em seu e Sociedade: Lembranças de Velhos. De to- é professor titular do
quadro docente algu- dos os livros que já li em ciências humanas, Departamento de
Psicologia Social e do
mas personalidades foi o que mais me impressionou e tocou. É Trabalho no Instituto
com brilho invulgar. uma obra que supera em muito os limites da de Psicologia da
USP e autor de,
Não só pelo que en- psicologia social e se coloca com destaque na entre outros, Vidas
sinam, pesquisam ou literatura das humanidades. Creio que esse Compartilhadas:
Cultura e Relações
escrevem, mas também pelo modo como texto inaugura uma nova proposta metodoló- Intergeracionais
agem no dia a dia. Uma dessas raras precio- gica, alinhavando teoria e empirismo a cada na Vida Cotidiana
(Cortez).
sidades é Ecléa Bosi, exemplo de erudição momento de sua reflexão, nunca dissociando
colocada a serviço das grandes causas que um do outro. Acredito, também, que expli-
afetam a humanidade. Tanto quanto seu ma- cita um novo modo de fazer ciência, em que
rido, Alfredo Bosi, se coloca ela como refe- a escrita poética se faz presente, e em que o
rência e contraponto diante da arrogância, sujeito-pesquisador e o objeto do conheci-
dos dogmatismos, dos jargões e da soberba. mento, as pessoas pesquisadas, alternam-se
Suas ações refletem luz e exalam serenidade, mutuamente na difícil tarefa de produção do
perseverança e simplicidade. São exemplos saber. Desse trabalho, delineia-se entre am-
disso tanto a fundação e a coordenação da bos um destino comum, buscando superar a
Universidade Aberta à Terceira Idade quanto assimetria que costuma rondar as relações
a incansável luta contra as usinas nucleares. entre pesquisador e pesquisados. O profundo
Algo semelhante ocorre também com suas respeito que Ecléa tem pela figura do outro
aulas – mesmo aposentada faz questão de a move no sentido de promovê-lo e nunca
lecionar também na graduação e é reconhe- de utilizá-lo em seu próprio proveito. Mais
cida por seus alunos por isso – ou com suas ainda: esse outro, a quem a autora se dedica,
pesquisas e com seus livros. Apresentou- é sempre uma personagem deixada para trás
-nos a Simone Weil, sensível professora de nas representações dominantes da sociedade,
Este texto,
sociologia francesa que se tornou operária, seja a operária com suas leituras, seja o velho com pequenas
e, também, a Rosalía de Castro, poetisa da fragilizado, por quem – como ela diz – nós é modificações, foi
publicado na revista
Galiza, traduzindo e publicando seus textos. que temos que lutar. Psicologia USP (v. 19,
Sua tese de doutorado, Cultura de Massas O livro, editado pela primeira vez em n. 1, jan.-mar./2008),
no dossiê Ecléa
e Cultura Popular: Leituras de Operárias, 1979, surgiu de tese de livre-docência e traz Bosi, organizado
está hoje na 13a edição. uma singular reflexão feita a partir de entre- pelo autor.

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vistas aprofundadas com oito pessoas ido- claro para o autor daquelas linhas. Em Me-
sas, maiores de 70 anos, que viveram desde mória e Sociedade, nota-se como Ecléa vai
a infância na cidade de São Paulo. A história se desapegando de si, aproximando-se com
da cidade é revisitada através da memória suavidade do outro e entregando-se de corpo
social de sujeitos que participaram de sua e alma ao drama vivido pelas pessoas a quem
construção. Até aquele momento – falamos pesquisa. Desse modo, não só estuda, mas
da segunda metade dos anos 70 – suas vozes vive os problemas e se compromete radical-
e suas presenças estavam como que amor- mente a selar para com essa gente uma co-
tecidas. Não se falava com frequência dos munidade de destino, isto é, viver a condição
velhos e, tampouco, da terceira idade. Sa- dos sujeitos pesquisados sem possibilidade
bíamos de São Paulo apenas através do que de retorno à situação anterior.
dizia a historiografia, em suas múltiplas ver- “Nesta pesquisa” – diz ela – “fomos ao
sões. Nenhuma delas, porém, havia se dado mesmo tempo sujeito e objeto. Sujeito en-
conta até então da expressividade narrativa quanto indagávamos, procurávamos saber.
dos velhos. Com Memória e Sociedade fi- Objeto enquanto ouvíamos, registrávamos,
camos conhecendo o que outros livros não sendo como que um instrumento de receber
contam. Não se espere, porém, uma história e transmitir suas lembranças” (p. 38).
linear ou mesmo ausência de contradições A interação em profundidade com as pes-
entre aquilo que é narrado por essas pessoas e soas estudadas faz lembrar o saudoso soció-
os registros históricos. E tampouco se deve logo Oswaldo Elias Xidieh. Ambos, Ecléa e
supor da parte da autora uma postura de ex- Xidieh, são cultores da paciência e esperam
terioridade em relação à trama dos aconte- o momento adequado em que os sujeitos se
cimentos. Bem ao contrário. Afirma ela com sintam livres e à vontade para abrir seu co-
todas as letras que: ração na forma de depoimentos. É preciso
dar tempo ao tempo para que se formem
“Não me cabe aqui interpretar as contradi- vínculos de amizade entre a pesquisadora e
ções ideológicas dos sujeitos que participa- os sujeitos pesquisados; é nessa convivência,
ram da cena pública. Já se disse que ‘para- ombro a ombro, olhos nos olhos, que ao lon-
doxo’ é o nome que damos à ignorância das go dos anos podem juntos construir uma rede
causas mais profundas das atitudes huma- solidária de confiança mútua. Nesse momen-
nas… Explicar essas múltiplas combinações to, percebe-se como a autora pôde realizar a
(paulistismo de tradição mais ademarismo; alternância da condição entre sujeito e obje-
ou tenentismo mais paulistismo mais comu- to: passa ela, a pesquisadora, a ser objeto e
nismo; ou integralismo mais getulismo mais deixa a seus depoentes o lugar de sujeitos. O
socialismo) é tarefa reservada a nossos cien- cultivo da simpatia pelas pessoas estudadas
tistas políticos, que já devem ter-se adestra- permite a Ecléa distinguir o momento propí-
do a estes malabarismos. O que me chama cio em que essas pessoas estão predispostas
a atenção é o modo pelo qual o sujeito vai a falar livremente. Desconheço outro livro
misturando na sua narrativa memorialista a que tão bem promova as qualidades dos seres
marcação pessoal dos fatos com a estilização humanos que focaliza, sem, porém, idealizá-
de pessoas e situações e, aqui e ali, a crítica -los. Ecléa não deixa de exteriorizar sua crí-
da própria ideologia” (pp. 458-9). tica, contudo o faz num nível de elegância
incomum: expressa sua divergência, coloca
O texto é denso teoricamente e, ao mes- sua ressalva sem desqualificar as pessoas;
mo tempo, sensível, fluente, poético. Não ao contrário, busca compreender as razões
tem nada da rigidez de estruturas explica- que as levaram a tais convicções ou atitudes.
tivas que esquematizam o real e desafiam a Um exemplo está no seu comentário sobre as
paciência e a atenção do leitor na tarefa de confusões entre datas e fatos narrados. Ecléa
compreender aquilo que nem mesmo parece assim se expressa:

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Andrew C./stock.xchng
“Às vezes há deslizes na localização tempo- é o desenraizamento, a urgência de abandonar A expressividade
ral de um acontecimento… Falhas de cro- casa e pertences” (p. 465, grifo nosso). narrativa dos
nologia se dão também com acontecimentos idosos é um dos
destaques do
extraordinários da infância e da juventude… Assim não se trata de idealização, ou livro Memória e
Linhas adiante, lembra que “uns e outros seja, de supor qualidades que só a pesquisa- Sociedade
sofrem um processo de desfiguração, pois a dora enxerga nos sujeitos que estuda. O que
memória grupal é feita de memórias indivi- Ecléa se esmera em criar, isto sim, é uma
duais” (p. 419, grifos nossos). atmosfera calorosa e o ensejo para que es-
sas pessoas possam expressar o melhor de
Já em outro caso, ao comentar um su- si mesmas.
posto alheamento de uma de suas entre- Seria interessante destacar que tudo que
vistadas em relação às questões sociais, a estou dizendo não se resume meramente a
autora menciona que: opinião pessoal, ainda que fundamentada.
Bem antes de mim, outros já expressaram
“Tratando da memória política de d. Alice tive publicamente o brilho invulgar desse texto.
de dizer, páginas atrás, que d. Alice não se refere Cabe exemplificar, citando alguns comentá-
a fatos políticos. Convém precisar a afirmação: rios entre os mais notáveis. Octavio Ianni, da
a Revolução de 24 e as manobras de Isidoro e Sociologia, encontrou no livro “uma linda
seus tenentes acordam nela apenas a lembrança lição de vida”. Paulo Sérgio Pinheiro, cien-
de uma situação aflitiva, em que o pior de tudo tista político, apontou que “a história social

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de São Paulo saltou léguas com este mergu- idosos solitários, à espera da doença ou da
lho magistral… o livro é um manancial de hora extrema, e uma pesquisadora, que irá
ensinamentos sobre a participação política e se tornar para eles amiga verdadeira. É uma
o mundo do trabalho no Brasil”. Para Flávio psicóloga diferente, que não vai para os en-
Rangel, teatrólogo, “a autora inaugurou a so- contros carregando categorias preconcebidas
ciologia da emoção: seu livro tem momentos ou teorias pesadas, nas quais as narrativas
de pura poesia, e todo ele é uma rara sensibi- teriam que se encaixar.
lidade em relação aos seres humanos sobre os Teoricamente falando, o trabalho está
quais se debruça… a gente lê como se fosse ancorado em autores clássicos. Mais ainda:
um romance, como se estivesse ouvindo uma ao que me é dado alcançar, o esforço de con-
cantiga de roda, aprendendo intensamente ceituação de memória feito pela autora vai
com seus personagens, que não se pode dei- alinhavando de modo singular fontes nunca
xar de amar”. O escritor Lourenço Diaféria antes aproximadas: Bergson, Halbwachs,
assegurou que “como mero palmilhador de Bartlett e Stern. Aí reside outra dimensão
esquinas e observador dos becos sem saída de sua originalidade.
da cidade, emergi da leitura (de Memória e Em Bergson, a memória é o esforço por
Sociedade) com a sensação de que conheço fazer vir à superfície o que estava imerso e
melhor a atmosfera de São Paulo e descobri oculto, movimento este que restringe o cam-
insuspeitadas fímbrias da alma de suas cria- po de indeterminação e a dúvida do sujeito,
turas”. Outro escritor, Pedro Nava, confessou levando-o a retomar práticas consagradas,
que “lendo seu livro ganhei mais estímulo que anteriormente tinham sido bem-suce-
para continuar a escrever minhas lembranças didas. A memória brota do embate entre a
de um mundo perdido”. E, além desses todos, subjetividade do espírito e a exterioridade da
Carlos Drummond de Andrade revelou que matéria, que, por sua vez, se apresenta como
“o livro me toca por muitas razões, a prin- obstáculo à emergência dessa lembrança.
cipal delas é que o tema envolve uma carga Halbwachs, na esteira de Durkheim, não
enorme de poesia. E é o meu tempo que aí se refere à memória em si, mas aos quadros
se lembra, de uma perspectiva de São Paulo” sociais em que ela é produzida. A memória
(capa do livro) não é, para ele, fruto do sonho, mas do tra-
Mas Memória e Sociedade não apenas balho de refazer, com ideias atuais, as expe-
atravessou fronteiras das áreas científicas. riências do pretérito. Não se trata de reviver
Cruzou também o oceano e venceu barrei- o passado tal qual ele pudesse ter sido rea-
ras geográficas. Bem à feição psicológica, lizado, mas de um esforço de reconstrução
questionou estereótipos, fazendo-nos rever desse passado diante de nossas atuais pos-
a ideia de que o melhor ou mais avançado sibilidades. Ninguém melhor que o velho,
viria sempre de fora, usualmente da Europa pondera Halbwachs, para exercer a função
ou dos Estados Unidos. Vou mencionar ape- social de lembrar.
nas dois exemplos. Um deles se refere ao so- Bartlett, por sua vez, parte da ideia de
ciólogo Pierre Bourdieu, que em seus cursos convencionalização, estipulada por Rivers,
na Sorbonne, em Paris, propunha capítulos ou seja, o processo através do qual ideias
de Memória e Sociedade para leitura e de- e imagens vindas de fora se ajustam e são
bate com seus alunos de pós-graduação, em assimiladas por um dado grupo social. O
seminários que organizava. O outro remete que Bartlett e Halbwachs procuram, expli-
ao psicólogo Karl Scheibe, da Universida- ca Ecléa, é “fixar a pertinência dos quadros
de Wesleyan, em Connecticutt, nos Estados sociais, das instituições e das redes de con-
Unidos. Em um de seus livros, chamado venção verbal no processo que conduz à
Estudos do Self (Self Studies), editado em lembrança” (p. 64). Para Bartlett, existe uma
Londres no ano de 1995, saúda em Memó- continuidade entre a mais simples forma de
ria e Sociedade o encontro milagroso entre assimilação, transportada de um grupo a ou-

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tro e aceita por este, até a criação social de ao fato de que apenas “colheu memórias de
novos elementos simbólicos. Dirá ele: “fica velhos”. Diz ele: “não somente colheu, mas
o que significa”, embora o que fique às vezes deu existência a estas memórias” (Barbosa,
apareça bastante preservado e, outras vezes, 1994, p. 12). Realmente, lendo a fala de cada
enormemente modificado. um dos entrevistados, há diversas passagens
O movimento pelo qual se constrói a que lhe dão razão. Os idosos narram coisas
memória remete, portanto, a múltiplos cami- que jamais suporiam contar a outrem e, des-
nhos: aos meandros insondáveis da liberdade sa maneira, trazem referências importantes
de um espírito que se defronta com a matéria para todos nós, especialmente os de outras
(memória-sonho), aos quadros sociais que a gerações.
situam e delimitam (memória-trabalho) e às Nas lembranças de d. Alice, costureira
mediações por que passa ao longo do tempo. desde menina, ela própria faz questão de
Eis aí a razão pela qual o psicólogo William dizer, em mais de uma passagem, que conta
Stern pontua que a “a lembrança é a história a Ecléa o que não contou a ninguém, nem
da pessoa e seu mundo, enquanto vivencia- mesmo ao padre no confessionário. Em ou-
da” (apud Bosi, 1994, p. 68). tro momento, fica ainda mais nítido o pro-
Se a construção do debate teórico é sin- fundo carinho que aquela senhora nutria
gular, o mesmo se pode dizer quanto ao pela autora: “Contando pra você os peda-
modo de tratar os depoimentos. Aqui, vale ços difíceis, aquela luta, parece que estou
uma vez mais recorrer ao texto de Scheibe. contando para uma pessoa muito querida.
Afirma ele que são comuns em psicologia Conto com todo prazer”. Mais adiante, a
estudos em que “nada do que o paciente diz própria d. Alice se surpreende: “Quem di-
é tido como de valor cristalino e (finalmente) ria que eu iria abrir o livro da minha vida e
o sentido ou a verdade da história somente contar tudo? E agradeço por isso: é bom a
se revela sob a interpretação dada pelo dou- gente lembrar” (pp. 113, 123).
tor”. Eis que, então, escreve Scheibe, Ecléa Nas recordações do sr. Amadeu, que
“apresenta o raro espetáculo no qual a psicó- trabalhou com estamparias e gravuras, ou-
loga simplesmente se entrega ao material que tra particularidade vem à tona. Ele vê nas
colheu de um modo especial: não o subme- entrevistas uma oportunidade para acon-
te a si, de maneira alguma; em vez disso, o selhar. Começa, recatadamente, com um
investe da mais elevada dignidade humana” conselho ao mesmo tempo simples e apa-
(Scheibe, 1995, p. 140, tradução nossa). rentemente difícil de ser seguido nos dias
Torna-se, assim, mais nítido o contrapon- de hoje. Diz ele que: “Aquilo que eu fiz na
to entre esta possibilidade de construir o co- vida não foi grande coisa. Se estivesse na
nhecimento e as formas consagradas de lidar minha competência, eu daria um conselho
com a produção científica, fazendo-nos ver aos jovens: para levar uma vida honesta,
uma vida de amor” (p. 152). Mais adiante,
“[…] como é ilusória a figura de um sujeito entretanto, suas palavras remetem a ensi-
do conhecimento neutro, que observa ‘de namentos de tolerância para com os outros.
fora’ os fenômenos na suposição de apreen- Encontra na prática do trabalho um arrimo
dê-los por inteiro para, ao final, construir so- para superar estereótipos e preconceitos e
bre eles uma imagem definitiva. Determinar deixa aos leitores uma bela lição de psi-
completamente o objeto simbolizaria o poder cologia social. Não é a toa que tenha sido
arbitrário do sujeito do conhecimento, mas escolhido para encerrar o livro. “Os velhos
também a morte do objeto, daí a ilusão que de hoje” – afirma o sr. Amadeu – “foram
recobre tais práticas” (Oliveira, 2011, p. 66). os moços de ontem. Devem procurar ainda
fazer alguma coisa na vida… Há os que par-
João Alexandre Barbosa, das Letras, dis- tiram para o jogo e a bebida e ficaram por aí
corda da modéstia com que a autora se refere abandonados. Mas eu acho que deveríamos

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olhar até para esses velhos. Eles também são na forma de interrogação, que, por sinal,
trabalharam” (p. 152). está posta logo no início do segundo capítulo,
Que dizer, então, do sr. Antonio, que “Tempo de Lembrar”:
chegou a atuar em óperas e trabalhou como
ourives e sanitarista? Reservado, confessou “O que poderá mudar enquanto a criança es-
não ser “destes de contar o que aconteceu. cuta na sala discursos igualitários e observa
Nem pros meus filhos nem pros meus netos. na cozinha o sacrifício constante dos empre-
Há um hiato muito grande entre mim e eles”. gados? A verdadeira mudança dá-se a perce-
Pois bem, esse hiato se desfez com Ecléa, ber no interior, no concreto, no cotidiano, no
para quem contou muitas coisas, como “o miúdo; os abalos exteriores não modificam o
valor que dá às coisas mais comezinhas, às essencial” (p. 73).
coisas mais simples: o olhar de uma criança,
essas coisas de casa, de todo dia. É preciso Memória e Sociedade, em sua 18a edição
amar o que está perto, o resto é tudo vaida- no ano de 2012 e após várias reimpressões, é
de” (pp. 259-60). reconhecidamente um clássico das ciências
Esse voltar-se para os fatos do cotidiano, humanas. Já inspirou peças teatrais, como
que estão bem próximos de nós, assim como Doces Lembranças, e, para a felicidade de
a atenção para com as pessoas simples, algu- educadores e alunos, foi incluído pelo Mi-
mas relegadas socialmente, como os velhos nistério da Educação entre as “Cem Obras
que o livro apresenta, nos levam a pensar sobre o Brasil”, constituindo acervo que deve
numa psicologia social com inspiração em integrar as bibliotecas das escolas públicas
Benjamin, trabalhando com fragmentos, nas assim como a biblioteca do professor.
franjas do tecido social, valorizando uma É um livro para ler e reler, várias vezes.
percepção da condição dos indivíduos e, ao Difícil será não se emocionar e não se sur-
mesmo tempo, visualizando-os num quadro preender; há ali sempre algo a descobrir.
mais amplo. Pois, como dizia Calvino (1993, p. 12), “um
A atenção ao que ocorre no dia a dia su- clássico é um livro que nunca terminou de
gere, igualmente, que formulemos a conclu- dizer aquilo que tinha para ser dito”.

B I B LI O G R AFIA

BARBOSA, J. A. “Uma Psicologia do Oprimido”, in E. Bosi. Memória e Sociedade:


Lembranças de Velhos. 3a ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1994, pp. 11-5.
BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3a ed. São Paulo, Companhia das
Letras, 1994.
CALVINO, Í. Por que Ler os Clássicos. Trad. N. Moulin. São Paulo, Companhia das Letras,
1993.
OLIVEIRA, P. S. Vidas Compartilhadas. Cultura e Relações Intergeracionais na Vida Cotidiana.
2a ed. São Paulo, Cortez, 2011.
SCHEIBE, K. E. Self Studies. The Psychology of Self and Identity. London, Praeger, 1995.

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