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Dinâmicas de emergência

Edição do mês
Peter Pál Pelbart
1 de agosto de 2019

Colagem de Manuela Eichner e Zé Vicente (Foto: Reprodução)

O primeiro aspecto que chama a atenção neste livro vigoroso é a intersecção tensa entre a
tradição dialética alemã e a filosofia francesa dita “pós-estruturalista”. Vladimir Safatle tem clara
consciência da hostilidade de toda uma geração com respeito a Hegel. É bem possível, como
ele supõe, que tal hostilidade tenha sido dirigida menos a Hegel do que a uma imagem que se
cristalizou a seu respeito na França. Fazem parte dessa imagem aspectos como sua suposta
teleologia, um necessitarismo, a totalização, a primazia da identidade, em suma, o que se
convencionou chamar de filosofia da representação. Deleuze, para tomar o exemplo escolhido
pelo autor, talvez tenha brigado mais com a imagem um tanto caricata de Hegel do que com
sua filosofia. Em outras palavras, talvez tenha recusado sobretudo os efeitos dessa imagem –
seus espectros. Como dizia sobre o assunto, brincando: “Il faut bien que quelqu’un joue le rôle
du vilain!” (Afinal, alguém precisa desempenhar o papel do vilão!). E talvez Deleuze tenha
atribuído a esse espectro de Hegel o papel do vilão na construção de seu próprio sistema
aberto.

Portanto, a decisão de desmontar a interpretação de Deleuze sobre Hegel tem aqui sua
pertinência e legitimidade. Daí o empenho em mostrar que a contradição não é mera
contrariedade, que a atualização do infinito pelo Espírito não se apoia num fundamento nem
culmina na identidade, mas, ao contrário, dissolve o fundado num abismo, cuja superação é
inquietude absoluta, puro mover-se-a-si-mesmo; que o ressentimento não está presente em
Hegel, já que seu tempo é o da cicatrização das feridas e não fixação no dolo. Enfim, o capítulo
sobre Deleuze reitera que o movimento dialético é destruição da identidade posta, ainda que
implique a reinscrição da destruição, e que a teleologia da dialética é a própria imanência do
movimento que ela desvela. Todo o restante do capítulo, sobre a univocidade, a multiplicidade,
a imanência, é sumamente interessante, e percebe-se com clareza um esforço não de acentuar
a contraposição entre Deleuze e Hegel, mas de assinalar as convergências.

Não me cabe objetar nada a esse empreendimento, não apenas por falta de competência, mas
por não ver sentido em aguçar um contraste quando o autor faz o contrário, no limite
encontrando um Deleuze embutido em Hegel, ou em germe nele, ou um Hegel embutido em
Deleuze, mais do que o filósofo da diferença o imaginava. Quantas vezes Deleuze mesmo fez
algo semelhante com os autores que estudou? Como ele próprio dizia, enrabar um autor e
fazer-lhe filhos monstruosos. Talvez seja algo dessa ordem que Safatle se propôs encenar
entre ambos.

Mas o momento em que detecto um limite inultrapassável nessas operações está na seguinte
frase do autor: “Para a dialética, não há transformações locais, há apenas transformações
globais. Isso significa que transformações locais que não se organizam em uma contradição
global perdem sua realidade e têm sobrevida momentânea; elas serão frágeis e completamente
efêmeras. Transformações locais devem ser agenciadas enquanto modalidades de contradição
em relação à estrutura genérica de nossa situação atual. Pois apenas a contradição pode fazer
emergir aquilo que, do ponto de vista dos modos de determinação da situação atual, não pode
existir, não pode ser contado, não tem determinação possível (…) Por isso, a dialética é um
pensamento da produtividade imanente da contradição”.

Ora, não nos devolve essa priorização absoluta da contradição e de sua prerrogativa produtiva
a uma matriz que o autor tentou reabrir, pluralizar, mostrando outras dinâmicas de emergência?
Será que não se reintroduz aquilo que Deleuze deplora em Hegel, a subjugação da Diferença à
Contradição? Como ficamos se tudo devesse ser lido a partir da contradição, e referido à
Contradição maior? Quando Deleuze lembra que uma sociedade se define menos por suas
contradições do que por suas linhas de fuga, quando põe o acento menos no futuro da
revolução do que no devir revolucionário das gentes, não estaríamos nas antípodas dessa
visão enunciada com tamanha assertividade?

Retomemos tudo isso a partir de um ponto anterior presente no livro: “Sabemos como Adorno
termina por elevar a não-identidade a conceito central da dialética exatamente no momento
histórico em que filósofos como Deleuze e Derrida insistiam que pensar a diferença deveria ser
compreendido como a tarefa filosófica central da contemporaneidade. Essa convergência
involuntária respondia, na verdade, a um diagnóstico histórico-social comum. Todas essas
experiências filosóficas se constroem a partir do pressentimento da crise do Estado do
bem-estar social (o verdadeiro horizonte no interior do qual se move, por exemplo, um projeto
como O anti-Édipo) e, principalmente, de crença em sua superação necessária. Ou seja, a
emergência da diferença como problema filosófico central nos anos 1960 é indissociável da
crise iminente de um sistema de organização econômica, o capitalismo de Estado, com seus
regimes de reprodução material de formas de vida encarnados na indústria cultural e no
conjunto de práticas terapêuticas de adaptação que crescem no interior de certa ‘cultura
psicanalítica’. Essa emergência é a mobilização da filosofia como força crítica capaz de
empurrar a revolta para a consolidação de uma forma de vida por vir. Ou seja, por mais que
muitos queiram recusar tal realidade [de crise de um sistema], os setores mais comprometidos
com transformações sociais do pensamento alemão e do pensamento francês acabarão por
convergir em suas estratégias de diagnóstico social, mesmo que tais convergências de
estratégias produzam modelos de reconstrução da potencialidade crítica do pensamento
radicalmente distintas. Mas isso ao menos nos mostra como uma recuperação da dialética
como modelo de pensamento crítico precisa ser pensada a partir das críticas feitas pelo
pensamento francês contemporâneo. Pois a crítica do pensamento francês à dialética consiste
em afirmar que ela destrói a diferença que ela mesma procura produzir ao submetê-la à
contradição; ela cala o infinito que ela mesma procura atualizar ao submetê-lo à negatividade.
As estratégias da dialética acabariam, assim, por reinstaurar as formas de vida que ela própria
julgava ultrapassar, e não poderia ser diferente em um pensamento incapaz de se livrar das
amarras do sujeito, da consciência, da história mundial, do Estado, da representação, entre
outros. Seus esquemas conceituais nunca poderiam garantir uma verdadeira perspectiva
materialista, com suas forças, contingências, fluxos e intensidades.” E conclui: “tais críticas não
devem ser simplesmente desqualificadas, mas devem ser respondidas. Há de se reconstruir a
dialética a partir delas”. É todo o trabalho admirável a que se propõe o autor.

Afinal, a dialética negativa visa preservar a dialética das armadilhas da conciliação, sobretudo
quando se apresentam como superação. Daí o sentido da negatividade: não é apenas reativa –
para usar esse termo tão presente no vocabulário de Deleuze – ou, como dizem alguns, niilista.
Assim como a não-identidade é uma figura subjetiva que na sua leitura não equivale a
privação, nem ausência, nem falta de. Com isso, ressalto o procedimento engenhoso presente
nesta obra. O negativo em Hegel não é tão reativo nem tão conciliatório quanto é considerado
e o negativo em Adorno não é tão niilista quanto poderia parecer, já que ele pode ser lido, e a
meu ver é sua aposta final, como espaço de emergência (“A relação negativa à totalidade não
é aporia de uma crítica totalizante, que irá necessariamente se realizar como niilismo ou como
teologia negativa, mas modo de emergência”). A dialética da emergência que o autor propõe
como interpretação mais ousada desfaz a suposta dimensão reativa ou niilista da negatividade
bem como a dimensão conciliatória da superação, tangenciando uma via outra que
desemboca, por assim dizer, na… diferença que parecia até então elidida.

Não é à toa que Deleuze comparece aí como interlocutor privilegiado. O autor percebe a
riqueza e a promessa embutidas nessa direção, mesmo usando seu próprio instrumental. Em
certo sentido, isso também vale para os demais conceitos. Ainda que encontre apoio em Lacan
para repensar o estatuto do sujeito, ao trabalhar a noção de desamparo ou desidentificação, e
em Adorno, a não-identidade, ou em outros a noção de despossessão, ou de errância, não
estamos tão longe da destituição do sujeito identitário, tal como pensa a geração de franceses,
desde Blanchot, Bataille até Foucault ou Deleuze e Derrida, cada qual a seu modo. Se tomo
Deleuze, para a heteronomia sem servidão temos a prevalência da noção blanchotiana de
dehors como elemento central para repensar a subjetividade, assim como para a
não-identidade temos os múltiplos eus, ou sujeitos larvares, ou o sujeito na adjacência dos
agenciamentos, para a errância, o nomadismo, os múltiplos devires, para a emergência, o foco
na invenção, desde Bergson, ou a noção de Diferença entendida antes como diferenciação,
isto é, processualidade, atualização a partir do virtual, mas também a preservação do virtual
enquanto virtual. Há correlações, apesar do acento distinto – que consiste num tom mais
subtrativo, de um lado, e mais proliferante, de outro. Ainda assim, se cruzam.

Cito aqui a afirmação do livro: “A negatividade do movimento dialético é, na verdade, a


manifestação da emergência da noção de infinito”. Fácil lembrar a frase de Deleuze em O que
é a filosofia: “O problema da filosofia é de adquirir uma consistência, sem perder o infinito no
qual o pensamento mergulha”. Ou ainda: “A utopia não se separa do movimento infinito: ela
designa etimologicamente a desterritorialização absoluta”. Não tenho certeza de que seja o
mesmo infinito que está colocado aqui, já que um parece referir-se a uma totalidade, o outro a
uma velocidade infinita, ao movimento infinito. Mas também aqui talvez se encontrem, no que
assim está definido: “explode-se a finitude e pode emergir uma totalidade verdadeira em sua
processualidade contínua capaz de instaurar objetos em movimento imanente”. Mas há
totalidade e totalidade. Postular a totalidade num momento em que o Estado nacional era um
ganho de racionalidade e de direito em relação aos interesses locais é muito diferente de falar
em totalidade numa época, como a nossa, de afirmação global da falsa universalidade do
Capital. Ainda assim, a totalidade verdadeira, argumenta o livro, contra a falsa totalidade, não
se exprime na forma das positividades. Portanto, pensar a totalidade como sistema aberto ao
desequilíbrio periódico e infinito, apto à reconfiguração posterior dos elementos singulares, é
sair da perspectiva positiva-racional-progressiva. A totalidade é, portanto, processualidade,
autotransformação.

Mencionados esses elementos todos, não é à toa que Dar corpo ao impossível se recusa a
colocar os franceses no saco da ideologia francesa, já que devem ser preservados como
aliados e podem ativar aproximações, apropriações, encavalamentos incessantes. Penso que
essa escolha é sábia e fecunda, dá testemunho de uma abertura real e desafia o partidarismo
filosófico sem ceder minimamente no cultivo de suas fontes próprias.

Digo isso porque me chama atenção a total afinidade que experimentei ao longo dos últimos
anos com as posições políticas do autor, sem que as diferenças teóricas de fundo me
incomodassem minimamente. Não que elas fossem indiferentes, mas parece que, com
instrumentos diferentes, chegávamos a apreciações tão convergentes que não raro me
perguntei como isso era possível.

Claro está que todo o trajeto do autor está marcado por uma preocupação com as condições
da ação política, e parte de O circuito dos afetos já tocava nesse ponto, ao focar nos corpos
afetivos e políticos e na incorporação como incontornável para pensar o político. Em suma, tal
engajamento diz muito da perspectiva do autor sobre o papel do intelectual hoje. Conhecemos
a discussão entre Foucault e Deleuze a respeito do intelectual específico em substituição ao
intelectual genérico, pretenso porta-voz da consciência humana em geral. Também
conhecemos a bela posição de Adorno sobre a função desintegradora do intelectual, que a
teoria crítica teria deixado de lado e que cabe resgatar, apostando no aprofundamento das
potencialidades revolucionárias do presente, ou nos processos de emergência ou, ainda, no
desafio de pensar a sociedade capitalista a partir de sua plasticidade revolucionária imanente.

É de admirar o canteiro de obras no qual Safatle trabalha com tamanho afinco e energia nos
últimos anos, sem ceder a nenhum pacto ou compromisso, e sem nenhum sinal de fadiga ou
resignação. O que nos atordoa não será essa energia e acuidade que se depreende de seus
textos num momento em que a atmosfera ao redor anda tão impregnada de desânimo? Mas
como não reconhecer e até louvar certa desmesura, quando tantos desafios se colocam à
filosofia, e tantos perigos a rondam?

PETER PÁL PELBART é doutor em Filosofia pela USP e professor da PUC-SP

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