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V CONGRESSO LATINO AMERICANO DE ARQUEOMETRIA

Máscaras do tempo: caracterização e preservação de entrecascas Ticuna.

Ana Carolina Delgado Vieira¹, Edson Tosta Matarezio Filho², Paula Aline Durães
Almeida³, Marcia de Almeida Rizzutto³

¹ Museu de Arqueologia e Etnologia – Universidade de São Paulo (MAE/USP)


² Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de Antropologia - Universidade de São
Paulo (FFLCH/USP)
³ Instituto de Física - Universidade de São Paulo (IF/USP)
Palavras-chave: Ticuna, Entrecascas, Conservação de Materiais Etnográficos, Pesticidas, XRF.

Máscaras representando seres habitantes do cosmos, “imortais” (ü’üne) e “bichos”


(ngo’o), fazem parte do ritual de iniciação feminina conhecido como a “Festa da Moça
Nova” dos índios Ticuna, que atualmente estão distribuídos entre Brasil, Peru e Colômbia.
Este ritual, documentado desde o século XIX, ainda persiste em algumas comunidades
atuais, principalmente do Brasil.

O Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP)


é detentor de uma das maiores e mais significativas coleções do patrimônio cultural
indígena brasileiro. No período 1942-1965, o etnógrafo-fotógrafo Harald Schultz se
destacou entre os maiores coletores do acervo etnológico indígena. A coleção de máscaras
e vestimentas Ticuna do MAE é composta por 691 objetos feitos de entrecascas coletadas
entre 1955-1960 por Harald Schultz.

Durante suas expedições, Harald Schultz também registrava suas experiências de


campo em fotos e filmes e sua produção é ainda de grande importância para se compreender
os processos de continuidade e resistências culturais.

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Slide 1. Harald Schultz em campo, com os Kadiwéu. Foto: Acervo do Museu do Índio/Funai - Brasil.
1943/1944

Graças a este preciso registro documental, sabemos em detalhes as etapas de


confecção destes objetos e a inserção destes no ritual da “Festa da Moça Nova”. Os Ticuna
consideram que durante a puberdade, as meninas ficam vulneráveis às ameaças dos espíritos
maléficos da floresta. Cabe a alguns parentes mais próximos e outros conhecedores da Festa
protegê-las neste período e executar o ritual de passagem com perfeição para que os
espíritos não façam mal às jovens.

Os responsáveis pela Festa constroem um “quarto de reclusão” (turi) dentro da “casa


de festas” (yüüĩpataã), onde as meninas que tiveram sua menarca ficarão “guardadas”
(aure) durante o ritual. Separada do convívio da família, a menina terá apenas contato com
sua mãe e tia paterna. Durante a reclusão, a jovem se dedicará a tecer fibra de tucum para
presentear o principal coordenador das etapas do ritual, o “copeiro” (üaü̃cü)

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Slide 2. Os convidados colocam as paredes da reclusão dentro da casa principal. Foto: Harald Schultz –
Acervo MAE/USP (IE000568)

A festa dura três dias e duas noites e dela participa toda a comunidade. O pai prepara
carnes de caça e pesca, que será dada a alguns convidados – principalmente os mascarados
–, enquanto a mãe e outras mulheres preparam grandes quantidades de bebidas fermentadas.
Dois elementos merecem destaque neste ritual: os instrumentos musicais e as máscaras
(Dorta 2001, p. 429).

Para a cerimônia, são preparados trompetes, flautas e tambores de madeira, os quais


são tocados incessantemente durante os dias da festa. Isso deve ser feito para que as moças
não “fiquem no silêncio” (Matarezio Filho, 2015: 272), o que as deixariam a mercê da
iniciação por outros seres daninhos do cosmos. Entretanto, o mesmo som do instrumento
musical também cumpre o papel de convidar os seres míticos da floresta a participar da
“Festa da Moça Nova”.

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Slide 3. Um homem traz o trompete para a casa onde as iniciadas estão reclusas. Foto: Harald Schultz –
Acervo MAE/USP (IE000957)

O sofrimento durante o ritual de iniciação é mais uma vez imposto às moças: além
do período de reclusão, da obrigação de permanecer acordada durante os três dias de festa,
as jovens ainda têm o seu cabelo arrancado enquanto escutam duros conselhos das mulheres
mais velhas. O ato tem por significado o renascimento de uma nova mulher (Schultz 1962,
p. 22). O arrancamento dos cabelos e a pintura do corpo com tintura de jenipapo equivalem
a uma troca de pele para os Ticuna, o que rejuvenesce as moças que passam pelo ritual
(Matarezio Filho, 2015). Muitas máscaras são a presença de “seres malignos” (ngo’o) que
tenta raptar as moças que estão na reclusão. Estes seres sobrenaturais ameaçam às moças
no período de transição para sua fase adulta e por isso a importância da execução correta
de todos os ritos desta cerimônia de passagem.

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Slide 4. O cabelo das iniciadas é arrancado. Foto: Harald Schultz – Acervo MAE/USP (IE000768)

A matéria-prima principal das máscaras é feita de entrecascas de árvores conhecidas


como “tururi”, das quais existem diversos tipos. A confecção e uso destes objetos são
exclusivos aos homens da aldeia.

Slide 5. Segundo a mitologia, o tüerüma é uma árvore encantada que oferece o tururi aos Ticunas. As onças
são donas destas árvores. Desenho: Diodato Otaviano Aiambo (O livro das Árvores).

Quase sempre decoradas com pigmentos de origem vegetal e madeiras esculpidas,


as máscaras trazem uma grande diversidade de seres representados, tais como: pai do vento,
borboleta, macacos, aranhas, serpentes e outros seres míticos.

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Slide 6. Máscaras coletadas por Harald Schultz. Acervo MAE/USP. Fotos: Ader Gotardo.

A operação para a retirada da fibra do tururi é bastante minuciosa. Harald Schultz


registrou passo a passo a forma de coleta e o preparo da fibra para a confecção das máscaras.
Nestes registros documentais, podemos conferir que após a retirada do tronco da árvore, os
homens começam a bater vigorosamente na casca do tururi com um pau de madeira até que
seja possível destacar o tecido interno da casca da árvore.

As batidas no pano continuam, uma vez que este procedimento permite transformar
a matéria-prima em um tecido mais fino e flexível. Após isso, a entrecasca é lavada para
finalizar o processo de flexibilização e colocada ao sol para secar.

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Slide 7. Sequência da preparação da entrecasca. Fotos: Harald Schultz – Acervo MAE/USP (IE000667,
IE000666, IE000665, IE000664)

A pintura das máscaras exibe diversos padrões e desenhos figurativos. A


complexidade destas pinturas envolve referências aos clãs e diversos seres não-humanos.

Slide 8. Decoração na entrecasca. Foto: Harald Schultz – Acervo MAE/USP (IE001071)

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Apesar desta relação, os homens devem manter-se desconhecidos até a sua


performance final. A dança é o momento mais esperado da festa, quando os mascarados
fazem movimentos insinuantes sugerindo que estão ali para capturar a moça nova. Todos
na festa se envolvem na brincadeira, tentando proteger a menina dos mascarados.

Slide 9. Máscara de macaco fazendo gestos sugestivos. Foto: Harald Schultz – Acervo MAE/USP
(IE000784)

Ao final, ainda na casa de festas, o portador da máscara presenteia o pai da menina


com a máscara e recebe carne ou peixes moqueados e bebida fermentada em retribuição à
sua participação neste ritual.

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Slide 10. Presentes de carne defumada são oferecidos pelo pai da jovem. Foto: Harald Schultz – Acervo
MAE/USP (IE000830)

Após terem os cabelos arrancados as moças dançam com os mascarados no centro


da casa de festas. Adornadas pelas mulheres mais velhas com jenipapo e colar de contas,
elas se enfeitam com penas coloridas. Terminado o ritual, as moças podem retomar o
convívio social.

Slide 11. Uma menina adornada com jenipapo. Foto: Harald Schultz – Acervo MAE/USP (IE000959)

O registro descritivo deste ritual por Harald Schultz nos comprova que objetos
etnográficos são concebidos muitas vezes para um uso efêmero: uma dança, um ritual e o
uso cotidiano são alguns exemplos da vida social destes materiais. Processos de
deterioração podem ser desencadeados mesmo logo a partir da sua própria concepção.
Feitos de fibras vegetais, tecidos, plumárias, os objetos são manipulados e preparados para
a sua manufatura (Florian, 1990, p. 139). Além da sua trajetória de uso e sua biografia, são
coletados e expostos a uma nova condição quando ingressam nas reservas técnicas dos
museus.

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Slide 12. Homem preparando um tambor para o ritual. Foto: Harald Schultz – Acervo MAE/USP
(IE000674)

A preservação de objetos etnográficos é uma verdadeira corrida contra o tempo,


onde as instituições procuram prolongar a vida de materiais que muitas vezes são
produzidos para um ritual e são descartados logo após o seu uso. Desta forma, a efemeridade
das máscaras Ticuna é testemunhada cotidianamente no MAE/USP.

A degradação de materiais como as máscaras apresenta uma combinação de


sintomas, tais como: enrijecimento da entrecasca, desprendimento das fibras vegetais,
esmaecimento de cores, acidificação e rupturas ao longo das fibras. Este conjunto de fatores
implica graves alterações da morfologia e integridade do artefato, fazendo com que estas
peças não estejam mais aptas para pesquisas e exposições.

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Slide 13. Exemplo de processo de deterioração: acidificação e perda da integridade da fibra vegetal (RG
10048). Foto: Ana Carolina Delgado Vieira.

Não é possível determinar um único agente de deterioração que seja responsável por
este conjunto de sintomas. O grau das deteriorações depende da composição química do
objeto e da ação combinada com agentes de risco tais como forças físicas, luz, temperatura
e umidade incorretas, agentes biológicos e contaminantes diversos.

Por estas múltiplas variáveis, apenas conseguimos começar a entender os processos


degradativos das entrecascas se analisarmos estas combinações de fatores de forma mais
acurada, a fim de se compreender a composição química destes objetos e tentar identificar
outros elementos que possam ter contribuído para a degradação deste material.

Neste trabalho, analisamos 23 máscaras e identificamos 3 tipos de entrecascas


utilizadas para a confecção dos objetos desta coleção. Classificamos as máscaras por exame
visual nas categorias: “branco, marrom e vermelho”. Desta forma, 7 máscaras ficaram no
grupo branco, 6 no grupo marrom e 10 no vermelho. Esta classificação, usada aqui para fins
analíticos, não corresponde a classificação nativas das variedades de tururi feita pelos
Ticuna, que excede estes três tipos (ver Matarezio Filho, 2015: 421-422).

Os critérios desta classificação nos três grupos citados foram inspirados em um


relato de viagem do coletor, o qual indica que estas 3 diferentes tonalidades existem nas

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vestimentas de entrecasca. Por este motivo, decidimos classificar as máscaras segundo as


diferenças visuais entre elas.

“A vestimenta é feita de entrecasca de Ficus sp., havendo de diversas


qualidades, nitidamente distinguidas pelos Tukuna: o branco, que só
existe nos baixos (várzeas), um de tonalidade marrom clara e um
‘vermelho’, ambos das partes mais altas dos igarapés. A cor verdadeira do
‘tururi vermelho’ é um castanho claro avermelhado. Existem outros cuja
tonalidade se inclina para o cinzento”.

Harald Schultz, Diário de Viagem, dezembro de 1960 (Doc. 3 - Caixa


10)

Slide 14. Da esquerda para a direita: Entrecasca branca, marrom e vermelha (RG 8559, RG 8615 e RG
8560). Fotos: Ader Gotardo

Para classificar o estado de conservação dos objetos, foram eleitos 4 status: bom,
regular, deficiente e ruinoso. O objeto bom era classificado assim quando ele não possuía
nenhum indício de deterioração. O status regular significava que o objeto estava em
condições estáveis, mas apresentava algum tipo de deterioração. Já a classificação deficiente
nos remetia a um objeto instável e que precisaria ser estabilizado através de uma ação de
restauro. Por fim, o estado ruinoso significa que o processo de deterioração no objeto era
irreversível.

As principais deteriorações registradas foram:

 Desprendimento
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 Distorções
 Enrijecimento das fibras
 Manchas
 Perdas
 Rupturas

N de Tombo Grupo Status Desprendimento Distorções Enrijecimento Manchas Perdas Rupturas


RG 8660 Branco Bom X X
RG 8702 Branco Bom X X X
RG 10715 Branco Deficiente X X X X X
RG 9954 (2) Branco Deficiente X X X X X
RG 9977 Branco Deficiente X X X X X
RG 8559 Branco Regular X X X X X
RG 8585 Branco Bom X X X X X
RG 10034 Branco Deficiente X X X X X
RG 8615 Marrom Bom X
RG 10050 Marrom Deficiente X X X X
RG 10705
Marrom Deficiente X X X
(2)
RG 7974 Marrom Regular X X X
RG 7986 Marrom Regular X
RG 7984 Vermelho Bom X
RG 8560 Vermelho Bom X X
RG 8575 Vermelho Bom X X
RG 8659 Vermelho Bom X X X
RG 7972 Vermelho Deficiente X X X X
RG 9983 Vermelho Deficiente X X X X X
RG 8602 Vermelho Regular X X X X
RG 8604 Vermelho Regular X X X X X
RG 8617 Vermelho Regular X X X X X
RG 10048 Vermelho Ruinoso X X X
Slide 15. Detalhes do Estado de Conservação das máscaras

Percebemos que as entrecascas majoritariamente do grupo branco, classificadas com


o status deficiente, sempre tem a patologia do enrijecimento da fibra vegetal.

Por outro lado, os grupos marrons e vermelho, quando classificados como


deficientes ou ruinosos podem apresentar perdas, fibras quebradiças e desprendimento de
matéria.

Para complementar a análise organoléptica dos objetos, realizamos a medição do


pH uma vez que os níveis de acidez da fibra também poderiam colaborar na classificação
do estado de conservação dos objetos.

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Para compreender a relação entre a composição química e os fatores de degradação


destes objetos, também caracterizamos as entrecascas através das análises com
fluorescência de raios-X por dispersão de energia (EDXRF).

As medidas de EDXRF foram realizadas no Laboratório de Conservação e Restauro


do Museu de Arqueologia da Universidade de São Paulo. O sistema portátil de XRF
empregado para as medidas é composto por tubo mini X (Amptek) de anodo de prata com
30 kV e 10 µA. Para a aquisição dos dados utilizou-se um detector de XR-100SDD (Silicon
Drift Detector) com resolução 125eV @ Mn K. Em função do cone de abertura do feixe
do tubo, cada região excitada/medida tinha cerca de 3 mm de diâmetro. O tempo de
excitação-detecção foi de 100 segundos.

Foram escolhidos pontos da entrecasca sem pinturas para a realização das medições
de EDXRF. Após as medições, os espectros foram analisados com o software WinqXas, e
os resultados foram interpretados qualitativamente através de gráficos de barras para cada
elemento detectado nos diferentes pontos e máscaras medidas.

Slide 16. Análise da entrecasca RG 8617. Foto: Ana Carolina Delgado Vieira

As análises de EDXRF conseguiram caracterizar os seguintes elementos: Si, S, Cl,


K, Ca, Ti, Mn, Fe, Zn, Br, Rb, Sr, Ba.

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N de
Grupo Status Ca K Zn Cl S
Tombo
RG 8660 Branco Bom + + + +
RG 8702 Branco Bom + + + +
RG 10715 Branco Deficiente + + +
RG 9954
Branco Deficiente + + + + ++
(2)
RG 9977 Branco Deficiente + ++
RG 8559 Branco Regular + + + +
RG 8585 Branco Bom ++ + + + +
RG 10034 Branco Deficiente + + ++ ++
RG 8615 Marrom Bom + + +
RG 10050 Marrom Deficiente ++ ++
RG 10705
Marrom Deficiente + + +
(2)
RG 7974 Marrom Regular +
RG 7986 Marrom Regular + + + +
RG 7984 Vermelho Bom + + + +
RG 8560 Vermelho Bom +
RG 8575 Vermelho Bom + +
RG 8659 Vermelho Bom + +
RG 7972 Vermelho Deficiente ++
RG 9983 Vermelho Deficiente + ++
RG 8602 Vermelho Regular +
RG 8604 Vermelho Regular + +
RG 8617 Vermelho Regular + +
RG 10048 Vermelho Ruinoso + ++ ++ ++

Slide 17. Gráfico do dia 02/11/16

Nesta análise foram investigados diferentes pontos das máscaras com o objetivo de
identificar os elementos químicos presentes nestes objetos e tentar correlacionar alguns
destes elementos a processos de deterioração que algumas máscaras apresentam. Nas figuras
1, 2 e 3 podemos observar os espectros de XRF obtidas para alguns pontos medidas nas obras,
e os respectivos elementos químicos identificados.

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Fig. 1 Espectro de XRF da obra “RG8560” - região clara - P1 medido com o sistema
portátil de XRF.

Fig. 2. Espectro de XRF medido na obra “RG8585” com o sistema portátil de XRF.

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Fig. 3. Espectro de XRF medido na obra “RG10034” com o sistema portátil de XRF.

A figura 4 mostra a comparação de três máscaras (“RG8560”, “RG9977”e “RG8585”.


Pode-se observar que o elemento Ca e Fe possuem intensidades bem diferentes nestas três
obras.

Fig. 4. Espectros de XRF de comparação medidos na obra RG8560 (af), RG9977 (bk) e
RG8585 (bl) com o sistema portátil de XRF.

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As análises destes espectros evidenciam os elementos químicos Si,S, Cl, K, Ca, Ti,
Mn, Fe, Zn e Sr. Os elementos Ar e Ag são elementos do arranjo experimental e não da
amostra analisada.

Identificamos que o elemento Ca é um excelente diferenciador para os três tipos de


máscaras: brancas, marrons e vermelhas com quantidades altas, médias e pequenas,
respectivamente.

Reorganizando as máscaras pela quantidade de Ca

A partir do resultado das análises, podemos sugerir que a presença elevada de Ca


nas entrecascas brancas também é responsável pelo enrijecimento das fibras. Por exemplo

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temos as máscaras RG 9954 e RG10715.

Slide 18. Inserir Imagens das entrecascas enrijecidas com quantidade alta de Ca – 9954
(2) e 10715

Algumas entrecascas dos diferentes grupos mostram condições deficientes de


conservação quando apresentam altas concentrações de Zn e S em sua composição. Diante
dos resultados obtidos, é possível indicar que estes elementos possuem uma forte correlação
com o processo de deterioração das máscaras analisadas

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Por fim, os exemplares que apresentaram mais perdas de matérias, enrijecimento e


pulverulência têm em comum a presença de S, Zn e indícios de Cl, elementos que podem
ser indicadores de tratamentos anteriores com pesticidas aplicados décadas anteriores no
museu. Por exemplo, a máscara RG 10048 se encontrava em bom estado de conservação
na década de 70. Na ficha, foi registrado este status e também informado que a peça foi
“limpa, desinfetada e embalada em saco plástico”

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Slide 21. Imagem da ficha catalográfica do objeto RG 10048.

Para complementar as análises de EDXRF, também medimos o pH das entrecascas.


Inicialmente, as medidas foram feitas através de fitas indicadoras. Mas, preferimos utilizar
um phmetro portátil para obter números mais precisos. Como as entrecascas
espontaneamente apresentam desprendimento de matérias, as amostras eram abundantes e
a análise pode ser realizada. As fibras foram cortadas com auxílio de um bisturi, maceradas
e deixadas em imersão em água destilada por 24 horas. Utilizamos o phmetro da marca
Hanna previamente calibrado em uma sala com temperatura controlada.

Status de
Objeto Possui Local de
N de Conservação
Grupo Status pH Ficha Guarda - Intervenções
Tombo - Década de
Catalográfica? Década de 70
70
RG 8660 Branco Bom 5.50 Sim Sótão Bom -
RG 8702 Branco Bom 6.80 Sim Sótão Bom -
"Em 1978 foi limpa e
"O tururi está
RG 10715 Branco Deficiente 6.61 Sim Armário 20 embalada com
danificado"
desinfetante"
RG 9954 (2) Branco Deficiente 5.08 Não - - -
RG 9977 Branco Deficiente 6.00 Não - - -
RG 8559 Branco Regular 5.00 Sim Sótão Bom -

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RG 8585 Branco Bom 6.10 Sim Sótão Bom -


RG 10034 Branco Deficiente 4.15 Não - - -
RG 8615 Marrom Bom 5.86 Sim Sótão Bom -
RG 10050 Marrom Deficiente 3.12 Não - - -
"Entrecasca
RG 10705 "Em 1978 foi limpa com
Marrom Deficiente 5.96 Sim Armário 20 um pouco
(2) desinfetante"
rasgada"
RG 7974 Marrom Regular 6.00 Sim Armário 20 Bom -
RG 7986 Marrom Regular 5.37 Não - - -
RG 7984 Vermelho Bom 5.25 Não - - -
RG 8560 Vermelho Bom 5.50 Sim Sótão Bom -
RG 8575 Vermelho Bom 6.10 Sim Sótão Bom -
RG 8659 Vermelho Bom 6.20 Sim Sótão Bom -
RG 7972 Vermelho Deficiente 3.52 Não - - -
Sótão "Em 1979, foi limpo e
RG 9983 Vermelho Deficiente 6.20 Sim -
(Armário 32) desinfetado"
RG 8602 Vermelho Regular 6.33 Sim Sótão Bom -
RG 8604 Vermelho Regular 4.88 Sim Sótão Bom -
RG 8617 Vermelho Regular 6.00 Sim Sótão Bom -
"Limpa, desinfetada e
RG 10048 Vermelho Ruinoso 3.16 Sim Armário 21 Bom embaladas em saco
plástico"
Slide 22. Resultado das análises de pH das amostras.

Os valores do pH medido das entrecascas ficaram entre 3.12 e 6.80. Alguns objetos
registraram um pH abaixo de 5.5, nível este considerado ácido para materiais feitos de fibras
de celulose (British Standards Institute, 1973). Entretanto, estes objetos ainda apresentavam
boas condições de conservação. Objetos com valores mais baixos entre 3.12 e 5.08,
indicando assim um potencial de acidez da fibra, apresentaram condições de conservação
instáveis. Os objetos que foram “limpos e desinfestados”, segundo registros das fichas
catalográficas, registraram pH entre 5.96 e 6.61. Não temos informação da composição
química desta solução de limpeza, mas soluções alcalinas podem degradar a hemicelulose,
podendo causar perda da flexibilidade neste tipo de objetos (JOHNSON, p. 82).
Possivelmente, a composição química destes “desinfetantes” aplicados deveria ser à base
de um composto alcalino residual, uma vez que as medidas do pH nos revelaram esta
característica.

Tratamentos com uso de pesticidas foram muito comuns na história de muitos


museus etnográficos, uma vez que os objetos compostos de materiais orgânicos sempre
apresentavam uma alta vulnerabilidade do ponto de vista da conservação.

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Estes tratamentos, raramente eram registrados. Quando o eram, a menção dos


produtos químicos utilizados, assim como detalhes do método não eram feitos. Atualmente
hoje os museus tentam recuperar estes vestígios esparsos, assim como estes registrados
nesta ficha catalográfica.

Funcionários antigos do MAE recordam que tratamentos eram feitos através do uso
de tetracloreto de carbono, fosfina, brometo de metila entre outros compostos comerciais
que não são mais lembrados. Parte da coleção etnográfica ficava acondicionada no sótão do
Museu Paulista, antes da transferência deste acervo para o MAE em 1989. Relata-se que
neste período, as condições eram insalubres e a área era muito infestada por ratos. A
presença de Cl e S pode ser justificada pelos tratamentos químicos preservativos, tais como
estes descritos nesta ficha catalográfica, assim como também a presença do Zn possa indicar
resquícios de pesticidas contra roedores e outras pragas (ODEGAARD 2005).

As análises de EDXRF mostraram-se bastante adequadas para a detecção de


elementos químicos que tenham relação com processos de deterioração nos objetos. Esta
técnica é não-invasiva, multielementar e não-destrutiva e pode ser utilizada com bastante
rapidez na análise das entrecascas. Mesmo quando trabalhamos com materiais com alta
quantidade de material orgânico (caso de entrecascas de árvores), a técnica de XRF
respondeu adequadamente evidenciando a presença de diversos elementos químicos
inorgânicos.

Slide 23. Análise de EDXRF da máscara RG 8560. Foto: Márcia Rizzuto.

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A presença dos vários elementos químicos pode estar relacionada ao tipo de solo e
às árvores que cedem a matéria-prima das máscaras. E o excelente exemplo identificado é
o Ca que permitiu separar os três grupos de entrecascas: brancas, marrons e vermelhas.

Inicialmente, agrupamos a máscara RG 10034 no grupo “marrom”, mas sua grande


quantidade de Ca nos permitiu corrigir este equívoco, classificando-a no grupo “branco”.

Como partimos inicialmente de um critério subjetivo da percepção visual da


diferença das cores dos objetos, as análises EDXRF viabilizaram uma maior precisão neste
critério classificatório e na possibilidade de agrupar três grandes grupos deste conjunto de
máscaras.

Slide 24. Máscara RG 10034 classificada como marrom, mas realocada no grupo branco. Foto: Beatriz
Eritheia Guimarães and André Labate Rosso.

Como demonstramos, as presenças de Cl, S e Zn podem ser evidências de


tratamentos químicos preservativos, exemplos de ações de salvaguarda já obsoletas
aplicadas em longa escala por diversos museus etnográficos que tentavam assim garantir a
perenidade destes objetos. Estas ações se mostraram insuficientes ao longo dos anos, pois
outros problemas de conservação advindos destes tratamentos se manifestaram nestas
peças.

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As análises são ferramentas importantes do processo decisório no qual o


conservador pode identificar materiais, determinar com maior clareza o estado de
conservação e refletir sobre a biografia destes objetos. Os resultados destas investigações
fornecem subsídios que podem justificar intervenções ou outras ações de estabilizações para
estas máscaras.

Como conservadores de materiais etnográficos, precisamos ter em conta o contexto


e a biografia dos objetos. O que podemos classificar como deterioração pode ser na verdade
parte da história de uma peça.

Slide 25. Máscara RG 9977 classificada como deficiente que não registra em sua composição química
nenhum elemento que seja determinante à sua atual condição de conservação, apontando assim uma
possibilidade de dano provocado pelo processo de manufatura ou uso etnográfico. Foto: Beatriz Eritheia
Guimarães and André Labate Rosso.

No caso das máscaras, podemos citar manchas de uso provocadas por tintas
aplicadas ao corpo e rupturas na fibra originadas ainda no seu processo de manufatura,
quando a entrecasca é batida para que seja preparada. O fato de que algumas fibras possam
estar destacadas e mais abertas pode ser um sinal de uso ou mesmo de um processo de
manufatura mais vigoroso que tenha dado esta condição ao objeto.

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Slide 26. Mascarados na festa da iniciação: stress físico provocado por danças e manchas originadas de
pinturas corporais podem afetar a classificação do estado de conservação. Foto: Harald Schultz – Acervo
MAE/USP (IE000930 e IE001046)

Inadequadas condições de acondicionamento também são fatores extrínsecos


importantes que irão fragilizar a condição do objeto. Recuperar o percurso dos objetos
durante a sua trajetória nos museus também é uma importante fase da pesquisa que irá dar
mais subsídios aos conservadores para a compreensão do estado de conservação dos
objetos.

A análise destes 23 objetos apresentou caminhos para se compreender o estado de


deterioração das entrecascas, assim como também revelou resquícios de intervenções
anteriores no museu. A deterioração deste material é formada por uma combinação múltipla
de fatores e, neste caso, foram complementadas pelas análises, pelo registro histórico de
coleta destas peças, assim como pelas pontuais informações da catalogação dos objetos. A
investigação deve continuar nas próximas etapas, através da análise de mais máscaras e
mais levantamentos dos registros documentais destes objetos.

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No geral, cerca de 94% da coleção de objetos de entrecasca Ticuna está em


condições de conservação boa e regular, requerendo apenas limpezas superficiais e
tratamentos simples como umidificações pontuais. Tratamentos que requerem ações de
maior complexidade necessitam ser muito bem justificados.

Conservadores são guiados por preceitos éticos como a reversibilidade, mínima


intervenção e respeito pela propriedade cultural. Ao escolher conservar um objeto,
demandas e expectativas, por vezes conflitantes, devem guiar escolhas responsáveis.

Para auxiliar este processo decisório, é vital o trabalho em conjunto com


antropólogos, cientistas e, se possível, com a participação de membros da comunidade
indígena, pois eles poderão nos dar detalhes sobre o processo de manufatura e uso do objeto
que irão enriquecer o registro antropológico e poderão colaborar nas escolhas dos
tratamentos que serão aplicados ao objeto. O trabalho colaborativo com os Ticuna é uma
interface que ainda precisamos inserir nas próximas etapas desta pesquisa.

Slide 27. Mascarados e imagem da máscara RG 9954 (2) sendo utilizada na “Festa da Moça Nova” e à
direita, imagem do objeto no MAE/USP. Foto: Harald Schultz – Acervo MAE/USP (IE000942) e Ader
Gotardo.

A conservação não se define apenas por seus procedimentos metodológicos, mas


principalmente pelo processo decisório na tomada de certas ações. A decisão de não realizar

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V CONGRESSO LATINO AMERICANO DE ARQUEOMETRIA

nenhuma ação também é um procedimento, especialmente quando ela é decidida em


conjunto com a comunidade de interesse.

Por isso hoje, a conservação de materiais etnográficos faz parte de um grande e


complexo processo, o qual leva em consideração se um meio é adequado para atingir seu
fim, sendo que todos os tratamentos devem eticamente preservar a longa trajetória destes
objetos.

Referências

DORTA, Sonia F. & CURY, Marília X. A plumária indígena brasileira. São Paulo: EDUSP,
2001.

FLORIAN, M. L. E. et al. The Conservation of Artifacts Made from Plant Materials. Los Angeles:
The Getty Conservation Institute, 1990.

GLENBOSKI, Linda L. The ethnobotany of the Tukuna Indians, Amazonas, Colombia.


Instituto de Ciencias Naturales, 1983.

GRUBER, Jussara G. O livro das árvores. Benjamin Constant, Organização Geral dos
Professores Ticunas Bilíngues, 1998.

MATAREZIO FILHO, Edson Tosa. A festa da moça nova: ritual de iniciação feminina dos
índios Ticuna. Tese- Doutorado. FFLCH / USP, 2015.

ODEGAARD, Nancy et al. Old poisions, new problems: a museum resource for managing
contamined cultural materials. AltaMira Press, 2005.

SCHULTZ, Harald. Hombu: indian life in the Brazilian jungle. Colibris, 1962.

JOHNSON, E. “The acidification and conservation of a Samona tapa at the Manchester


Museum” in WRIGHT, Margot M. (ed) Barkcloth: aspects of preparation, use,
deterioration, conservation and display. Archetype Publications, 2001.

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