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A universidade contra o obscurantismo

Desde o início do Governo Bolsonaro as Universidades Federais têm sofrido


ataques sistemáticos, primeiro com acusações de que são antros ideológicos de
esquerda, depois espaço de balbúrdia, um celeiro de incompetência e
irrelevância científica e, agora, exemplo de má gestão. A solução para tudo isso se
apresenta com o nome de “Future-se”, o novo programa lançado pelo MEC, hoje o
pior inimigo das Universidades, e que consiste, basicamente, em criar um fundo
imobiliário privado, mas com recursos públicos, para fomentar a criação das
Organizações Sociais, também privadas, que aos poucos irão substituir as
Universidades Públicas. As Organizações Sociais, por contrato, começariam por
ocupar a gestão das Universidades, as chamadas atividades meio, para aos
poucos irem se estendendo a ensino, pesquisa e extensão, as chamadas
atividades fins. A relação Fundo de Investimento, Organização Social e
Universidade seria gerida por um Comitê Gestor que, todo poderoso, anularia
toda e qualquer autonomia pretendida pelas Universidades.
De todos os ataques que sofremos, gostaria de tratar, aqui, da acusação de
que as Universidades são instituições orientadas ideologicamente, que as
universidades, como instituições, seguem um pensamento de esquerda, rotulado
pelos homens do presidente como “marxismo cultural”. A raiz desse ataque não
data de hoje. Em 31 de março de 1999 uma figura então obscura dava uma
conferência no Clube Militar do Rio de Janeiro. Seu nome? Olavo de Carvalho, um
auto proclamado filósofo, que finalmente encontra, entre os militares, o auditório
que tanto buscava. Em certo momento de sua conferência lemos o seguinte: “Se
chegou um único comunista vivo ao fim de 1964, ele deveu isso às Forças
Armadas”. Ora, os militares não apenas permitiram que um ou outro comunista
sobrevivesse, como ainda lhes deu liberdade para “fazerem o que fizeram, [e]
ainda criaram instrumentos, financiaram filmes comunistas, deixaram que os
comunistas tomassem toda a imprensa e toda a universidade onde hoje [os
comunistas] exercem cinicamente um poder de censura”1. Os militares ocupam o

1Carvalho, O. Reparando uma injustiça pessoal – Discurso proferido no Clube Militar, 31 de Março
de 1999. http://www.olavodecarvalho.org/textos/reparando.htm. Gostaria de agradecer ao
colega Peiro Leiner, da UFSCar, por ter me chamado a atenção para esse texto.
poder por um tempo, mas perdem a guerra ideológica. Afinal, segundo Olavo,
eles “não tinham plano, não tinham ideologia”.
As Universidade Federais, desde a sua criação, aí por volta da década de
50, sempre tiveram um papel fundamental na consolidação de uma cultura
democrática entre nós. Se tomarmos a Universidade Federal da Bahia, por
exemplo, veremos que ela foi criada tendo em vista o seu impacto não apenas na
produção de conhecimento, na atividade de pesquisa científica e formação de
quadros para o Estado e mercado, mas para sobretudo se visava, com ela, um
impacto na cultura no sentido mais geral. Não é gratuito, portanto, que em plena
ditadura militar, a Bahia produzisse nomes como Caetano, Gil e Glauber Rocha.
Na verdade, essas três figuras são o resultado de uma política universitária
anterior à 1964, que define a UFBA como uma universidade de vanguarda no
campo das artes, em especial a música, o teatro e a dança, mas também na
arquitetura e nas ciências humanas2. Nada disso passa incólume pela violência
da ditadura, que cria departamentos com agentes do Serviço Nacional de
Informação (SNI) e infiltra policiais nas salas de aula, que persegue, prende,
tortura e mata professores e alunos que se opunham ao regime, na UFBA e em
todas as Federais.
Retomando. As universidade são fundamentais não apenas porque
produzem conhecimento, ativo mais importante no atual estágio do capitalismo,
ou porque transmitem conhecimento, formando novos quadros, mas porque ela
é aquela instituição que, entre nós, mais contribuiu e contribui para formação de
uma cultura democrática. E para isso o seu caráter público e em rede, o fato de
que está não apenas nas capitais dos Estados, mas vem se interiorizando, é
fundamental. É nela que se vem constituindo uma identidade nacional que
preserva a nossa pluralidade constitutiva, ao mesmo tempo em que responde ao
desafio secular da inclusão social. Quando se visita um departamento
universitário se vê, hoje muito mais do que ontem, docentes de diferentes
origens do país. O mesmo se dá com os estudantes, que cada vez mais circulam
no interior do sistema, sobretudo na pós-graduação. Como sistema partes de um

2Sobre isso, ver Risério, A. Avant-Gard na Bahia, São Paulo, Instituto Lina Bo e Pietro Maria
Bardi, 1995
sistema, as universidades apontam para uma coesão sociocultural. Como parte
autônoma, ela aponta para a especificidade de cada região, garantindo nossa
pluralidade.
É na tensão ente o universal e o local que a universidade vai se
constituindo como um modus vivendi, um modo de se orientar em meio as
questões da vida e do mundo que extrapola sua fronteira. Esse modus vivendi é o
modo da crítica, do confronto de ideias e perspectivas distintas, uma troca
incessante de experiências as mais variadas, seja quanto a solução de um
problema em uma pesquisa de ponta, seja aquela proveniente de histórias de
vida distintas, marcadas pela diferença. É esse modus vivendi, um dos lastros da
nossa democracia, que o governo Bolsonaro quer destruir. Para os seus
ideólogos - dentre os quais se destaca, não pelas ideias que possui mas pelo lugar
que ocupa, o sr. Ernesto Araújo – a universidade é um espaço de decadência e
depravação, como de resto depravado e decadente é o ocidente. Assim, os post
no facebook e twitter em que Olavo de Carvalho vitupera contra a universidade e
seus docentes, devem ser completados pelos pequenos textos – em tamanho e
em ideias - publicados por Ernesto Araújo – talvez para nossa sorte, Weintraub
tem um pendor mais para a cena do que para as letras.
A universidade, ao invés de ser vista como aquele espaço em que ideias
são testadas e confrontadas, em que argumentos são apresentados e discutidos,
no qual se vive a experiência da razão, da racionalidade e da liberdade, é julgada
como parte da decadência do Ocidente, cujo espaço vital se encontra dominado
pela esquerda e pelo globalismo. Contra essa decadência, Araújo propõe a
retomada de uma agenda pré-moderna, ou melhor, antimoderna, de retorno a
um suposto “patrimônio mítico do ocidente”, que se vê representado em
ninguém menos do que Donald Trump e em seu discurso para o povo da
Polônia3. Escreve Araújo:

Ao chamar por Deus, na praça de Varsóvia, Trump ataca o


cerne da pós‐modernidade (…) esse Deus por quem os ocidentais
anseiam ou deveriam ansiar, o Deus de Trump(…) É o Deus que age na
história, transcendente e imanente ao mesmo tempo(…) Somente um
Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação –
inclusive e talvez principalmente a nação americana. Heidegger jamais
acreditou na América como portadora do facho do Ocidente(…) Talvez

3 https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/remarks-president-trump-people-poland/
Heidegger mudasse de opinião após ouvir o discurso de Trump em
Varsóvia, e observasse: Nur noch Trump kann das Abendland retten,
somente Trump pode ainda salvar o Ocidente4

O que guia deve guiar ocidente como nação, portanto, para a única
salvação possível, não são os direitos humanos, a soberania do povo, a liberdade
como direito individual que deve ser protegido contra a opressão, opressão que é
afastada pela liberdade política, ou a desigualdade que deve ser combatida
porque capaz de ameaçar a liberdade. O que deve nos orientar não é o resultado
de uma experiência coletiva, a formação pública de juízos, a busca pela evidência
e pelo convencimento. Não é a negociação que permite que avancemos em uma
pauta, mesmo que não tenhamos pelo acordo. O que deve guiar a Ocidente-Nação
é a fé em Deus. Trata-se, porém, de uma fé que se opõe à razão, mesmo em suas
figuras mais modestas. Trata-se, portanto, de fazer terra arrasada de toda a
modernidade, em geral, e em particular das dificuldades de nossa inserção
moderna, isto é, de nossa história. Para eles, nossa história não é a história de um
povo que vê seu futuro sempre adiado pela ação predatória de uma elite
irresponsável. Mas é a história do equívoco que foi o abandono da Monarquia, o
que nos custou a graça de Deus.
Como imaginar que um governo que se move por tais ideias tem resposta
razoável para os problemas das nossas Universidades? Sim, elas têm problemas
muitos. Mas a solução não virá de um grupo de fanáticos terraplanistas que
acreditam que a “humanidade nasceu, em algum recanto misterioso da pré-
história, já dotada de religião, família e linguagem articulada”5. O marxismo-
cultural está para a universidade assim como a forma plana está para a superfície
terrestre. A universidade brasileira tem pouquíssimo tempo de vida. Sua
contribuição para a vida nacional, porém, é inestimável. Precisamos dota-las de
instrumentos mais modernos, mas não podemos destruí-las. Precisamos
defender as Universidades do obscurantismo que nos governa. As universidades,
hoje, são o principal polo de resistência à barbárie que tomou conta do país. Não

4 Araújo, Araújo, Ernesto, “Trump e o Ocidente”, Cadernos de Política Exterior, ano III, número 6,
2017, página 350 e sq.
5
Araújo, Liberdade religiosa, religião libertadora,
https://www.metapoliticabrasil.com/blog/liberdade-religiosa-religião-libertadora
acessado em 23 de julho de 2019
se trata, portanto, de fazer dela objeto de butim, apenas. Se trata, muito mais, de
liberar o caminho para o retrocesso civilizatório a que estamos submetidos.

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