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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”.

 Um livro de Domenico Losurdo

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“Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de
Domenico Losurdo
   

Em artigo datado e 27 de outubro de 2009, Miguel Urbano
Rodrigues comenta o tom ainda emocional do debate sobre o chamado "estalinismo". Não à toa, descreve em
seu texto que "Vivi essa situação este ano ao publicar um desambicioso artigo – Sobre Trotsky – Do Mito à
Realidade (odiario.info). Em Portugal, alguns camaradas que admiro acusaram­me de trotskista; no Brasil,
onde o artigo, mais divulgado, desencadeou polêmicas, professores das Universidades de Campinas e do Rio
Grande do Sul dedicaram­me trabalhos acadêmicos, definindo­me como stalinista ortodoxo."

Há meses que me sento diante do computador para escrever este artigo. Mas o projeto foi adiado dia após
dia.

Quando Domenico Losurdo me ofereceu Stalin ­ Storia e critica de una leggenda nera*, já lera criticas sobre
a obra. Mas não a imaginava.
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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

Qualquer texto sobre pessoas que deixaram marcas profundas na história, quando escrito sem o suficiente
distanciamento temporal, cria sempre grandes problemas ao autor.

Vivi essa situação este ano ao publicar um desambicioso artigo – Sobre Trotsky – Do Mito à Realidade
(odiario.info). Em Portugal, alguns camaradas que admiro acusaram­me de trotskista; no Brasil, onde o
artigo, mais divulgado, desencadeou polémicas, professores das Universidades de Campinas e do Rio Grande
do Sul dedicaram­me trabalhos acadêmicos, definindo­me como stalinista ortodoxo.

Domenico Losurdo aborda no seu Stalin aspectos muito polêmicos da intervenção na História do homem que
na prática dirigiu a União Soviética durante quase três décadas. Não conheço obra comparável pela ausência
de paixão e pela densidade e profundidade da reflexão sobre o tema.

Stalin foi um revolucionário que liderou a luta épica da União Soviética contra a barbárie nazi. Por si só esse
combate em defesa do seu povo e da humanidade garante­lhe um lugar no panteão da História.

Sinto, contudo, a necessidade de acrescentar que nunca senti atração por Stalin. Não admiro o homem. A sua
personalidade aparece­me inseparável de atos e comportamentos sociais que reprovo e repudio.

A contradição não me impede de escrever este artigo, estimula­me a assumir o desafio.

A DEMONIZAÇÃO DE STALIN

A demonização de Stalin principiou nos anos 20, adquiriu proporções mundiais com o XX Congresso do
PCUS, foi retomada durante a Perestroika e prosseguiu após o desaparecimento da União Soviética, embora
com características diferentes. Ao proclamar “o fim do comunismo”, a intelligentsia burguesa, empenhada
em demonstrar a inviabilidade do socialismo, diversificou a ofensiva, atribuindo a Marx, Engels e Lenine
grandes responsabilidades pelo “fracasso inevitável da utopia socialista”. Stalin foi sobretudo visado como
criador e executor de uma técnica de governação ditatorial, monstruosa. A palavra stalinismo entrou no
léxico político como sinônimo de um sistema de poder absoluto que teria negado o marxismo ao impor «o
socialismo real» mediante métodos criminosos.

Não são apenas acadêmicos anticomunistas que satanizam Stalin. Dirigentes de partidos comunistas e
historiadores marxistas, alguns de prestígio mundial, emprestaram credibilidade à condenação sem apelo de
Stalin.

Eric Hobsbawm, o grande historiador britânico que foi, na juventude, membro do Partido Comunista inglês,
esboça no seu livro A Era dos Extremos – Breve História do Século XX um retrato totalmente negativo do
estadista que anos antes fora por ele elogiado como revolucionário merecedor da admiração da humanidade.

O peso do anátema é tão forte que a Fundação Rosa Luxemburgo atribuiu em janeiro passado um prêmio ao
historiador alemão Christoph Junke pelo seu livro Der lange Schatten des Stalinismus, uma catilinária
impiedosa sobre um «fenômeno histórico» que é também «uma teoria e uma prática política» que exorciza.

DA ESPERANÇA À REALIDADE

Sobre Stalin e a sua época foram escritos centenas de livros. Dos que li nenhum me impressionou tanto como
este. A esmagadora maioria condena o homem e a obra; uma minoria de incondicionais faz a apologia do
dirigente comunista e defende sem restrições a sua intervenção na história. Um abismo separa os críticos
como o polaco Isaac Deutscher (trotskista) dos epígonos como o belga Ludo Martens (maoista), dois autores
cujos livros foram publicados em português, no Brasil.

Losurdo, filósofo e historiador, ao iluminar uma época e o homem que foi o timoneiro da URSS durante
quase trinta anos, encaminha o leitor para uma reflexão complexa, inesperada e difícil. Não assume o papel
de juiz.

O conhecimento profundo da história da Revolução Russa e das lutas que lhe marcaram o rumo após a morte
de Lenine permitiram­lhe situar Stalin nesse vendaval sob uma perspectiva inovadora. Procura, como
filósofo, compreender. Não absolve nem condena.

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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

Acompanhando a trajetória de Stalin pela mão de Losurdo, o leitor é levado a conclusões incompatíveis com
a lenda negra criada em torno da personagem. Mas Losurdo não reescreve a história, não tenta interpretá­la.
Como investigador, fixa a atenção em períodos decisivos, procede a uma seleção de fatos e acontecimentos e
situa Stalin nos cenários em que atuou.

Quase todas as revoluções devoram os seus filhos. A que se impôs em Outubro de 1917 não foi exceção à
regra. Mas, quando ela triunfou, eram inimagináveis as crises e conflitos que desembocaram na execução da
maioria das personagens mais brilhantes da grande geração de bolcheviques que se propunha a construir o
socialismo na Rússia atrasada e famélica.

O tempo era de esperança. Ao encerrar o I Congresso da Internacional Comunista, Lenine sintetizou a sua
confiança no futuro numa frase: “A vitória da revolução comunista em todo o mundo está assegurada.
Aproxima­se a fundação da Republica soviética internacional”.

A previsão foi rapidamente desmentida pela História.

O dissipar das ilusões e a sua superação quase coincidiram com a doença e a morte de Lenine. Após a derrota
da revolução alemã, o autor de “O Estado e a Revolução” teve a percepção de que o capitalismo iria
sobreviver por muito tempo e que era necessário defender a todo o custo a jovem revolução russa. Trotsky
não acreditava na viabilidade do “socialismo num só pais” e, desaparecido Lenine, acusou de covardia e
oportunismo quantos tinham renunciado à ideia da revolução mundial.

Losurdo lembra que Stalin foi o primeiro dirigente soviético a afirmar que por um longo período histórico a
humanidade continuaria dividida não somente em diferentes sistemas sociais, mas também em diferentes
identidades linguísticas, culturais e nacionais.

Enquanto Trotsky dirigia ainda apelos à insurreição ao proletariado da Finlândia, da Polônia, das repúblicas
bálticas e das grandes potências capitalistas, Stalin criticava as teses sobre a exportação da revolução. Na sua
opinião, a correlação de forças na Europa justificava a defesa do princípio da coexistência pacífica entre
países com diferentes sistemas sociais.

Numa época em que muitos comunistas continuavam a sonhar com “o ascetismo universal”, Stalin lembrava
que o marxismo é inimigo do igualitarismo e insistia num ponto central: “seria estúpido pensar que o
socialismo pode ser construído com base na miséria e em privações, com base na redução das necessidades
pessoais e na queda do padrão de vida dos homens ao nível dos pobres.”

Nos capítulos em que estuda as divergências de fundo que opuseram Trotsky e Stalin, Domenico Losurdo
abstém­se mais uma vez de críticas e elogios. Situa o choque no grande painel da URSS pós Lenine, e
resume as posições de ambos, recorrendo a múltiplas citações.

São particularmente interessantes as páginas em que são confrontadas as posições de Trotsky e Stalin sobre
os temas da organização jurídica da sociedade, da família, da propriedade e sobretudo do Estado.

A questão central da extinção do Estado, prevista por Marx e exaustivamente analisada por Lenine, antes e
depois da tomada do poder, merece­lhe uma atenção especial.

Às críticas de Trotsky – então no exílio – à Constituição Soviética de 1936, Stalin responde que as lições de
Marx e Engels não devem ser transformadas em dogma e numa nova escolástica.

O Estado Soviético, ao invés de caminhar para a extinção, fortalece­se cada vez mais. Segundo ele, o papel
fundamental do Estado na URSS “consiste num trabalho pacífico de organização econômica e no trabalho
cultural e educativo”. A antiga função repressiva fora “substituída pela função de salvaguarda da propriedade
socialista da ação dos ladrões e dos esbanjadores do patrimônio do povo”.

Losurdo sublinha que, na prática, o Estado soviético se desviou dessa função e lembra que, em 1938,
“imperava o terror e se ampliava monstruosamente o Gulag”.

Mas a permanência do Estado repressivo não responde à pergunta: até que ponto é valida a tese de Marx
sobre o definhamento e a extinção do Estado? Deve ou não manter­se o Estado numa sociedade comunista?
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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

Losurdo recorda que na posição assumida por Stalin são identificáveis muitas contradições, mas sublinha
que, ao contrariar uma tese clássica de Marx, o secretário­geral do PCUS atuava num terreno minado, o que
o expunha à acusação de «traidor» lançada por Trotsky.

A partir do início dos anos 30, Stalin, na sua luta contra a oposição, acusa os seus membros, globalmente, de
“agentes do inimigo”.

Exagerava. Mas Trotsky, principalmente, oferecia­lhe argumentos que contribuíam para a credibilidade das
acusações que lhe eram dirigidas. Quando rádios da Prússia Oriental começaram a transmitir para a URSS
textos trotskistas, Stalin tirou benefícios dessa iniciativa. E quando Trotsky, nas vésperas da II Guerra
Mundial, em 22 de Abril de 1939, deu o seu apoio aos que pretendiam “libertar a Ucrânia soviética do jugo
staliniano”, intensificou­se a perseguição a quadros suspeitos de ideias trotskistas.

A OUTRA “GUERRA CIVIL”

Ao contrário do que se afirma na História oficial da Revolução Russa editada pelo PCUS, o grupo dirigente
que assumiu o poder em Outubro de 1917 estava já dividido no tocante a problemas fundamentais da política
interna e internacional.

Os debates sobre os sindicatos, o papel do campesinato, a economia, as relações com as potências
capitalistas, a questão das nacionalidades foram sempre polêmicos no Politburo e no Comitê Central.
Somente o carisma e o imenso prestígio de Lenine retardaram os conflitos sobre a orientação do Partido que
se produziram após a sua morte.

Losurdo conclui que o Relatório Secreto de Khruchov ao XX Congresso apresenta desse período histórico
uma visão distorcida e fantasista.

A tese de Khruchov, segundo a qual cabe a Stalin a responsabilidade pelo assassínio em 1934 de Serguei
Kirov, porque o jovem dirigente estaria implicado numa vasta conspiração contra ele, é rebatida por Losurdo
com o apoio de documentação recentemente divulgada. Na realidade, Kirov tinha uma grande admiração por
Stalin, que depositava nele uma confiança total.

As conspirações para afastar Stalin do Poder foram muito reais, mas as versões delas apresentadas no
Ocidente por sovietólogos anticomunistas contribuem, na opinião do filósofo marxista italiano, para
falsificar a história. E atingiram esse objetivo.

Domenico Losurdo está consciente de pisar um terreno perigoso na sua tentativa de iluminar um Stalin
diferente do ditador cruel, megalômano e vingativo cujo perfil aparece esboçado no Relatório Secreto ao XX
Congresso. Essa imagem, com o aval de Khruchov, foi exportada para todo o mundo e acabou por ser aceite
no Ocidente como verdadeira até por muitos dirigentes de Partidos Comunistas.

Os capítulos do livro de Losurdo que suscitaram mais polêmica na Itália e noutros países são por isso mesmo
os dedicados às lutas no Partido que precederam os Processos de Moscou.

De alguma maneira, a carta de Lenine ao Congresso do PCUS – lida por Krupskaia, mas somente publicada
anos depois – estimulou em dirigentes do Partido a tendência para lutar contra Stalin. Trotsky começou a
conspirar com Kamenev e Zinoviev logo após a morte de Lenine.

Losurdo define o conflito ideológico da época como uma “guerra civil” que foi permanente no Partido até
aos últimos processos do ano de 1938. Na primeira fase da luta pelo poder, Stalin conseguiu isolar Trotsky
dos velhos bolcheviques, desencadeando contra ele uma campanha em que foi recordado o seu passado
menchevique e as polêmicas mantidas com Lenine.

O escritor italiano Curzio Malaparte, num livro que foi best seller – Técnica do Golpe de Estado – publicado
na França em 1931, foi um dos primeiros intelectuais europeus a escrever no ocidente sobre os
acontecimentos mal conhecidos que, no ano de 1927, precederam a prisão de Trotsky, a sua expulsão do
Partido e o confinamento em Alma Ata, no Casaquistão.

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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

Uma documentação importante confirma que Kamenev e Zinoviev, que se opunham à política de Stalin, mas
sem o enfrentarem no Politburo, participaram pessoalmente dessa primeira conspiração. O objetivo era o
afastamento de Stalin, mas o projeto fracassou, e o secretário­geral recuperou mais uma vez Kamenev e
Zinoviev, isolando Trotsky.

Bukharin, sempre imprevisível, fora até então – segundo Losurdo – como diretor do Izvestia, um aliado
firme de Stalin, mas, a partir da extinção da NEP e do inicio da coletivização das terras, empreendida em
ritmo acelerado e com recurso a métodos cruéis, chegou à conclusão de que a estratégia adotada pelo PCUS
conduziria o país a um desastre. O dirigente, que em Brest Litovsk tinha liderado no Partido a ala
esquerdista, deslocou­se para a direita numa brusca guinada, convicto de que a revolução somente poderia
sobreviver se mudasse de rumo, adotando uma orientação democrático­burguesa, o que significaria uma
regressão histórica.

Rogowin, um historiador trotskista citado por Losurdo, afirma que Stalin tomou então a iniciativa de
desencadear “uma guerra civil preventiva” contra aqueles que pretendiam derrubá­lo. Nesse período de
conspirações labirínticas, o envolvimento de destacados dirigentes em manobras de bastidores foi
permanente, delas participando alguns membros da velha guarda bolchevique.

A abertura dos arquivos soviéticos veio esclarecer que alguns mudaram com frequência de campo.

Rogowin, polemizando muito mais tarde com Solzhenytsin, afirma que, longe de ser a expressão de “um
acesso de violência irracional e insensata”, o sanguinário terror desencadeado por Stalin foi na realidade a
única maneira pela qual ele conseguiu quebrar a resistência daquilo a que chama “as verdadeiras forças
comunistas”.

Nos processos de Moscou, os ex­dirigentes bolcheviques aparecem todos como traidores. Mas a palavra é
brutal e a generalização deforma a história. Antonov Ovsenko, Preobrajensky, Karl Radek, Rakovsky,
Bukharin, Kamenev, Zinoviev, entre outros, dedicaram as suas vidas a um projeto radical de transformação
da sociedade cuja meta era o socialismo, rumo ao comunismo.

Domenico Losurdo, escorado por fontes credíveis, procura compreendê­los descendo às raízes de
comportamentos contraditórios que expressavam simultaneamente as dúvidas, as opções ideológicas e a
fidelidade ao ideal comunista desses revolucionários.

Nas páginas dedicadas ao vespeiro de lutas internas dos anos 20 e 30, a chamada conspiração dos militares
merece atenção especial. Losurdo não deixa para o leitor as conclusões; neste caso não se limita a colocar os
dados sobre a mesa.

Na torrencial bibliografia ocidental sobre o assunto, o marechal Tukachevsky, herói da guerra civil, é sempre
apresentado como vítima inocente do terror stalinista, arquétipo do revolucionário puro, triturado por uma
engrenagem perversa.

Losurdo afirma que já em 1920, durante a guerra na Polônia, Tukachevsky tinha deixado transparecer uma
ambição militarista preocupante ao impor a marcha sobre Varsóvia que teve um desfecho desastroso. Mas
Stalin confiava nele e promoveu­o a marechal após as vitórias alcançadas em 1936 contra o Japão na
Mongólia.

Transcorridos 70 anos, continua a ser polêmica a questão dos contatos secretos que Tukachevsky teria
mantido com potências estrangeiras. Mas historiadores que lhe atribuem a aspiração de se transformar no
“Bonaparte da Revolução Bolchevique” acumularam provas que o comprometem.

O checoslovaco Benés, em 1937, informou os franceses desses contatos e Churchill, após a II Guerra
Mundial, admitiu que a grande depuração no corpo de oficiais da URSS atingiu elementos filoalemães e,
citando o nome de Tukachevsky, afirmou que Stalin tinha uma divida de gratidão para com o presidente
Bénes. O embaixador dos EUA em Moscovo, Joseph Davies, alude também a uma “conspiração dos
militares”. O próprio Trotsky, não obstante o seu ódio a Stalin, afirma evasivamente, num comentário à
execução de Tukachevsky e outros oficiais, que “tudo depende daquilo que se entenda por conspiração”.

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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

Na sua reflexão sobre a prolongada luta travada na direcção do PCUS após a morte de Lenine, Losurdo
emprega repetidamente a expressão “as três guerras civis” para caracterizar a amplitude que assumiram. A
última findou com a execução de Bukharin.

O filósofo italiano lembra no seu livro que Bukharin, após a extinção da NEP, decisão a que se opôs,
começou, em reuniões privadas, a chamar a Stalin de “o representante do neotrotskismo” e “intrigante sem
princípios”. Foi o começo da viragem que, paradoxalmente, mais uma vez o aproximou de Trotsky, que lhe
inspirava temor e admiração.

AS ORIGENS DO STALINISMO

A deformação da história real da Rússia começou no Ocidente logo após o derrubamento da autocracia
czarista. A tese segundo a qual a Revolução de Fevereiro teria sido uma revolução quase sem violência e a
de Outubro uma sangrenta tragédia é um mito forjado nos países capitalistas. Na realidade, morreu muito
mais gente na primeira do que nas jornadas que precederam o assalto ao Palácio de Inverno e nos dias
posteriores.

Losurdo, no capítulo em que estuda as “origens do stalinismo”, recorda que Stalin, contrariamente a Trotsky,
defendia a compatibilidade de um “nacionalismo sadio”, do “sentimento nacional e da ideia de pátria” com a
fidelidade ao internacionalismo proletário. Quando o Reich nazi invadiu a URSS, afirmou insistentemente
que o caminho para o universal passava através da luta dos povos que não aceitavam a condição de escravos
ao serviço do povo de senhores imaginado por Hitler.

Stalin é acusado de defender um conceito de estado e uma politica de nacionalidades cuja aplicação refletiu
contradições antagônicas. Mas vivia­se uma época em que contradições simultaneamente transparentes e
incompatíveis eram comuns na formulação da teoria revolucionária. Rosa Luxemburgo criticou duramente o
partido bolchevique por ter liquidado a democracia tal como a concebia, mas simultaneamente exortava­o a
reprimir com punho de ferro qualquer tendência separatista de “povos sem história”, incluindo o da sua
Polônia natal. Stalin, pelo contrario, defendia a necessidade de um respeito enorme pelas mais de cinquenta
nacionalidades da Rússia e considerava que a preservação das suas línguas e culturas lhe aparecia como
indissociável do progresso da Rússia revolucionária.

Essas ideias, condensadas num livro elogiado por Lenine, não encontraram, porém, tradução na práxis,
sobretudo a partir dos anos em que exerceu como secretário­geral do PCUS um poder pessoal quase
absoluto.

Mas, paradoxalmente, nos últimos anos da vida, Stalin reassume a defesa das nacionalidades ao combater
como utópica a ideia de “uma língua única para a humanidade» «quando o socialismo triunfar em nível
mundial”. Sublinhando que a língua não é uma superestrutura, afirma que os idiomas não foram criados por
uma classe social, mas “por todas as classes da sociedade graças aos esforços de centenas de gerações”.

No seu denso ensaio, cuja riqueza conceitual e documental é incompatível com sínteses breves, Losurdo fixa
as origens daquilo a que se chamou o stalinismo, numa época marcada por tensões, conspirações e fome, do
inicio da coletivização das terras.

Citando a Fenomenologi do Espírito, de Hegel, e o que o filósofo alemão pensava da «liberdade absoluta» e
do «terror», sustenta que «o “stalinismo” não é o resultado ” nem da sede de poder de um individuo, nem de
uma ideologia, mas do estado de exceção permanente que se implanta na Rússia a partir de 1914″.

A maioria dos historiadores ocidentais sérios, lembra, coincidem em que no início dos anos 30, Stalin não
era ainda um autocrata. Segundo Werth, não existia nesse tempo o culto da personalidade e persistia a
tradição da ditadura do proletariado.

Em 1925, em plena NEP, Stalin expressava opiniões como esta: “hoje não é mais possível dirigir com
métodos militares”; “agora não se exerce a máxima pressão, mas a máxima flexibilidade, seja na política seja
na organização”… Então considerava um erro “identificar o Partido com o Estado” e repetia que “o
socialismo é a passagem (da fase) em que existe a ditadura do proletariado à sociedade sem estado”.

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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

Foi a decisão de industrializar o país rapidamente que provocou a viragem estratégica que desencadeou a
repressão sobre os camponeses. Cercada por potências hostis, sem acesso ao capital internacional, a URSS,
para financiar a industrialização, recorreu aos excedentes gerados por uma agricultura atrasada. O projeto da
coletivização da terra, pela maneira violenta como foi concretizado, produziu rasgões não apenas no tecido
social como na direção do Partido. Atingiu o objetivo, mas o preço político e social foi altíssimo.

Mas terá sido somente a partir de 1937, com o Grande Terror – expressão utilizada por Losurdo – que a
ditadura do proletariado cedeu o lugar à autocracia?

Nas Obras Completas de Stalin são, porém, numerosas as páginas em que ele repete que a ditadura do
proletariado teria assumido um caráter muito diferente se a Guerra Mundial, anunciada com antecedência,
não o tivesse encaminhado para uma politica de concentração do poder. Seria sincero ao escrever que a
concebeu como transitória? Nunca o saberemos.

O que está comprovado por uma abundante documentação é a convicção que Stalin tinha de que, após a
derrota do III Reich hitleriano, se abriria à Aliança com os EUA e a Inglaterra um grande futuro. Acreditou
numa era de boas relações com o Ocidente capitalista.

Não previa então para a Europa Oriental o tipo de regimes que ali instalou com mão de ferro. Entendia que a
Polônia não deveria optar pela via da ditadura do proletariado. “Não é obrigada a isso, não é necessário”. E,
falando com dirigentes comunistas búlgaros, surpreendeu­os ao afirmar: “é possível realizar o socialismo de
um modo novo, sem a ditadura do proletariado”. E, quando mantinha ainda uma relação cordial com Tito,
disse­lhe: “Nos nossos dias o socialismo é possível inclusive sob a monarquia inglesa”.

O americano Robert Conquest, o historiador de ultradireita a que Losurdo atribui essas palavras, sublinha
que elas demonstram que “Stalin estava repensando ativamente a validez universal do modelo soviético de
revolução e socialismo”.

O que não suscita dúvidas é que a Guerra Fria fez ruir eventuais planos sobre uma mudança de estratégia e
pôs termo à meditação ideológica sobre os modelos de socialismo. O degelo tornou­se uma impossibilidade.

SOBRE A POPULARIDADE DE STALIN E OS GULAG

Losurdo dedica muitas páginas ao tema da popularidade de Stalin.

Baseado em fontes de múltiplas tendências, chama a atenção para uma realidade desconhecida no Ocidente.
Mesmo durante o biênio do Grande Terror, 1937­38, a base social de apoio à política de Stalin amplia­se.
Verifica­se, escreve Losurdo, “uma interação paradoxal e trágica”.Em consequência, por um lado, do forte
desenvolvimento econômico e cultural e, por outro, do medo suscitado pela repressão, “dezenas de milhares
de stakanovistas tornaram­se diretores de fábricas e uma análoga e rapidíssima mobilidade social ocorreu nas
forças armadas”.

Nas vésperas da guerra, o chefe dos tradutores do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich, de visita a
Moscou, ao passar pela Praça Vermelha, resumiu nestas palavras a atmosfera de tranquilidade existente na
capital: “Quem esteve em Moscou e não viu Lenine, disse­me um membro da Embaixada, não vale nada para
a população rural russa”.

Nas campanhas anticomunistas, os textos sobre os Gulags siberianos criados por Stalin e os relatos sobre o
sofrimento dos deportados funcionam como artilharia pesada. Muitos livros têm sido dedicados ao tema,
desde o romance que valeu o Nobel a Solzhenytsin.

Losurdo aborda a questão de frente, situando­se numa perspectiva pouco habitual.

Estudou a fundo a documentação soviética existente nos arquivos. Como ser humano e revolucionário,
inspiram­lhe sentimentos de repulsa e indignação os campos de trabalhos forçados, em qualquer país e
quaisquer que sejam os seus objectivos.

Essa posição não o impede de denunciar a falsificação das estatísticas ocidentais que inflacionam
desmesuradamente a população dos Gulags, multiplicando o número de pessoas que passaram por eles e os
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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

que ali morreram. Simultaneamente rejeita os paralelos estabelecidos entre os campos de extermínio nazi e
os campos de trabalho soviéticos. O universo concentracionário siberiano era um mundo de contradições. Na
URSS – salienta Losurdo – a lei punia com rigor as violações rotineiras dos regulamentos .O próprio
Vichinsky, quando Procurador­Geral da União, denunciou publicamente as condições intoleráveis de alguns
Gulags onde os homens eram tratados como “animais selvagens”.

Losurdo recorda que nos campos soviéticos havia bibliotecas para os deportados, e a direção promovia
espectáculos, concertos e conferências e que os prisioneiros em muitos Gulags estavam autorizados a
publicar jornais murais.

A partir do início da agressão alemã, as condições de vida suavizaram­se em quase todos os campos de
trabalho soviéticos. Milhares de prisioneiros foram beneficiados por uma série de anistias e reintegrados na
sociedade ou nas forças armadas.

Losurdo, numa crítica frontal à hipocrisia dos intelectuais anticomunistas que reescrevem a história,
falsificando­a, procede a um breve inventário dos horrores de campos de concentração criados por potências
ocidentais cujos dirigentes se apresentam como campeões dos direitos humanos, horrores ocultados por um
manto de silêncio.

A Austrália, por exemplo, ao longo de quase todo o século XIX, foi a Sibéria oficial da Inglaterra imperial.
Os textos que reproduz esboçam dos campos de concentração australianos um panorama só comparável ao
dos criados pelas SS de Himler. Os aborígenes, aliás, ainda eram caçados no país no início do século passado
como animais.

E que pensar dos campos de internamento instalados por Roosevelt para cidadãos de origem japonesa –
incluindo crianças – cujo único crime era a origem étnica? Durante a guerra, muitos prisioneiros alemães
foram submetidos nos EUA a torturas medievais, como a destruição dos testículos.

É do domínio público que, na primeira metade do século XX, os linchamentos de negros eram ainda
rotineiros em Estados do Sul do país. Ho Chi Min descreve esses espectáculos macabros, tolerados pelas
autoridades. Assistiu, angustiado, a um deles.

Nas histórias da Inglaterra não há praticamente referências aos campos de trabalho militarizados instalados
na Índia durante o Império. Mas eles existiram e foram cenário de crimes repugnantes.

O apagamento da memória histórica dos horrores dos campos de concentração criados pela França na
Argélia é igualmente uma realidade na pátria de Victor Hugo.

Na Alemanha ignora­se o genocídio planejado dos Herreros e dos Hotentotes na Namíbia quando aquele país
era uma colônia do Império dos Hohenzollern. Foram chacinados como animais em campos especiais pelo
exército colonial do Kaiser Guilherme II.

Do genocídio dos indígenas também pouco se fala no Canadá; mas esse silêncio não apaga o fato de que o
objetivo dos campos da morte do país foi o extermínio deliberado de tribos inteiras de índios num autêntico
holocausto.

A evocação desses crimes esquecidos pelos defensores ocidentais dos direitos humanos ocupa muitas
páginas no livro de Losurdo.

Poderia ter acrescentado uma referência ao campo do Tarrafal em Cabo Verde e aos campos de concentração,
como o de São Nicolau, que Salazar instalou em Angola.

STALIN E OS JUDEUS

A satanização de Stalin no Ocidente não é somente uma constante nas campanhas anticomunistas.
Historiadores europeus e estadunidenses de prestígio identificados com a ideologia neoliberal cultivaram, nas
últimas décadas, uma perversa modalidade de irracionalismo no esforço para diabolizar Stalin.

A receita é primária: Stalin e Hitler seriam “monstros gêmeos”.

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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

Losurdo, na desmontagem do paralelo e das imaginárias afinidades entre o dirigente soviético e o führer
nazi, analisa textos de autores como a destacada escritora sionista estadunidense Ana Arendt para
ridicularizar a argumentação inspirada por um anticomunismo cavernícola.

Arendt, entre outras inverdades, apresenta Stalin como um antissemita fanático. Atribui­lhe uma “política
canibalesca“contra os judeus, baseada num ódio racial feroz.

O historiador Robert Conquest, porta­voz da extrema direita norte­americana, comentando a repressão na
Ucrânia durante a coletivização, afirma que Stalin transformou aquela Republica soviética num “imenso
Bergen Belsen” (um campo de extermínio alemão).

Losurdo lembra que Conquest, num dos seus livros, editado no âmbito de uma operação politico cultural
anticomunista, responsabiliza a URSS por “infâmias iguais em tudo às cometidas pelo Terceiro Reich”.

Cabe recordar que sucessivos presidentes dos EUA manifestaram grande apreço por Conquest como
historiador e perfilaram a tese do Golodomor (o chamado holocausto ucraniano), transformando­a numa
poderosa arma na Guerra Fria. Reagan utilizou­a como instrumento ideológico no período que precedeu o
desmembramento da URSS.

Losurdo, ao refutar as acusações de antissemitismo feitas a Stalin, recorda que, após o final da guerra, antes
da partilha da Palestina, o dirigente soviético adotou “uma politica fundamentalmente filo­hebraica”. A
URSS foi, aliás, o primeiro país a reconhecer o Estado de Israel. Numa mensagem dirigida de Paris a Ben
Gurion, o seu ministro dos Estrangeiros, salienta que os delegados soviéticos atuaram como “advogados de
Israel” na Conferência da ONU sobre a questão palestiniana.

Os arquivos do Foreign Office e do Departamento de Estado acumulam, aliás, documentação que confirma
uma realidade hoje incômoda por muitos motivos: “a União Soviética contribuiu de maneira essencial –
como escreve Losurdo – para a criação e fortalecimento do Estado hebraico.”

Losurdo, recorrendo a citações de autores insuspeitos, lembra que Stalin fustigava o antissemitismo com
expressões como “chauvinismo racial” e “canibalismo”.

Muitos dos bolcheviques mais destacados da velha guarda eram judeus; Zhdanov, um dirigente no qual Stalin
depositou uma confiança irrestrita, também era judeu. E, durante décadas, milhares de elementos de origem
hebraica ocuparam funções da maior responsabilidade no Estado Soviético.

Hitler, nas suas catilinárias antissemitas, atribuía aos judeus um papel decisivo na preparação da Revolução
de Outubro. Utilizando uma linguagem desbragada, aludia a uma “horda terrorista hebraica” de “asiáticos
circuncisados” e afirmava que sangue judeu corria nas veias de Lenine. E dizia que Stalin era um judeu, não
pelo sangue, mas pelo espírito.

A politica pró Israel de Stalin somente deu uma guinada de 180 graus, assumindo uma orientação
antissionista, quando os diplomatas de Tel Aviv, após a visita de Golda Meir a Moscou, iniciaram contatos
secretos com a comunidade hebraica da URSS com o objetivo de estimular a emigração para Israel dos
judeus soviéticos.

“Cada hebreu – teria dito então Stalin, segundo Roy Medvedev – é um nacionalista, é um agente da
espionagem americana”.

Losurdo aborda com cautela o tema da alegada “conspiração” dos médicos judeus de Stalin à qual escritores
e jornalistas ocidentais dedicaram milhares de páginas. Transcorrido mais de meio século, o fuzilamento de
alguns desses médicos continua a suscitar polêmicas apaixonadas dentro e fora da Rússia. O filósofo italiano,
comentando versões contraditórias, evita uma conclusão, sublinhando que não foram somente dirigentes
soviéticos a emprestar credibilidade à teoria do complot. O diplomata britânico Sir Joe Gascoigne admitiu,
na época, que os médicos do Kremlin eram “culpados de traição”.

COMUNISMO, ANTÍTESE DO FASCISMO

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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

A intensidade, as proporções e a sofisticação da campanha anticomunista, na qual um dos objetivos era a
destruição da imagem positiva projetada no mundo pela União Soviética, produziram no Ocidente efeitos
prolongados e complexos que se manifestam ainda, transcorridas quase duas décadas desde a reimplantação
do capitalismo na pátria de Lenine.

A ofensiva prosseguiu. Os teóricos do capitalismo, criadores de slogans como “O império do mal” e outros
similares, compreenderam que o esforço para desacreditar a URSS era insuficiente se não concentrassem as
suas críticas na ideologia do sistema. Marx, Engels e Lenine tornaram­se então alvos preferenciais dos
intelectuais e de políticos empenhados em apresentar o socialismo como um projeto fracassado, não apenas
utópico, mas monstruoso.

Qualquer cientista p lítico minimamente estudioso sabe que não existiu até hoje um único regime comunista.
Mas, simulando ignorar a evidência – o comunismo é uma fase superior do socialismo –, os ideólogos da
burguesia insistem em chamar comunistas aos países que desenvolveram experiências socialistas, entre os
quais a URSS.

A maioria dos Partidos Comunistas – o Português, o da Grécia e o Akel cipriota são, na Europa, exceções ao
revisionismo – não soube reagir positivamente a essa ofensiva ideológica. Muitos dirigentes, por ela
contaminados, não somente participaram das campanhas de satanização da URSS, como renegaram os
valores da Revolução de Outubro, levando a capitulação ao extremo de aderir a calúnias anticomunistas.

Registo que não faltam militantes de partidos revolucionários que, por temor, não ousam hoje assumir­se
publicamente como marxistas e comunistas.

Foi no âmbito dessa ofensiva ideológica que acadêmicos de grandes universidades europeias e norte­
americanas forjaram a tese segundo a qual fascismo e comunismo seriam, afinal, variantes de uma mesma
concepção monstruosa da política. Entre os muitos livros publicados sobre o tema, alguns, como Origens do
Totalitarismo, de Ana Arendt, foram best­sellers mundiais que disseminaram a mentira e a calúnia com
verniz de verdade.

Domenico Losurdo, nos capítulos dedicados à psicopatologia e à moral das leituras ocidentais da era de
Stalin e à aberração das comparações entre este e Hitler, desce às origens e motivações da estratégia
anticomunista.

Relembra que esse trabalho tem raízes antigas. O Presidente Wilson, por exemplo, era um fanático
anticomunista. Na sua opinião, a Revolução de Outubro foi fundamentalmente um complot alemão, e Lenine
e outros dirigentes bolcheviques teriam estado durante anos ao serviço da Alemanha imperial.

Losurdo, que emprega a expressão Grande Terror com maiúsculas para designar o biênio 1937­38 dos
Processos de Moscou, esboça com frontalidade o quadro sombrio da repressão na URSS em diferentes fases
da era de Stalin.

Alerta, porém, para a hipocrisia de eminentes historiadores ocidentais que branqueiam ou omitem crimes
contra a humanidade praticados pelos governos e forças armadas de países capitalistas, enquanto se esforçam
para mobilizar as consciências contra os cometidos pelos “monstros comunistas”.

Recorda – apenas um exemplo – que o fuzilamento de oficiais polacos pelos soviéticos em Katyn foi um
crime indesculpável. Sublinha, porém, que esse massacre abjeto tem sido utilizado exaustivamente pela
propaganda ocidental no cinema, na televisão, na imprensa, em livros – como prova do caráter bárbaro,
desumano do regime soviético.

Num brevíssimo inventário de alguns crimes ocidentais que não figuram ou são suavizados nos manuais de
História, Losurdo cita, entre outros:

­ A morte por fome e maus tratos de dois dos três milhões de prisioneiros soviéticos capturados pelos
alemães na Frente Leste.

­ A chacina pelos britânicos de milhares de mulheres e crianças no campo de concentração de Kamiti, no
Quênia, após a rebelião dos Mau Mau.
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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

­ O bombardeamento genocida de Dresden pelos ingleses quando a guerra estava no final e o apoio de
Churchill, Roosevelt e Truman aos bombardeamentos terroristas de cidades alemãs sem objetivos militares,
com o objetivo de aterrorizar as populações.

­ A execução na Sicília, por ordem do general Patton, de soldados italianos que se tinham rendido ao exército
americano.

­ O genocídio nas Filipinas, no começo do século XX, durante a revolta contra a ocupação norte­americana.

­ O extermínio total da população aborígene da Tasmânia.

­ A recusa de fazer prisioneiros muçulmanos durante a campanha do Sudão no final do século XIX, na qual
Churchill participou como oficial de cavalaria.

­ A execução em Taejon, em julho de 1950, de 1700 coreanos que, antes do fuzilamento, foram obrigados a
escavar a fossa onde foram sepultados.

­ O extermínio, pelo exército dos EUA, do total dos moradores de dezenas de aldeias no Vietname e no Laos.

­ A ordem de Nixon, no inicio dos anos 70, para que fossem lançadas, nas áreas rurais do Camboja, mais
bombas de quantas haviam explodido nas cidades japonesas durante toda a segunda guerra mundial.

­ E o mais trágico e abjeto dos crimes contra a humanidade: o lançamento da bomba atômica sobre
Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945.

O ÓDIO NÃO FAZ HISTÓRIA

Para os ingleses é muito constrangedor hoje reconhecer que os seus líderes derramaram elogios sobre
Mussolini e Hitler antes da Guerra Mundial.

Churchill declarou, em 1933, que via “o gênio romano personalizado em Mussolini, o maior legislador vivo,
que mostrou a muitas nações como se pode resistir a chegar ao socialismo”…

Quatro anos depois, em 1937, escreveu que Hitler era um político “extremamente competente”, com um
“sorriso que desarmava”e um “sutil magnetismo pessoal”.

Lloyd George, o ex­primeiro­ministro liberal, foi ainda mais apologético ao definir o führer como “um
grande homem”.

Paradoxalmente, os mesmos dirigentes das grandes potências ocidentais, cujos anátemas contra a URSS e
Stalin continuam a ser peças de fundo nas campanhas anticomunistas, reconheceram publicamente a decisiva
importância da contribuição soviética para a derrota do Reich nazi e manifestaram grande apreço pela pessoa
do secretário­geral do PCUS.

Roosevelt, já muito doente, não escondeu a impressão positiva que, na Conferência de Teerã, lhe causara a
personalidade de Stalin, definindo­o como um estadista de grande talento e cultura.

Na correspondência de Churchill hoje publicada são numerosas as referências altamente elogiosas a Stalin.
Identificou nele um dos mais dotados estadistas do século XX.

Isso não o impediu de dar o dito por não dito e de se orgulhar de ser o pai da Guerra Fria ao esboçar, no
famoso discurso de Fulton, os perigos daquilo a que chamou a “Cortina de Ferro”.

Obviamente o Relatório Secreto de Khruchov trouxe um poderoso estímulo à campanha de demonização de
Stalin.

A abertura dos arquivos soviéticos e as memórias de marechais que desempenharam um grande papel na
derrota militar do III Reich constituem o mais eficaz dos desmentidos a afirmações caricaturais desse
Relatório que apresenta de Stalin a imagem de um dirigente que caíra em depressão com a invasão alemã e
sem influência direta na condução da guerra patriótica.
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15/03/2017 “Stalin: história e crítica de uma lenda negra”. Um livro de Domenico Losurdo

A tese provocatória dos monstros gêmeos”, difundida por Ana Arendt e outros escritores anticomunistas, não
passa de uma grotesca operação de marketing político. Mas continua a ser tempero utilizado nas campanhas
de satanização de Stalin.

Losurdo chama a atenção para o protagonismo que Arendt mais uma vez assumiu nessa ofensiva, na
tentativa de forçar um paralelo entre a Alemanha nazi e a URSS staliniana.

A escritora sionista pretende iluminar “a origem do totalitarismo”, mas, na realidade, o seu ensaio agride a
História, configurando aquilo a que Lukacs chama o assalto à razão.

A obsessão dos ideólogos do neoliberalismo em lançar pontes entre Hitler e Stalin é tão irracional que
assume facetas de paranóia.

Losurdo pulveriza a tese e lembra, com fundamento, que, pelo pensamento e pela sua intervenção na história,
foram precisamente duas personalidades antagônicas.

Enquanto Hitler fez do racismo um cimento do Estado nazi, Stalin condenou­o como forma de canibalismo
social e ameaça à paz. Stalin investiu sempre contra o mito da superioridade dos arianos puros, sobretudo os
alemães, sobre os demais povos.

Sob a sua direção, a União Soviética assumiu um papel decisivo na descolonização e foi graças à
solidariedade do Partido sob a sua direção, apoio ideológico e ajuda material que as lutas de libertação
nacional se desenvolveram vitoriosamente na África, na Ásia e na América Latina.

Até Friedrich Hayek, o economista austríaco que é considerado o pai do neoliberalismo ortodoxo, reconhece
que, sem a Revolução Russa, o chamado estado social não teria sido possível na Europa.

Atualizado em 24.06.16

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Permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

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