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13/06/2018 Acesso ao Insight - Budismo Theravada - fe

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Fé na Iluminação
Por

Ajaan Thanissaro
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O Buda nunca colocou exigências incondicionais em relação à fé de uma pessoa. E para qualquer
pessoa de uma cultura onde a religião dominante coloque tais exigências, essa é uma das
características mais atrativas do Budismo. Nós lemos as conhecidas instruções do Buda para os
Kalamas, onde ele os aconselha a testar as coisas por eles mesmos, e nós vemos isso como um
convite para acreditar, ou não, naquilo que quisermos. Algumas pessoas chegam até a dizer que
a fé não tem lugar na tradição Budista, que a atitude Budista correta é a do ceticismo.

Mas mesmo que o Buda recomende tolerância e um ceticismo saudável em relação a assuntos de
fé, ele também faz um pedido condicional sobre a fé: Se você quer sinceramente colocar um fim
ao sofrimento – esta é a condição – você deverá aceitar certas coisas com base na fé, como
trabalhar com hipóteses e aí testá-las através do caminho de prática dele.

Existe uma dica dessa necessidade de fé até no discurso para os Kalamas:

"Não se deixem levar pelos relatos, pelas tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas
escrituras, pela razão, pela inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de
alguém, por respeito por alguém, ou pelo pensamento, 'Este contemplativo é o nosso mestre.'
Quando vocês souberem por vocês mesmos que, 'Essas qualidades são hábeis; essas
qualidades são isentas de culpa; essas qualidades são elogiadas pelos sábios; essas qualidades
quando postas em prática conduzem ao bem-estar e à felicidade' - então vocês devem
penetrar e permanecer nelas." (AN III.65)

As primeiras frases nessa passagem, refutando a autoridade das escrituras e tradições, têm um
caráter empírico tão marcante que é fácil omitir a frase mais adiante, afirmando que você tem de
levar em conta o que é aceito pelos sábios. A frase é importante, pois ajuda a entender os
ensinamentos do Buda como um todo. Se ele tivesse desejado simplesmente que você confiasse
só no seu próprio senso de certo e errado, porque teria ele deixado tantos outros ensinamentos?

Portanto, o conselho do Buda para os Kalamas é equilibrado: assim como você não deveria
confiar incondicionalmente numa autoridade externa, você também não deve confiar cegamente
na sua lógica e nas suas sensações se elas forem contra a verdadeira sabedoria de outras
pessoas. Como outros discursos mais antigos deixam claro, os sábios podem ser reconhecidos
por suas palavras e comportamento, mas os padrões de sabedoria são claramente avaliados em
relação ao Buda e seus nobres discípulos, pessoas que já tocaram a Iluminação. E a atitude
apropriada em relação àqueles que servem como modelo é a de fé.

“Para um discípulo que tem convicção na mensagem do Abençoado e vive para penetrá-la, o
que se harmoniza com o Dhamma é : ‘O Abençoado é o Mestre, eu sou um discípulo. O
Abençoado é aquele que sabe, não eu’... Para um discípulo que tem convicção na mensagem
do Mestre e vive para penetrá-la, o que se harmoniza com o Dhamma é : Com satisfação eu
deixaria a carne e o sangue do meu corpo secar, deixando só pele, tendões e ossos, se eu não
tiver atingido o que pode ser atingido através da firmeza humana, da energia humana e do
esforço humano, não haverá nenhum relaxamento na minha energia.’” (MN 70)
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Repetidamente o Buda afirmou que a fé no professor é o que leva você a aprender. Fé na própria
iluminação do Buda é um requisito indispensável para qualquer pessoa que quiser atingir a
Iluminação. Como a fé estimula a energia, a atenção plena, a concentração e a sabedoria, ela
pode levá-lo até o fim, para o imortal.

Assim, existe uma tensão nas recomendações do Buda sobre a fé e o empirismo. Poucos Budistas
asiáticos, que eu conheço, acham essa tensão desconfortável. Mas os Budistas ocidentais,
criados numa cultura onde religião e fé há muito tempo têm estado em guerra com a ciência e o
empirismo, acham essa tensão muito desconcertante. Nas minhas discussões, eles quase sempre
tentam resolvê-la da mesma maneira em que historicamente a tensão entre a fé cristã e o
empirismo científico tem sido resolvida na nossa cultura. Três posições se destacam, não só por
que elas são as mais comuns, mas também porque elas são claramente bem ocidentais.
Conscientemente ou não, eles tentam entender a posição do Buda, em relação à fé e o
empirismo, de uma maneira que pode ser facilmente mapeada nas linhas de batalhas modernas
ocidentais entre religião e ciência.

A primeira interpretação tem suas raízes num lado da cultura ocidental que rejeita totalmente a
legitimidade da fé. Nessa visão, o Buda foi a personificação do ideal Vitoriano do herói agnóstico,
alguém que evitou o consolo infantil da fé e que, ao invés disso, advogou um método puramente
científico para o treinamento e fortalecimento da nossa mente. Porque o seu método se
concentrava inteiramente no momento presente, questões do passado e do futuro eram
totalmente irrelevantes para a sua mensagem. Assim, quaisquer referências à fé em assuntos
como karma passado, renascimento futuro ou felicidade incondicional separada da contribuição
imediata dos sentidos são interpolações nos textos, que os budistas agnósticos, seguindo o
exemplo do Buda, deveriam fazer o impossível para rejeitar.

A segunda interpretação tem raízes num lado da cultura ocidental que tem rejeitado ou os
detalhes da fé Cristã, ou a autoridade de qualquer religião organizada, mas que tem apreciado a
emoção da fé como um requisito essencial da saúde mental. Essa visão apresenta o Buda como
um herói romântico que apreciava o valor subjetivo da fé no estabelecimento de um sentido de
totalidade interior e interligação exterior. Tolerante e oposto ao dogmatismo, ele viu o fato
psicológico de uma fé viva como mais importante do que o seu objeto. Em outras palavras, não
importa para onde a fé seja direcionada, contanto que seja profundamente sentida e substancial
pessoalmente.

A fé na Iluminação do Buda significa simplesmente acreditar que ele encontrou aquilo que
funcionou para si próprio. E isso não tem nenhuma implicação no que pode funcionar para você.
Se você achar o ensinamento sobre karma e renascimento reconfortante, muito bem: Acredite
nele. Senão, não acredite. Se quiser incluir um deus, ou deusa, todo poderoso na sua visão do
mundo, o Buda não fará nenhuma objeção. O que é importante é que você se relacione com a
sua fé de um modo que seja emocionalmente restaurador, fortalecedor e que lhe proporcione
poder físico e mental.

Como essa segunda interpretação tende a aceitar e incluir tudo, ela às vezes leva a uma terceira
que abrange as duas primeiras. Essa interpretação apresenta o Buda como alguém preso na sua
situação histórica. Como nós, ele foi confrontado com a problemática de encontrar um significado
na vida considerando a visão do mundo da sua época. Suas idéias sobre karma e renascimento
eram simplesmente concepções tiradas da ciência tosca da antiga Índia, enquanto que o seu
caminho de prática era uma tentativa de negociar uma vida gratificante dentro dessas
concepções. Se ele estivesse vivo hoje, ele tentaria reconciliar seus valores com as descobertas
da ciência moderna, da mesma maneira que alguns ocidentais têm feito com a sua fé no
monoteísmo.

A concepção básica dessa posição é que a ciência se preocupa com fatos e religião com valores.
A ciência fornece dados reais e concretos para os quais a religião deveria prover sentido. Assim,
cada budista desempenharia o trabalho de um Buda ao aceitar os fatos concretos que têm sido
cientificamente provados para a nossa geração e aí, buscar a tradição budista – bem como outras
tradições se for o caso – para os mitos e valores proporcionarem sentido a esses fatos, e no
processo, forjar um novo Budismo para a nossa era.

Cada uma dessas três interpretações podem fazer muito sentido para um ponto de vista
ocidental, mas nenhuma delas faz justiça àquilo que nós sabemos do Buda ou do seu
ensinamento sobre o papel da fé e do empirismo no caminho. Todas as três são corretas ao
enfatizar que o Buda não queria impor às outras pessoas os seus ensinamentos, mas – ao
imporem as suas próprias concepções aos ensinamentos e ações dele – elas interpretaram mal o
que esse ‘não querer’ significa. Ele não era agnóstico; ele tinha fortes razões para declarar
algumas idéias como dignas de fé e outras como não; e os ensinamentos sobre karma,
renascimento e nibbana romperam radicalmente com a visão do mundo dominante da sua época.
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Ele não era nem vitoriano, nem um herói romântico e tampouco uma vítima do seu tempo. Ele
era um herói que, entre outras coisas, dominou o assunto da fé e do empirismo dentro do seu
próprio método. Mas para avaliar dessa maneira, nós primeiro temos de nos afastar um pouco do
campo de batalha cultural e olhar para a fé e o empirismo num contexto mais básico,
simplesmente como processos dentro da mente individual.

Ali, eles desempenham os seus papéis principais na psicologia de como nós decidimos agir.
Embora gostemos de pensar que nós baseamos nossas decisões em fatos reais e concretos, nós
na verdade, usamos tanto a fé como o empirismo em cada decisão que tomamos. Mesmo nas
nossas decisões baseadas principalmente no empirismo, nossas visões são afetadas pela nossa
posição no tempo. Como Kierkegaard observou, nós vivemos para frente, mas entendemos para
trás. Qualquer empresário obstinado dirá para você que o futuro tem de ser tratado com base na
fé, não importa quanto nós saibamos a respeito do passado. Além disso, nós somos
frequentemente forçados a tomar decisões em situações em que não há tempo ou oportunidade
para juntarmos fatos passados suficientes para uma escolha baseada em informação. Outras
vezes, nós temos fatos em demasia – como quando um doutor se defronta com vários testes
conflitantes sobre o estado de saúde de um paciente – e nós temos de nos basear na fé para
decidir em quais fatos focar e quais ignorar.

De qualquer forma, a fé também tem um papel profundo em muitas das nossas decisões. Como
William James observou certa vez, existem dois tipos de verdade na vida: aquelas cuja validade
não tem nada que ver com as nossas ações e aquelas cuja realidade depende do que nós
fazemos. Verdades do primeiro tipo – verdades do observador – incluem fatos sobre o
comportamento do mundo físico: como os átomos formam as moléculas, como as estrelas
explodem. Verdades do segundo tipo – verdades que dependem da vontade – incluem
habilidades, relacionamentos, projetos empresariais, qualquer coisa que requeira seu esforço
para fazer com que seja real. Com verdades do observador, é melhor permanecer cético até que
uma evidência razoável surja. Com verdades que dependem da vontade, no entanto, a verdade
não acontece sem a sua fé e quase sempre diante de chances não muito promissoras. Se você
não acreditar que a democracia funcionará no seu país, ela não vai funcionar. Se você não
acreditar que vale a pena se tornar um pianista ou que você tem as qualidades de um pianista,
nada acontecerá. As verdades que dependem da vontade são as mais relevantes dentro da nossa
busca da verdadeira felicidade.

Muitas das histórias mais inspiradoras na nossa vida são de pessoas que criam verdades desse
tipo, quando uma montanha de evidências empíricas estão contra elas. Em casos como esses, a
verdade requer que a fé ativamente cancele os fatos presentes.

Se formos mais a fundo dentro da psicologia do processo de tomada de decisão, entraremos


numa área em que nenhuma evidência científica poderá nos oferecer alguma prova: Nós
realmente agimos ou as ações são uma ilusão? Nossos atos já são predeterminados pelas leis da
física ou uma inteligência externa, ou nós temos livre arbítrio? Os resultados das nossas ações
são ilusórios? As relações de causa e efeito são reais ou só uma ficção? Mesmo o experimento
científico planejado com o máximo de cuidado não poderia nunca resolver essas questões, e uma
vez que nos tornemos conscientes delas, teremos de tomar uma posição, se queremos continuar
colocando energia nesses pensamentos, palavras e ações.

Essas foram as áreas onde o Buda focou seus ensinamentos, no empirismo e na fé. Embora a sua
primeira nobre verdade requeira que observemos o sofrimento até que o compreendamos, nós
temos de, com base na fé, aceitar a sua afirmação de que os fatos que observamos sobre o
sofrimento são o guia mais importante para a tomada de decisões a cada momento, a vida toda.
Porque a sua terceira nobre verdade, a cessação do sofrimento, é uma verdade que depende da
vontade, nós temos de aceitá-la com base na fé de que esse é um objetivo possível, um objetivo
que vale a pena e que nós somos capazes de atingi-lo. E porque a quarta nobre verdade – o
caminho para a cessação do sofrimento – é um caminho de ação e habilidade, temos de aceitá-lo
com base na fé de que as nossas ações são reais, que nós temos livre arbítrio, e além disso, que
existe um padrão de causa e efeito no funcionamento da mente com o qual podemos aprender a
dominar essa habilidade. Como o Buda disse, o caminho levará a uma experiência direta dessas
verdades, mas só trazendo a fé para a prática é que você terá o conhecimento disso por você
mesmo. Em outras palavras, “fé” no contexto budista significa fé na habilidade das suas ações de
levar a uma experiência direta do fim do sofrimento.

O Buda ofereceu esses ensinamentos às pessoas que buscavam aconselhamento sobre como
encontrar a verdadeira felicidade. É por essa razão que ele foi capaz de evitar qualquer tipo de
coerção; seus ensinamentos assumiram que seus ouvintes já estavam envolvidos numa busca.
Quando nós entendemos a sua concepção sobre o que significa buscar – porquê as pessoas
buscam e o que elas estão buscando – nós podemos compreender o conselho dele sobre como

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usar a fé e o empirismo numa busca bem sucedida. A melhor maneira de fazer isso é
examinando cinco dos seus símiles que ilustram como uma busca deveria ser conduzida.

O primeiro símile ilustra a busca na sua forma mais crua e desfocada:

Dois homens fortes agarraram um outro homem pelos braços e arrastando-o até uma cova
cheia de carvão em brasa. O Buda observa, “O homem não se contorceria todo?” O
contorcimento do seu corpo simboliza a maneira pela qual reagimos ao sofrimento. Nós não
nos damos o trabalho de perguntar se o nosso sofrimento é predeterminado ou se as nossas
ações têm alguma possibilidade de serem bem sucedidas. Nós simplesmente arranjamos uma
briga e fazemos tudo que podemos para escapar dela. É a nossa reação natural.

O Buda ensinou que essa reação tem dois desdobramentos: Nós ficamos confusos – “Porque isto
está acontecendo comigo?” — e aí buscamos uma maneira de por fim ao sofrimento. Quando ele
afirmou que tudo que ele ensinava era o sofrimento e o fim do sofrimento, ele estava
respondendo a essas duas reações, oferecendo uma explicação para o sofrimento bem como para
o seu fim para terminar com a nossa confusão e ao mesmo tempo mostrar o caminho do fim do
sofrimento como um modo de satisfazer a nossa busca. Ele não tinha nenhuma utilidade para a
idéia – freqüentemente promovida por escritores que vieram depois – que o nosso sofrimento
provém da nossa luta para resistir ao sofrimento, que a busca do fim do sofrimento é
precisamente o que nos impede de ver a paz já existente. Em vista do símile mencionado acima,
relaxar simplesmente na aceitação total do momento significa relaxar na possibilidade de ser
queimado vivo. O presente fica se transformando em futuro e você não pode ignorar para onde
isso o está levando.

Esse símile explica também porque a idéia de um Budismo sem fé tem muito pouco apelo para as
pessoas que estão sofrendo de doenças sérias, opressão, pobreza ou racismo. A experiência
deles mostrou que o único caminho para vencer esses obstáculos é buscar verdades da vontade,
que requerem fé como sua base sólida.

O Segundo simile:

Um homem buscando fruta, sobe numa árvore para comer até se satisfazer e para encher os
seus bolsos de fruta e assim poder levá-las para casa. Enquanto ele está ali, um outro homem
buscando fruta aparece. O segundo homem não pode subir na árvore, mas ele tem um
machado e assim ele corta pedaços da árvore. Se o primeiro homem não descer rápido da
árvore, ele pode quebrar um braço ou uma perna, ou mesmo morrer.

Esse símile mostra os perigos de buscar a verdadeira felicidade no lugar errado: nos prazeres
sensuais. Se a sua felicidade depende de qualquer coisa que outras pessoas possam tomar de
você, você está se colocando em perigo. Como o Buda observa, nós ansiamos pela felicidade dos
prazeres sensuais não porque eles alguma vez realmente nos satisfizeram completamente, mas
porque não podemos imaginar nenhum outro jeito de escapar da dor e do sofrimento. Se nós nos
permitirmos acreditar que existe uma outra alternativa, nós estaríamos mais dispostos a
questionar nossa fé cega em nossos desejos e apegos, mais dispostos a buscar aquela
alternativa e fazer uma tentativa.

E como o terceiro símile argumenta, se nós olharmos na direção certa, nós encontraremos o que
buscamos.

Uma pessoa buscando leite tenta obtê-lo torcendo o chifre de uma vaca. Uma outra, buscando
leite, tenta obtê-lo ordenhando a vaca.

O Buda ensinou esse símile em resposta a uma afirmação de que não existe nada que um ser
humano possa fazer para alcançar a libertação do sofrimento. Nós podemos alcançá-lo, ele disse,
contanto que sigamos o método certo, como a pessoa que ordenha a vaca.

O método certo começa com o entendimento correto, e é aí que entra a fé na Iluminação do


Buda. Como o Buda afirmou uma vez, ele não nos disse tudo que ele sabia. O que ele nos disse
se comparava a uma mão cheia de folhas; o que ele sabia se comparava à quantidade de folhas
de uma floresta. Mas, assim mesmo, uma mão cheia de folhas continha todas as lições que
ajudariam outras pessoas a despertar; o entendimento correto começa com o aprendizado do
que são essas mesmas lições.

A lição mais importante, e o mais importante item da fé, é o fato da iluminação em si. O Buda a
alcançou através dos seus próprios esforços e ele assim fez, não por que ele era mais do que
humano, mas porque ele desenvolveu qualidades mentais que cada um de nós tem o potencial
de desenvolver. Ter fé na iluminação dele significa, assim, ter fé no seu próprio potencial para
despertar.

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No entanto, os detalhes do que ele descobriu na sua iluminação também são importantes. Não é
simplesmente o caso de que ele encontrou o que funcionou para ele, enquanto que o que
funciona para você pode ser uma outra coisa totalmente distinta. Não importa quanto você torça
o chifre da vaca, ele não produzirá leite. Os insights do Buda chegaram à verdade de como as
coisas funcionam e o que significa elas funcionarem. Esses insights se aplicam a todos, o tempo
todo.

Ao resumir a sua iluminação na forma mais condensada, o Buda focou num princípio de
causalidade que explica como nós vivemos num mundo onde padrões de causalidade moldam os
eventos e ainda assim esses eventos não são totalmente predeterminados pelo passado.

O princípio é na verdade dual, pois existem dois tipos de causalidade se entrelaçando em nossas
vidas. O primeiro é o de uma causa dando resultados no presente imediato: Quando existe isso,
aquilo existe; Quando não existe isso, aquilo também não existe. Quando você liga o estéreo, por
exemplo, o barulho começa; quando você o desliga, o barulho cessa. O segundo tipo de
causalidade é o de uma causa dando resultados ao longo do tempo: Com o surgimento disso,
aquilo surge; Com a cessação disto, aquilo cessa. Se você estuda agora, você obterá
conhecimento em algum tempo no futuro. Se você causar dano ao seu cérebro, os efeitos
negativos aparecerão dali a algum tempo também.

No que se refere ao karma ou intenção, o princípio dual significa isso: Qualquer momento de
experiência consiste de três coisas: (1) prazeres e dores resultantes de intenções passadas, (2)
intenções no momento presente , e (3) prazeres e dores resultantes de intenções no momento
presente. Assim, o presente não é totalmente moldado pelo passado. De fato, o elemento mais
importante moldando a sua experiência presente de prazer ou dor é a sua própria criação, que
toma as suas intenções no momento presente e a matéria prima fornecida pelas intenções do
momento passado. E as suas intenções no momento presente podem ser totalmente livres.

Assim é como existe livre arbítrio no meio da causalidade. Ao mesmo tempo, o processo como as
intenções levam a resultados nos permite aprender dos erros passados. Essa libertação dentro de
um processo abre a rota para o caminho do treinamento mental que pode levar ao fim do
sofrimento. Nós praticamos generosidade, virtude e meditação para conhecer o poder das nossas
intenções e especialmente para ver o que acontece quando as nossas intenções ficam mais
habilidosas, tão habilidosas que as intenções no presente momento na realidade param. Só
quando elas param você pode provar para você mesmo quão poderosas elas têm sido. E o lugar
onde elas param é onde o incondicionado – o fim do sofrimento – é encontrado. Daí, você pode
retornar às intenções, mas você não é mais prisioneiro ou escravo delas.

Ao apresentar os seus ensinamentos sobre karma e sofrimento para os seus ouvintes, o Buda
ofereceria evidência empírica para corroborá-los – observando, por exemplo, como a sua reação
ao sofrimento de uma outra pessoa depende de quão apegado você está a ela – mas ele nunca
tentou apoiar esses ensinamentos com uma prova empírica completa. Na realidade, ele
amontoou os seus contemporâneos Jainistas de ridicularizações, ao tentarem provar seus
ensinamentos mais deterministas sobre karma afirmando que todos aqueles, que matam,
roubam ou mentem ou praticam sexo impróprio, sofrem as conseqüências desses atos aqui e
agora. “Vocês nunca viram o caso,” o Buda perguntou, “no qual um homem é premiado por um
rei por matar um inimigo do rei, por roubar uma pessoa que é inimiga do rei, por divertir o rei
com uma mentira inteligente, por seduzir a mulher de um inimigo do rei?” Mesmo assim o
princípio básico de karma é suficientemente simples – intenções habilidosas levam ao prazer,
intenções inábeis à dor – o princípio dual de causalidade através do qual o karma opera é
bastante complexo, como afirmou Mandelbrot, [1] que você ficaria louco tentando finalizar a
coisa toda empiricamente.

Assim, ao invés de uma prova empírica para o seu ensinamento sobre karma, o Buda ofereceu
uma prova pragmática: Se você acreditar nesses ensinamentos sobre causalidade, karma,
renascimento e as quatro nobres verdades, como você agirá? Que tipo de vida você levará? Você
não tenderá a ser mais responsável e cheio de compaixão? Se, por outro lado, você fosse
acreditar em qualquer das alternativas – como uma doutrina de um destino impessoal ou uma
deidade que determinasse o curso do seu prazer e dor, ou uma doutrina em que todas as coisas
fossem ao acaso e sem causa – o que essas crenças o levariam a fazer? Elas permitiriam que
você colocasse um fim ao sofrimento através dos seus próprios esforços? De alguma maneira,
elas levariam em conta qualquer intenção visando o conhecimento? Se, por outro lado, você se
recusasse a se comprometer com uma idéia coerente sobre o que uma ação humana é capaz de
fazer, você empreenderia um caminho de prática cheio de desafios até o fim?

Esse era o tipo de raciocínio que o Buda usou para inspirar fé na sua iluminação e na sua
relevância para a nossa própria busca da verdadeira felicidade.

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O quarto símile enfatiza a importância de não se contentar com nada menos do que a coisa
genuína:

Um homem em busca do cerne vai para uma floresta e chega até uma árvore que contém o
cerne, mas ao invés de levar o cerne, ele leva para casa um pouco do alburno, galhos ou
mesmo a casca da árvore.

Fé na possibilidade de nibbana – o cerne do caminho – é o que faz com que você não seja
atacado pelos prazeres do alburno e da casca: a gratificação resultante de um ato de
generosidade e virtude, o sentido de paz, a interconexão e unicidade que vem com a forte
concentração. Isso é surpreendente porque nibbana está muito menos relacionado com as
nossas experiências diárias do que o karma ou o renascimento. Nós vemos os frutos das nossas
ações ao nosso redor; nós vemos as pessoas nascerem com distintas personalidades e diferentes
forças e não precisa de um grande salto para chegar à idéia de que existe alguma conexão entre
essas coisas. Nibbana, no entanto, não está conectado de nenhuma maneira com nada que nós
experienciamos. Já está lá. Mas escondido por todos os nossos anseios por atividade física e
mental. Para tocá-lo, nós temos de abandonar nosso apego habitual à atividade. Acreditar que tal
coisa seja possível, e que é a felicidade última, é dar um grande salto.

Muitos na época do Buda estavam desejosos de dar o salto, enquanto muitos outros não,
preferindo se contentar com os galhos e o alburno, querendo simplesmente aprender como viver
feliz com as suas famílias nessa vida e ir para o paraíso na próxima. Nibbana, eles diziam,
poderia esperar. Confrontado com essa resistência honesta e gentil ao seu ensinamento sobre
nibbana, o Buda alegremente aceitou. Mas ele era menos tolerante em relação à resistência mais
forte que ele recebeu dos brahmas, divindades celestiais que tranqüilamente sentiam que a sua
experiência de unicidade ilimitada e compaixão no meio do samsara – o alburno deles – era
superior ao cerne de nibbana.

Em casos como esse, ele usava todos os poderes supra-humanos e intelectuais que ele possuía
para abater o orgulho deles, porque ele entendia que as idéias deles fechavam totalmente a
porta para a iluminação. Se você pensa que o seu alburno é na verdade o cerne, você não
buscará nada melhor. Quando seu alburno quebrar, você decidirá que o cerne é uma mentira.
Mas se você compreender que você está usando a casca da árvore e o alburno, você deixará
aberta a possibilidade para algum dia voltar atrás e fazer uma tentativa com o cerne. É claro, é
ainda melhor se você puder aceitar os ensinamentos do Buda sobre nibbana como um desafio
direto, imediato, nesta vida – como se ele estivesse dizendo, “Aqui está a sua chance. Você pode
provar que estou errado?”

O quinto símile:

Um matuto perito em elefantes, procurando um grande elefante macho, se deparou com uma
grande pegada de elefante na floresta. No entanto, ele não concluiu precipitadamente que essa
é a pegada de um elefante macho. Porque? Porque existem elefantas pequenas com pegadas
grandes. Poderia ser de uma delas. Ele segue na floresta e vê umas marcas de raspas e presas
de elefante no alto das árvores, mas assim mesmo ele não concluiu precipitadamente que ele
estava na rota de um grande elefante macho. Porque? Porque existem elefantas altas com
presas. As marcas poderiam ser delas. Ele segue ainda mais e finalmente vê um grande
elefante macho sob uma árvore ou numa clareira. Aí é quando ele conclui que ele havia
encontrado o seu elefante macho.

Ao explicar esse símile, o Buda disse que todos os passos preliminares da prática – ir para a
floresta como um monástico; seguir os preceitos; desenvolver a contenção, contentamento e
forte concentração; ver as vidas passadas e ver os seres do cosmos morrendo e renascendo de
acordo com o karma deles – são meramente pegadas e marcas de raspas da iluminação do Buda.
Só quando você tiver a sua primeira experiência da iluminação, depois de seguir o caminho dele,
você realmente saberá que a sua fé na iluminação dele foi bem colocada. Ao tocar a dimensão
onde o sofrimento termina você compreende que os ensinamentos do Buda sobre isso não eram
só verdadeiros, mas também úteis: Ele sabia o que estava falando e além disso, foi capaz de
dirigi-lo para lá.

O que é interessante sobre esse símile é a maneira pela qual ele combina a fé saudável com o
ceticismo honesto. Agir de acordo com essa fé é testá-la, do mesmo modo que você testaria uma
hipótese prática. Você precisa de fé para continuar seguindo as pegadas, mas você também
precisa de honestidade para reconhecer quando a fé termina e o conhecimento começa. Essa é a
razão pela qual, no contexto Budista, fé e empirismo são inseparáveis. Ao contrário de uma
religião monoteísta – onde a fé está centrada no poder de um outro ser – a fé na iluminação do
Buda continua apontando de volta para o poder das suas próprias ações: Você tem poder
suficiente sobre as suas intenções para fazer com que elas sejam inócuas? E depois as intenções

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inócuas lhe darão a liberdade de abandonar a intenção totalmente? A maneira pela qual você
pode responder a essas perguntas é sendo rigorosamente honesto sobre as suas intenções para
detectar até mesmo o menor traço de malícia, até mesmo o menor movimento da própria
intenção. Só então você, com certeza, conhecerá o imortal, totalmente incondicionado pela
intenção. Mas se você afirmar que sabe coisas que na verdade não sabe, como é que poderá
confiar em si mesmo para detectar qualquer uma dessas coisas? Você precisa fazer com que a
sua honestidade seja digna da sua fé, testando as suas suposições até que você encontre o
verdadeiro conhecimento nesse teste.

É por essa razão que a ciência nunca será capaz de passar um julgamento válido sobre as
verdades da iluminação, pois o caminho lida com assuntos que fora dele o experimentador não
pode entender. Embora outros possam sentir empatia pelo seu sofrimento, o sofrimento em si é
uma experiência que você não pode partilhar com ninguém. A honestidade e habilidade das suas
intenções é um assunto do seu diálogo interior, alguma coisa que é também só sua. Os cientistas
podem medir os dados neurológicos indicando dor ou atividade intencional, mas não existe um
medidor externo para medir como é a dor ou quão honesto o seu diálogo intencional pode ser. E
quanto ao imortal, ele não tem de maneira alguma nenhuma correlação física. O mais próximo
que uma medição empírica externa pode chegar são fotos de marcas dos pés no chão e em
marcas nas árvores.

Para conseguir o elefante macho, você deve fazer o que o discípulo do Buda, Sariputta, fez. Ele
ficou seguindo o caminho, sem tirar conclusões precipitadas desonestas, até ele ver o elefante
dentro da sua mente. Aí, quando o Buda perguntou a ele, “ Você aceitou baseado na fé que esses
cinco poderes – convicção, energia, atenção plena, concentração e sabedoria – levam ao imortal,”
Sariputta pôde responder honestamente, “Não, eu não aceito isso baseado na fé. Eu sei.”

Como Sariputta afirmou num outro discurso, a sua prova era experiencial, mas tão íntima que
tocava uma dimensão onde não só os sentidos externos, mas até o sentido de funcionamento da
mente não podia chegar. Se quiser confirmar esse conhecimento, você terá de tocar essa
dimensão no único lugar que você pode acessá-la, dentro de você. Esse é um dos dois modos
pelos quais o método do Buda difere do empirismo moderno.

O outro tem que ver com a integridade da pessoa que está executando a prova.

Como na ciência, a fé na Iluminação do Buda funciona como uma hipótese de trabalho, mas o
teste da hipótese requer uma honestidade mais profunda e mais radical do que qualquer coisa
que a ciência exija. Você tem de se comprometer – todas as variações de quem você pensa ser –
totalmente com o teste. Só quando você desmontar todo o apego aos seus sentidos internos e
externos é que você poderá provar se a atividade de apego é o que esconde o imortal. O Buda
nunca forçou ninguém a se comprometer com esse teste por dois motivos, porque você não pode
coagir as pessoas a serem honestas com elas mesmas, e porque ele viu que a cova de carvão em
brasa era coerção suficiente.

Notas:

[1] Benoit Mandelbrot: cientista e matemático que desenvolveu teorias sobre fractais. [Retorna]

Revisado: 27 Abril 2007


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