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Primeiros encontros

etnografando e brincando com


crianças pelas ruas

Ediane Hirle

Escrever para crianças é escrever com silêncios


… espaços, pontilhamentos …
É escrever, até, com o dedão do pé,
sem escrever a mais.
É ler com olhos de lince,
É girar que nem pião.
É existir agora.
Falar SIM,
Ao invés de não.

Justificativa

Este trabalho é fruto de uma pesquisa com um grupo de crianças que vivem no
bairro Jardim Universitário II, Foz do Iguaçu. Convivi com as crianças por quatro
meses seguidos, desde que me mudei pra localidade, e a partir do primeiro contato
tivemos encontros semanais para realizarmos atividades diversas, entre elas,
brincadeiras, coleta de frutos nas ruas, passeio ciclístico e cultivo de horta
comunitária.

Ao chegar neste bairro não esperava tornar-me centro de uma pesquisa específica
sobre alteridade por parte das crianças: quem sou e porque estou naquela rua?
Nesta seção, relato como as crianças fizeram comigo o que Roy Wagner (1981)
chamou de "antropologia reversa".

Por entender a cultura como uma invenção a linha de onde começa e termina a
alteridade também se tornam pontos de objetividade relativa. Quem é você?
Porque você está aqui? Vamos brincar tia Edi? Você sabe falar
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Namiororanguiekiô? O que é estudar antropologia? O que você faz para estudar
nessa “Universifaculdade”? Sabe o que existia aqui neste terreno antes? Encontros
onde debatemos essas e outras questões aconteciam de maneira espontânea e
frequente, e assim fui compreendendo a relação entre a subjetividade das
brincadeiras e a configuração de alguns espaços do bairro.

Aqui relato e analiso essa experiência um pouco singular e bastante instrutiva


sobre a categoria de cultura da infância, brincadeiras de rua, espaço e alteridade
da minha vizinhança. Importante considerar que nesta pesquisa sobre crianças que
brincam na rua, pouco irei me preocupar com o termo criança em sua
generalidade, o tema cultura da infância de tão vasto, e ao mesmo tempo tão
pouco explorado pela Antropologia, não caberia nesse pequeno espaço de ensaio
etnográfico.

Portanto, encontraremos crianças particulares e observaremos as coisas


particulares que fazem dessa relação fruto da outridade, em um contexto
específico da ousada escolha de ter meu bairro como plano de fundo de pesquisa.
Buscando compreender o espaço da rua como um território de brincadeiras cujo
caráter simbólico está para além das definições de nossas categorias
universalizantes de adulto, principalmente quando se subalterniza a presença
infantil nestes espaços considerados marginalizados. Meu intento é representar a
rede de signos que perpassam esta singular experiência do brincar.

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Figura 1 Brincadeiras na Bicicleta-Triciclo

Nas palavras de Foote White: "O padrão geral da vida é importante, mas só pode
ser construído por meio da observação dos indivíduos cujas ações configuram
esse padrão". Surge a seguinte indagação ponto de partida: o que o brincar
representa sobre a relação das crianças no espaço e como a subjetividade é
marcada e influenciada pelo olhar que as crianças têm sobre mim enquanto outro,
desconhecido?

Quando Malinowski cunhou o método antropológico etnográfico ele iniciou seu


texto com os dizeres: "Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu
equipamento, numa praia tropical, próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou
o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado
um lugar para morar no alojamento de algum homem branco - negociante ou
missionário - você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu
trabalho etnográfico".

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O recurso “Imagine-se...” neste caso, permite que o leitor passeie pelo texto
malinowskiano como quem passeia por um texto literário. É claro que há diferenças
e distâncias significativas entre o texto literário e o texto antropológico, contudo, em
ambos os casos o autor precisa contar uma história par um leitor desconhecido.

No caso desta pesquisa quando cheguei para “estar ali entre os sujeitos” que
protagonizam esta etnografia a relação foi estabelecida a partir deles, ou seja, o
“olhar observativo” não se deu por meio de um trabalho de campo em local distante
do meu cotidiano. Tão pouco é possível dizer se a alteridade começava do meu
portão pra dentro ou do portão para fora.

De fato em certa tarde de domingo enquanto eu pendurava algumas roupas no


varal fui supreendida com uma voz infantil vinda do estreito do portão: “Hola tia...
você vai morar aqui agora? Como você se chama? Será que não teria um serviço
pra mim aí, estou precisando de R$8,00 reais.... É que amanhã minha escola vai
ao cinema... A professora conseguiu um desconto, vai ficar por R$8,00 reais pra
cada, vamos assistir um filme 3D daqueles que usa um óculos no rosto parece que
vai ser muito legal... Eu não tenho esse dinheiro, minha mãe não tem condições,
eu tenho mais sete irmãos e a grana sempre está curta. Moro ali no final da rua e
eu posso fazer qualquer serviço pra você: lavar sua janela, varrer quintal, regar
suas plantas ou lavar louças”.

Convidei para entrar, conversarmos mais um pouco e sugeri que o menino apenas
voltasse para contar o filme e fazermos todos juntos “coisas de crianças”... “Mas eu
já sou acostumado com trabalhos tia, eu faço várias coisas aqui na vizinha... nesta
rua ali de baixo e também pra quem mora do lado de lá na outra rua de tráz.” Por
fim regou as plantas do quintal em troca dos R$8,00 e neste momento eu tentava
me convencer do quanto esse fato, produtor de relações sociais, possui
semelhanças entre a troca e a dádiva a que se debruçou Malinowski quando tratou
sobre a experiência do Kula dos trobiandeses. Enquanto muito estava explicito
sobre como eu tentava descrever o que era “coisa de criança”, e logo, um olhar
etnocêntrico sobre o que era a infância.

Depois deste dia as negociações para manter a relação foram facilitadas por dois
jogos que se encontravam largados na minha estante por antigos moradores:
Banco Imobiliário e Jogo da Vida, estes fizeram o menino de 8 anos saltar os olhos
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para marcarmos uma partida! Nas visitas sequentes não demorou muito para a
turminha ir chegando ao poucos e a partir de então, entre os olhares desconfiados
e rapidez das perguntas-respostas, minha casa e a rua tornaram-se pontos de
encontros onde eu me juntava para brincar, partilharmos alimento e ainda irmos
juntos de bicicleta cultivar uma horta solidária nas imediações do bairro.

Minhas interpretações sobre a curiosidade e interrogações das crianças partiam,


segundo ponto de vista teórico metodológico, do que vem a ser o “caminho
reverso” que a antropologia faz de volta pra casa a fim de relativizar o próprio
campo do saber antropológico, tendo em vista que no primeiro contato eu tentei
pontuar o que seria “coisa de criança” e fui impelida pelas próprias crianças a
compreender o tipo de atividades que elas enquanto sujeitos – crianças – definiam
como atividades que são acostumadas a desempenhar nos seu cotidiano de rituais
de troca.
A relação que estabeleci com as crianças também me motivou a entender este
texto etnográfico como narrativas do bairro e a representação do brincar, como
uma possibilidade dar visibilidade ao tema “Cultura da Infância” a partir de outro
viés. A ideia era compreender de que modo às brincadeiras relacionam-se a
constituição e a utilização pelas crianças de um conjunto relativamente estável de
regras, artefatos, formas de comunicação, rituais, rotinas, conhecimentos e
valores. Ao longo da pesquisa decidi que o ponto central seria construir uma
narrativa a partir das crianças, enquanto sujeitos, e entender como esse conjunto
compunha a relação com o espaço da rua e o tempo.

Memória: a rua como representação da alteridade.

Ao espaço que hoje se denomina Jardim Universitário II por muito tempo foi
compreendido como uma zona isolada as margens da Vila C. Antes, porém, faz-se
necessário entender que a configuração das vilas na cidade de Foz do Iguaçu,
depois de meados da década de 70, se deu a partir das categorias de relação de
trabalho com a Hidrelétrica de Itaipu.

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Ficou claro nos diálogos com crianças maiores, seus familiares e vizinhos, que
existe um imaginário de representação da cidade e a concepção de que a Vila B
seria bairro de gente rica, dos chefes e acionistas da Itaipu. Já na Vila A se
concentrariam trabalhadores com poder aquisitivo elevado, definidos como
funcionários medianos da empresa. Por sua vez a vila C comportaria a massa de
trabalhadores que compunham a empreitada da construção de todo concreto da
barragem, categorizados como “barrageiros”.

O relato de uma mulher filha de barrageiro apontava que na época da construção


da hidroelétrica os bairros mantinham pouca, ou nenhuma, relação entre si, eram
micro polos independentes arquitetados para terem unidade de saúde, farmácias,
escola, supermercados, bancos e área de lazer. No caso da Vila B, um polo
acessado somente por automóveis que seria interligado a Vila A e Centro sem via
de acesso direto à periferia. Durante o período da Ditadura Militar o que chamavam
de disciplina e bem estar social, eram controlados pelo poder de polícia da Itaipu,
diversas tipificações criminais como danos ao patrimônio público ou privado -
quebra de janela dos vizinhos provocado pela bola das crianças que brincavam na
rua, por exemplo – normalmente sofriam intervenção policial.

Os mais antigos do bairro contam que por algum tempo, provavelmente no


período da Ditadura, a lei do silêncio deveria ser estritamente obedecida. Até
mesmo durante o dia era recomendável que as crianças fizessem algazarra
apenas nos espaços de lazer e recreação. Uma vez que um funcionário da Itaipu
fosse acordado ele teria o “direito” de acionar a polícia da empresa que
esporadicamente intervinha nessas questões de vizinhança.

Desde então os bairros parecem obedecer a uma perfeita regra de cartografia


social, e assim o Jardim Universitário II surge, grosso modo, como "periferia da
periferia" a partir de um loteamento feito por um fazendeiro nos anos 90. Em foto
antiga é possível observar algumas poucas casas que confundem o urbano com o
rural, devido presença de árvores, plantação, animais soltos e crianças brincando
livres na rua.

Em meados de 2010 é iniciado um rápido processo de loteamento e construção de


casas por meio do projeto de financiamento, então chamado "Minha Casa Minha
Vida". As novas construções rodeavam a casinha simples de madeira onde as
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crianças moram, permaneceram algumas poucas construções dos antigos
moradores. Conversando com a avó das crianças me dei conta que ela veio do
Paraguai em meados do ano 2008 quando duas das crianças ainda eram
pequenas e todos falavam “paraguaio” numa mistura com o Guarani. “A gente se
mudou pra cá buscando uma melhora, meu filho estava muito doente e no
Paraguai não existia médico público e eu não tinha dinheiro para pagar o
tratamento. Naquele tempo atravessei a ponte com ele nos braços vomitando
sangue. Toda vida se escuta que aqui tem muito emprego, meu marido quando era
vivo já passou uns tempos tentando na Itaipu. Depois viemos e ocupamos esse
espaço de terra com o sonho da casinha própria, mas até hoje conseguir os
documentos é muito complicado”.

Depois do loteamento pelo programa do governo Federal “Minha casa minha Vida”
muita coisa mudou naquela rua, exceto a presença de crianças com suas múltiplas
brincadeiras, entrecruzadas com as brincadeiras do Paraguai ou Argentina. Hoje a
rua surge margeada por árvores frutíferas isoladas, em seguida alinham-se muitas
outras casas arquitetonicamente idênticas diferenciadas apenas pelas cores.

Tão somente vivendo e se relacionando com as histórias desta rua é possível


esboçar alguma interpretação sobre o modo como se organizam essas estruturas
sociais, chocando as vagas impressões estereotipadas de que essa rua resguarda
apenas uma população margeada da subalternidade e que dos barracos de
madeira, destoantes com o padrão de construção de alvenaria, tão somente
transbordam onze crianças pobres.

A experiência de estar ali com as crianças que me veem como diferente ao seu
mundo social cotidiano, partilhando da espontaneidade das brincadeiras para
apreender de um mundo novo em constante contato com as transformações. Um
micro mundo que nos serve de lente de ampliação para entender que racismo é
estrutural, que nossas noções de fronteira e Estados Nacionais são muito frágeis, e
sobretudo como o micro dessas relações e do poder manifestam as violências.
Ao longo das últimas décadas a cidade de Foz do Iguaçu tem sido apontada como
uma das cidades mais violentas do Brasil. Vemos que concomitante à localização
estratégica da fronteira trinacional, que faz com que se transite em suas bordas as
mercadorias-alvo do capitalismo transnacional – o escoamento de armas, drogas e

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contrabando – há ainda a exploração e reificação territorial das suas reservas
naturais pelo turismo, bem como, seu projeto excludente de cidade.
São inúmeras combinações entre a violência de estado e a violência dos projetos
de desenvolvimento que impactam diretamente a vida da comunidade e
consequentemente das crianças. Entre todas essas violências os dados apontam
altíssimos números tratando-se de violação aos direitos das crianças e
adolescentes na região da fronteira, concomitante às ações de enfrentamento à
violência física, sexual e a erradicação do trabalho infantil.
A região onde se localiza um dos campus provisórios da universidade vivem
muitas crianças em condição de vida precária (Butler, 2011) em grande medida
afetadas pelas remoções forçadas decorrentes da construção da hidroelétrica de
Itaipu. É neste território em disputa onde o corpo, também enquanto um território, é
reivindicado por todas as forças e ideais salvacionistas da infância, de tutela, de
agenciamento, assistencialismo e evangelização.
Me dei conta de que as negociações com a vizinhança para conseguirem os
artefatos de suas diversões são aventuras diárias. As crianças recolhem latinhas
de casa em casa para trocarem por moedas. Lavam as janelas em troca de alguns
reais. Ajudam os vizinhos recolherem a grama ou lavar a calçada. Coletam
folhinhas de melokia para vender para os árabes fazerem tempeiros. Algumas que
tem os pais como catadores ajudam eles a recolher lixos recicláveis em suas
carroças ou puxando um carrinho de ferro.

Outras crianças costumeiramente se revezam para conseguir as moedas e


raramente o valor conseguido é para algum fim individual, apesar de que às vezes
parecer uma competição de quem consegue primeiro. Por vezes encontrei as
crianças repartindo doces, salgadinhos cheetos, pirulitos ou picolés. Parece que
criar e recriar as maneiras de conseguir os meios da partilha é uma atividade lúdica
e uma forma de se relacionar com aquele mundo.

É verdade que...?

“É verdade que você tem um jogo na sua casa”? Fui abordada por uma duplinha
de meninas de 6 e 7 anos quando nos encontramos no caixa do mercadinho ao
lado da minha casa. “A gente pode ir lá ver”? “Mas você estuda de manhã e a tarde
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também?” Combinamos que Sábado seria o dia de melancia, pipoca e jogo!
Naquele dia tão esperado lá estava a turminha de onze irmãos e primos. Perguntei
quem era irmão de quem e pra minha surpresa eu tive uma aula sobre parentesco
parafraseada entre as afirmações ditas como em coro de jogral: “Ela e eles são
irmãos filhos daquele pai...” “É mas eu e ele somos irmãos do outro pai que não
mora mais aqui”.... “O maninho menor é filho daquele homem que você viu na
minha casa naquele dia”... “Os outros 3 do pai do Paraguai, os outros 4 são nossos
primos e essa também é uma looonga estória...”

Jogamos os dados, definimos a ordem do jogo, separamos o maço de dinheirinhos


de cada um e as peças começaram a girar no tabuleiro. Na primeira rodada vez
após vez alguns se arriscavam a comprar algum imóvel onde a sua peça
estacionava. Mas algumas crianças pareciam interessadas em não gastar o
dinheirinho, reconfigurando o jogo para a lógica de guardar e não de “investir”.
Ninguém se importava em seguir à risca as regras do jogo e atenção se dispersava
rapidamente embora o jogo fosse indicado para crianças daquela idade.

Entre um passe e outro surgiam perguntas dos olhares curiosos que reparavam
cuidadosamente a minha casa. “Porque você não mora com seus pais?”... “Minas
Gerais é muito longe?”... “Sua colega morava onde?”... “Colômbia é muito longe de
Foz do Iguaçu”? “E como você conheceu ela, você já foi na C O L Ô M B I A?” ...
“O que é isso A n t r o p o l o g i a ?”... Foi então que esta primeira e única vez de
brincar com o jogo imobiliário não deu tanto certo. Em instantes todos já estavam
debaixo do pé de manga sentados na grama, conversando até que descobriram
nossa bicicleta triciclo.

“Tia Edi... onde você conseguiu essa bicicleta?” “O pneu ta vazio... Mas vamos
brincar de encher o pneu e colocar um negócio para sentarmos atrás?” “Ebaaa
olha tia Edi vai caber todo mundo...” Caçar madeira, serrar umas tábuas, sustentar
com fio de arame, enroscar com alicate. Ligeirinho todo mundo se misturava e
claro a atração maior foi a furadeira automática que um adulto veio ensinar as
meninas e os meninos maiores a usar. Depois de quase 2 horas de olhos
estalados entre a melancia e a confecção da garupa de madeira foi inaugurada a
bicicleta-triciclo que transportava mais de meia dúzia de crianças. Os pais saíram

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na rua para ver e os vizinhos ficavam sorridentes e boquiabertos ao ver a bicicleta
passar em comitiva para lá e para cá.

Demorou um bom tempo até que eu decidisse que as brincadeiras virassem


pesquisa ou que tamanha pesquisa sobre a cultura da infância fosse muito além
das brincadeiras. Brincar segundo Angela Borba é uma prática ancorada na
compreensão da criança como sujeito autor e ator, construtor de sua experiência
de ser criança e sujeito no mundo. A procura de novidade, do não conhecido, abriu
um vazio, enfrentado pelo meu questionamento do que eu imaginava saber sobre a
crianças e pela minha vaga concepção sobre a infância. Surgindo inquietação com
questões cujas respostas não se deram em primeiro momento.

Namiôrorênguiekiô – Vamos brincar ?

...a infância é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer


tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes,
questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que e
abisma o edifício bem construído de nossas instituições de
acolhimento. Pensar a infância como um outro é, justamente, pensar
essa inquietação, esse questionamento e esse vazio”. (LARROSA,
2004, p.184)

“Tia Edi porque você estuda tanto?”... “Tia Edi a gente pode pegar a bicicleta e
andar na rua” “Vamos tia Edi é só um pouquinho, diga que sim!”... Durante a
pesquisa meus dias nunca mais foram os mesmos, quem me observasse poderia
até dizer que eu havia me tornado uma criança brincante. Como eu estava muito
atarefada com as atividades acadêmicas resolvemos que nas vezes que elas
passassem na minha casa para brincar ou para me acompanhar na minha
atividade diária de regar uma horta usaríamos uma palavra que servisse de senha,
pois se eu respondesse com a palavra significaria a resposta positiva ao convite
diário: Namiororanguiekiô!! Essa palavra era repetida e reinventada desde que
escutaram uma música mantra de uma “religião japonesa”(nas palavras das
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crianças) na qual eles se recordam de ter visitado com a mãe de um dos pais, mas
só elas sabiam dizer essa palavra e me contavam entre gargalhadas como a
música toda só tinha essa palavra! Passei dias brincando de trava-língua para
aprender a pronunciar.

Na medida em que eu me aventurava nos saberes da infância recorri a algumas


leituras clássicas como marco teórico, sobretudo aos trabalhos de Clarice Cohn
focados em Antropologia da Criança e fui aprendendo sobre os termos “infância” e
“criança”. Apesar de percorrer trajetórias em diferentes universos acadêmicos, o
que se observa é que algumas das abordagens ergueram o campo em torno de
alguns princípios fundamentais: a construção da infância a partir de uma
perspectiva biologizante que a reduziam a um ser em devir, em processo de
desenvolvimento, que se tornaria futuramente um adulto competente.

Para Angela Borba a criança nessas visões de arcabouços pedagógicos, é vista


pelo que não é - in-competente, i-matura, i-racional, e principalmente pelo que lhe
falta em relação ao adulto. Essa concepção, que durante tanto tempo dominou os
estudos da infância, conduziu ao silenciamento da infância e das crianças nas
Ciências Sociais, vistas sempre como objetos passivos da socialização imposta
pelo mundo dos adultos.

“Contrapondo-se a essas visões a sociolologia da infância propôs


uma virada paradigmática, ou seja, revelar a criança na sua
positividade, como ser ativo, situado no tempo e no espaço, nem
cópia nem o oposto do adulto, mas sujeito participante, ator e autor
na sua relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Com
base nessa premissa, postula que a infância e as crianças devem
ser estudadas na sua alteridade, pelos seus próprios méritos, e não
indiretamente através de outras categorias da sociedade”. (Borba,
M. Angela., 2005)

Desse modo meu ponto de partida foi o entendimento de que as culturas da


infância constituem formas de ação social situadas, ou seja, ressonantes com
espaços, tempos e crianças particulares. O brincar, por sua vez, também foi
compreendido, desde o inicio, não como a síntese ou sinônimo das culturas infantis

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ou da vida social das crianças – imagem emblemática do que significa ser criança -
mas como uma ação social também contextualizada. Como parte central de suas
vidas, e experiência concreta pela qual, e na qual, agem sobre a realidade,
constroem maneiras de viver e de construir o espaço da rua interagindo e
desenvolvendo ações comuns entre crianças e vizinhos, afirmando diferenças e
semelhanças, cooperando, divergindo e negociando, reproduzindo, criando e
partilhando significados, conhecimentos e regras e, sobretudo, se reconhecendo.
Ao aproximar a rua como território do brincar na tentativa de retirar um pouco da
carga estereotipada do ato de brincar e de brincar na rua.

O pé de manga: Acontecimentos que desaparecem no tempo e


no espaço.

Do trajeto da casa para a horta solidária as crianças sempre me mostravam várias


árvores frutíferas das quais eu nem me lembro de todos os nomes: “Jamelão, Cajú,
Coquinho, Goiaba, Pitanga, Limão, Azedinho”. Parada certa era no pé de goiaba
escalavam-no com a maior facilidade. Algumas vezes traziam-me frutos como cajú
e limões coletados nas ruas e pediam-me para fazer suco e tomavámos juntos.
Muito me chamou atenção a familiaridade que elas tiveram para subir o pé de
mangas do meu quintal. Logo na primeira vez que tentaram escala-lo eu disse que
não, pois temia que algo acontecesse com eles enquanto estavam “sob minha
responsabilidade”. Foi então que o menino de 10 anos disse: “Nós estamos
cansados de subir esse pé de manga tia Edi... Antigamente quando tudo aqui era
quintal a gente parava quase todos os dias para comer manga e brincar!” O outro
disse: “É verdade tia Edi...e aquele pé de pitangas nasceu ali porque a gente comia
e jogava as sementes aqui no chão.... acho que foi por causa das sementinhas
que nasceu um pé de pitanga aqui e um de goiabas mais adiante naquela outra
casa da esquina”... “Sabe o que existia aqui antes de tooodas essas casas? Só
quintal e árvores!”

Nesse momento, de ritual de passagem, os tempos presente-passado-futuro se


entrecruzam, provocando indagações: como os conhecimentos construídos e
partilhados por essas crianças no espaço onde hoje se localizam loteamentos e
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casas se relacionam com sua estruturação particular do tempo, do espaço, e das
relações humanas, e, como serão utilizados e transformados na estruturação de
suas relações com esse novo espaço-tempo no qual estão inseridas? Que marcas
de suas identidades individuais e das relações com a memória-espaço elas levam
consigo quando adentram as propriedades privadas a fim de trocarem trabalho por
moedas no intuito de se divertirem? Como construirão os espaços de brincadeira e
de sociabilidade, quando o mundo dos adultos estereotipa as crianças que brincam
na rua? Quais práticas sociais constituídas nas suas experiências cotidianas serão
reproduzidas e estendidas?
A rua já não é mais a mesma na medida em que as crianças vão crescendo. Tão
logo as férias se encerram, e pouco antes de pausar pesquisa e brincadeiras, o
ano letivo das crianças havia começado. Duas meninas de 5 e 6 anos entraram na
escola pela primeira vez, a mãe me contou que as acompanhou cerca de uma
semana para ensinar o caminho que leva da rua pra escola, no bairro Cidade
Nova.
Sou levada a pensar que dali em diante tudo será “diferente”, não será mais só
“brincadeira”, terão que “estudar sério”, reproduzindo um dos fortes dualismos que
perpassa a relação adulto-criança e criança-escola. Por outro lado, os meninos de
11 e 12 anos cada vez mais avançam para o jogo trabalho: o crescimento biológico
e a progressão escolar que são sinônimos da ênfase maior no trabalho e da perda
crescente do espaço de brincar. Ou melhor, da perda do espaço “autorizado” de
brincar, pois não apenas nos pátios de recreação, mas também nos intervalos e
interstícios dos ordenamentos espaços-temporais das atividades escolares, onde
as crianças certamente continuarão encontrando - mais ou menos - formas de se
transformar e brincar na e com a rua.

Referências Bibliográficas

BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea, 1, 2011.

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Borba, Angela Meyer. (2005) Culturas da infância nos espaços-tempos do
brincar: um estudo com crianças de 4-6 anos em instituição pública de
educação infantil / Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense,
Faculdade de Educação.

COHN, Clarice. A criança, o aprendizado e a socialização na antropologia. In:


LOPES DA SILVA, A. et al. (Orgs.) Crianças indígenas: ensaios antropológicos.
São Paulo: Global, 2002b, p. 213-235.

______. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Zahar. 2005.

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4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 4. p.208.

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(Introdução). São Paulo: Abril Cultural.

Sessi, Valdir. (2015) O Povo do Abismo: trabalhadores e o aparato repressivo


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mestrado. Marechal Cândido Rondon: Programa de Pós-Graduação em História
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WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac Naify, 2010.

Whyte, William Foote. 2005 [1943]. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor.

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