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Ediane Hirle
Justificativa
Este trabalho é fruto de uma pesquisa com um grupo de crianças que vivem no
bairro Jardim Universitário II, Foz do Iguaçu. Convivi com as crianças por quatro
meses seguidos, desde que me mudei pra localidade, e a partir do primeiro contato
tivemos encontros semanais para realizarmos atividades diversas, entre elas,
brincadeiras, coleta de frutos nas ruas, passeio ciclístico e cultivo de horta
comunitária.
Ao chegar neste bairro não esperava tornar-me centro de uma pesquisa específica
sobre alteridade por parte das crianças: quem sou e porque estou naquela rua?
Nesta seção, relato como as crianças fizeram comigo o que Roy Wagner (1981)
chamou de "antropologia reversa".
Por entender a cultura como uma invenção a linha de onde começa e termina a
alteridade também se tornam pontos de objetividade relativa. Quem é você?
Porque você está aqui? Vamos brincar tia Edi? Você sabe falar
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Namiororanguiekiô? O que é estudar antropologia? O que você faz para estudar
nessa “Universifaculdade”? Sabe o que existia aqui neste terreno antes? Encontros
onde debatemos essas e outras questões aconteciam de maneira espontânea e
frequente, e assim fui compreendendo a relação entre a subjetividade das
brincadeiras e a configuração de alguns espaços do bairro.
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Figura 1 Brincadeiras na Bicicleta-Triciclo
Nas palavras de Foote White: "O padrão geral da vida é importante, mas só pode
ser construído por meio da observação dos indivíduos cujas ações configuram
esse padrão". Surge a seguinte indagação ponto de partida: o que o brincar
representa sobre a relação das crianças no espaço e como a subjetividade é
marcada e influenciada pelo olhar que as crianças têm sobre mim enquanto outro,
desconhecido?
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O recurso “Imagine-se...” neste caso, permite que o leitor passeie pelo texto
malinowskiano como quem passeia por um texto literário. É claro que há diferenças
e distâncias significativas entre o texto literário e o texto antropológico, contudo, em
ambos os casos o autor precisa contar uma história par um leitor desconhecido.
No caso desta pesquisa quando cheguei para “estar ali entre os sujeitos” que
protagonizam esta etnografia a relação foi estabelecida a partir deles, ou seja, o
“olhar observativo” não se deu por meio de um trabalho de campo em local distante
do meu cotidiano. Tão pouco é possível dizer se a alteridade começava do meu
portão pra dentro ou do portão para fora.
Convidei para entrar, conversarmos mais um pouco e sugeri que o menino apenas
voltasse para contar o filme e fazermos todos juntos “coisas de crianças”... “Mas eu
já sou acostumado com trabalhos tia, eu faço várias coisas aqui na vizinha... nesta
rua ali de baixo e também pra quem mora do lado de lá na outra rua de tráz.” Por
fim regou as plantas do quintal em troca dos R$8,00 e neste momento eu tentava
me convencer do quanto esse fato, produtor de relações sociais, possui
semelhanças entre a troca e a dádiva a que se debruçou Malinowski quando tratou
sobre a experiência do Kula dos trobiandeses. Enquanto muito estava explicito
sobre como eu tentava descrever o que era “coisa de criança”, e logo, um olhar
etnocêntrico sobre o que era a infância.
Depois deste dia as negociações para manter a relação foram facilitadas por dois
jogos que se encontravam largados na minha estante por antigos moradores:
Banco Imobiliário e Jogo da Vida, estes fizeram o menino de 8 anos saltar os olhos
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para marcarmos uma partida! Nas visitas sequentes não demorou muito para a
turminha ir chegando ao poucos e a partir de então, entre os olhares desconfiados
e rapidez das perguntas-respostas, minha casa e a rua tornaram-se pontos de
encontros onde eu me juntava para brincar, partilharmos alimento e ainda irmos
juntos de bicicleta cultivar uma horta solidária nas imediações do bairro.
Ao espaço que hoje se denomina Jardim Universitário II por muito tempo foi
compreendido como uma zona isolada as margens da Vila C. Antes, porém, faz-se
necessário entender que a configuração das vilas na cidade de Foz do Iguaçu,
depois de meados da década de 70, se deu a partir das categorias de relação de
trabalho com a Hidrelétrica de Itaipu.
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Ficou claro nos diálogos com crianças maiores, seus familiares e vizinhos, que
existe um imaginário de representação da cidade e a concepção de que a Vila B
seria bairro de gente rica, dos chefes e acionistas da Itaipu. Já na Vila A se
concentrariam trabalhadores com poder aquisitivo elevado, definidos como
funcionários medianos da empresa. Por sua vez a vila C comportaria a massa de
trabalhadores que compunham a empreitada da construção de todo concreto da
barragem, categorizados como “barrageiros”.
Depois do loteamento pelo programa do governo Federal “Minha casa minha Vida”
muita coisa mudou naquela rua, exceto a presença de crianças com suas múltiplas
brincadeiras, entrecruzadas com as brincadeiras do Paraguai ou Argentina. Hoje a
rua surge margeada por árvores frutíferas isoladas, em seguida alinham-se muitas
outras casas arquitetonicamente idênticas diferenciadas apenas pelas cores.
A experiência de estar ali com as crianças que me veem como diferente ao seu
mundo social cotidiano, partilhando da espontaneidade das brincadeiras para
apreender de um mundo novo em constante contato com as transformações. Um
micro mundo que nos serve de lente de ampliação para entender que racismo é
estrutural, que nossas noções de fronteira e Estados Nacionais são muito frágeis, e
sobretudo como o micro dessas relações e do poder manifestam as violências.
Ao longo das últimas décadas a cidade de Foz do Iguaçu tem sido apontada como
uma das cidades mais violentas do Brasil. Vemos que concomitante à localização
estratégica da fronteira trinacional, que faz com que se transite em suas bordas as
mercadorias-alvo do capitalismo transnacional – o escoamento de armas, drogas e
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contrabando – há ainda a exploração e reificação territorial das suas reservas
naturais pelo turismo, bem como, seu projeto excludente de cidade.
São inúmeras combinações entre a violência de estado e a violência dos projetos
de desenvolvimento que impactam diretamente a vida da comunidade e
consequentemente das crianças. Entre todas essas violências os dados apontam
altíssimos números tratando-se de violação aos direitos das crianças e
adolescentes na região da fronteira, concomitante às ações de enfrentamento à
violência física, sexual e a erradicação do trabalho infantil.
A região onde se localiza um dos campus provisórios da universidade vivem
muitas crianças em condição de vida precária (Butler, 2011) em grande medida
afetadas pelas remoções forçadas decorrentes da construção da hidroelétrica de
Itaipu. É neste território em disputa onde o corpo, também enquanto um território, é
reivindicado por todas as forças e ideais salvacionistas da infância, de tutela, de
agenciamento, assistencialismo e evangelização.
Me dei conta de que as negociações com a vizinhança para conseguirem os
artefatos de suas diversões são aventuras diárias. As crianças recolhem latinhas
de casa em casa para trocarem por moedas. Lavam as janelas em troca de alguns
reais. Ajudam os vizinhos recolherem a grama ou lavar a calçada. Coletam
folhinhas de melokia para vender para os árabes fazerem tempeiros. Algumas que
tem os pais como catadores ajudam eles a recolher lixos recicláveis em suas
carroças ou puxando um carrinho de ferro.
É verdade que...?
“É verdade que você tem um jogo na sua casa”? Fui abordada por uma duplinha
de meninas de 6 e 7 anos quando nos encontramos no caixa do mercadinho ao
lado da minha casa. “A gente pode ir lá ver”? “Mas você estuda de manhã e a tarde
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também?” Combinamos que Sábado seria o dia de melancia, pipoca e jogo!
Naquele dia tão esperado lá estava a turminha de onze irmãos e primos. Perguntei
quem era irmão de quem e pra minha surpresa eu tive uma aula sobre parentesco
parafraseada entre as afirmações ditas como em coro de jogral: “Ela e eles são
irmãos filhos daquele pai...” “É mas eu e ele somos irmãos do outro pai que não
mora mais aqui”.... “O maninho menor é filho daquele homem que você viu na
minha casa naquele dia”... “Os outros 3 do pai do Paraguai, os outros 4 são nossos
primos e essa também é uma looonga estória...”
Entre um passe e outro surgiam perguntas dos olhares curiosos que reparavam
cuidadosamente a minha casa. “Porque você não mora com seus pais?”... “Minas
Gerais é muito longe?”... “Sua colega morava onde?”... “Colômbia é muito longe de
Foz do Iguaçu”? “E como você conheceu ela, você já foi na C O L Ô M B I A?” ...
“O que é isso A n t r o p o l o g i a ?”... Foi então que esta primeira e única vez de
brincar com o jogo imobiliário não deu tanto certo. Em instantes todos já estavam
debaixo do pé de manga sentados na grama, conversando até que descobriram
nossa bicicleta triciclo.
“Tia Edi... onde você conseguiu essa bicicleta?” “O pneu ta vazio... Mas vamos
brincar de encher o pneu e colocar um negócio para sentarmos atrás?” “Ebaaa
olha tia Edi vai caber todo mundo...” Caçar madeira, serrar umas tábuas, sustentar
com fio de arame, enroscar com alicate. Ligeirinho todo mundo se misturava e
claro a atração maior foi a furadeira automática que um adulto veio ensinar as
meninas e os meninos maiores a usar. Depois de quase 2 horas de olhos
estalados entre a melancia e a confecção da garupa de madeira foi inaugurada a
bicicleta-triciclo que transportava mais de meia dúzia de crianças. Os pais saíram
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na rua para ver e os vizinhos ficavam sorridentes e boquiabertos ao ver a bicicleta
passar em comitiva para lá e para cá.
“Tia Edi porque você estuda tanto?”... “Tia Edi a gente pode pegar a bicicleta e
andar na rua” “Vamos tia Edi é só um pouquinho, diga que sim!”... Durante a
pesquisa meus dias nunca mais foram os mesmos, quem me observasse poderia
até dizer que eu havia me tornado uma criança brincante. Como eu estava muito
atarefada com as atividades acadêmicas resolvemos que nas vezes que elas
passassem na minha casa para brincar ou para me acompanhar na minha
atividade diária de regar uma horta usaríamos uma palavra que servisse de senha,
pois se eu respondesse com a palavra significaria a resposta positiva ao convite
diário: Namiororanguiekiô!! Essa palavra era repetida e reinventada desde que
escutaram uma música mantra de uma “religião japonesa”(nas palavras das
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crianças) na qual eles se recordam de ter visitado com a mãe de um dos pais, mas
só elas sabiam dizer essa palavra e me contavam entre gargalhadas como a
música toda só tinha essa palavra! Passei dias brincando de trava-língua para
aprender a pronunciar.
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ou da vida social das crianças – imagem emblemática do que significa ser criança -
mas como uma ação social também contextualizada. Como parte central de suas
vidas, e experiência concreta pela qual, e na qual, agem sobre a realidade,
constroem maneiras de viver e de construir o espaço da rua interagindo e
desenvolvendo ações comuns entre crianças e vizinhos, afirmando diferenças e
semelhanças, cooperando, divergindo e negociando, reproduzindo, criando e
partilhando significados, conhecimentos e regras e, sobretudo, se reconhecendo.
Ao aproximar a rua como território do brincar na tentativa de retirar um pouco da
carga estereotipada do ato de brincar e de brincar na rua.
Referências Bibliográficas
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Borba, Angela Meyer. (2005) Culturas da infância nos espaços-tempos do
brincar: um estudo com crianças de 4-6 anos em instituição pública de
educação infantil / Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense,
Faculdade de Educação.
Whyte, William Foote. 2005 [1943]. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor.
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