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O Culto da Cabula
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22 de janeiro de 2018
O culto da Cabula é um exemplo que aponta para a fusão dos ritos bantos com o
Catolicismo/Espiritismo. Este culto, praticamente extinto, generalizou-se após a Lei Áurea e é o
precursor das primitivas macumbas. Originária da Bahia passou a ser conhecida no final do
século XIX após o fim da escravidão e apresentava caráter secreto e religioso. Em diversos
locais recebeu a influência do Catolicismo formando uma amalgamação sincrética onde se
ouviam muitos termos utilizados nos terreiros de Umbanda. No final do século XIX, a Cabula já
era amplamente presente como atividade religiosa e passou a receber influências do
Espiritismo.
Esse sincretismo afro-católico ocorreu, principalmente, nas áreas rurais da Bahia e do Rio de
Janeiro. Pesquisas históricas dão conta de que a Cabula refere-se aos rituais negros mais
antigos, que envolviam imagens de santos católicos sincretizados com os Orixás. Foi uma
herança reprimida dos cultos africanos nas senzalas. Nestas práticas os antigos sacerdotes
mesclavam suas crenças e culturas com o catolicismo para conseguirem praticar e preservar
sua crença.
No Rio de Janeiro, do final do século XIX e início do século XX, eram comuns as práticas afro-
brasileiras similares a Cabula e também ao que ainda se conhece como Almas e Angola. Na obra
Kitábu, Nei Lopes (Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: Editora
Senac, 2005). registra sobre o culto Omolokô e o culto Cabula. Sobre a cabula, é relatado:
A Mesa e o Santé – a Cabula é uma confraria de irmãos devotados à invocação das almas, de
cada um dos kimbula, os espíritos congos que metem medo. Também se dedica à comunicação
com eles por meio do kambula, o desfalecimento, a síncope, o transe enfim. Toda confraria de
cabulistas constitui uma mesa. O chefe de cada mesa é o embanda, a quem todos devem
obedecer. Cada embanda é secundado por um cambone. A cabula é dirigida por um espírito,
Tata, que encarna nos camanás, iniciados. Sua finalidade é o contato direto com o Santé, o
conjunto de espíritos da natureza que moram nas matas. Por isso, todos os camanás devem
trabalhar e se esforçar para receber esse Santé, preparando-se mediante abstinência e
penitências. Cada um dos espíritos que formam o Santé é um Tata. Todo camaná tem e recebe
seu Tata protetor, seja ele o Tata Guerreiro, o Tata Flor de Carunga, o Tata Rompe Serra, o Tata
Rompe Ponte. Na mata moram os Bacuros, anciãos, antepassados, que nunca encarnam
(incorporam). A reunião dos camanás forma a engira (…).
O Omolocô é um ramo da cabula, da mesma forma que a cabula é um ramo do omolocô, ciência
dos antigos nganga-ia-muloko, que controlavam a maldição dos raios. O omolocô tem Zambi
como Entidade Suprema. E cultua entidades como Canjira, o senhor dos caminhos e da guerra;
Quimboto, o dono da varíola e das doenças; Caiala, senhora do mar; Pomboê, dona dos raios;
Zambanguri ou Sambariri, senhor do trovão; Quiximbi ou Mamãe Cinda, dona das águas doces.
No Omolocô todo pai é um Tata; seus auxiliares são os cambones; todo filho é um caçueto; e
toda médium, intermediária entre o Santé e o mundo dos vivos, é uma cota. E todos são
malungos, amigos, companheiros.
A bandeira do Omolocô é verde, atravessada em diagonal por uma linha branca e com uma pena
branca no centro (…). O camutuê, cabeça, do futuro caçueto não será raspado, recebendo apenas
uma pequena tonsura (…).
De alguma forma a Umbanda tem influências da cabula, pois mantém forte a presença do Orixá
em sua pratica doutrinária.
No Rio de Janeiro, antes mesmo de Zélio F. de Moraes incorporar o Caboclo Sete Encruzilhadas,
no ano de 1908, já era bastante comum à prática dos rituais afros similares aos que conhecemos
hoje como Cabula, Omolocô e Almas e Angola. Talvez com o surgimento da Umbanda tenha-se
obtido uma maior organização no que se refere ao desenvolvimento mediúnico, à prática da
caridade e o auxílio ao nicho populacional menos favorecido.
A cabula foi perseguida ferozmente pela polícia. O pesquisador Roger Medeiros diz que o temor
e, consequentemente, a perseguição à cabula vêm lá de trás, ainda por ocasião da escravatura,
quando ela foi usada pelos negros como força revolucionária nos seus confrontos com os
fazendeiros. A cabula era um ritual para abater os inimigos com feitiço, executando
continuamente líderes escravagistas, especialmente aqueles que perseguiam os negros fugidos
da senzala. Era, em verdade, um instrumento de luta manejado por um guerreiro invisível e
intangível, de demônios constituído. O ódio era maior, principalmente se esse feiticeiro fosse
remanescente dos vindos da África.
Manter o segredo sobre o ritual era como uma lei para não ser desobedecida nunca pelos seus
adeptos. Há inúmeras histórias de adeptos da cabula presos e torturados pela polícia, mas que
jamais revelaram os segredos de seus rituais. A longevidade da cabula andou, inclusive, por
conta desse pacto da sociedade negra para com a sua religião, segundo o historiador Maciel de
Aguiar. Maciel divide em dois momentos distintos a cabula: uma em que ela mantinha a chama
revolucionária e outra servindo às rixas entre suas próprias comunidades.
Em meados do século XX a cabula passou a sobreviver com outros propósitos. Mas o seu
começo foi realmente o de servir à luta pela libertação dos escravos. Sua eficiência foi tamanha
nesta etapa que o governo da Província, instigado pelo padre da região, Duarte Pereira
Carneiro, instituiu a guerrilha de São Mateus para o extermínio da cabula.
Ainda segundo Maciel, essa guerrilha remanejou para São Mateus capitães do mato de outras
regiões do país. Entre eles veio um dos mais temidos, o cearense Francisco Vieira de Melo, que
executou o Negro Rugério, chefe do Quilombo de Santana. Mas escaparam dele outros líderes
revolucionários, entre eles Benedito Meia Légua e Clara Maria do Rosário, que só seriam mortos
depois da ida à região do bispo diocesano do Estado, Dom João Batista Correia Nery.
Mas o bispo só chegou lá depois da abolição da escravatura, movido pelo momento por que
passava o país, ainda tomado pelo alvoroço religioso-fanático de Antônio Conselheiro no sertão
da Bahia. Desconfiavam os dirigentes católicos da terra que este mesmo fanatismo do sertão
baiano seria transportado para a região do vale do Cricaré, onde existiam, na época, cinco mil
escravos libertos.
Por esse tempo, a Cabula havia crescido muito, tinha deixado de ser apenas religião dos negros
fugidos, passando a ser, também, dos negros libertos e praticamente de toda a população negra.
A partir desse novo contingente de frequentadores, ela dedicou-se também ao culto aos seus
heróis revolucionários, com a sistemática encarnação nos cabuleiros dos espíritos
revolucionários de Benedito Meia Légua, Negro Rugério e Maria Clara do Rosário.
Por esse período da grande afluência dos negros a cabula, que vai da abolição da escravatura
(1888) ao inicio do século XX, passando pela transição da Monarquia para a República, o bispo
Dom João Batista Nery conseguiu que o governo pusesse em execução a maior perseguição
policial a cabula, sob suspeita, novamente, de que ali estaria também para surgir um novo
Canudos, com outro fanático à frente do tipo de Antonio Conselheiro.
A intervenção do bispo chegou ao ponto de fazer o governo considerar a cabula uma atividade
criminosa. E a cabula defendeu-se caindo na clandestinidade, disfarçando sua atividade na
prática do Espiritismo, que era tolerado pelas autoridades policiais.
O Bispo Dom João Corrêa Nery fez, no início do século XX, em uma pastoral, a descrição deste
culto onde diz que a Cabula é semelhante ao Espiritismo e à Maçonaria, reduzidos a proporções
para a capacidade africana e outras do mesmo grau.
O tema foi retomado por Nina Rodrigues apontado para a explicação de que o Espírito que
comanda os trabalhos é chamado de Tatá. Seus adeptos, chamados de Camanás, devem guardar
sigilo absoluto sobre os rituais sob pena de morte por envenenamento.
Tal qual no Catimbó, as sessões são denominadas mesas e o chefe de cada mesa é chamado de
Embanda, sendo auxiliado pelo Cambone. A reunião dos camanás (cabulistas) forma uma
Engira. Todos devem obedecer cegamente ao Embanda sob pena de castigos severos. Usam
calças e camisas brancas e lenços amarrados na cabeça.
O templo é denominado de Camucite. O local é secreto, sempre embaixo de uma árvore
frondosa no meio da mata, em torno da qual é limpa uma extensão circular de
aproximadamente 50 metros. Feita uma fogueira, a mesa é colocada do lado leste, rodeando
pequenas imagens com velas acesas, simetricamente dispostas.
As velas são denominadas estereiras e são acesas iniciando-se pelo leste, em honra ao mar
(calunga grande), depois para o oeste, norte e sul. Logo após a abertura do ritual, o Embanda, ao
som dos nimbus (pontos cantados) e palmas compassadas, se contorce, revira os olhos, bate no
peito com as mãos fechadas até soltar um grito estridente. Vejamos um desses nimbus:
Báculo no ar
Me queira na mesa
Me tombe a girar
O Embanda, ora dançando ao bater compassado das palmas, ora em êxtase, recebe do cambone
o candaru (brasa em que foi queimado o incenso), trinca nos dentes e começa a emitir chispas
pela boca, entoando então o nimbu:
Tata das Matas, a Oxóssi, Tata da Pedreira, a Xangô etc. Os que vão iniciar nesse culto recebem o
nome de camanás, para os homens, e mucambas, para as mulheres. Os seus trabalhos são
realizados embaixo das árvores consagradas no culto, dentro das matas. Esse trabalho chama-
se mesa e é assistido pelos sacerdotes menores, como os embandas. A mesa (trabalho) é aberta
três dias antes ou depois da Lua Nova, conforme a natureza do trabalho. Acendem uma vela na
direção Norte-Sul, riscando um grande signo de Salomão, de 35 ou oito pontas e colocando uma
cruz nesse local.
Na mesa, debaixo das árvores consagradas, colocam espelhos, pedras, cachimbos grandes e
pequenos, um alguidar com uma infusão de raízes, como guiné, e outras, além de tocos e
banquinhos. Os Santés, quando arriados, batem no peito, emitindo um ronco oco, acompanhado
pelas palmas ritmadas dos presentes. Os Pretos Velhos, espíritos de velhos Tatas, dançam
flexionando os joelhos. Percebem-se algumas diferenças em relação ao que foi relatado por
Nina Rodrigues. Com a urbanização do Rio de Janeiro, ficou cada vez mais difícil a pratica da
cabula nas matas e o culto passou a ser praticado nos terreiros, acabando por amalgamar-se
com as macumbas. É um culto praticamente extinto.
Editor: Diamantino
Fernandes Trindade
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