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08 - Dezembro 2022

Quimbanda & A Morte do


Magia Cerimonial: Feiticeiro Branco
• O Baphomet de Eliphas Levi
& o Maioral da Quimbanda
• A Faca de Cabo Preto de
Salomão & a Faca Preta do
O Sacrifício
Kimbanda de Animais
Expediente
Direção geral:
Douglas Rainho

Edição e diagramação:
Everton Martins

Revisão:
Danyo Nascimento

Foto sacrifício:
@clickaxe

Imagem de capa:
Exu Tranca-ruas De Embaré, por Diesuganga (instagram: @ruk.rk)

Um projeto da Cova Cipriano Feiticeiro, Templo De Quimbanda Pantera Negra e


Dama Da Noite, Templo De Quimbanda Cova de Tiriri e Perdido.co.

Contato:
revistanganga@perdido.co

Sumario
Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
Quimbanda & Magia Cerimonial:  O Baphomet de Eliphas
Levi & o Maioral da Quimbanda  . . . . . . . . . . 5
Quimbanda & Magia Cerimonial: A Faca de Cabo Preto
de Salomão & a Faca Preta do Kimbanda  . . . . . . 1 4
A Morte do Feiticeiro Branco na Quimbanda
Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
O Sacrifício de Animais . . . . . . . . . . . . . . 40
Editorial
Chegamos a oitava edição da Revista Nganga, periódico da Feitiçaria Tradicional Brasilei-
ra, por meio da família de Quimbanda Nàgô e Quimbanda Mussurumin, Cova de Cipriano
Feiticeiro, junto ao Templo de Quimbanda Cova de Tiriri. Cada edição é um sentimento de
missão e compromisso que se cumpre para expansão do reinado do Chefe Império Maioral,
o Diabo.

Essa edição contém quatro ensaios muito especiais; acreditamos que eles irão contribuir
muito para o entendimento da Quimbanda como um sistema de feitiçaria genuinamente
brasileira, transmitida dentro de um contexto iniciático e secreto, assim como na sua conso-
lidação e expansão.

O ensaio que inaugura essa edição é Quimbanda & Magia Cerimonial: O Baphomet de
Eliphas Levi & o Maioral da Quimbanda. Pela primeira vez, na tradição literária da Umbanda
e Quimbanda, a relação entre o Baphomet de Eliphas Levi e o Maioral da Quimbanda é averi-
guada profundamente. Essa relação estabelece a identidade secreta de Maioral e a verdadeira
natureza da Quimbanda.

O segundo ensaio, Quimbanda & Magia Cerimonial: A Faca de Cabo Preto de Salomão & a
Faca Preta do Kimbanda, estabelece comparações entre os fundamentos dessas duas práticas
de magia: a salomônica faca de cabo preto, cujo objetivo é convocar e amedrontar espíritos
irascíveis (demônios por exemplo) e a faca preta do kimbanda, associada aos trabalhos que
envolvem o Reino das Trevas.

O terceiro ensaio é de suma importância para compreensão da Quimbanda como tradição


iniciática: A Morte do Feiticeiro Branco na Quimbanda. Esse ensaio demonstra que o euro-
centrismo estava na macumba muito antes da chegada de Exu e a formação das derivadas
Umbandas (branca e omolocô) e a tradição de Quimbanda. Atualmente, tentam apagar da
memória ancestral desses cultos a inf luência europeia, fazendo parecer que existe uma su-
posta Kimbanda sem inserções eurocêntricas. Trata-se tanto de uma impossibilidade, quanto
de uma desonestidade intelectual.

O ensaio que encerra essa edição foi escrito pelo Sacerdote de Quimbanda Nàgô e edi-
tor da Revista Nganga, o kimbanda Zelawapanzu: O Sacrifício de Animais. Depreciado e
denunciado como uma arte ignorante, primitiva e aborígene, este ensaio busca fazer um
contraponto urgente, acerca da importância e significação do sacrifício como uma arte de
ofício mágico-sacerdotal, no contexto da Umbanda e Quimbanda. Fechando essa edição,
esse ensaio constrói uma ponte com a nona edição da Revista Nganga, que será inaugurada
com o ensaio Quimbanda & Magia Cerimonial: O Sacrifício Animal, que buscará comparar a
prática do sacrifício nos grimórios europeus de magia e com a arte do corte na Quimbanda.

Táta Nganga Kamuxinzela, Editor.


Cova de Cipriano Feiticeiro
Instagram oficial: @covadecipriano
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Feitiçaria Tradicional Brasileira

Quimbanda & Magia


Cerimonial:
O Baphomet de Eliphas Levi & o
Maioral da Quimbanda

Este é o segundo ensaio da série Quim- bre o qual fiz uma introdução na coleção de
banda & Magia Cerimonial que estamos pu- ensaios que compõem o Daemonium (Vol.
blicando na Revista Nganga,[1] explorando II).
as influências da magia cerimonial europeia Como vimos enfaticamente nas edições
nas bases fundantes da Quimbanda e, em es- anteriores da revista, diferente do que propa-
pecial, a relevância da Quimbanda no atual lam muitos umbandistas vociferatus, Aluízio
renascer da magia dos grimórios,[2] tema so- Fontenelle (1913-1952) impactou o ocultismo
[1] Veja Revista Nganga No. 7 para o ensaio inaugural. brasileiro com suas três obras, em especial
[2] Movimento que se conveniou chamar de grimoire revival e Exu, publicada em 1951, onde o autor inau-
que traduzo como renascer da magia dos grimórios. Trata-se gura o segundo momento do Culto de Exu no
de um grupo de magistas modernos que buscam o resgate da Brasil,[3] lançando as bases estruturais da li-
cultura mágica dos grimórios e que flertam com elementos da
cultura mágica afro-americana, além de uma revalorização das
técnicas animistas e fetichistas da magia. No curso da história [3] Até esse segundo momento não havia ainda se formado um
do desenvolvimento dos grimórios, muitos elementos essenciais movimento organizado de adeptos e um sistema estruturado
a sua prática, como os sacrifícios, foram omitidos por motivos de práticas e ritos iniciatórios. O que se conveniou chamar de
diversos. Mas as tradições afro-americanas, como a Quimbanda kimbanda antes desse segundo momento não se tratava de um
por exemplo, mantiveram e refinaram esses elementos perdidos culto organizado, mas de indivíduos, feiticeiros, curandeiros que
dos grimórios. Então é possível, a partir de sistemas mágicos cultuavam Exu na Macumba. Estes não adotavam a iconografia
como a Quimbanda, restaurar consideravelmente a feitiçaria dos diabólica que a Quimbanda assumiu no segundo momento. Veja
grimórios. o ensaio A Morte do Feiticeiro Branco na Quimbanda.

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Gregor Mathers (1854-1918).[5]
Ao formular suas ideias teológicas acer-
ca da Quimbanda, Fontenelle bebeu pro-
fundamente na identidade mágica que Levi
propunha sobre as artes das trevas e magia
demoníaca, associadas diretamente a prática
do mal e ao Diabo. Levi diz: Os evocadores
do diabo devem acima de tudo ser da religião
que admite um diabo criador e rival de Deus.
Para se dirigir a um poder, você tem que acre-
ditar. Dada, portanto, uma firme crença na re-
ligião do diabo, é assim que se deve proceder
para se corresponder com seu pseudo-deus:
no círculo de sua ação, todo verbo cria aqui-
lo que afirma. Quem afirma o diabo cria ou
faz o diabo.[6] Fontenelle absorveu essa ideia
completamente, imprimindo-a na descrição
que faz da Quimbanda como ofício do mal e
cujo Chefe em comando é Maioral, o Diabo.[7]
Ele esclarece que pelos dogmas e misticismos
criados pelas diversas religiões, acreditou-se
que o mundo era dominado por divindades,
as quais, com origens nas diversas partes do
mundo, alastraram-se em todos os sentidos, e
o objeto concreto da palavra «crer», era tido
como palavra divina, significando a ciência de
um sentimento que habitava dentro dos cora-
ções humanos, aliada ao dogma principal da
crença, que é a «fé» provada pela própria fé.
[...] Com o poder de seu raciocínio, o homem
invoca o demônio na prática da magia negra,
nha tradicional de Quimbanda que conhece- e os gênios do mal assolam o mundo material
mos hoje, conectada ao diabolismo e demo- e espiritual, na esperança de que podem domi-
nologia europeia. nar o reino do céu. [...] Os Exus trabalham na
Todo autor é filho de seu tempo e não magia negra, certos de poder arrastar para o
podemos descartar as influências mágico- abismo todo àquele que tem sede de conquista
culturais de da época em que viveu o autor. e ambições desmesuradas.[8] E em Umbanda
Nos livros de Fontenelle está clara a pro- através dos Séculos, Aluízio Fontenelle
funda influência de Eliphas Levi (1810-1875), diz que foram os agentes mágicos universais
principalmente as questões concernentes às - o Povo de Exu - que fizeram Adão e Eva cair,
operações mágicas, que Levi classifica como incutindo neles o conhecimento do bem e do
evocações infernais[4] e o papel do agente má- mal. Aqui Exu é apresentado como um agente
gico universal na magia da Quimbanda, como [5] Para um relatório completo veja Aleister Crowley. The Con-
fessions of Aleister Crowley: An Autohagiography. Pen-
veremos. guin, 1989.
Somado a isso, Fontenelle viveu em uma
[6] Veja Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Madras,
época onde a popularidade da prática da goé- 2019. No curso de leitura desse ensaio você precisará voltar a essa
cia e magia demoníaca crescia por toda parte citação.
do Ocidente, a partir da influência de Aleis- [7] A obra Exu de Aluízio Fontenelle é um marco no ocultismo
ter Crowley (1875-1947) - quem de fato popu- brasileiro e na cultura mágica afro-brasileira, porque definiu a
ideia de Exu-Diabo no imaginário brasileiro. Muito embora exis-
larizou a goécia, por meio de uma tradução ta uma resistência a essa ideia em alguns grupos, o povo brasilei-
encomendada do Lemegeton, feita por Mac- ro vê Exu como Diabo. Como diziam os monarcas de outrora: não
importa se é verdade, o que importa é se o povo acredita!
[4] Veja Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Madras,
2019. [8] Aluízio Fontenelle. Exu. Espiritualista, 1951.

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fundamental da queda moral do homem e do Quimbanda é mágica. Reproduzo:
pecado original. Tendo caído, os Exus-demô-
nios se espalharam pela terra, disseminando O símbolo mais importante da Quimbanda
todos os males que afligem o homem.[9] é a imagem de Baphomet imortalizada pelo
Ocultista francês Eliphas Levi. Um símbolo
Então, as noções de Eliphas Lev,i sobre trata-se de uma estrutura que nos capaci-
exercício do mal através de evocações infer- ta interpretar a realidade e que revela um
nais e de uma religião que venera o Diabo significado, não necessariamente oculto,
mas que as palavras podem não conseguir
e sua corte de demônios, correm soltas nas exprimir. Baphomet é um símbolo para o
entrelinhas de todos os textos de Fontenel- arcano da magia, e isso diz muito sobre sua
le acerca da Quimbanda: na Quimbanda só é presença na Quimbanda. A especulação tri-
conhecida a vingança, e os seus trabalhos de vial é que a Quimbanda assumiu o símbolo
de Baphomet como o Diabo na intenção de
magia negra, apenas visam prejudicar esse ou se opor ao regime catequético cristão. As-
aquele que se antepõe aos seus interesses.[10] sim, assumindo o Diabo como simbólica do
Na mesma obra Fontenelle observa: A Quim- culto, infere-se que se trata de uma práti-
ca de oposição e transgressão ao status quo
banda apenas visa a prática do mal. E, em suas religioso dominante na cultura. Neste caso,
palavras iniciais dirigida aos leitores de seu a moral e piedade católica. Essa argumen-
livro Exu, Fontenelle exorta que a obra trata- tação preenche as premissas sociológicas
acerca da Quimbanda, dando sentido a elas,
se de um «vade mecum» sobre tudo quanto se de fato. Mas é uma interpretação acadêmica
pratica no que concerne à magia negra utiliza- e visão fora lócus do culto. Baphomet como
da por Exu e que ela define, de um modo claro símbolo na Quimbanda está associado à
e insondável, toda atuação das Entidades do prática da magia, a realização taumatúrgica
da vontade ou intento-mágico na Natureza,
Mal que se denominam Exus.[11] porque é isso que se quer na Quimbanda,
Para o sucesso nas evocações infernais, efetivamente. Por isso ele é o símbolo maior
Levi menciona algumas características re- da Quimbanda; por isso Maioral é o deus da
Quimbanda e regente da Matéria, mas não
queridas e passos a serem construídos, como: o Deus do cosmos inteiro. Ele representa a
uma consciência endurecida pelo crime e regência mágica dos poderes sub-lunares
muito acessível para o remorso e o medo; aos quais o kimbanda tem acesso e mani-
uma ignorância afetada ou natural; uma pula. Sua significação real é mágica, não
ideia completamente falsa de Deus; profa- sociológica.
nar cerimônias e símbolos sagrados; realizar
Gostaria de ir mais fundo agora!
sacrifícios com sangue, etc.[12] Essas crenças
Para isso, temos de nos debruçar sobre
também são encontradas em entrelinhas nas
os escritos de Eliphas Levi e extrair de lá as
obras de Fontenelle que apresentam a Quim-
influências precisas que deram estrutura a
banda como uma arte das trevas, em prol da
ideia ou presença de Baphomet na Quimban-
obra do maligno sobre o reino dos homens,
da. Assim, será possível identificar a fórmula
associando sua cosmogonia a demônios do
mágica genuína da própria Quimbanda.
Grimorium Verum e a iconografia tradicio-
Ao mencionar os trabalhos de Quimban-
nal de Baphomet. E aqui gostaria de me apro-
da em sua obra, Saravá Exu, livro que traz o
fundar um pouco mais nesse que é o símbolo
brasão imperial de Maioral na sua primeira
mais importante da Quimbanda.
página, N.A. Molina, inspirada por Fontenel-
Na edição anterior da Revista Nganga,
le, destaca que procurou ensinar de tudo um
mencionei que a presença de Baphomet na
pouco sobre o Agente Mágico Universal, suas
cores, seus locais certos onde devem ser co-
[9] A posição oficial da Igreja sobre a natureza dos demônios
é que eles se tratam de anjos caídos. Fontenelle faz associação locados os seus despachos. O agente mágico
direta entre esses demônios e os Exus, o que o possibilitou, por- universal do qual fala Molina é o Chefe Im-
tanto, conectá-los com os demônios do Grimorium Verum. pério Maioral (na forma de Baphomet) e, por
[10] Aluízio Fontenelle. O Espiritismo no Conceito das Reli- extensão, os limites de atuação dos Povos de
giões e a Lei de Umbanda. Espiritualista, 1952.
Exu e Pombagira, a própria Quimbanda.
[11] Aluízio Fontenelle. Exu. Espiritualista, 1951.
Fontenelle em Exu declara: por serem os
[12] Veja Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Madras,
Exus, os agentes mágicos universais, a eles
2019. Características essas atribuídas aos kimbandas por àqueles
que perseguiram e perseguem o culto, criminalizando o feiticei- está afeta a verdadeira arte da magia negra. E
ro e seu trabalho. Veja o ensaio A Morte do Feiticeiro Branco na também: considerando Satanás como o grande
Quimbanda.

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agente mágico empregado para as práticas do atribuindo todos os fenômenos da vida fí-
mal, pela sua vontade perversa de criar uma sica ao agente universal, ensina que é pre-
ciso agir sobre o corpo astral para reagir
força puramente sobrenatural, é o dominador sobre o corpo materialmente visível; ensina
da magia negra em todas as condições que re- também que a essência da luz astral é um
gem o destino da humanidade, que se debate duplo movimento de atração e de projeção;
na inconsciência de obter para si o domínio assim como os corpos humanos atraem-se e
repelem-se uns aos outros, podem também
daquilo que possa existir além da vida comum. absorver-se, propagar-se uns nos outros e
Em poucas palavras Fontenelle defini a natu- realizar trocas; as ideias ou as imaginações
reza taumatúrgica da Quimbanda, estabele- de um podem influenciar sobre a forma do
outro e reagir em seguida sobre o corpo ex-
cendo seu propósito. Esse termo, agente má-
terior.
gico universal – associado por Fontenelle e,
depois dele, por outros autores como Molina, E, em, Dogma e Ritual de Alta Magia
ao Chefe Império Maioral, todo Povo de Exu Eliphas, Levi acrescenta:
e tudo o que envolve a arte da magia negra da
Quimbanda, seu ofício, tecnologias mágicas, Existe também, na natureza, uma força mui-
locais de poder e fundamentos – vem direta- to mais poderosa que o vapor, e por meio da
mente de Eliphas Levi. Em sua obra A Chave qual um só homem que pudesse apoderar-
se dela e soubesse dirigi-la, transformaria
dos Grandes Mistérios, ele diz: e mudaria a face do mundo. Esta força era
conhecida pelos antigos; ela consiste num
O agente universal é a força vital e subor- agente universal, cuja lei suprema é o equi-
dinada à inteligência. Abandonado a si pró- líbrio e cuja direção está diretamente liga-
prio, devora rapidamente, como Moloch, da com o grande arcano de magia transcen-
tudo o que gera, e transforma em vasta des- dente. Pela direção deste agente pode-se
truição a superabundância da vida. É, en- mudar até a ordem das estações, produzir
tão, a serpente infernal dos antigos mitos, à noite os fenômenos do dia, corresponder
o Tífon dos egípcios e o Moloch da Fenícia; num instante de uma extremidade à outra
mas, se a sabedoria, mãe dos Eloim, coloca- da Terra, ver como Apolônio o que se pas-
lhe o pé sobre a cabeça, extingue todas as sa no outro lado do mundo, curar ou ferir
chamas vomitadas por ele e derrama sobre a distância, dar à palavra sucesso e reper-
a terra, a mãos cheias, uma luz vivifican- cussão universais. Este agente que apenas
te. [...] O Baphomet, figura panteística do se revela sob as pesquisas dos discípulos de
agente universal, não é outra coisa senão o Mesmer, é precisamente o que os adeptos
demônio barbudo dos alquimistas. Sabe-se da Idade Média chamavam a matéria-prima
que os mais graduados na antiga maçonaria da grande obra. Os gnósticos faziam dele o
hermética atribuíam a um demônio barbu- corpo ígneo do Espírito Santo, e era ele que
do dar conclusão à pedra filosofal, cabendo era adorado nos ritos do Sabbat ou do tem-
ao não iniciado nesta palavra persignar-se plo, sob a figura hieroglífica de Baphomet
e tapar a vista, mas os iniciados ao culto de ou do bode Andrógino de Mendes. [...] Na
Hermès-Panthée compreendiam a alegoria alma do mundo, que é o agente universal,
e cuidavam em não explicá-la aos profanos. há uma corrente de amor e uma corrente
[...] Todos os homens verdadeiramente de cólera.
fortes são magnetizadores e o agente uni- Este fluido ambiente e que penetra em
versal obedece à sua vontade. É assim que todas as coisas; este raio destacado da co-
eles operam maravilhas. Fazem-se acredi- roa do sol e fixado pelo peso da atmosfera e
tar, fazem-se seguir e quando dizem: Isto pela força de atração central; este corpo do
é assim, a natureza de certa forma muda Espírito Santo que chamamos o agente uni-
aos olhos do vulgo e torna-se o que o gran- versal, e que os antigos representavam sob
de homem quis. Isto é minha carne e isto a figura da serpente que morde a sua cada;
é meu sangue, disse um homem que se fez este éter elétrico e magnético, este calórico
Deus por suas virtudes e, em presença de vital e luminoso, é figurado nos antigos mo-
um pedaço de pão e de um pouco de vinho, numentos pela cintura de Isis, que se volve
dezoito séculos viram, tocaram, provaram, e resolve em laço de amor ao redor dos dois
adoraram a carne e o sangue divinizados pólos, e pela serpente que morde a sua cau-
pelo martírio! Dizei-nos agora que a vonta- da, emblema da prudência e de Saturno.
de humana nunca realiza milagres! [...] Atribuímos, pois, todos os fatos es-
[...] Essa identidade da vida física permi- tranhos do movimento das mesas ao agen-
te às vontades mais fortes apoderarem-se te magnético universal, que procura uma
da existência das outras e tornarem-se suas cadeia de entusiasmo para formar novas
auxiliares, explica as correntes simpáticas correntes. É uma força cega por si mesma,
que ocorrem em proximidade ou à distân- mas que pode ser dirigida pela vontade dos
cia, e dá todo o segredo da medicina oculta, homens e que é influída pelas opiniões cor-
porque essa medicina tem por princípio a rentes. Este fluido universal, se quiserdes
grande hipótese das analogias universais e, que seja um fluido, sendo o meio comum de

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todos os organismos nervosos e o veículo de Maioral a soberania radiante de Lúcifer,
de todas as vibrações sensitivas, estabelece, como o agente mágico universal. De outra for-
entre as pessoas impressionáveis, uma ver-
dadeira solidariedade física, e transmite, de ma, acompanhe-me aqui, para isso ficar bem
umas às outras, as impressões da imagina- claro: Eliphas Levi diz que a iconografia dia-
ção e do pensamento. O movimento da coi- bólica de Baphomet trata-se da alma do mun-
sa inerte, determinado pelas ondulações do do, denominando-a, também, ora de agente
agente universal, obedece, pois, à impres-
são dominante, e reproduz, nas suas reve- mágico universal, ora de luz astral. Fontenel-
lações, ora toda a bizarria e toda a mentira le, baseando-se nessas ideias de Eliphas Levi,
dos sonhos mais incoerentes e mais vagos. associa o Chefe Império Maioral, o Diabo ou
[...] A grande obra é, antes de tudo, a
criação do homem por si mesmo, isto é, a a Trindade Infernal (Lúcifer, Beelzebuth e
conquista plena e total que faz das suas fa- Ashtarot), a imagem de Baphomet, ao mesmo
culdades e do seu futuro; é, principalmente, tempo que o chama de agente mágico univer-
a emancipação perfeita da sua vontade, que
lhe assegura o império universal do Azoth sal. Então Maioral, o Chefe Imperial do Rei-
e do domínio da Magnésia, isto é, um pleno nado da Quimbanda, é o mesmo Baphomet
poder sobre o agente universal. de Eliphas Levi, o Bode de Mendes ou Rei do
[...] A antiga serpente da lenda nada Sabbath, e a própria Alma do Mundo confor-
mais é do que o agente universal, é o fogo
eterno da vida terrestre, é a alma da terra, e me interpretação dos magos renascentistas,
o fogo vivo do inferno. como Cornélio Agrippa (1486-1535), Paracel-
[...] Ser profeta é ver adiantadamente os so (1493-1541), Fracastoro (1478-1553) etc.
efeitos que existem nas causas, é ler na luz
astral; fazer milagres é agir sobre o agente Há algum tempo, venho demonstrando
universal e submetê-lo à nossa vontade. que a Quimbanda recebeu influência salo-
mônica, através da tradição cipriânica, o que
Em Levi temos, portanto, abundantes é confirmado por Fontenelle ao descrever o
informações do que é efetivamente o agente Brasão (ou corpo) Imperial de Maioral. Ele
mágico universal: i. uma força vital subordi- diz: O triângulo mágico de Salomão; tendo
nada a inteligência do homem, que responde na parte superior o Sol tem a significação de:
a sua vontade e com a qual ele pode mudar agente mágico dominador das forças naturais
o destino do mundo; ii. um fluido vital que e dos fenômenos da Natureza. A cobra mor-
penetra, anima e dá forma a todas as coisas dendo a cauda significa o domínio sobre a vida
existentes no cosmos; iii. uma força cega que e a morte, pelos dogmas mágicos da medicina
a tudo pode destruir, caso não seja dirigida
com sabedoria; iv. seu domínio possibilita a
realização da grande obra alquímica; v. é o ve-
ículo de todas as vibrações sensitivas; vi. tra-
ta-se de um éter magnético, elétrico, calórico
e luminoso, daí luz astral; vii. fonte ou meio,
por onde ocorre todas as correspondências
simpáticas da magia etc., além dos inúmeros
símbolos a ele atribuídos, os quais Fontenelle
se esforçou para incluir no Brasão Imperial
de Maioral, como veremos abaixo. Mas, de
todas as considerações acima, uma específica
chama a atenção, porque revela a identidade
secreta de Maioral: Na alma do mundo, que é
o agente universal, há uma corrente de amor
e uma corrente de cólera. Então o agente má-
gico universal, o Maioral da Quimbanda, não
é outro senão a Alma do Mundo dos filóso-
fos e magos da Antiguidade e Renascença. A
Quimbanda é um culto, portanto, a Alma do
Mundo, na forma de um Diabo!
Em Umbanda através dos Séculos,
Aluízio Fontenelle associa o Brasão Imperial

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astral. O pentágono de Salomão circunscrito à te mágico universal. A teurgia dos Oráculos
cobra, e tendo na sua parte superior o ponto de Caldeus, na Antiguidade, apresenta a Alma
São Cipriano (pentáculos de Ezequiel e de Pitá- do Mundo como uma teia de vida que conecta
goras – duplo triângulo de Salomão), represen- e anima todas as todas as coisas no cosmos,
tam as ciências ocultas (alta magia e magia promovendo, portanto, a simpatia entre to-
negra). Os dois ponteiros perpendiculares ao das as coisas. Essa interpretação da Alma do
crescente lunar que têm sobre si sete cruzes, Mundo influenciou o neoplatonismo tardio e
significam o poder sobre a terra e o poder so- a tradição da magia no Renascimento. Ela foi
bre os homens, dominados pelas forças cósmi- chamada de Hécate e representou nos Orá-
cas [as correntes de amor e cólera citadas por culos Caldeus a totalidade das forças e o
Levi], e de natureza terrena. As duas espadas próprio ambiente da Natureza, ou seja, o cos-
cruzadas por trás do triângulo de Salomão, mos material. Sarah Iles Johnston demons-
significam o poder absoluto, tendo a dirigi-lo a tra em sua obra Hekate Soteira,[13] que a
irradiação de Marte e Mercúrio (duas estrelas Hécate ou Alma do Mundo, dos Oráculos
laterais). Caldeus, não era diferente da ideia platônica
tradicional de Alma do Mundo (ou Cósmica).
Se essa descrição estivesse em um livro de Na concepção cosmológica platônica clás-
Eliphas Levi, eu não conseguiria estabelecer sica, o Mundo - o cosmos material - é con-
uma distinção entre os autores. Ao ler essa siderado um grande animal dotado de alma,
passagem de Fontenelle, escuto com a voz a Alma do Mundo. Ela foi representada em
de Eliphas Levi. Fontenelle não apenas des- diversos símbolos no curso da história: um
creveu a fórmula mágica da Quimbanda, ele dragão lançando chamas, um bode diabólico,
desencapou o fio da influência mágico-ances- o Oroboros, etc.
tral do culto. A ponte que estabeleço entre a Platão (428-348 a.C.), concebeu o cosmos
Quimbanda e a magia da Antiguidade e Me- em Timeu (34b), imaginando sua alma como
dievo, nestes ensaios para a Revista Ngan- uma construção puramente geométrica or-
ga, está completamente esboçada no Brasão questrada pelo Demiurgo. Posteriormente,
Imperial de Maioral. os estoicos fizeram uma reinterpretação da
Sendo o Chefe Império Maioral e, por ex- Alma do Mundo, comparando-a ou identifi-
tensão todos os Exus e Pombagiras da Quim- cando-a com o próprio Deus na forma de um
banda, o agente mágico universal, ele sendo animal imortal, racional, perfeito, inteligen-
o Deus e Regente Maior da Quimbanda, o te e bem-aventurado.[14] Em Plotino (205-270
Senhor da Matéria e constituindo o ambien- d.C.), na inauguração do que ficou conhecido
te natural da prática da feitiçaria do culto, posteriormente como neoplatonismo, a Alma
concluímos que o Chefe Império Maioral é a do Mundo torna-se a segunda Hipóstase
totalidade da Quimbanda. É somente dentro (emanação) do Uno-Deus e procede da pri-
dessa perspectiva que é possível inferir Maio- meira, o Intelecto (nous) de Deus. Com isso,
ral como a primeira encruzilhada de fogo, a a alma do Mundo, em Plotino, é um espírito
força regente primordial da Quimbanda - a intermediário, porque de um lado ela se volta
força regente primordial que anima todas as apenas para o Intelecto divino, o nous, mas
substâncias materiais e imateriais, estrutu- por outro ela se volta para as coisas materiais,
rando suas formas no cosmos (natureza, rei-
no da geração, matéria). [13] Sarah Iles Johnston. Hekate Soteira: A Study of Hecate’s
A significação de Maioral, portanto, é Roles in the Chaldean Oracles and Related Literature.
American Classical Atudies, 21. Scholars Press, 1990.
mágica, constituindo toda obra e operação
[14] É somente dentro desta interpretação estoica que o Gran-
da magia nos domínios do cosmos material.
de Dragão Negro de Danilo Coppini (Corrente LTJ 49) faria de
Maioral é o símbolo mágico mais importante fato algum sentido, àquele mesmo de Oliver St. John em alocar
da Quimbanda, porque a natureza do culto é a deusa Ashera em Kether na Árvore da Vida, fazendo do cos-
mos material (Chesed a Malkuth) a existência total, colocando a
a arte da magia. É somente para o aperfeiço-
terra no céu! De Coppini veja Quimbanda: O Culto da Chama
amento do ofício da magia que a Quimbanda Vermelha e Preta (Via sestra, 2019). De Oliver St. John veja
existe. Ritual Magick: Initiation of the Star and the Snake (Ordo
Então, a Alma do Mundo dos filósofos e Astri, 2019); Magical Theurgy: Rituals of the Tarot (Ordo
Astri, 2015); Hermetic Qabalah Fundation: Complete Couse
magos do passado é, em Eliphas Levi, o agen- (Ordo Astri, 2018).

10 Edição 08
as quais ordena e anima. a chama, por razão do enxofre, azeviche e
É da escolástica que nasce a ideia de Alma óleo. Todavia, quando você aplica a qual-
quer espécie de coisa, ou a uma coisa indi-
do Mundo, como o Espírito Santo, na teolo- vidual, muitas coisas da mesma natureza
gia de Pedro Abelardo (1079-1142) e outros espalhadas entre si, em conformidade com
teólogos como Bernardo Silvestre (1085-1178) a mesma ideia e astro, por essa matéria tão
e Teodorico de Chartres (1100-1150). No pe- oportunamente apropriada, um único dom
é infundido pela ideia, por meio da Alma
ríodo do Renascimento, foi Giordano Bruno do Mundo.
(1548-1600) que retomou a discussão sobre a [...] É preciso, portanto, saber quais e
Alma do Mundo e para quem Deus é o pró- que espécies de matérias são ou da nature-
za, ou arte, iniciadas ou aperfeiçoadas, ou
prio intelecto do cosmos, sendo Ele a primei- compostas de mais coisas, e que influências
ra e fundamental faculdade da Alma do Mun- celestiais elas são capazes de receber. Pois
do, ou seja, a forma do próprio cosmos. Os uma congruência de coisas naturais é su-
ficiente para o recebimento de influência
postulados de Giordano Bruno, sobre a Alma do celestial; porque, quando nada impede
do Mundo, influenciaram profundamente os os celestiais de enviar suas luzes aos infe-
magos de sua época como Cornélio Agrip- riores, nenhuma matéria é privada de sua
pa, Paracelso, Fracastoro, Giovanni Campa- virtude. Daí o fato de toda matéria perfeita
e pura ser passível de receber a influência
nella (1568-1639), etc. pois, eles resgatam as celestial. Pois essa é a ligação e a continui-
concepções dos Oráculos Caldeus sobre a dade da matéria à Alma do Mundo, que flui
Alma do Mundo como um espírito que a tudo todos os dias para as coisas naturais, e todas
as coisas que a natureza preparou, de modo
conecta e anima, em cujas formas potenciais que se torna impossível para uma matéria
de todas as coisas existem e promove a sim- preparada não receber vida, ou uma forma
patia entre todas as coisas, possibilitando a mais nobre.[15]
interpretação clássica da ação da magia na- Além disso, a Alma do Mundo possui
o poder divino precisamente como muitas
quele período: o fundamento da simpatia razões seminais das coisas, como ideias
universal, entre as coisas do cosmos, permi- da mente divina. Por essas razões semi-
tindo a utilização do material base das ope- nais, ela cria o mesmo número de espécies
materialmente. É por isso que cada única
rações de magia, como vimos em Levi ante- espécie corresponde através da própria ra-
riormente, acerca do agente mágico universal. zão seminal à própria ideia e através desta
Os gigantes do passado enriquecem nossa razão pode facilmente receber algo des-
ta ideia – desde que realmente fora criada
discussão: através da razão da ideia. É por isso que, se
em algum momento, a espécie se degenera
Há, portanto, certa espécie de Espírito que de sua forma apropriada, ela pode ser for-
deve ser o meio pelo qual as almas celes- mada novamente através da razão como seu
tiais se juntam a corpos brutos e lhes confe- intermédio próximo e através da ideia como
rem maravilhosos dons. Esse Espírito está, intermediário para então se reformar.[16]
do mesmo modo, no corpo do mundo, como Se, então, o espírito, a vida são encon-
os nossos estão no corpo do homem. Pois, trados em todas as coisas e preenche toda
assim como os poderes de nossa alma são a matéria em vários graus, então eles são o
comunicados aos membros do corpo pelo ato real e a real forma de todas as coisas.
espírito, também a virtude da Alma do Portanto, a Alma do Mundo é o princípio
Mundo se difunde por meio de todas as coi- constitutivo formal do universo, e de qual-
sas pela quintessência; pois não há nada no quer coisa que o universo inclua; quero
mundo inteiro que não tenha uma centelha dizer, se a vida é encontrada em todas as
de sua virtude; mas há muito mais infundi- coisas, então a alma é a forma de todas as
do nessas coisas que receberam ou absorve- coisas; é o que controla a matéria em todos
ram muito desse Espírito. Ora, esse Espírito os aspectos e predomina nos compostos,
é recebido ou absorvido pelos raios das es- opera a composição e a consistência das
trelas a tal distância quanto essas coisas se partes.[17]
fizerem confortáveis a elas. Por meio desse
Espírito, portanto, toda propriedade oculta
é transmitida às ervas e pedras, aos metais Todas essas ideias acerca da Alma do
e animais, por meio do Sol, da Lua, dos pla- Mundo, nesse período do Renascimento, es-
netas e das estrelas mais altas que os pla- coaram diretamente para a obra de Eliphas
netas.
[...] Ora, se você deseja receber virtude [15] Cornélio Agrippa. três Livros de Filosofia Oculta. Ma-
de alguma parte do mundo ou de algum dras, 2009.
astro, deverá (levando em conta o uso das [16] Marsilio Ficino. De vita libri tres. 1567.
coisas que pertencem a tal astro) entrar
sob a influência peculiar dele, assim como [17] Giordano Bruno, De la causa, principio e uno, diálogos II
a madeira, por exemplo, serve para receber e III; De l’infinito universo e mondi,1584, diálogo I.

11 Edição 08
Levi, como o agente mágico universal, que
inspirou Fontenelle e o entendimento tradi- Quando a Alma do Mundo, por sua virtude,
cional de Maioral na Quimbanda como este torna todas as coisas naturalmente geradas
ou artificialmente feitas frutíferas, infun-
agente mágico universal e a própria Alma do dindo nelas propriedades celestiais para
Mundo, cuja lei suprema é o equilíbrio e cuja o funcionamento de alguns efeitos sensa-
direção está diretamente ligada com o grande cionais, então as coisas em si, não apenas
aplicadas por sufumigações, colírios ou
arcano de magia transcendente. Pela direção pomadas, ou poções, ou qualquer outro
deste agente pode-se mudar até a ordem das meio, mas também quando se encontram
estações, produzir à noite os fenômenos do convenientemente envoltas ou amarradas
ou penduradas no pescoço ou aplicadas de
dia, corresponder num instante de uma extre- qualquer outra maneira, embora sem um
midade à outra da Terra, ver como Apolônio o contato fácil, imprimem sua virtude em
que se passa no outro lado do mundo, curar ou nós. Por meio dessas ligações, portanto,
ferir a distância, dar à palavra sucesso e reper- suspensões, emplastros, aplicações e conta-
tos, os acidentes do corpo e da mente são
cussão universais.[18] convertidos em doença, saúde, coragem,
A Quimbanda é a tradição de feitiçaria medo, tristeza, alegria e semelhantes: deixa
brasileira, portanto, que preservou e refinou seus portadores graciosos ou terríveis, acei-
táveis ou rejeitados, honoráveis e amados,
o grande arcano de magia transcendente, a ou detestáveis e abomináveis.
operação de magia, por meio do agente má-
gico universal. Outras virtudes são atribuídas a Alma do
Eliphas Levi é um simbolista notável e Mundo por Agrippa, para concluirmos essa
pretendo, nos ensaios subsequentes dessa seção:
série de Quimbanda & Magia Cerimonial, es-
clarecer os símbolos que ele esboçou acerca Heráclito chama o Sol de fonte de luz ce-
do agente mágico universal – bem como al- lestial; e muitos dos platônicos colocam a
gumas passagens interessantes de Agrippa – Alma do Mundo de modo particular no Sol,
como se aquilo que preenche todo o globo
nos termos práticos da Quimbanda. Por ora, do Sol e envia seus raios para todos os lados
voltemos à citação acima de Levi, acerca do fosse um espírito permeando todas as coi-
Culto do Diabo e a criação mágica dentro do sas, distribuindo vida, sentido e movimen-
to ao próprio Universo.
círculo e algumas noções de Agrippa, acerca [...] Pois o que mais parecem indicar [...]
da Alma do Mundo. Levi diz que para se es- senão que o mundo não só tem uma alma
tabelecer o Culto do Diabo é preciso acredi- espiritual, mas também participa da Mente
Divina, e que a virtude original e o vigor
tar no Diabo, ao passo que dentro do círculo de todas as coisas inferiores dependem da
mágico, o mago cria aquilo que afirma. Dessa Alma do Mundo? Assim proclamam e con-
forma, quem crê no Diabo e o afirma dentro firmam todos os platônicos, pitagóricos,
do círculo mágico, cria o Diabo. Interessan- bem como Orfeu, Trismegisto, Aristóteles
e todos os peripatéticos.
te que essa noção de criação mágica encon- [...] A Alma do Mundo, portanto, é uma
tra ecos diretos em Agrippa, que apresenta a coisa única e certa, que preenche todas as
Alma do Mundo como a matéria fundamen- coisas, agracia todas as coisas, une e apro-
xima todas as coisas, formando assim uma
tal, sobre a qual o mago imprime o que deseja estrutura do mundo, sendo como um ins-
criar. Essa ideia, que possibilitou a noção de trumento de muitas cordas, mas com um
espírito elementar, ou seja, um espírito cria- som oriundo das três espécies de criaturas,
do pelo homem, a parte dos espíritos criados intelectuais, celestiais e incorruptíveis, e
com um único respiro e uma única vida.
pelo intelecto divino e manifestados, mate- Pode-se acrescentar ainda que na Alma do
rial ou imaterialmente, por meio da Alma do Mundo podem existir tantas formas se-
Mundo. É a Alma do Mundo que possibilita a minais quantas são as ideias na mente de
Deus, formas por meio das quais ela criou
geração de todas as coisas, daí o termo reino no firmamento acima das estrelas figuras, e
da geração, associado a matéria ou natureza. imprimiu nelas algumas propriedades; des-
A ação sobre a Alma do Mundo, portanto, que sas estrelas, portanto, dependem as figuras
e propriedades, todas as virtudes de espécie
possibilita o exercício da magia. Em sua obra, inferior, bem como suas propriedades; e as-
Três Livros de Filosofia Oculta, Agrippa sim, cada espécie tem sua forma ou figura
diz: celeste a ela apropriada, de onde também
procede um maravilhoso poder de operar,
[18] Veja Eliphas Levi. A Chave dos Grandes Mistérios. Ma- dom recebido de sua própria ideia, por meio
dras, 2020. das formas seminais da Alma do Mundo.

12 Edição 08
A Quimbanda é, portanto, um culto má-
Então, discordando dos umbandistas e gico. Seu interesse é aperfeiçoar a arte da ma-
kimbandas de pouco estudo, que afirmam gia. O seu campo de ação, a sua especialida-
que Fontenelle não tinha noção do que esta- de é manipular a luz astral. Por esse motivo,
va fazendo ao basear-se em Eliphas Levi, digo Maioral ou Baphomet é o símbolo mais im-
que ele tinha plena consciência dos símbolos portante da Quimbanda, porque ele norteia
aos quais recorreu para construir a noção que todo o caminho do kimbanda, um caminho
hoje temos de Quimbanda. O seu trabalho de magia que exige dedicação total no aper-
deve ser reverenciado, não caluniado, pois feiçoamento da arte de fazer magia.
foi o homem que alinhou a Quimbanda com Se todos os Exus-Diabos e o próprio Chefe
a Tradição Oculta da Magia no Ocidente. É Império Maioral são referidos por Fontenelle,
Maioral iconizado na forma de Baphomet, a como o agente mágico universal que é a Alma
ponte ou ponto de conexão entre a Quimban- do Mundo, como vimos, deixo uma reflexão
da e a Tradição Oculta da Magia. final de D.P. Walker:
Esse é um entendimento técnico, segundo
a tradição literária da Quimbanda, do Chefe Os demônios são fundamentalmente pla-
Império Maioral e suas falanges de diabos, netários, muito embora também sejam su-
percelestiais e elementais. Eles têm alma e
os Exus e as Pombagiras. A partir de tecno- corpo etéreo ou aéreo, de acordo com suas
logias mágicas, como o sacrifício animal, as classificações; estes corpos são da mesma
oferendas e despachos, os feitiços, pós, filtros, natureza que a alma humana. Demônios
planetários são como homens sem corpo
poções e moradas de espíritos, a Quimbanda físico e que vivem em esferas celestiais.
preservou, refinou e desenvolveu uma mecâ- Eles desempenham a função de transmitir
nica e estrutura particular no seu trabalho as influências celestiais; eles podem, sen-
mágico sobre a Alma do Mundo, o agente má- do tanto alma quanto espírito, agir sobre o
espírito e a alma do homem. A hierarquia
gico universal, a luz astral. Esse é o Grande neoplatônica de demônios é idêntica a hie-
Arcano da Magia, demonstrado por Eliphas rarquia angélica cristã. Um anjo da guarda
Levi e que foi preservado na Quimbanda, o é o mesmo que um demônio planetário fa-
miliar.[19] Existem demônios malignos, de
trabalho da vontade do mago sobre esse am- hierarquia inferior e de corpo aéreo, que
biente mágico-gerador, de modo que seus pa- causam problemas no espírito e imaginação
drões sejam modificados por meio da mani- do homem. Considerados como mediado-
res planetários inferiores, os demônios são
pulação de bases materiais. E Quimbanda é exatamente equivalentes a própria Alma do
necromancia! Ao poder da vontade do mago, Mundo, a única e crucial diferença é que os
associam-se a ações dos espíritos dos mortos, primeiros são indivíduos, a segunda é im-
os Exus e Pombagiras, especialistas na arte pessoal, a todos acessível.[20]
da magia negra.
Táta Nganga Kamuxinzela
Mestre de Quimbanda Nàgô e
Quimbanda Mussurumin
Cova de Cipriano Feiticeiro

[19] N.T. Eu venho falando disso enfaticamente no Daemonium


(Vol. I).
[20] D.P. Walker. Spiritual & Demonic Magic: from Ficcino
to Campanella. Penn State Press, 2003.

13 Edição 08
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Feitiçaria Tradicional Brasileira

Quimbanda & Magia


Cerimonial:
A Faca de Cabo Preto de Salomão &
a Faca Preta do Kimbanda

Nas edições anteriores mencionei que a demoníaca. Então, desde o fim da Antigui-
Quimbanda é a goécia brasileira, e no con- dade e Idade Média, a necromancia esteve
texto esclareci a diferença entre a goécia relacionada a uma arte de magia sombria,
grega e sua reinterpretação cristã, a goécia proscrita, recriminada e, às vezes, essen-
salomônica,[1] para uma compreensão da cialmente demoníaca.
Quimbanda como um exercício de goécia, No contexto dos grimórios medievais,
no ambiente da cultura brasileira. Como dois tipos distintos de magia ritual eram
exercício de goécia, destaquei a importân- conhecidos: magia angélica e magia demo-
cia de um estilo de vida daimônico, ou seja, níaca. A típica parafernália ritualística, da
a visão animada da realidade, a consciência magia demoníaca, consistia na utilização
da miríade de espíritos que se encontram de círculos mágicos, sacrifício de animais,
no cosmos, ao nosso redor e que é possível, o uso de metalinguagem na forma escrita
ao mago habilidoso, comunicar-se com eles ou verbal de caracteres ou alfabetos mági-
através dos fundamentos da feitiçaria e da cos, fumigações, evocações, imprecações
paranormalidade pessoal, o que chamamos vigorosas, etc. Esse gênero de magia ritual,
de desenvolvimento da mediunidade. foi referido como necromancia ou uma cor-
Quimbanda é tanto goécia quanto o ruptela desenvolvida especialmente nesse
que se conveniou chamar de necromancia, período medieval: nigromancia,[3] cujo en-
que é o trabalho de comunicação com os tendimento fazia relação com a prática da
espíritos dos mortos para fins de magia ou magia negra e a comunicação com demô-
divinação. Sendo goécia e necromancia, a nios.
Quimbanda está muito próxima do exercí- Os efeitos que os magos buscavam, com
cio de feitiçaria que encontramos nos Pa- o exercício da nigromancia ou magia demo-
piros Mágicos Gregos,[2] na Antiguidade níaca, eram baseados em emoções rancoro-
e da feitiçaria dos grimórios no Medievo sas ou desejos mesquinhos: causar doença,
- mais especificamente àqueles que lidam prejuízo financeiro ou deformidade física
com o que se conveniou chamar de magia em um desafeto, manipulação de emoções
para despertar afeto, desejo sexual e união
[1] Para uma introdução concisa acerca da transição da goécia amorosa entre duas pessoas ou a coerção
grega para salomônica veja Humberto Maggi. Goetia: Teoria
& Prática. Clube de Autores, 2021. Sobre a goécia grega veja sexual de uma mulher, para que se sub-
Sarah Iles Johnston. Restless Dead: Encounters between meta ao operador passivamente. Para que
the Living and the Dead in Ancient Greece. University of
California Press, 1999.
o mago pudesse conquistar seus objetivos,
[2] Para uma introdução concisa sobre os Papiros Mágicos Gre-
a magia demoníaca consistia na evocação
gos e sua relação com a macumba brasileira veja Daemonium
(Vol. II) ou o Suplemento de Estudo da Revista Nganga disponí- [3] Pelo fato de que o termo necromancia nem sempre faz relação
vel no site da Quimbanda Nàgô no Brasil. direta ao tratamento ou comunicação com demônios.

14 Edição 08
de demônios por meio de procedimentos textos que se enquadram nessa categoria
rituais, os quais deveriam ser forçados a de magia angélica são o Ars Notoria (a
obedecer aos requerimentos do operador, arte notória) e o Livro Jurado de Honó-
após serem convocados e aprisionados, não rio. Nesses dois grimórios, a intenção do
apenas pela vontade do mago, mas, tam- operador é obter visões celestes, conheci-
bém, em virtude dos poderes de espíritos mento espiritual e secular divinamente
superiores (anjos, Jesus Cristo ou o próprio inspirado, como é o caso do Ars Notoria,
Deus). Essas forças superiores, convocadas que propõem a obtenção das ciências que
em um ritual de magia demoníaca, só pos- compõem as sete artes liberais e, como um
suem essa finalidade: conter e dar direção efeito colateral, da jornada mística que es-
ao poder dos demônios, contrastando-a tes escritos propunham, um aumento e o
com a magia angélica.[4] refinamento das capacidades intelectuais:
Após o segundo momento do Culto de memória, eloquência, compreensão de cos-
Exu no Brasil, no contexto da incursão dia- mos etc. Os teólogos ortodoxos defenderam
bólica, que estamos estudando nestes en- a perspectiva que textos de magia angéli-
saios da Revista Nganga, quando os Exus ca – com menos frequência que os grimó-
foram sincretizados com os demônios do rios de magia demoníaca – eram também
Grimorium Verum, a Quimbanda foi asso- inspirados por demônios, não anjos como
ciada ou classificada também como magia alegavam. Mas, independente disso, os gri-
negra, baixa magia ou magia demoníaca e, mórios de magia angélica, por si mesmos e
da mesma forma que a nigromancia medie- seus experimentadores, eram classificados
val, os motivos pelos quais os kimbandas como sagrados, pois nada de bom poderia
são procurados hoje, permanecem os mes- acontecer com alguém que se metia com
mos da magia demoníaca: magia amatória demônios. Por esse motivo, os espíritos dos
(amor, paixão, dominação sexual, amarra- grimórios de magia angélica, eram consi-
ção etc.), vingança, traição, dor e prejuízo. derados benignos e agiam em acordo a von-
A partir desse segundo momento e por meio tade de Deus.
de um ocultista brasileiro chamado Aluízio Ao invés de utilizarem tecnologias ceri-
Fontenelle (1913-1952), i. a Quimbanda foi moniais como o círculo mágico, sacrifícios,
inserida na Tradição Oculta Ocidental e; convocações e aprisionamento de espíritos
ii. Exu como uma figura diabólica, cristali- - como àquelas utilizadas na magia demo-
zou-se no imaginário brasileiro.[5] níaca - as cerimônias de magia angélica en-
A magia angélica medieval, por outro volviam longas orações a Deus, Jesus Cris-
lado, era muito mais simples em execução to, o Espírito Santo, o coro de anjos e outros
e representou uma transição ou sutilização seres benignos. Essas orações eram elabo-
dos aspectos mais baixos da magia demo- radas a partir de metáforas bíblicas, para
níaca. Fundamentalmente psiúrgica, a ma- garantir que o operador pudesse adquirir
gia angélica agregou um amplo conjunto visões beatíficas e conhecimento inspira-
de símbolos místico-devocionais.[6] Dois do. Todas essas orações da magia angélica
envolviam uma severa disciplina, requerida
[4] Veja meu ensaio A Goécia de Abramelin em Daemonium (Vol. ao resultado bem sucedido das operações:
II). Clube de Autores, 2022. Neste ensaio eu demonstro como a
magia demoníaca está oculta ou implícita na operação do Sagra- jejuns, silêncio e contemplação, o consu-
do Anjo Guardião. mo do sacramento da missa e da confissão,
[5] Para contextualização dessas afirmações, leia os ensaios ante- etc. Então, a magia angélica dos grimórios
riores da Revista Nganga.
dependia de um apurado senso religioso e
[6] Psicurgia é um termo cunhado por Antine Fabre d’Olivet
(1767-1825) inspirado na teurgia clássica grega, a partir da junção
o desenvolvimento de uma profunda devo-
de duas palavras: psikhé (alma) e urgia (ação). Psicurgia é então
a ação (vontade/volição) da alma humana (e todos os seus com- hoje de psicologia; os antigos o levaram a desenvolvimentos muito
plexos) na intenção de controlar as forças psíquicas que nos cir- profundos. Psicurgia é i. o trabalho sobre a alma, a edificação da
cundam. Papus (1865-1916) reutilizou o termo em seus escritos, catedral mística, a construção do templo da alma, definindo seus
definindo psicurgia como: a arte de lidar com as forças psíquicas padrões; ii. a projeção da vontade psíquica. Não existe magia sem
ou anímicas do homem, a ciência que é sua contraparte é chamada psicurgia, mas é possível existir psicurgia sem magia.

15 Edição 08
ção, dentro de um contexto místico. lica ou apenas participar dos sacramentos
A magia demoníaca, portanto, estava da igreja.
destinada àqueles cujos interesses eram Essas duas visões mágicas influencia-
puramente materiais, pois seu objetivo é o ram profundamente a identidade mágica
domínio sobre o plano da matéria, em to- do povo brasileiro. A incursão diabólica,
dos os ambientes da vida secular – e, por que ocorreu no segundo momento do Culto
isso, eles lidam com demônios e seus pa- de Exu no Brasil, vinculou definitivamente
rentes modernos, textos como o Grimo- a Quimbanda à magia demoníaca dos gri-
rium Verum, lidam com a própria figura mórios, inserindo-a no contexto da Tradi-
do Diabo. Os nigromantes, dos grimórios ção Oculta do Ocidente. Inúmeras relações
demoníacos, esperavam que a magia fun- podem ser estabelecidas entre os procedi-
cionasse de modo a alterar definitivamen- mentos ou fundamentos da magia demo-
te a realidade material em seu entorno. A níaca dos grimórios e àqueles praticados
magia demoníaca ou necromântica, dos ou utilizados pelos kimbandas brasileiros.
primeiros grimórios medievais, não estava Nesse ensaio, vamos nos debruçar breve-
destinada, portanto, àqueles cujos objetivos mente sobre a faca salomînica de cabo pre-
eram místicos ou teúrgicos; estes tinham to, que aparece na Clavícula de Salomão
duas opções: operar através da magia angé- e a faca preta da Quimbanda.

16 Edição 08
siderado um espírito familiar das bruxas e
feiticeiras no período da grande caçada, é
A Faca de Cabo Preto de um animal envolto em mistérios desde, pelo
Salomão & a menos, os mitos egípcios, onde foi associa-
do à expulsão (ou susto) de espíritos mal-
Faca Preta do Kimbanda
fazejos (afrits), no culto a deusa Bast. Ágil
caçador, esse felino foi associado também a
Na Clavícula de Salomão (liv. III,
espíritos lunares, na Chave de Salomão.
cap. 8), encontramos a instrução para con-
Por conta de suas virtudes, ele é utilizado
fecção da faca de cabo preto, cujo objetivo
para sacralizar a faca salomônica de cabo
é traçar o círculo mágico e infundir terror
preto, transferindo a ela sua própria vida e,
e medo em espíritos inferiores irascíveis.
portanto, as virtudes selvagens que carre-
Venho falando sobre essa passagem, em ví-
ga. De igual modo, a cicuta (Cicuta macu-
deos antigos no YouTube desde 2016, expli-
lata) é uma planta apiácea venenosa, asso-
cando que o medo que a faca de cabo preto
ciada a saturno. No dia e hora de Saturno,
causa nos espíritos, ou seja, aos demônios
na Lua Crescente ou Cheia, quando Marte
convocados, tem uma única razão: os espí-
estiver no signo de Áries ou Escorpião, o
ritos reconhecem nela, nas memórias que
mago deve consagrar e carregar a faca em
ela carrega, as vidas que a faca já imolou.
um preparado a base de cicuta e sangue de
A faca é utilizada em sacrifícios, já matou
gato. A lâmina deve ser temperada nesse
muitas vezes, por isso, ela tem o poder e
preparado ou pelo menos resfriada nele,
autoridade mágica de paralisar a fúria dos
três vezes seguidas. Uma vez que essa eta-
demônios.
pa esteja completa, o mago grava na faca,
No que concerne à faca de cabo preto para com buril, as palavras e caracteres mágicos
fazer o círculo e com o que se infunde ter- indicados no grimório, realiza mais alguns
ror e medo aos espíritos, deve fazer da mes- procedimentos de consagração e a guarda,
ma maneira, exceto que deve ser feito no
dia e na hora de Saturno e colocada em san- envolta em um pano de seda preta. Efetiva-
gue de gato preto e suco de cicuta (abeto), mente, trata-se de uma arma mágica satur-
os caracteres e nomes da figura, escritos da nina, consagrada à convocação e constrição
ponta para o cabo.[7]
de espíritos telúricos violentos, irascíveis
Um dos arcanos, que envolvem a ação e animalescos: os demônios. É uma ferra-
sacerdotal do sacrifício propiciatório, é a menta genuinamente goética, que projeta
transferência de vida; é esse o mistério que uma força mágica saturnina de autoridade
faz com que a vida nasça da morte. O con- coerciva.
dutor dessa vida é o sangue que anima o Um dos aspectos mais importantes da
coração do animal. Trata-se de um veículo consagração e imantação da faca de cabo
que carrega a própria vida do animal imo- preto é a posição de Marte em Áries ou Es-
lado e que é transferida a um instrumen- corpião. Essas são conjunções astrológicas
to mágico, que está sendo consagrado e adequadas ao exercício da magia negra:
carregado com suas virtudes particulares. vingança, destruição, guerra, imposição de
Através do procedimento ritual, o mago força e coerção mágica. Na magia salomô-
desperta o elemento de vida dentro do san- nica, essa faca saturnina é utilizada junto
gue animal, conduzindo toda a sua força de a espada marcial. Saturno e Marte são os
vida para o elemento que está sendo con- planetas que aparecem no Selo de Salomão,
sagrado e imantado. Neste caso, a faca de no Lemegeton, cujo objetivo de uso é com-
cabo preto. pelir os demônios a autoridade do mago.
O gato preto, demonizado por ser con- Na astrologia tradicional, Saturno e Marte
são os planetas mais perigosos que exis-
[7] A Chave de Salomão o Rei. Livro III, Capítulo 8. Traduzida tem. Juntos, eles representam uma autori-
para o inglês por S.L. MacGregor Mathers, 1889. Tradução em dade mágica de força (marcial) e constrição
português anônima disponível na internet.

17 Edição 08
(saturnina). Enquanto Cronos (Saturno), turno. A faca foi temperada em uma mistu-
é o mais velho dos deuses e sua autorida- ra de dois compostos de ervas saturninas e
de é ancestral, Marte é o poder da guerra, marciais, o primeiro com ervas maceradas
conquista bélico-militar e subjugação dos em água de mangue e o segundo com ervas
inimigos. Essas duas forças representam maceradas em água de enchente. Ambos os
virtudes invocadas na goécia, para o mago compostos, que nós chamamos de omieró,
convocar e subjulgar os demônios. receberam sangue de dois galos índios.
Na Quimbanda existe um fundamento Quando recebida do cuteleiro, que seguiu
de faca muito semelhante a esta faca satur- a risca as instruções do Exu Tranca Ruas
nina salomônica: a faca preta, associada ao de Embaré, a faca passou por consagração e
trabalho do Reino das Trevas. Como visto imantação no mesmo fundamento de mor-
anteriormente,[8] o Reino das Trevas repre- te que a faca preta recebe.
senta àquela etapa no desenvolvimento da Como podemos observar, a feitiçaria
consciência humana e do planeta, quando o é uma prática universal, mudando pouca
homem descobriu que poderia usar a magia coisa de cultura para cultura. Tanto a faca
para sobreviver em meio as intempéries da salomônica de cabo preto, quanto a faca
matéria e ao caos da convivência social. Foi preta da Quimbanda, têm fundamentos si-
com o desenvolvimento do Reino das Tre- milares, usadas em circunstâncias também
vas que o homem descobriu, efetivamente, similares, separadas no tempo e espaço.
o poder visceral e bestial da Natureza, hu- E na atuação de alguns espíritos, como o
mana e cósmica. Na cosmovisão da Quim- Tranca Ruas de Embaré, os procedimentos
banda Nàgô, a magia, para fins de ataque e da Quimbanda podem se alinhar àqueles
defesa, nasceu no Reino das Trevas. da feitiçaria dos grimórios salomônicos.
A faca preta é utilizada nos trabalhos
mais obscuros da Quimbanda, possibili-
tando acesso mágico a força espiritual de
todo o Povo das Trevas. Na sua consagração
a faca preta é despertada, conjurada e ali-
mentada. Em reverência ao seu poder, são
feitas oferendas ao Povo das Trevas e sacri-
fícios propiciatórios. Um galo índio, com
esporas avantajadas, é imolado na consa-
gração e imantação da faca que, após con-
sagrada e imantada, será carregada com
um fundamento de morte, obsessão, dor,
maldade e sofrimento. Assim como a faca
salomônica de cabo preto, a faca preta da
Quimbanda também é guardada secreta-
mente, envolta em um pano de seda preta.
Na foto ao lado, o Exu Tranca Ruas de
Embaré consagra uma faca preta para um
kimbanda da família Cova de Cipriano Fei-
ticeiro. Este Tranca Ruas é um mago euro-
peu, conhecedor de astrologia, alquimia,
magia ritual e artes liberais. A faca dele,
nos seus pés sobre o fundamento consagra-
do, foi forjada segundo suas instruções em
Táta Nganga Kamuxinzela
uma Lua Minguante em Escorpião, quando Mestre de Quimbanda Nàgô e
Marte estava em Áries, no dia e hora de Sa- Quimbanda Mussurumin
Cova de Cipriano Feiticeiro
[8] Revista Nganga No. 5.

18 Edição 08
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Feitiçaria Tradicional Brasileira

A Morte do Feiticeiro Branco


na Quimbanda Brasileira

Introdução

etnias.[1] Nathália Fernandes, acadêmica his-


toriadora da UFF, com especialização na área
de repressão policial às religiões de matriz
afro-brasileira, no período do Estado Novo,
diz:

[...] ao longo de toda década de 1930 – e par-


te da década de 1940 –, o estado brasileiro
se empenhou na ampla difusão da ideia de
que a singularidade do povo brasileiro con-
sistia em sua composição étnica diversa, ou
seja, presença histórica do branco, do negro
e do índio em um mesmo corpo social. Des-
sa maneira, o processo de construção da
identidade nacional brasileira, nesse perío-
do, é fundamentado nos conceitos de mes-
tiçagem e miscigenação. O encontro dessas
três etnias teria como resultado o surgi-
mento de uma rica diversidade de hábitos,
costumes, crenças, religiosidades, festivi-
dades, entre outros elementos culturais que
formavam nossa cultura nacional.[2]

Mas, embora o governo de Getúlio Var-


gas incentivasse a produção intelectual sobre
esse entendimento de identidade brasileira,
o código penal que vigorava naquele período
ainda era àquele promulgado em 1890, que
criminalizava as práticas mágicas dos cultos
As décadas de 1930 e 1940 foram marca- afro-brasileiros, na época discriminados pe-
das por profundas transformações na cultura los termos pejorativos de espiritismo e ma-
religiosa afro-brasileira, transformações es- cumba, como veremos. O artigo 157 do código
sas que acompanharam as mudanças de âm- penal dizia:
bito social, político e econômico do Brasil. O
governo de Getúlio Vargas, que se posicionou
contra as grandes oligarquias cafeeiras, apos- [1] A Umbanda elegeria, a partir da construção de sua identidade
como religião brasileira nos primeiros anos do Séc. XX, o cabo-
tava na criação de uma identidade genuina- clo como símbolo dessa mestiçagem. No entanto, antes disso, a
mente brasileira, formada a partir das raízes Macumba como um conjunto de práticas de integração cultural,
de três troncos étnicos: europeus, ameríndios no fim do Séc. XIX, já refletia essa mestiçagem e miscigenação
cultural, como veremos.
e africanos. O símbolo dessa identidade bra-
[2] Nathália Fernandes. Legitimação e Construção da Identidade
sileira veio a ser o estereótipo do mestiço, que
Brasileira. Em Leal de Souza. O Espiritismo, a Magia e as Sete
carregava o sangue miscigenado dessas três Linhas de Umbanda. Aruanda, 2019.

19 Edição 08
Praticar o espiritismo, a magia e seus sor- meio dela. Mesmo assim, o Estado Imperial
tilégios, usar de talismãs e cartomancias Brasileiro tentou criar mecanismos para re-
para despertar sentimentos de ódio ou
amor, inculcar cura de moléstias curáveis, gular o exercício da feitiçaria. No código pe-
enfim, para fascinas e subjulgar a creduli- nal de 1830, o primeiro exclusivamente bra-
dade pública: sileiro, as palavras magia e feitiçaria sequer
Penas – de prisão celular por um a seis me- aparecem. Sobre os cultos religiosos, ele diz:
ses e multa de 100$ a 500$000.
§ 1° Se por influência, ou em consequência
por qualquer um destes meios, resultar ao Manda executar o Código Criminal
paciente privação, ou alteração temporária
ou permanente das faculdades psíquicas: Dom Pedro, por graça de Deus, e Unânime
Penas – de prisão celular por um a seis anos Aclamação dos Povos, Imperador Constitu-
e multa de 200$ a 500$000. cional, e Defensor Perpétuo do Brazil: Fa-
zemos saber a todos os Nossos súditos, que
O código penal de 1890 refletia as neces- a Assembleia Geral decretou, e Nós quere-
mos a Lei seguinte.
sidades da sociedade daquele período pós
-abolição da escravatura e proclamação da CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO DO
República, e no que concerne a repreensão da BRAZIL
PARTE QUARTA
prática da magia nele, como vimos no código Dos crimes policiais
penal de 1890 acima, é o resultado das preo-
cupações das grandes oligarquias, políticos e CAPÍTULO I
OFENSAS DA RELIGIÃO, DA MORAL,
classe alta no período do Segundo Império, E BONS COSTUMES
que não só temiam verdadeiramente a ação
de feiticeiros,[3] como o celebrado Juca Rosa, Art. 276. Celebrar em casa, ou edifício,
o chefe das macumbas, vulgo feiticeiro negro, que tenha alguma forma exterior de Templo,
como foi notoriamente conhecido no fim do ou publicamente em qualquer lugar, o culto
Séc. XIX, mas também se valiam largamente de outra religião, que não seja a do Estado.
de seus serviços. Penas – de serem dispersos pelo Juiz de
Paz os que estiverem reunidos para o culto;
[...] Vários tipos de documentos da época da demolição da forma exterior; e de multa
nos ajudaram a demonstrar, no entanto,
que a crença no feitiço, no Império do Bra- de dois a doze mil réis, que pagará cada um.
sil, assim como na República, perpassava
todas as classes sociais. Em detrimento dessa postura flexível,
[...] A crença no poder dos feitiços era
compartilhada por autoridades policiais houve uma grande proliferação das casas de
e políticas, fossem elas do Estado colonial Macumba e Candomblé no fim do Séc. XIX.
português, fossem do Império do Brasil, Juca Rosa atendia no bairro chamado de Pe-
respectivamente. Tais autoridades repri- quena África, no Rio de Janeiro, quando abriu
miam o que chamavam de «prenúncios de
catástrofes», produzindo documentação um terreiro após voltar de viagens à Bahia,
oficial, uma vez que acreditavam no poder provavelmente para se especializar ou, como
da magia e da feitiçaria nas ações dos es- dizemos na Quimbanda, pegar fundamentos.
cravos e libertos que poderiam lhes causar
malefícios. No Império, curadores, pajés, Seu terreiro era dentro de uma pequenina
feiticeiros, jesuítas e benzedores continua- vila na Rua do Núncio.
ram a serem figuras proeminentes nas artes Em 1845, novos decretos restringiam a
de curar pessoas.[4]
prática da feitiçaria com multa de trinta mil
réis e prisão de quinze dias. Caso o pratican-
Diferente do código penal de 1890, o perí-
te fosse cativo seria castigado com chicote ou
odo do Segundo Império foi condescendente
vara. E, finalmente, em 1890, Manoel Deodo-
com o exercício da feitiçaria. Não era crime
ro da Fonseca promulga o código penal que
praticar magia ou mesmo acusar alguém de
criminalizava a magia. A criminalização da
praticar magia ou provocar infortúnios por
prática de feitiçaria, no código penal de 1830,
[3] Para entender esse contexto veja Diamantino Fernandes foi o efeito colateral da grande proliferação
Trindade. Feiticeiros e Feitiçaria no Segundo Império do de feiticeiros e curandeiros da Macumba e de
Brasil. Editora do Conhecimento, 2019.
terreiros de Candomblé no Rio de Janeiro e
[4] Diamantino Fernandes Trindade. Feiticeiros e Feitiçaria
no Segundo Império do Brasil. Editora do Conhecimento,
São Paulo.
2019. João do Rio (1881-1921), jornalista, cro-

20 Edição 08
nista e teatrólogo brasileiro, em sua obra As
Religiões do Rio,[5] tece algumas palavras Esse relatório de João do Rio, acerca das
sobre os feiticeiros da Macumba por volta de atividades dos feiticeiros da Macumba, os
1900: quimbandas, como veremos na próxima se-
ção, revela aspectos importantes a serem elu-
Nós dependemos do feitiço. Não é parado- cidados nesse ensaio, os quais enumero:
xo, é a verdade de uma observação longa e
doloroso. Há no Rio magos estranhos que
conhecem a alquimia e os filtros encanta- 1. A existência de feiticeiros, note: in-
dos, como nas mágicas de teatro, há espí- divíduos que atendiam segundo seus
ritos que incomodam as almas para fazer conhecimentos da arte de fazer ma-
os maridos incorrigíveis voltarem ao tála-
mo conjugal, há bruxas que abalam o in- gia. A Macumba, portanto, caracte-
visível só pelo prazer de ligar dois corpos riza-se efetivamente pelo trabalho
apaixonados, mas nenhum desses homens, individual e pelo conhecimento pos-
nenhuma dessas horrendas mulheres tem suído pelo feiticeiro, não se tratando,
para este povo o indiscutível valor do Feiti-
ço. O misterioso preparo dos negros. assim, de um movimento organizado
[...] Os feiticeiros formigam no Rio, es- ou sistemático de práticas. Mas, tão
palhados por toda cidade, do cais à Estrada somente da ação individual do feiti-
de Santa Cruz. Os pretos, alufás ou orixás,
degeneram o maometismo e o catolicismo ceiro. A macumba reflete esse mínimo
no pavor dos aligenum, espíritos maus, e do de unidade cultural necessário à soli-
Exu, o diabo, e a lista para os que praticam dariedade dos homens em face de um
para o público não acaba mais.
[...] As pessoas eminentes não deixam, mundo que não lhes traz senão inse-
entretanto, de ir ouvi-los às baiucas infec- gurança, desordem e mobilidade. [...]
tas, porque os feiticeiros que podem dar A macumba, que já não é retida por
riqueza, palácios e eternidade, que mudam uma memória coletiva estruturada,
a distancia, com uma simples mistura de
sangue e de ervas, a existência humana, embora permanecendo em grupo, se
moram em casinholas sórdidas, de onde individualiza.[6]
emana um nauseabundo cheiro. 2. Os feiticeiros espalhavam-se por todo
[...] A pouco tempo estava relaciona-
do com Exu, a que se sacrifica no começo Rio de Janeiro, do centro até as mar-
das funçanatas. [...] Os pretos odeiam-se gens com o interior do Estado; seu
intimamente, formam partidos de feiticei- trabalho miscigenava catolicismo po-
ros africanos contra feiticeiros brasileiros, pular, maometismo, magia europeia
e empregam todos os meios inimagináveis
para afundar os mais conhecidos. [...] Há e pajelança cabocla. O elemento cen-
feitiços de todos os matizes, feitiços lúgu- tral da prática era Exu, o Diabo. Ar-
bres, poéticos, risonhos, sinistros. O feiti- thur Ramos definiu a macumba pelo
ceiro joga com Amor, a Vida, o Dinheiro e a
Morte, [...] e afetam intimidades superiores, sincretismo entre os cultos africanos
colocando-se logo na alta política, no clero ameríndios, católicos e espíritas. É
e na magistratura. mister acrescentar que os elementos
[...] Os trabalhos dessa espécie fazem-se
na roça, com orações e grandes matanças. africanos eram heterogêneos. Quan-
Precisa a gente passar noites e noites a fio do traçamos o mapa da geografia re-
diante do fogareiro, com o tessubá na mão, ligiosa do Brasil, vimos que existiu,
a rezar. Depois se matam os animais, às ve- no começo do século XX, no Rio, duas
zes um boi que representa a pessoa e é logo
enterrado. Garanto-lhe que dias depois o «nações» – a «nação» ioruba, que ado-
espírito vem dizer ao feiticeiro a doença da rava os orixás, e a «nação» banto, cujo
pessoa. culto conhecemos pelo nome de ca-
[...] Mas o que não sabem os que susten-
tam os feiticeiros, é que a base, o fundo de bula. A macumba é, a princípio, a in-
toda a sua ciência é O Livro de São Cipria- trodução de certos orixás e de certos
no. Os maiores alufás, os mais complicados ritos ioruba, na cabula.[7]
pais de santo, têm escondida entre as tiras e
a bicharada uma edição nada fantástica do [6] Roger Bastide. As Religiões Africanas no Brasil (Vol. 2).
São Cipriano. Enquanto criaturas choro- Editora da Universidade de São Paulo, 1960. Interessante que
sas esperam os quebrantos e as misturadas nessa passagem o autor em linhas gerais já classifica a Macumba,
fatais os negros soletram o São Cipriano, à a raiz da Quimbanda, como uma religião mágica, cujos propósi-
luz dos dandeeiros. tos práticos e últimos se concentram na ação da magia para fins
seculares.
[5] João do Rio. As Religiões do Rio. Nova Aguiar, 1976. [7] Roger Bastide. As Religiões Africanas no Brasil (Vol. 2).

21 Edição 08
3. Os feiticeiros eram procurados por seu exercício de feitiçaria a influência
todo tipo de gente, das classes pobres do Ocultismo europeu.
as classes ricas, políticos e juízes. Eles
podiam fazer prosperar ou falir um Poderia ainda incluir nessa lista o fato de
negócio, uma família, um empreen- que muitos estrangeiros se tornavam tam-
dimento. Juca Rosa, por exemplo, por bém chefes da Macumba. O mulato, o bran-
volta de 1870 era conhecido por provo- co brasileiro e finalmente, o estrangeiro, logo
car paixões, tirar a potência sexual de acabam se tornando Embandas, na ideia de as-
um varão, fazer qualquer um adoecer sim conseguirem fortuna com mais facilidade:
e sucumbir a todo tipo de adversida- o terreiro de Oxum é dirigido por um moço, fi-
des. Os periódicos da época o chama- lho de imigrante italiano, Fernandes Copolillo,
vam de «feiticeiro negro». Era tema ajudado por uma «mãezinha» negra vinda, da
de matérias jornalísticas em função Bahia e uma libanesa, Judith Kallile, que traba-
de seu envolvimento com prostitutas, lhou as ordens do caboclo Jurema num terreiro
costureiras, mulheres pobres e negras, do subúrbio de Ramos.[9]
senhoras brancas e casadas oriundas Todos esses pontos acima já definiam os
de famílias importantes na vida polí- contornos que a Quimbanda teria no futuro.
tica da corte. A maioria de seus segui- Em um conto intitulado Magia Negra, publi-
dores eram mulheres atraídas pelos cado na Revista da Semana, em 22 de março
seus atrativos e olhar penetrante. Es- de 1930,[10] o romancista e notório membro da
tava sempre bem vestido e usava joias Academia Norte-Rio-Grandense de Letras,
caras. Além dos escravos e negros li- Aurélio Pinheiro (1882-1938), conta a história
bertos, muita gente importante o se- de Baptista, um português caucasiano que lu-
guia como: políticos, comerciantes, tou com todas as forças para se tornar um fei-
membros da elite social da sociedade ticeiro da Macumba. A história é baseada em
e seus ritos e festas reuniam, em sua fatos! Em um excerto interessante do conto,
casa, essa gente que ia a busca de seus Baptista, ainda só frequentador da Macum-
conselhos e curas.[8] ba, diz:
4. Os feiticeiros atendiam em locais
pequenos, casinholas que possuíam Vou à macumba para ver se me livro da má
mau cheiro devido à decomposição sorte. Certa gente nega que em torno de
cada criatura existe um fluído permanen-
dos feitiços, defumações etc. Alguns te, misterioso, imponderável, que a protege
feiticeiros como Juca Rosa possuíam carinhosamente ou que a tormenta a vida
ajudantes, como veremos a frente, e inteira. Ora, meu caro, esse fluído – que é
o bom ou mau espírito para os espíritas, a
possuíam condições de atender mais influência astral para os astrólogos, a auré-
pessoas e fazer comemorações, ma- ola magnética para os sacerdotes da Kabala
tanças. – existe incontestavelmente. Você não tem
5. Os feiticeiros competiam entre si, encontrado por aí indivíduos repugnantes,
nocivos, indignos, que sobem e são felizes?
africanos contra brasileiros, em prin- E não tem visto pessoas bondosas, crentes,
cípio. Esse tipo de combate, no futu- honestas, que vivem desgraçadamente?
ro, nortearia a função de existir da Pois isso é uma simples questão de fluído, a
auréola magnética. Nada Mais.[11]
Quimbanda.
6. Trabalhos com grandes matanças,
como o relato do sacrifício de um boi, [9] Roger Bastide. As Religiões Africanas no Brasil (Vol. 2).
eram feitos em áreas rurais, as mar- Editora da Universidade de São Paulo, 1960.
gens com o interior do Estado. [10] Conto de Aurélio Pinheiro, Magia Negra. Reproduzido na ín-
7. O Livro de São Cipriano foi um ele- tegra em Diamantino Fernandes Trindade. A História da Um-
banda no Brasil (Vol. 9): Notícias Históricas da Macumba.
mento fundamental de uso dos feiti- Editora do Conhecimento, 2018.
ceiros da Macumba, trazendo para o
[11] É interessante que o personagem Baptista fale do fluído mag-
nético que se trata do agente mágico universal ou grande arcano
Editora da Universidade de São Paulo, 1960.
da magia, a Luz Astral de Eliphas Levi e o Maioral da Quimban-
[8] Diamantino Fernandes Trindade. A História da Umbanda da, vinte anos antes das obras de Aluízio Fontenelle (1913-1952).
no Brasil (Vol. 9): Notícias Históricas da Macumba. Edito- Veja o ensaio Quimbanda & Magia Cerimonial: O Baphomet de
ra do Conhecimento, 2018. Eliphas Levi & o Maioral da Quimbanda. Nesta edição.

22 Edição 08
Baptista conseguiria, no período de um Em resumo este ensaio é destinado a es-
ano, tornar-se um feiticeiro da Macumba, clarecer um único ponto: a deslegitimação
que atendia isolado em um casebre na mata da Quimbanda, enquanto tradição iniciática,
e, teve como ajudante principa,l uma ex-es- em detrimento da existência de uma kimban-
crava, a qual se relacionava. A história de da supostamente primordial, legítima e sem
Baptista, conta a jornada de todo neófito que inserções eurocêntricas judaico-cristãs. Meu
aspira tornar-se um feiticeiro e é, por deve- objetivo é, portanto, demonstrar que essa
ras, interessante àqueles que buscam conhe- suposta kimbanda primordial nunca existiu,
cer as raízes da Quimbanda. porque os primeiros kimbandas, como de-
Em 1930 o Brasil era um país muito dife- monstrarei, miscigenavam em seus trabalhos
rente. Em três décadas deixamos de ser uma individuais de estrutura mágica congo-ango-
economia baseada na agricultura e nos tor- lana, aspectos do catolicismo popular (santos
namos uma sociedade industrializada com sincretizados com os òrìṣà), espiritismo, as
objetivos de inserção econômica no mercado técnicas caboclas de pajelança ameríndia e a
internacional. Com a industrialização intensa magia europeia advinda de inúmeras fontes.
formou-se evidentemente a classe operária, o A raiz da Quimbanda é a Macumba. Nela, o
que diversificou toda a sociedade brasileira, eurocentrismo chegou mesmo antes de Exu!
intensificando o movimento do homem do
campo em direção as metrópoles. Foi, neste
contexto de transformações sociais intensas Seção . I .
na economia, na cultura e religião afro-bra- O Segredo da Macumba
sileira, entre as décadas de 1930 e 1950, que
a Quimbanda é germinada, nas palavras de Se o código penal de um país marginaliza
Nathália Fernandes, dentro de uma rica diver- e criminaliza qualquer tipo de prática, seja
sidade de hábitos, costumes, crenças, religiosi- ela qual for, toda a sociedade se mobiliza em
dades, festividades,[12] como um culto organi- desqualificá-la e repreendê-la. Era isso o que
zado, resultado direto da busca por validação ocorria, na prática, com os sacerdotes e pais
social, que a Umbanda desejava construir. de santo da Macumba no fim do Séc. XIX até a
Antes disso, kimbanda era um termo associa- década de 1950: discriminação religiosa, pre-
do a um indivíduo cujas práticas mágicas se conceito, perseguição e prisão.[15] A Macum-
orientavam ao redor de Exu.[13] Não havia um
sistema coeso de desenvolvimento, mas um
de 1800 como entidade principal; é no primeiro momento ain-
conjunto associado de práticas sincréticas da que Exu aparece como personagem principal da Macumba,
que pouco a pouco ganhou e assumiu o nome sendo kimbanda o indivíduo que trabalha com Exu. No segundo
de Macumba. Mas, para compreendermos a momento deu-se a formação da Quimbanda como a tradição ini-
ciática que conhecemos hoje, tendo Exu como entidade principal
dimensão dessa gênese da Quimbanda, no e contornos iconográficos diabólicos. Veja Humberto Maggi, A
que conveniei chamar de segundo momento Gnose do Diabo. Ensaio em Scientia Diabolicam. Clube de
do Culto de Exu no Brasil, precisamos voltar Autores, 2018. Do mesmo autor veja Rainhas da Quimbanda.
Via Sestra, 2020. Veja também Roger Bastide. As Religiões
um pouco no tempo, bem no fim do Séc. XIX, Africanas no Brasil (Vol. 2). Editora da Universidade de São
ainda no primeiro momento.[14] Paulo, 1960.

[12] Nathália Fernandes. Legitimação e Construção da Identidade [15] Veja a série de volumes sobre a história da Umbanda no Brasil
Brasileira. Em Leal de Souza. O Espiritismo, a Magia e as Sete de Diamantino Fernandes Trindade, que selecionou uma coleção
Linhas de Umbanda. Aruanda, 2019. singular de artigos de jornal da época que descreviam as inva-
sões policiais nos terreiros de Macumba/Umbanda e a prisão de
[13] O termo kimbanda no Brasil evoluiu com o tempo. Primei-
pais de santo e praticantes. Muitos umbandistas federados, quer
ro ele significou o trabalho pessoal de um indivíduo, o curador,
dizer, afiliados as federações que buscavam regular a Umbanda
rezador, feiticeiro ou macumbeiro. Em seguida, na década de
e que criminalizavam a Macumba, denunciavam os terreiros a
1940 o termo kimbanda passa a designar um ritual dentro da
polícia. Sobre essa ponderação veja Marco Aurélio Luz e Geor-
Umbanda e, também, uma t com espíritos sombrios. A partir da
ges Lapassade. O Segredo da Macumba (Paz e Terra, 1972). Os
década de 1950 o termo kimbanda passa a designar um sistema,
autores denunciam que os próprios umbandistas perseguiam,
um conjunto de práticas que conformaram uma tradição mágica.
condenavam e incentivavam a chamar a polícia quando os Exus
[14] Nas edições anteriores da Revista Nganga apresentei am- vinham em terra nos terreiros. Diamantino Fernandes Trindade
plamente essa ideia do Culto de Exu em dois momentos: o pri- acrescenta em Feiticeiros e Feitiçaria no Segundo Império
meiro momento que se estende do período colonial até 1940-50; do Brasil (Editora do Conhecimento, 2019) que as denúncias
o segundo momento após a década de 1950. O primeiro momento eram fundamentais para a abertura dos inquéritos contra os pais
constitui as raízes coloniais da Quimbanda, sem nenhuma es- de santo, bem como o fechamento dos terreiros e as prisões. Sem
truturação de culto ou mesmo a designação de Exu até o final as denúncias as autoridades policiais nada podiam fazer.

23 Edição 08
coroado de magnífico êxito. Ontem os po-
liciais conseguiram deter mais três curan-
deiros, sacerdotes da magia negra.[18]

Esse é um dos milhares artigos de jornal


condenando a Macumba e os feiticeiros no
período. Em um artigo de duas partes publi-
cadas no Jornal Estado de São Paulo em 1941,
Bastide faz um relatório da Macumba:

O supremo sacerdote tem o nome banto


de Embanda ou Umbanda, que outro não
é senão Kimbanda, de Angola, transporta-
do para o Brasil. É ele assistido no decorrer
das cerimônias por um ou mais auxiliares,
os cambônes. [...] As filhas dos deuses, ao
contrário, tomam o nome espírita de mé-
dium, feminilizado em média. As de cate-
goria mais alta são as sambas, e a primeira
exerce funções análogas à da «mãezinha»
dos candomblés. O termo ogan não é des-
conhecido, mas serve, aí, para designar os
tocadores de tambor. Encontramos na mi-
tologia todos os grandes deuses do panteão
iorubá, mas frequentemente com outros
ba, como movimento de integração religiosa [nomes] correspondentes católicos: Oxalá,
multicultural no Rio de Janeiro, São Paulo e também chamado, por influência banto,
Espírito Santo - estados por onde se espalhou Zambi (o Cristo), Ogum, particularmente
querido, como já o dissemos (São Jorge),
inicialmente - era condenada pela sociedade Shangô (São Jerônimo), Oxossi (São Sebas-
e pelo Estado, como uma religião criminosa. tião), Oxum (Nossa Senhora da Aparecida),
Roger Bastide (1898-1974), que tinha uma etc. Mas tais não são mais adorados na for-
ma de pedras ou pedaços de ferro, recep-
visão depreciativa da Macumba, como mo- táculos de forças sobrenaturais; são-no na
vimento de integração cultural, comenta: A forma de estátuas católicas que ornam o
Macumba do Rio se desnatura, por conseguin- altar da seita. Já não há pegi. Tudo quanto
te, cada vez mais: acaba perdendo todo caráter se pode achar, às vezes, são pratos embai-
xo do altar católico, escondidos por uma
religioso, para terminar em espetáculo ou se cortina e destinados a receber as oferendas
prolongar em pura «magia negra».[16] As visões alimentares dos orixás. Esses deuses podem
depreciativas dos acadêmicos e dos primeiros descer sob uma das suas múltiplas formas.
Mesmo Exu tem seus filhos e suas filhas que
autores umbandistas sobre a Macumba eram, o recebem, e então seus transes têm algo
de fato, efeito colateral da visão sociocultu- de particularmente espetacular. Demais,
ral brasileira sobre esse movimento, naquele as crises extáticas em geral diferem das da
período. A sociedade como um todo via na Bahia; enquanto, nesta última cidade, elas
são relativamente calmas, controladas pelo
Macumba a degradação espiritual da cultura grupo, aqui, ao contrário, tendem para his-
africana, considerando-a baixo espiritismo teria. E essa tendência é compreensível: já
ou magia negra. No artigo A Indústria da Ma- não tendo os médiuns uma mitologia para
regrar o transe, e fazer dele uma imitação
cumba: Energéticas Medidas da Delegacia de dos gestos divinos, não resta nada além da
Entorpecentes e Mistificações, publicado no gesticulação apaixonada do indivíduo, de-
jornal A Batalha em 25 de outubro de 1932, sorganizado em seu interior pela passagem
do estado normal ao segundo estado. Mas
lemos: se os orixás descem, o que sobretudo distin-
gue a macumba do candomblé é a existência
Na luta que o serviço de Entorpecentes e de espíritos familiares, onde encontramos a
Mistificações[17] têm empreendido contra série dos tatá e da cabula bantos. Somen-
os exploradores da boa fé popular, tem-se te que, sob a influência do espiritismo, tais
espíritos protetores são antigos índios ou
[16] Roger Bastide. As Religiões Africanas no Brasil (Vol. 2). antigos africanos mortos, cuja a alma flutua
Editora da Universidade de São Paulo, 1960. no mundo astral – o pai Joaquim, a rainha
[17] O termo mistificação utilizado hoje nos terreiros de Umban- [18] Reproduzido na íntegra em Diamantino Fernandes Trin-
da vem dessa época em que significava criminalmente charlata- dade. A História da Umbanda no Brasil (Vol. 9): Notícias
nismo. Históricas da Macumba. Editora do Conhecimento, 2018.

24 Edição 08
da Guiné, o velho Lourenço etc... – dividi- to, profundas metamorfoses: perderam a
dos em caboclos (contribuição das religiões simplicidade dos círculos ou de outras for-
indígenas), e pais e mães, tias (nome dado mas mais ou menos geométricas da África,
pelos negros a mulheres idosas) e avós. Na- para se inspirarem cada vez mais nos livros
turalmente, cada deus ou espírito tem a sua europeus de magia.[19]
cor distinta, seus colares, seus alimentos
preferidos e suas bebidas especiais. [...] Interessante notar que Bastide chama a
Entra-se na seita mediante uma iniciação.
Esta começa pelo banho de purificação, atenção, em uma nota a esse excerto, para o
mas corta-se apenas um tufo simbólico de fato de que a premissa de iniciação é uma he-
cabelos, e a estada na câmara de iniciação, rança do ocultismo europeu. Aqui se vê que,
em consequência das necessidades acresci-
das da cidade grande moderna, dura me- desde o início, os kimbandas da Macumba já
nos tempo. Às vezes só uma semana, mas estavam familiarizados com a tradição mági-
frequentemente três, no decorrer das quais ca ancestral da Europa, muito antes de Aluí-
aprendem-se preceitos, cânticos e passos de zio Fontenelle (1913-1952) aparecer em cena e
dança. A recepção do novo ou da nova ini-
ciada na seita é ocasião de uma grande fes- unir, definitivamente, a demonologia e a fei-
ta chamada «do cruzamento», pois o sacer- tiçaria dos grimórios a Quimbanda. O Livro
dote, com uma espada de ferro, traça uma de São Cipriano, muito popular nas ma-
cruz primeiramente nas costas, depois so-
bre o resto do corpo do candidato. Quanto cumbas como vimos nas edições anteriores
às festas públicas, elas também constituem da Revista Nganga, forjou as primeiras co-
um misto de africanismos, de baixo espiri- nexões entre o ocultismo europeu e a magia
tismo e magia. Começa-se entoando cânti-
cos a Exu, e os cânticos se sucedem até que de Exu. [20]E é interessante como ele afirma
o Embanda receba um Exu que dê ordens que os pontos riscados, outrora na Macum-
aos cambônes, antes de partir. A exemplo da ba, por influência apenas da cultura banto,
Bahia, depois de Exu é a Ogun que se saúda, começam a ganhar contornos parecidos com
e este, por sua vez, se incorpora ao sacerdo-
te. Somente depois dessas duas manifesta- as assinaturas dos espíritos e demais selos
ções é que os espíritos de velhos índios ou contidos nos grimórios de feitiçaria europeia.
velhos africanos descem; é fácil reconhecê Bastide reforça o fato de que a Macumba por
-los, pois durante o transe o índio sempre
conserva os olhos abertos enquanto o afri- volta das décadas de 1910 e 1920 inúmeros
cano os conserva fechados. Esses espíritos europeus se tornaram kimbandas, trazendo
dão conselhos aos assistentes, remédios aos a influência da cultura mágica europeia para
doentes, resolvem as dificuldades da vida dentro do culto. Ele diz:
de alguns, particularmente as dificulda-
des matrimoniais. Assim a festa termina
em consulta. Certos elementos do ritual da O estudo que fizemos dessas seitas e desses
macumba devem deter-nos a atenção. O sa- indivíduos [os kimbandas] através dos fi-
crifício animal, que se realiza de manhã no chários da polícia, e das coleções de jornais,
candomblé, somente diante de um pequeno bem como através de entrevistas e histórias
grupo de fiéis, ou não existe, ou então se de vida, mostram que aqui, ainda mais que
realiza em plena festa; nesse caso, consti- no Rio, o branco penetrou nesse movimen-
tui o ponto culminante desta: mata-se um to místico-mágico, fazendo-o por sua pre-
galo, cujo sangue faz-se pingar sobre uma sença afastar-se ainda mais de suas origens
mulher. Sente-se, aqui, que o elemento es- africanas [...]. Tanto mais que esse branco
petacular é o único em jogo, e estamos bem é frequentemente um estrangeiro: conta-
próximos da comercialização da macum- mos 33 casos de curandeiros, feiticeiros ou
ba. Enquanto o sacerdote católico, ou seus macumbeiros – portugueses, espanhóis, ja-
acólitos, fazem rodas os turíbulos onde se poneses etc. Dessa forma, o sincretismo já
queima incenso, os Embandas dão início começado prossegue com a introdução na
ao seu ritual por uma defumação da casa e macumba de todos os elementos mágicos
do0s assistentes. Essa defumação de ervas que esses imigrantes trouxeram de seus pa-
aromáticas vai crescendo em importância, íses de origem.[21]
e já deu nascimento a um grande comér-
cio: os ervanários do Rio nãop deixam de Essa passagem de Bastide, nos lembra o
vender «defumadores» para toda espécie de
males, não apenas espirituais, mas também
materiais. Finalmente, os deuses ou os es- [19] Excerto reproduzido em Roger Bastide. As Religiões Afri-
píritos não são atraídos tão-somente pela canas no Brasil (Vol. 2). Editora da Universidade de São Paulo,
música dos tambores, os cantos em língua 1960.
africana: também são pelos desenhos tra- [20] Veja a Revista Nganga No. 4 para uma introdução concisa
çados no solo com gizes especiais, de nome sobre O Livro de São Cipriano.
pontos riscados. A África não ignora esses
[21] Roger Bastide. As Religiões Africanas no Brasil (Vol. 2).
desenhos, os quais se encontra no Haiti sob
Editora da Universidade de São Paulo, 1960.
a denominação de vêvê; sofreram, entretan-

25 Edição 08
conto Magia Negra, de Aurélio Pinheiro, ci- dominam quase em toda parte. Se nos li-
tado na introdução, que descreveu as aventu- mitarmos aos elementos africanos que res-
taram nessa confusão de objetos e de ritos,
ras do português Baptista para tornar-se um descobriremos (sobretudo entre as negras e
feiticeiro da Macumba. O relatório de Bastide os negros): o transe místico, dado por Exu,
sobre as macumbas e os feiticeiros é deveras senhor da magia, o despacho para Exu, fei-
interessante, pois levanta todas as questões to com a metade de uma galinha preta, re-
cheada com pedacinhos de fumo e grãos de
que estamos explorando nesse ensaio, das milho depositada na porta de um inimigo
quais as duas fundamentais são: i. kimbanda que a gente quer que morra – a utilização
tratava-se do indivíduo, não de uma tradição dos mesmos pontos riscados, ou desenhos,
da macumba carioca, em torno dos quais
ou movimento coeso de integração cultural e se acendem velas, e em cujo centro se faz
sistematização de culto; ii. nunca houve, em explodir pólvora para afugentar os maus
tempo algum, uma kimbanda desprovida de fluídos. Sem dúvida, a esses elementos afri-
canos, sempre acrescentam, como no Rio,
eurocentrismo. Os feiticeiros da Macumba «rezas fortes», dirigidas aos santos da Igre-
usavam, excessivamente, a magia da cultura ja, e passes magnéticos emprestados do es-
europeia. Bastide, ao relatar as macumbas de piritismo.[23]
São Paulo, as descreve como um culto bem
parecido a Cabula, mais organizadas, no en- Bastide conclui seu relatório frisando que:
tanto, perseguidas pelas autoridades e por
isso, logo se descambaram no baixo espiritis- O transe místico já não é o transe de todo
um grupo social no interior de uma festa, a
mo e, fundamentalmente, no trabalho indivi- um tempo consulta e culto, mas o transe de
dual do feiticeiro. Ele diz: um só individuo, o macumbeiro, o único a
receber o espírito de um africano ou de um
Mas a Macumba não desapareceu comple- caboclo no seio de uma cerimônia privada,
tamente: apenas passou da forma coletiva de consulta mágica.[24]
para a forma individual, ao mesmo tempo
se degradando de religião em magia. O ma- Este macumbeiro, portanto, é o kimbanda
cumbeiro, isolado, sinistro, temido, como ou Embanda da Macumba, um feiticeiro que
um formidável feiticeiro, substitui, hoje, a
macumba organizada.[22] tocava seu trabalho individual, segundo seu
conhecimento e cultura. Um terreiro de Ma-
Em outra passagem Bastide completa: cumba, liderado por um ex-escravo, poderia
ter uma inclinação mais africana; por outro
O caráter mágico das sessões se manifes- lado, um terreiro de Macumba, cujo chefe
ta, a um tempo, nos trabalhos pedidos e era um francês, poderia ter uma inclinação
no ritual empregado. Urbano Mendes Fal- maior ao uso de elementos eurocêntricos.
cano cura os doentes, arranja casamentos,
ou os impede, a gosto do cliente; procura Não havia a Kimbanda, mas o trabalho indivi-
emprego para os grevistas e indica os nú- dual do kimbanda. Em seguida, o termo kim-
meros que vão ganhar na loteria. O feiti- banda designaria um ritual com as Linhas de
ceiro branco, Paulino Antonio de Oliveira,
faz encontrar amantes, reconcilia os casais Exus dentro da Umbanda, como veremos na
brigados, costura hérnias, dá remédios para próxima seção.
doenças do estômago, do coração e dos den- A Macumba distinguia-se dos outros cul-
tes. A macumba paulista é assim a grande tos afro-brasileiros por seu caráter essencial-
fornecedora de esperança para as pessoas
sem trabalho, sem amores e sem dinheiro. mente mágico. A feitiçaria da Macumba tinha
Não se trata de magia erudita, mas de ma- o objetivo único de resolver problemas secu-
gia popular, de acordo com o nível intelec- lares, sem nenhum compromisso com a mo-
tual e economicamente baixo da plebe das
grandes cidades. O material empregado é ral ou o trabalho místico sobre a alma. Essa
uma mistura de todas as magias do mun- característica, indelével, da Macumba seria
do, que o emigrante enriquece com novos transmitida integralmente para a Quimban-
processos acrescentados aos dos índios,
dos africanos e dos luso-brasileiros; um sí- da posteriormente.
rio utiliza talismãs, livros de astrologia e A história de vida de Juca Rosa, o chefe das
orações e árabe; um francês as estrelas de macumbas, como foi apelidado, ilustra tudo o
Salomão e sinais cabalísticos. Apesar disso, que vimos até aqui: i. o trabalho individual
os processos do ritual permanecem muito
pobres, e as raízes, as ervas, os punhais,
[23] Ibidem.
[22] Roger Bastide. As Religiões Africanas no Brasil (Vol. 2).
Editora da Universidade de São Paulo, 1960. [24] Ibidem.

26 Edição 08
do feiticeiro que atendia poucos ou muitos Rio de Janeiro Imperial, a acadêmica Ga-
clientes; ii. a criminalização e perseguição briela dos Reis Sampaio descreve o ritual de
religiosa que vigorou a partir do código penal Juca Rosa:
de 1890; iii. a miscigenação cultural de três
etnias dentro do trabalho de feitiçaria. Aquela reunião [...] era também mais uma
Embora Juca Rosa tenha sofrido uma dura das cerimônias que aconteciam com frequ-
ência, envolvendo o pai [de santo] e suas
pena de prisão, antes do código penal de 1890, filhas e filhos [de santo]. Os mais antigos,
seu caso exemplifica o trabalho individual do frequentadores de longa data daquelas ati-
feiticeiro e o descaso social pela presença do vidades, sabiam o que estavam prestes a
presenciar. Haveria música, dança, muita
feiticeiro na comunidade. comida e bebida. A certa altura, Rosa iria
José Sebastião da Rosa, um proeminente entrar em transe, quando, ao que se dizia,
líder religioso e precursor das Macumbas ca- ele recebia espíritos em seu corpo, ou «fala-
riocas,[25] foi preso, processado e condenado va com espíritos», e então se transformava:
passava a agir como o Pai Quibombo, e não
a seis anos de cadeia por praticar feitiçaria. mais como José Sebastião da Rosa. Nesse
[26]Nascido livre, filho de uma escrava an- estado ele atendia as pessoas, já que fica-
golana, Juca trabalhava com uma entidade va dotado com um poder «sobre o natural»,
segundo contavam seus seguidores.[30]
que se apresentava como Pai Quibombo, que
alegava praticar tanto o bem quanto ao mal. Juca Rosa representou o protótipo dos
Seu ritual tinha estrutura banto, mas incor- kimbandas que conformaram as primeiras
porava muitos aspectos da religião católica. casas de Macumba do Rio de Janeiro, sendo
Ao relatar o caso de Juca Rosa, o autor Hum- ele o mais proeminente entre todos. Notada-
berto Maggi nos chama a atenção para o fato mente, vê-se que nessa descrição da prática
de que o Pai Quibombo mostrava claramen- religiosa de Juca Rosa ainda não havia o ele-
te, com suas palavras, que estava disposto a mento exu-diabo ou qualquer inserção yorù-
auxiliar as pessoas em suas boas ou más in- bá. Herdando traços genuínos das antigas
clinações, o que é uma característica do Exu Cabulas, a tônica de trabalho era essencial-
que conhecemos hoje na Quimbanda.[27] Dois mente banto, com inserções religiosas reti-
termos técnicos foram diretamente associa- radas do catolicismo popular e do espiritis-
dos a Juca Rosa em inúmeras crônicas jorna- mo. Patrícia E. Canson na Encyclopedia of
listas da época, mbanda[28] e kimbanda,[29] o African religion diz:
que demonstrava claramente as raízes banto
de seu culto. Em sua tese de doutorado, de- No fim dos anos 1900, o povo yorùbá e con-
fendida em 2000, A História do Feiticeiro go-angolano representava a maioria dos
Juca Rosa: cultura e relações sociais no escravos trazidos ao Brasil. Mais tarde os
grupos de fala kikongo incorporaram as re-
ligiões combinadas do Daomé e da Améri-
[25] A designação de macumba como um culto formalmente or- ca Nativa (ameríndia) com o catolicismo e
ganizado primeiro foi um adjetivo para as diversas práticas que com o espiritismo europeu para construir
feiticeiros como Juca Rosa praticavam. Somente depois eles mes- a prática religiosa da Macumba. Na práti-
mos passaram a assumir o termo macumba associado ao ritual ca, os cruciformas riscados no chão dos
que praticavam. santuários, e a presença de certos espíritos
[26] Juca Rosa foi processado em 1871 e condenado por fraude. medicinais, atestam a influência congo-an-
Seus serviços foram, naquele período, altamente requisitado golana. Muitos sacerdotes da Macumba
na corte e na classe alta da sociedade. Sua lista de clientes era «marcam pontos» à maneira dos bakongos
abundante. para «centrar» a água consagrada.[31]
[27] Humberto Maggi. Rainhas da Quimbanda. Via Sestra,
2020. No ensaio A Gnose do Diabo, em Scientia Diabolicam Humberto Maggi chama atenção para o
(Clube de Autores, 2018), o autor chama a atenção para o fato fato de que a inserção do pensamento mágico
de que o Pai Quibombo que trabalhava com Juca Rosa foi um
dos primeiros protótipos para o que posteriormente viria a ser
europeu, na estrutura dos rituais africanos,
chamado de «Preto-Velho» nas primeiras casas de Macumba e aconteceu desde o início do trafico de escravos
Umbanda.
[28] Bruxo, magista, encantador, curandeiro.
[30] Gabriela dos Reis Sampaio. A História do Feiticeiro Juca
[29] O termo técnico que apareceu nos relatos de Coelho Neto
Rosa. Tese de mestrado. Universidade Estadual de Campinas,
acerca de Juca Rosa foi quibande, que significa curandeiro, ma-
2000.
gista, feiticeiro, rezador, exorcista, necromante. Citado em Ga-
briela dos Reis Sampaio. A História do Feiticeiro Juca Rosa. [31] Citado em Humberto Maggi, A Gnose do Diabo. Ensaio em
Tese de mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 2000. Scientia Diabolicam. Clube de Autores, 2018.

27 Edição 08
para o Brasil.[32] O autor resume em três pon- tre o deus caluniado, termo que Roger Bastide
tos essa inserção: usou para designar o òrìṣà Èṣú, por ter sido
ele caluniado como o Diabo desde a primeira
1. Associação de bruxas portuguesas exi- vez que os missionários cristãos pisaram na
ladas com escravos africanos, desde o África, e os Exus entidades reverenciados na
início do tráfico de escravos em 1553.
2. Associação de escravos libertos com Umbanda e posteriormente no Candomblé.
imigrantes europeus (particularmente [36]Thomas Jefferson Bowen (1814-1875), mis-
italianos), após a abolição da escrava- sionário e pregador da Igreja Batista, é citado
tura. Os europeus foram encorajados a
migrar em massa na tentativa de «em- por Reginaldo Prandi quando afirmou:
branquecer» o país, e trouxeram com
eles muitas práticas mágicas folclóricas. Na língua iorubá o diabo é denominado
3. Influência da literatura mágica e espíri- Exu, àquele que foi enviado outra vez, nome
ta francesa, importada no fim do século que vem de su, jogar fora, e Elegbara, o po-
[XIX] e início do século XX. Sociedades deroso, nome devido ao seu grande poder
e editores ocultistas existiam nas clas- sobre as pessoas.[37]
ses média e alta, e a França era então
o modelo cultural da elite brasileira.[33] Os yorùbás, diferentes dos bantos, reve-
renciam os òrìṣà. Eles foram os últimos gru-
As descrições dos trabalhos espirituais
pos de escravos trazidos ao Brasil, no Séc.
realizados por Juca Rosa demonstram como
XIX e se concentraram mais no Norte do
ele foi o protótipo para a formação do culto
país, principalmente na Bahia. Com o fim da
que primeiro veio a ser designado como Ma-
escravatura começa um intenso intercâmbio
cumba e, depois, Umbanda e Quimbanda.
cultural entre escravos libertos bantos e yorù-
Seu traje cerimonial, na maioria das vezes,s
bás, e foi nesse contexto de intercâmbio que
era preto e vermelho. Ele fazia comidas di-
o òrìṣà Èṣú, diabolizado desde a África pelos
versas, inclusive uma mistura de farinha de
pregadores e missionários cristãos, chega até
mandioca com azeite de dendê, sobre a qual
as Macumbas cariocas, desenvolvendo-se
ele sacrificava um galo.[34] Gabriela dos Reis
plenamente na categoria de espíritos que co-
Sampaio chega a seguinte conclusão.
nhecemos hoje como Exus, na formação das
primeiras tendas de Umbanda. Um exemplo
Entre os diversos orixás cultuados, tanto
na Umbanda quanto no Candomblé, o cul- desse intercâmbio cultural eram as diver-
to a entidade Exu parece ser o que mais se sas viagens que Juca Rosa empreendia até a
aproxima das cerimônias de Rosa. Muitas Bahia, na intenção de se purificar.
vezes identificado com o Diabo cristão, Exu
é, entretanto, bem diferente dele. Na reli-
gião cristã o demônio é associado ao mal A macumba bantu toma emprestado do
absoluto; remete-se a representações da In- candomblé os nomes dos orixás, o nome de
quisição. Na Umbanda, e também no Can- Exu, mas para fazer um uso diferente. [...] A
domblé, porém, Exu não é apenas ligado ao macumba encontrou no candomblé a figura
mal. Ainda que sua representação seja a da de Exu, mas se o nome permanece, o lugar
figura de um diabo, com tridente, chifre e de Exu na macumba é totalmente diferente
rabo, Exu geralmente tem uma condição de seu lugar no candomblé.[38]
ambígua, não sendo nem bem e nem mal,
mas podendo realizar benefícios ou male- Então, o òrìṣà Èṣú, o mensageiro demo-
fícios conforme é manipulado. Teimosos,
abusados, os diferentes exus são potencial- nizado, forneceu as características funda-
mente perigosos, pois aceitam qualquer mentais que inspiraram os Exus como hoje
pedido de seus clientes, independente de os conhecemos na Umbanda e Quimbanda.
preocupações de ordem moral, desde que Desde início do Séc. XX, ainda no primeiro
sejam devidamente pagos.[35]
[36] Posteriormente porque primeiro o òrìṣà Èṣú demonizado
Aqui a autora não consegue discernir en- dos Candomblés inspirou o trabalho dos Exus-Diabos da Ma-
cumba e Umbanda; em seguida essas entidades endiabradas pri-
[32] Humberto Maggi, A Gnose do Diabo. Ensaio em Scientia
meiro inspiradas pelo òrìṣà Èṣú, posteriormente se infiltraram
Diabolicam. Clube de Autores, 2018.
nos Candomblés.
[33] Ibidem.
[37] Reginaldo Prandi. Exu, de mensageiro a diabo: sincretismo
[34] Gabriela dos Reis Sampaio. A História do Feiticeiro Juca católico e demonização do orixá Exu. Ensaio em Revista USP, no.
Rosa. Tese de mestrado. Universidade Estadual de Campinas, 50. São Paulo, 2001.
2000.
[38] Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade. O Segredo da Ma-
[35] Ibidem. cumba. Paz e terra, 1972.

28 Edição 08
momento, o Exu nas casas e tendas de Ma- Caminha, de pés descalços, sobre um esten-
cumba e Umbanda já possuía as caracterís- dal de fundos de garrafas quebradas, seno
que, por duas vezes, convidados, levaram as
ticas tradicionais, dentre elas a iconografia garrafas e as quebraram, aguçando lâminas
diabólica, que somente mais tarde, no segun- pontudas para o passeio do médium.
do momento, iriam entrar fecundas e defini- Ele demonstrou de uma feita, a um grupo
tivamente no imaginário brasileiro. E como de curiosos da alta sociedade, a importân-
cia de coisas aparentemente insignifican-
é possível observar, não existia aqui um mo- tes. Nos centros do espiritismo de linha,
vimento organizado de culto a Exu. O que pede-se, durante as sessões, que ninguém
existia eram os trabalhos com Exus nas casas encruze as pernas e os braços. Parece uma
exigência ridícula, e não o é. Provou-o, o
de Macumba, no fim de 1900, rituais muitas Exu.
vezes referidos como kimbanda, contendo sa- Quando, incorporado, passeava descalço
crifício animal e oferendas aos espíritos. Não sobre os cacos de vidro, para fazer compre-
ender a transcendência daquela recomen-
houve, portanto, tempo algum onde existiu dação, mandou que uma senhora trançasse
uma kimbanda livre de eurocentrismo e in- a perna, e logo os pedaços de vidro pene-
fluência judaico-cristã. Antes mesmo de òrìṣà traram, ensanguentando-se, os pés que os
Èṣú chegar na Macumba, esta já era influen- pisavam.
Para comprovar a força dos pontos da ma-
ciada pelo catolicismo popular e espiritismo. gia (desenhos emblemáticos, cabalísticos
Leal de Souza (1880-1948), o primeiro au- ou simbólicos), produziu uma demonstra-
tor umbandista, em 1925 apresenta um ritual ção sensacional. Escolheu sete pessoas, or-
denou-lhes que se concentrassem sem que-
da Macumba, onde se trabalhava com Exu. bra da corrente de pensamento, riscou no
Note que ele descreve a prática como magia chão um ponto e decapitou um gato, cujo
negra, demonstrando no primeiro livro um- corpo mandou retirar, deixando a cabeça
bandista publicado no Brasil que a Umbanda junto ao ponto.
- Enquanto não se apagar esse ponto, esse
se distinguia da Macumba, que trabalhava gato não morre e essa cabeça não deixa de
com o Povo de Exu e tratava-se de magia ne- miar.
gra. Eu ofereço a descrição na íntegra, pois Durante dezessete minutos, a cabeça se-
parada do corpo miava dolorosamente na
ela representa a tendência que a Umbanda sala, enquanto lá fora, o corpo sem cabeça
já demonstrava, desde seu primeiro autor, se debatia com vida. Os assistentes começa-
de embranquecer suas raízes na intenção de vam a ficar aterrados. Ele apagou o ponto, e
cessaram o miado gemente da cabeça sem
aceitação pública. E como veremos, dessa corpo e as convulsões do corpo sem cabeça.
busca por reconhecimento social, como um Tais entidades tem ufania de seu poder; são
efeito colateral, nasce a Quimbanda como com frequência, irritadiças e vingativas,
tradição organizada. mas, quando querem agradar a um amigo
da Terra, não medem esforços para satisfa-
zê-lo. As suas lutas no espaço, por questões
Despindo-se, através dos tempos, de sua da Terra, tem a grandeza terrível das bata-
imponente pompa litúrgica, a Magia Negra lhas e das tragédias.
conserva, por toda parte, a quase totalidade Essa magia exerce diariamente a sua influ-
de seu poder terrífico de outrora. ência perturbadora sobre a existência, no
Como a Branca, que lhe é adversa, a Magia Rio de Janeiro. Centenas de pessoas de to-
Negra para consecução de seus objetivos, das as classes, pobres e ricos, grandes e pe-
opera com as forças da natureza, proprieda- quenos, por motivos de amor, por motivos
des de produtos da fauna e da flora do mar, de ódio, por motivos de interesse, recorrem
de corpos minerais, de vegetais de vísceras aos seus sortilégios. A política foi e conti-
e órgãos animais, com elementos do orga- nua a ser dos seus melhores e mais assíduos
nismo humano, e com atributos ou meios clientes.
só existentes nos planos extraterrestres. A Durante a revolução de São Paulo, essas
sua influência atinge as pessoas, os animais hordas do espaço travaram pugnas furio-
e as coisas. sas, lançando-se umas contra as outras. As
As entidades espirituais que realizam es- que se moveram pelos paulistas esbarraram
ses trabalhos possuem sinistra sabedoria, com as que foram postas em ação em fa-
recursos verdadeiramente formidáveis, e vor da ditadura e esses choques invisíveis
energia fluídica aterradora. nos planos que os nossos sentidos não de-
Um desses espíritos tem se prestado à ex- vassam, certo ultrapassaram, em ímpeto,
periências, não só diante de conhecedo- as arremetidas do plano material. Sobre o
res do espiritismo, como perante pessoas enraivecido desentendimento das legiões
de brilho social no círculos da elegância. ditas negras, pairavam as falanges da Linha
Assim, tomando o seu aparelho, isto é, in- Branca de Umbanda e os espíritos bons e
corporando-se ao seu médium, faz triturar superiores de todos os núcleos de nosso ci-
com os dentes, sem ferir-se, cacos de vidro. clo, levantando muralhas fluídicas de defesa

29 Edição 08
para que os governantes de São Paulo e do Ortiz provê riqueza de detalhes sobre essa
Rio não fossem atingidos pela perturbação, transição e branqueamento em sua obra A
e na plenitude de suas faculdades, medindo
a extensão da desgraça, compreendessem a Morte Branca do Feiticeiro Negro: Um-
necessidade de negociar e concluir a paz. banda e Sociedade Brasileira (Brasiliense,
Nesses dias da guerra civil, os terreiros da 2011). A ênfase do eurocentrismo na Umban-
Linha Branca de Umbanda tinham um as- da, naquela época, foi fruto de uma intensa
pecto singular: - estavam cheios de famílias
aflitas, e quase desertos de protetores, pois busca por aceitação por parte da sociedade
as falanges todas se achavam no campo das brasileira. Fundamentalmente, tratou-se de
operações militares, esforçando-se para uma tentativa de fuga as inúmeras denúncias
atenuar a brutalidade da discórdia arma-
da... e perseguições, que levavam os pais de santo
A atividade da Magia Negra tem três modos a prisão.
de ser contrastadas: a oposição de seus pró- Os autores das próximas décadas não me-
prios elementos, a defesa a que se obriga a
Linha Branca de Umbanda e a atuação dos diram esforços em depreciar a ação de Exu.
Guias Superiores. Note que Leal de Souza descreve um Exu que
Creio que, perdendo a solene pompa do se comunica com as pessoas, risca ponto, faz
cerimonial antigo, a magia perdeu em efi- desafios e propõe sugestões racionais atra-
ciência, porque a colaboração do elemento
humano pensante e sensível diminuiu. O vés de argumentação. Os livros umbandistas
homem que aspira ao domínio da magia passaram a descrever a atuação dos Exus de
necessita de aprofundar-se em estudos forma degradante, como espíritos inferiores
muito sérios, sobretudo os da ciência, para
conhecer as propriedades dos corpos, e suas que se arrastavam no chão. Um retrato to-
afinidades, e precisa, ainda, desenvolver e talmente diferente daquele apresentado por
governar, com intransigência de ferro, as Leal de Souza. Isso ocorreu para desqualifi-
faculdades da alma, as forças físicas e as car o trabalho com Povo de Exu. Então gra-
energias do instinto. Isso não é fácil, e o
praticante da magia, em nosso tempo, tem dativamente, como atesta a crônica de Leal
de subordinar-se, em absoluto, a vontade de Souza acima, os Exus pararam de se apre-
de um espírito, que, em geral, só lhe permi- sentar naquelas casas que se denominavam
te um lucro mesquinho.
Nessas condições o individuo que se pode- Umbanda. Mas, por pouco tempo, como ve-
ria chamar o mago negro cada dia se tor- remos abaixo.
nara mais raro, desaparecendo, a pouco e Existiam ainda as casas que não aderiram
pouco, o contato da humanidade com essa
ordem de espíritos. às mudanças, no entanto, também rebatiza-
Nos centros dessa magia, conforme a fina- ram o seu trabalho com o termo Umbanda,
lidade das reuniões, os aparelhos humanos a fim de aceitação pública. Nessas casas se
laboram vestidos, desnudos da cinta para manteve o trabalho com Exu e os sacrifícios
cima ou totalmente despidos. Trabalha-se
com entusiasmo, até para o bem, quando animais. Nesse período podemos ver uma
lhes encomendam.[39] bifurcação e a distinção de dois trabalhos: i.
a Umbanda Branca sem a presença de Exu;
Leal de Souza descreve em sua crônica ii. a Umbanda, antiga Macumba rebatizada,
uma sessão chefiada por um kimbanda em que manteve a estrutura original e o trabalho
uma casa de Macumba, doravante, identifica- com Exu e se apresentou como omolocô.
da como magia negra pelos autores umban- É essa Macumba rebatizada de Umban-
distas das próximas décadas. O autor apre- da Omolocô e, que manteve o trabalho com
senta, em sua obra, um retrato da Umbanda Exu, que eles dizem ser a kimbanda primor-
que buscava por validação social e, para isso, dial, sem inserção eurocêntrica ou diabo-
era necessário embranquecer as raízes, dis- lismo, com foco na miscigenação africana,
tanciar-se da Macumba, ou seja, do trabalho indígena brasileira e espírita kardecista. Os
com Exu-Diabo e os sacrifícios de animais. pais de santo da Umbanda Omolocô alegam,
Então, alguns praticantes da Macumba ini- portanto, serem eles os genuínos guardiões
ciaram um movimento de branqueamento em da kimbanda primordial, sendo que são, em
sua ritualística, assumindo o novo nome de verdade, tanto quanto a Umbanda Branca,
Umbanda e afirmando o elemento eurocên- uma derivação da Macumba. Se na Umbanda
trico como eixo estrutural do culto. Renato Omolocô, paladina da kimbanda primordial
sem influências eurocêntricas, há um grau de
[39] Leal de Souza. O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas
de Umbanda. Aruanda, 2019. espiritismo kardecista, então é pura desones-

30 Edição 08
tidade intelectual apresentar-se como movi-
mento religioso sem inserções eurocêntricas.
Aqui o termo kimbanda é associado ao pai de
santo que trabalha com Exu e Pombagira e
um dos expoentes dessa vertente umbandista
é Táta Tancredo (1904-1979).[40]
Como estamos observando, a alegação
deles é uma fantasia. Jamais existiu uma Ma-
cumba sem nenhuma inserção eurocêntrica.
Santos sincretizados com os òrìṣa, a presença
de Exu como figura diabólica, as inserções es-
píritas, tudo isso é influência eurocêntrica. E
como veremos adiante, o Exu-Diabo das Ma-
cumbas, inspiradas pelo òrìṣà Èṣú demoni-
zado, ganhou características mais diabólicas
com o tempo, associando-se com demônios
judaico-cristãos, reforçando sua identidade
no imaginário brasileiro.
Bastide, que desfavorecia a Macumba nos
seus relatórios, via o trabalho dos feiticeiros
como pura degeneração cultural. Essa postu-
ra foi criticada pelos autores Marco Aurélio
Luz e Georges Lapassade, que escreveram:

É preciso dizer que a macumba é um fato


cultural, específico e original. E o impor-
tante aqui não é só lembrar de Angola e o
culto africano dos antepassados. É ao con-
trário, de mostrar como neste esquema
original, alguma coisa de muito diferente,
e de muito novo foi produzida no Brasil: é
o culto dos heróis da história e da revolta,
os caboclos, e os pretor velhos que são com
os Exus os elementos essenciais da macum- banda.[42] Exu já havia retornado a Umbanda
ba.[41] com força total, após duas décadas de oculta-
mento. Em 1940, na Tenda Espírita São Jorge,
Seja como for, os intelectuais da Umban- no Rio de Janeiro, uma das tendas originárias
da passariam a designar a Macumba agora do trabalho de Zélio de Morais (1881-1975),
como Quimbanda (magia negra e baixo es- os Exus tiveram a autorização do Caboclo
piritismo). O elemento diferente, e de muito Tupinambá para retornarem a Umbanda, se
novo acabou sendo a base fundante do que apresentando no fim das giras. É quando o
no futuro se tornaria uma tradição e sistema termo kimbanda passa a ser associado a um
de magia. ritual dentro da Umbanda. Uma vez que a
Umbanda passou tanto tempo invalidando,
criminalizando e ocultando a presença de
Seção . I I . Exu, agora seria necessário realocá-lo dentro
A Lei de Quimbanda da estrutura da religião e assim nasce a Lei de
Quimbanda.
Em 1942, entra em cena um dos maiores Nas páginas de abertura de seu livro, Lou-
intelectuais da Umbanda, Lourenço Braga reço Braga se colocava como o continuador
(1900-1963), com a obra Umbanda & Quim- do trabalho de autores como Leal de Souza,
João de Freitas e Valdemar Bento, dividindo o
[40] O Omolocô, cabe frisar, não se apresenta como uma vertente espiritismo em três categorias: i. espiritismo
da Umbanda. científico ou cardecismo puro, o tipo superior
[41] Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade. O Segredo da Ma-
cumba. Paz e terra, 1972. [42] Lourenço Braga. Umbanda & Quimbanda. EDC, 1942.

31 Edição 08
de espiritismo; ii. espiritismo médio ou Lei de nando-se um sistema de magia, que funciona
Umbanda, a magia branca e; iii. baixo espiri- por meio de uma miríade de Exus classifica-
tismo, a Lei de Quimbanda, a magia negra. dos em linhas de trabalho.
É interessante que Lourenço Braga co-
mente que a magia branca é um elemento de Linhas, nesse caso, quer dizer, um grande
combate a magia negra, ou seja, a Umbanda exército de espíritos obedientes a um chefe.
[...]. Cada linha subdivide-se em sete legi-
tem o propósito de combater a Quimbanda. ões, tendo cada uma, um chefe; cada legião
Essa ideia seria retomada por Aluízio Fonte- subdivide-se em sete grandes falanges, ten-
nelle,[43] que fala explicitamente que a Um- do, também, cada qual, o seu chefe; falange
grande, por seu turno, divide-se também,
banda nasceu para combater a Quimbanda. em sete falanges menores, e assim suces-
A Quimbanda aqui referida por Fontenelle é sivamente. Falanges são agrupamentos de
a Macumba. Lourenço Braga diz: espíritos que têm afinidades entre si; têm a
mesma cor e luz e que têm uma roupagem
fluídica igual ou parecida, sendo variável o
Legiões de espíritos já evoluídos, com a número de seus componentes.
permissão do Altíssimo, resolveram socor- [...] A Lei de quimbanda tem um Che-
rer as criaturas vítimas das falanges male- fe Supremo, a quem chamam de «Maioral
ficentes e ao mesmo tempo intervir entre da Lei de Quimbanda». [...] Todos os espí-
os Quimbandeiros, visando neutralizar, de ritos da Lei de Quimbanda possuem luz
algum modo, a violência dos trabalhos por vermelha sendo que o chamado «Maioral»,
eles realizados, procurando encaminhá-los conhecido no catolicismo como Satam, Sa-
na senda do progresso espiritual.[44] tanaz, Diabo, Capeta, Lúcifer, Príncipe do
Fogo, Tinhoso, Anjo do Mal, etc., possui
Na intenção de distinguir a Umbanda uma irradiação de luz vermelha tão forte
Branca da Quimbanda (ou Macumba) Negra, que nenhum de nós suportaria sua aproxi-
mação.[46]
era necessário dividir o cosmos umbandista
em duas forças espirituais, a força do Bem e Lourenço Braga descreve o trabalho de al-
da Luz representada pela Lei de Umbanda e gumas linhas:
suas Sete Linhas, e a força do Mal e das Tre-
vas representada pela Lei de Quimbanda e Os espíritos dessa última Linha (Mista),
suas Sete Linhas. É a primeira vez na histó- se comprazem nas práticas do mal, como
ria literária da Umbanda e Quimbanda que o todos os componentes das outras Linhas,
porém, agem indiretamente, isto é, arregi-
termo Quimbanda é apresentado como uma mentam espíritos sofredores [...] para colo-
organização espiritual. Lourenço Braga ex- cá-los juntos da pessoa ou grupo de pesso-
plica: as a quem desejam fazer mal, provocando
assim no paciente moléstias diversas, pelo
contato fluídico[47] desses espíritos com o
Essas organizações espirituais, «Umban- perispírito[48] da vítima.[49]
da» e «Quimbanda», vêm sofrendo várias
modificações, desde a sua existência até a
presente época, modificações essas acordes Interessante que nessa passagem, Lou-
com a evolução dos espíritos reencarnados renço Braga conclui: Geralmente, verifica-se
e com a marcha evolutiva do Planeta ter- que o espírito atuante transmite às vítimas as
ra.[45]
moléstias de que era portador, quando ainda
Umbanda e Quimbanda, na obra de Lou- preso à matéria, na Terra.[50] A Linha Mista,
renço Braga, são duas engrenagens do cos- tradicionalmente, compõe-se de kiumbas,[51]
mos material, uma servindo de contrapeso a [46] Ibidem
outra, em função da harmonia do cosmos em [47] Referência ao meio de contato, quer dizer, o agente mágico
evolução. Não se trata mais do kimbanda, do universal, a luz astral, a alma do mundo, ou simplesmente o as-
tral. Veja o ensaio Quimbanda & Magia Cerimonial: O Baphomet
indivíduo e seu trabalho pessoal; não se trata de Elisphas Levi & o Maioral da Quimbanda.
mais de um tipo de ritual na estrutura ritu- [48] Referência ao corpo astral, o veículo pneumático da alma.
alística da Umbanda; a partir de Lourenço
[49] Lourenço Braga. Umbanda & Quimbanda. EDC, 1942.
Braga, a Quimbanda deixa de representar o
[50] Ibidem
indivíduo feiticeiro ou o ritual com Exu, tor-
[51] Os kiumbas na Quimbanda são os antigos sacerdotes do
[43] Aluízio Fontenelle. Exu. Editora Aurora, 1951. culto que não conseguiram, no pós-vida, tornarem-se Exus
nas falanges do Chefe Império Maioral, o Diabo. São, portan-
[44] Lourenço Braga. Umbanda & Quimbanda. EDC, 1942.
to, feiticeiros de alto calibre, antigos kimbandas com todo tipo
[45] Ibidem de conhecimento acerca da feitiçaria. Alguns táta-ngangas da

32 Edição 08
não Exus. Eles são, portanto, exus com e mi- Universal, suas cores, seus locais certos onde
núsculo. Quer dizer, espíritos obsessores de devem ser colocados os seus despachos.[54]
todo tipo nomeados com o título de exu por- Nesse livro são esboçados inúmeros tipos de
que nessa Linha eles trabalham para os Exus trabalho a serem feitos com Exu e Pombagi-
e sob o comando de Exu dos Rios. Nomes ra. O autor produziria outras obras na mesma
como Pombagira Arranca-lhe as Pregas, Exu linha: Saravá o Rei das 7 Encruzilhadas,
Buraco Fundo etc., são os kiumbas que com- Diário Secreto de um Feiticeiro, No Rei-
põem a Linha Mista. no da Feitiçaria Antiga, entre outros. Em-
bora Molina se baseie mais na obra de Aluízio
Os outros espíritos da Lei de Quimbanda Fontenelle, o ponto aqui é este: após Louren-
são astutos, egoístas, sagazes, persistentes, ço Braga apresentar a Quimbanda como or-
interesseiros, vingativos etc.; porém, agem
diretamente e se orgulham das vitórias ob- ganização espiritual, uma leva considerável
tidas. Muitas vezes praticam o bem e o mal, de autores umbandistas começaram a se de-
a troco de presentes nas encruzilhadas, nos bruçar sobre o assunto, entre eles o eminente
cemitérios, nas matas, no mar, nos rios, nas
pedreiras e nas campinas.[52] Aluízio Fontenelle, o homem que materiali-
zou a ponte definitiva entre a Quimbanda e a
A tradição literária de um culto só se Tradição Oculta Ocidental.
inicia algum tempo depois da formação dos
seus primeiros núcleos e posterior desenvol-
vimento, pelos menos algum. Nunca uma
Seção . I I I .
tradição literária sobre alguma coisa, no âm- A Gnose do Diabo:
bito da pesquisa histórica, começa junto com
a coisa em si. Lourenço Braga está colocando Exu-Demônio & Quimbanda
no papel, é claro, àquilo que já estava pre- Diabólica
senciando nos terreiros. Ele não inventou a
Quimbanda como alguns propõem, ele foi o A Umbanda nasceu da Quimbanda [por-
primeiro a descrevê-la na literatura umban- que] a Umbanda foi criada no Astral Supe-
dista. Nesse excerto, Lourenço Braga, esbo- rior para combater a Quimbanda.[55]
Na sua essência íntima, a Quimbanda
ça a atuação de espíritos antigos como o Pai é quase tudo, idêntica ao que se cultua na
Quibombo, que trabalhava com Juca Rosa, o Umbanda, uma vez que, daquela surgiu
chefe das macumbas, mas aqui descrevendo essa última. [...] Continuo afirmando que
a Umbanda nasceu da Quimbanda, e por
os Exus da Lei de Quimbanda e o modus ope- consequência, labora em erro, todo aquele
randi de trabalhar com eles. que pretender afastar da Lei de Quimbanda
ou Magia Negra, os orixás maiores.[56]
Quer os que praticam a «Magia Negra» quer
os que praticam a «Magia Branca» usam Na década de 1970, a Quimbanda já ha-
objetos [...] tais como: o punhal, as pembas via se consolidado como uma tradição inici-
de cores diversas, despachos nas encruzi-
lhadas e nos cemitérios, galos vermelhos ou ática completamente distinta da Umbanda,
pretos, sangue de boi, farofas [...].[53] de caráter secreto e essencialmente mágico.
Isso só foi possível ocorrer porque, entre as
Após Lourenço Braga apresentar a Lei de décadas de 1920 e 1950, a Umbanda buscou
Quimbanda e suas linhas de trabalho, inúme- consolidar-se como uma religião popular es-
ros autores começaram a se debruçar sobre sencialmente brasileira e como tal, aceita por
o tema, aprofundando o modus operandi de toda sociedade. O surgimento da Quimbanda
trabalho dos Exus. Na obra de N.A. Molina, está intimamente ligado à criação da Umban-
Saravá Exu, encontramos: procurei ensi- da nas primeiras décadas do século XX.[57]
nar de tudo um pouco sobre o Agente Mágico Aproveitando o furor intelectual, que
[54] N.A. Molina. Saravá Exu. Editora Espiritualista, 1982.
Quimbanda classificam os kiumbas como os maiores inimigos
dos Exus. Esses kiumbas, por outro lado, arregimentam falanges [55] Aluízio Fontenelle. Exu. Editora Espiritualista, 1951.
diversas de úgún, que trabalham como soldados-escravos, servi-
[56] Aluízio Fontenelle. O Espiritismo no Conceito das Reli-
dores para qualquer tipo de coisa.
giões e a Lei de Umbanda. Editora Espiritualista, 1950.
[52] Lourenço Braga. Umbanda & Quimbanda. EDC, 1942.
[57] Humberto Maggi. Rainhas da Quimbanda. Via Sestra,
[53] Ibidem. 2020.

33 Edição 08
se iniciou no governo de Getúlio Vargas em Digo e afirmo, que é totalmente falsa a
1930, começaram a surgir os intelectuais um- Umbanda que se está praticando no Brasil
inteiro. É falsa, porque está longe de con-
bandistas que sucederam Leal de Souza, que ter a verdade na qual ela inteiramente se
presenciaram as batalhas oligarcas de São baseia. É falsa, porque querem atribuir-lhe
Paulo e Minas Gerais -que pararam o país e qualidades que não condizem absolutamen-
levaram Getúlio ao poder. Esses autores fize- te com os seus pontos de vista, a começar
pelo seu próprio ritual. É falsa, porque mis-
ram um expurgo na Umbanda, soterrando ao turaram em sua teogonia, em sua liturgia,
esquecimento os elementos mágicos essen- etc., quase tudo o que contêm as demais
ciais, que poderiam conectá-la as famigera- religiões. Essa mistura de africanismo, de
catolicismo, etc., a que se quer atribuir o
das, diabólicas e degradantes macumbas ca- nome de Umbanda, não passa de uma fal-
riocas. A intenção desses autores, das décadas ta de compreensão e de bom senso, de vez
entre 1930 e 1950, era apresentar a Umbanda que, a verdadeira Umbanda, está longe de
ser o que se está praticando atualmente.
como a genuína religião brasileira, mestiça, A religião espírita nunca fez distinção
porque o mestiço passou a ser o símbolo de entre Kartiecismo, Umbanda ou Quimban-
nossa identidade nacional. da, bem como o Candomblé nunca deixou
Dois autores são de fundamental impor- de ser uma verdadeira religião de origem
africana. Quando digo espiritismo, refi-
tância à Quimbanda, nesse período: Lou- ro-me a toda e qualquer manifestação do
renço Braga e Aluízio Fontenelle, que es- espírito, em contacto com os seres encar-
creveu três livros entre 1950 e 1952, ano de nados; por esta razão, nem Kardec desco-
briu o espiritismo, nem tão pouco os povos
sua passagem: O Espiritismo no Conceito africanos tiveram esse privilégio. O verda-
das Religiões e a Lei de Umbanda (1950), deiro espiritismo é o que se concebe como
A Umbanda Através dos Séculos (1952) e «LEI DE UMBANDA», que foi emanado por
um dos livros mais importantes da tradição Deus, e que acompanha o homem através
dos séculos, desde a sua origem.[59]
literária umbandista: Exu (1951), que conec-
tou a Quimbanda diretamente a tradição dos E ao explicar a natureza dos cultos que
grimórios europeus e a Tradição Oculta Oci- verdadeiramente se espalhavam pelo Rio de
dental. Janeiro e São Paulo, referência a Macumba,
Existem pouquíssimas referências acer- ele diz:
ca da vida e obra de Aluízio Fontenelle. Ele
era um fervoroso umbandista daquela leva O Catolicismo infiltrou-se no Candomblé,
de intelectuais que desejavam embranquecer e este, por sua vez, procurou imitar nas
a Umbanda a todo custo, tornando-a social- práticas do kardecismo as suas manifesta-
ções espirituais. Com o correr dos tempos,
mente aceita. Para tal ele relegou todo africa- os exploradores das situações descobriram
nismo e fetichismo da África a Quimbanda, nas práticas do Candomblé uma riquíssima
nome pelo qual ele se referia a Macumba, ele- fonte de renda, e daí então foi concebida
e criada uma nova modalidade na práti-
gendo a Umbanda como uma religião de tipo ca espiritual, que passou a denominar-se
superior, seguindo próximo as distinções «Quimbanda», na qual se aproveitaram to-
estabelecidas por Leal de Souza e Lourenço dos esses fenômenos, para uma prática mis-
Braga: o cardecismo puro, de tipo superior; ta, de feitiçaria e religião.[60]
a Umbanda ou médio espiritismo; e a Quim-
Quando a Macumba se encontrou com o
banda ou baixo espiritismo.[58]
Candomblé, no fim dos Séc. XIX e assimilou
Interpretada erroneamente pela maioria, a os òrìṣà na sua estrutura de culto, restaurou-
Umbanda que atualmente se pratica no Bra- se as matanças propiciatórias a entidades.
sil está ainda bem longe da realidade. Essa Por conta da desestruturação cultural banto,
mistura de credos, essa falta de bom sen- muitos fundamentos da feitiçaria africana
so, essa ignorância de preceitos religiosos,
nada mais têm feito do que ocasionar uma haviam se perdido no tempo. Os fundamen-
verdadeira balbúrdia, numa concepção que
é, acima de tudo, divina. A Umbanda nunca [59] Aluízio Fontenelle. A Umbanda Através dos Séculos. Edi-
foi o que se tem visto e comentado através tora Espiritualista, 1952. Interessante essa crítica direta as casas
de livros e reportagens jornalísticas, que a de Macumba que apenas trocaram de nome para Umbanda, mas
confundem de uma maneira, pode-se dizer, permaneceram praticando Macumba.
calamitosa. [60] Aluízio Fontenelle. A Umbanda Através dos Séculos. Edi-
[58] Aluízio Fontenelle. O Espiritismo no Conceito das Reli- tora Espiritualista, 1952. Indico a leitura do ensaio Quimbanda
giões e a Lei de Umbanda. Editora Espiritualista, 1950. Nàgô na Revista Nganga No. 3.

34 Edição 08
tos de culto da cultura yorùbá revigoraram a
Macumba, cujos símbolos estavam deposita-
dos em imagens de santos e pontos riscados
apenas. Esse intercâmbio levou Èṣú òrìṣà a
Macumba, onde se tornou Exu-Diabo; por
outro lado, a Macumba levou o Caboclo para
o Candomblé. Ambas as fusões contribuí-
ram e influenciaram, portanto, a Quimbanda
como culto estabelecido a partir de 1950.[61]
Fontenelle diz:

A Quimbanda continua no propósito de


manter as antigas tradições de seus descen-
dentes africanos, ao passo que a Umbanda
procura pelo contrário, afastar completa-
mente esse sentido incivilizado das suas
práticas, devendo-se à influência do ho-
mem branco, cujo grau de instrução, já não
as admite. A grande diferença entretanto
entre as duas religiões, é que:
• a Umbanda somente pratica o bem;
• a Quimbanda visa apenas a prática do
mal;
• a Magia Branca combate a Magia Negra,
isto é: a Umbanda combate a Quimban-
da.[62] interpretação teológica católica tradicional
deveria acompanhar essa junção. É quando
Mas o real objetivo das obras de Fontenel- o Exu-Diabo passa a ser o agente de queda
le é estabelecer a Umbanda não apenas como moral do homem, comparado a Serpente do
uma religião socialmente aceita, mas como Éden. Fontenelle reconta o Gênesis e a queda
uma religião perene, podendo ser encontra- dos anjos, derivada de O Livro de Enoch,
da em inúmeras civilizações e culturas reli- colocando Exu como o Anjo Caído, Lúcifer,
giosas do passado, daí umbanda através dos no centro da discussão.
séculos. Nesse processo, ele reforça a ideia A partir disso, toda ideia de mal, incor-
de Lourenço Braga de que forças espirituais porada ao Diabo, ao longo de dois séculos,
opostas, luz e trevas, uma sendo o contrapeso na construção do cristianismo católico, foi
da outra, equilibram o cosmos; no entanto, atribuída a Exu no cosmos umbandista. Até
Fontenelle asseverou a distinção entre luz e hoje, são encontrados terreiros de Umbanda
trevas, colocando o reino de edon, ou seja, o que têm medo de incorporar os Exus em seus
reino material, diretamente sob a chefia dos quadros de entidades de trabalho. Fontenelle
Maiorais da Quimbanda: Lúcifer, Beelzebulth reforçou ainda mais as primeiras concepções
e Ashtaroth, a trindade infernal. Reforçando a da Macumba de Exu-Diabo, os conectou dire-
antiga ideia de Exu-Diabo dos primórdios da tamente a demônios e construiu no imaginá-
Macumba, Fontenelle conecta os Exus mais rio brasileiro a identidade diabólica e demo-
conhecidos na época aos demônios de um níaca de Exu. E o que seria das seitas cristãs
livro de feitiçaria europeia do Séc. XVIII, o pentecostais sem a presença de Exu e Pom-
Grimorium Verum. bagira nos cultos.[63] Fontenelle apresenta o
Ao fazê-lo, Fontenelle cria uma ponte, es-
tabelece uma conexão direta entre a Quim- [63] Eu havia pensado em fazer essa nota na seção anterior, quan-
banda, a demonologia europeia e a Tradição do falamos de Lourenço Braga. Mas em Fontenelle a ideia vem à
tona com mais força! É impossível não fazer uma comparação
Oculta Ocidental. Mas, para que esse encai- histórica nesse processo cosmológico dividido em luz e trevas de
xe pudesse fazer sentido, não bastava apenas Lourenço Braga e Aluízio Fontenelle com a construção da ideia
conectar aleatoriamente Exus e demônios; a de Diabo e do mal nas primeiras eras do cristianismo. Toda a
narrativa do Novo Testamento constrói a ideia de um ente das
trevas, o Diabo, em guerra perpétua com as forças da luz. O
[61] Veja o ensaio Quimbanda Nàgô na Revista Nganga No. 3.
Novo Testamento é um evangelho de guerra apocalíptica onde
[62] Aluízio Fontenelle. O Espiritismo no Conceito das Reli- todo o cosmos está imerso em uma batalha entre as forças do
giões e a Lei de Umbanda. Editora Espiritualista, 1950. bem contra as forças do mal. De modo geral essa cosmovisão

35 Edição 08
Chefe Império Maioral, o Diabo, como: as atividades dos «GÊNIOS DO MAL».[67]

A Entidade Máxima, denomina-se «MAIO- Interessante que em outra passagem ele


RAL», tendo ainda outros denominativos, faz nova referência aos dogmas e rituais da
tais como: Lúcifer, Diabo, Satanaz, Capêta,
Tinhoso, etc., etc., sendo que nas Umban- alta magia negra, que se trata de estar muni-
das é mais conhecido com o nome de EXU do dos fundamentos secretos para manipular
-REI.[64] os agentes mágicos universais, colocando ên-
fase na necessidade de iniciação para adqui-
Para Maioral ele atribui a imagem tradi- rir esses segredos:
cional de Baphomet e um Brasão Imperial,
nos quais os mistérios do culto da Quimban- Tornar-se um iniciado é estar a par de todas
da estão demonstrados através de símbolos as condições que regem os cultos, e asse-
mágicos, esotéricos, cuja influência direta é a nhorear-se dos mistérios que envolvem os
fenômenos espirituais. É estar senhor dos
alta magia de Eliphas Levi (1810-1875). segredos que se apresentam nos dogmas e
O que destaca Fontenelle dos outros auto- rituais da magia negra, onde a sua mente
res umbandistas é a profunda influência que privilegiada o conduz ao perfeito contato
sofreu de Eliphas Levi, mago e ocultista euro- com os entes que se dizem sobrenaturais,
dominando desta forma as manifestações
peu.[65] A obra de Fontenelle está recheada de dos AGENTES MÁGICOS UNIVERSAIS,
elementos do sistema mágico estabelecido ou mais conhecidos na gira Umbandista com
vislumbrado pelo mago. Fontenelle declara: o denominativo de Exus.
[...] Concebe-se a INICIAÇÃO,como ins-
trução educacional, na qual o iniciado se
Da mesma forma que os cabalistas e magos, instrui mental e espiritualmente nos estu-
os perfeitos iniciados na Lei de Umbanda dos das faculdades próprias da sua capaci-
lidam com as forças supremas da espiri- dade e do seu esforço, em prol de um de-
tualidade, uma vez que as entidades que senvolvimento maior, de percepção e força.
manobram nas manifestações espirituais Em outras palavras: resume-se a inicia-
utilizam-se de processos mágicos, em tudo ção, em cultuar duas espécies ou modali-
semelhantes aos dogmas e rituais da Alta dades de mistérios dogmáticos, assim con-
Magia.[66] cebidos: iniciação elementar ou a prática de
mistérios superiores.[68]
E ele mesmo confessa:
Por toda a obra Fontenelle nos faz inferir
Como complemento deste livro, baseei-me da necessidade de se adquirir conhecimento
nos conhecimentos obtidos através de lite- de alma magia ou magia ritual, seus símbo-
raturas sobre ALTA MAGIA, para que ficas-
se completa a exposição que pretendo fazer, los e a organização adequada dos mesmos. O
bem como procurei orientação em obras intelecto (ou percepção) e a força ou, nos ter-
religiosas que bem definem a verdade sobre mos de Eliphas Levi, a imaginação e a vonta-
sempre esteve profundamente enraizada na formação doutri- de, devem ser equilibradamente aplicados na
nária umbandista, mas foi Fontenelle que asseverou com mais
profundidade a conexão direta entre Exu, a Quimbanda e a prá-
manipulação dos agentes mágicos universais,
tica do mal, dando continuidade as ideias de Lourenço Braga. os Exus da Quimbanda. No Brasão Imperial
No excerto que abre essa seção, Fontenelle diz que a Umbanda do Chefe Império Maioral, o Intelecto (imagi-
foi criada para combater a Quimbanda, assim como as forças da
luz na interpretação católica se opõem e combatem as forças das
nação, cognição, uso da razão etc.) e a Vonta-
trevas. O trabalho de Fontenelle destaca, portanto, unicamente de (o ímpeto ou impulso mágico-criativo) são
na literatura umbandista, uma aplicação teológica da ideia do representados pelas duas estrelas laterais, a
mal por meio de Exu e da Quimbanda. É por isso que em ensaios
conjunção das forças planetárias de Mercúrio
anteriores na Revista Nganga que eu disse que nenhuma dis-
cussão acerca da Quimbanda estaria completa sem um estudo e Marte, como Fontenelle as descreve.[69]
do Diabo como símbolo e a origem do mal. Fontenelle se propôs Mercúrio e Marte são signos que se comu-
a isso! Sobre a construção da ideia de Diabo veja a coleção de
nicam bem na astrologia. O primeiro repre-
livros de Jeffrey Burton Russel. Veja também de Elaine Pagels,
As Origens de Satanás (Ediouro, 1996) e Adão, Eva e a Serpente senta a mente, o raciocínio, a comunicação
(Rocco, 1992). e a imaginação; o segundo representa a for-
[64] Aluízio Fontenelle. Exu. Editora Espiritualista, 1951. ça individual, a vontade ou impulso criativo
[65] Eliphas Levi é um dos principais ícones do Ocultismo mo-
[67] Aluízio Fontenelle. A Umbanda Através dos Séculos. Edi-
derno, tendo influenciado inúmeros sistemas de magia.
tora Espiritualista, 1952.
[66] Aluízio Fontenelle. A Umbanda Através dos Séculos.
[68] Ibidem.
Editora Espiritualista, 1952. Referência a obra de Eliphas Levi,
Dogma e Ritual de Alta Magia. [69] Ibidem.

36 Edição 08
que carregamos. Para manipulação do agen- vorando a sua cauda; é que é preciso, para
te mágico universal, a luz astral ou alma do sua razão de ser, a toda plenitude um vácuo,
a toda grandeza um espaço, a toda afirma-
mundo, representado na Quimbanda como ção uma negação; é a realização eterna da
Maioral e suas hordas de Exus e Pombagiras, alegoria da fênix.[71]
é necessário que a mente e a vontade atuem
uníssonas durante o processo. A luz astral é O pentagrama invertido e o ponto de São
completamente bombardeada com as forças Cipriano (o hexagrama), juntos, têm o signi-
mercuriais da mente e com as forças marciais ficado de domínio total sobre o plano mate-
da vontade, criando movimento dentro dela. rial (pentagrama) e todos os seus espíritos,
Esse movimento é carregado com mais força através dos dogmas da alta magia (hexagra-
(àṣẹ) por meio da fundamentação do culto, ma). O domínio total das Ciências Ocultas,
ou seja, o uso de fumo, cachaça, oferendas que levam o homem a tornar-se um Mestre
propiciatórias etc. da Vida material. As ponteiras laterais, di-
Fontenelle apresenta a Quimbanda como recionadas para baixo, reforçam a regência
uma religião mágica e o Brasão Imperial do sobre os poderes naturais da matéria e como
Chefe Império Maioral, o Diabo, contém to- complemento, através do símbolo da lua e as
dos os símbolos da atuação magística da cruzes sobre ela, do mundo dos mortos. As
Quimbanda, onde Lúcifer mostra toda a sua espadas cruzadas são um complemento das
supremacia como «agente mágico univer- forças mercuriais e marciais (as estrelas la-
sal».[70] O triângulo mágico de Salomão é terais) representando o poder absoluto para
invertido, porque demonstra a Trindade do manipular o agente mágico universal.
Oposto e a regência das forças materiais, por-
tanto, de ponta a cabeça. Essa trindade re- Sabe a existência e a natureza do grande
presentada no triângulo tem sobre si um sol, agente mágico, ousa fazer os atos e pronun-
símbolo das forças irradiantes de Lúcifer, do- ciar as palavras que o submetem à vonta-
de humana, e cala-se sobre os mistérios do
minador das forças naturais e dos fenômenos grande arcano.[72]
da Natureza, de todo reino material. O Ou-
roboros significa o equilíbrio entre as forças Diz o ditado, o segredo da Quimbanda é o
da vida e da morte, a força material em cons- segredo. Esse segredo não é outro que acessar
tante transformação, o solve et coagula nos e manipular o agente mágico universal, atra-
braços de Baphomet. Eliphas Levi demonstra: vés dos fundamentos do Culto de Exu. Entre
as décadas de 1940 e 1970, inúmeros autores
Dar um ponto fixo para apoio à atividade consagrados da tradição literária umbandista
humana é resolver o problema de Arquime- se propuseram a falar sobre esses segredos de
des, realizando o emprego da sua famosa
alavanca. É o que fizeram os grandes ini- manipulação deste agente mágico.
ciadores que deram abalos no mundo, e só O livro Exu, de Fontenelle é importante
puderam fazê-lo por meio do grande e in- por muitos motivos. É nele que pela primei-
comunicável segredo. Aliás, para garantia
da sua nova juventude, a fênix simbólica ra vez não se fala em linhas de trabalho, mas
só reapareceria aos olhos do mundo depois em reinos, sendo dois apresentados: o Reino
de ter consumido solenemente os restos e das Encruzilhadas e o Reino do Cemitério,
as provas da sua vida anterior. É assim que
Moisés faz morrer no deserto todos os que dentro do Reino de Odum (o plano material).
teriam conhecido o Egito e seus mistérios; é Esta é a primeira vez que a ideia de reinos e
assim que São Paulo, em Éfeso, queima to- não de linhas é associada a Quimbanda, que
dos os livros que tratavam de ciências ocul- depois veio a desenvolver mais reinos. Mas,
tas; é assim, enfim, que a revolução france-
sa, filha do grande Oriente de Johannita e embora Fontenelle apresente a ideia de rei-
da cinza dos Templários, espolia as igrejas nos, através dos gráficos que disponibilizou,
e blasfema contra as alegorias do culto di- é possível inferir que ele tentou harmonizar
vino. Mas todos os dogmas e todos os re-
nascimentos proscrevem a magia e votam ambas as ideias: linhas e reinos.
seus mistérios ao fogo ou ao esquecimento. A partir de Fontenelle, a Quimbanda
É que todo culto ou toda filosofia que vem como tradição demonológica, de iconogra-
ao mundo é um Benjamim da humanidade fia simbólica diabólica, associada a Tradi-
que só pode viver dando a morte à sua mãe;
é que a serpente simbólica gira sempre de- [71] Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Madras, 2019.
[70] Ibidem. [72] Ibidem.

37 Edição 08
ção Oculta Ocidental, cresceu e se expandiu uma tradição iniciática nas obras de autores
como um sistema coeso de práticas, dividido que buscavam validar a Umbanda como re-
em vertentes tradicionais. Lourenço Braga ligião brasileira. A busca pela consolidação
havia profetizado que, em 2020, a Quimban- de uma identidade nacional, nas décadas de
da iria passar por profundas transformações. 1930 e 1940, levaram os umbandistas a sepa-
Eu acredito que nós fazemos parte dessas rar o trabalho deles, a magia branca superior,
transformações. da magia negra inferior, o baixo espiritismo,
referência a Macumba e o trabalho dos kim-
bandas com Exu. Devido a isso, Exu sumiu da
Seção . I V . Umbanda por um bom tempo, até retornar
Conclusão: A Morte do com força na década de 1940.[75] É nesse pe-
ríodo que a Quimbanda, como tradição, foi
Feiticeiro Branco na germinada e somente nas décadas de 1950 e
Quimbanda 1970 a Quimbanda se estabelece como um
sistema de desenvolvimento magístico, como
Em linhas gerais, o que nós temos até uma revisão radical da antiga Macumba. É
agora? Resumindo, essa ideia falaciosa de que quando os arcanos antigos africanos são res-
existiu no passado uma kimbanda pura, sem taurados completamente. Por exemplo: os as-
inserções eurocêntricas, é pura desonestida- sentamentos ou vasos de poder da Quimban-
de intelectual. Antes das décadas de 1940 e da substituem o culto amorfo das imagens
1950, o termo kimbanda era associado a um que os primeiros kimbandas faziam!
indivíduo, não a um sistema iniciático de de- Estes primeiros kimbandas, dos negros
senvolvimento magístico.[73] Ao redor de Exu como Juca Rosa – o chefe das macumbas – no
gravitavam um conjunto de práticas sincré- fim da década de 1890, aos brancos estran-
ticas que mudavam ao gosto e conhecimen- geiros das décadas de 1910 e 1930, sempre
to do kimbanda. Nas décadas de 1910 e 1920, associaram o cristianismo popular, ou seja,
esses indivíduos se aglomeravam nas perife- os santos católicos sincretizados com òrìṣà,
rias do Rio de Janeiro, onde o contato com desde o início e esse foi o cruzamento que
o campo era mais fácil e nos bairros de São mudou a antiga perspectiva da Cabula para
Paulo e, em sua grande maioria, eram bran- a nova perspectiva da Macumba: foi quando
cos e até estrangeiros. Esses kimbandas bran- os òrìṣà chegaram na Cabula, por meio dos
cos - às vezes italianos ou franceses - traziam santos católicos, que os núcleos familiares se
para dentro do culto inúmeros elementos da dissolveram nos indivíduos kimbandas, cujas
magia e folclore de sua cultura. É por isso que práticas foram designadas pelo nome de Ma-
se encontra dificuldade em estabelecer qual- cumba.
quer homogeneidade associada a Macumba, Então, é mentira que existiu uma kimban-
nome pelo qual o trabalho desses kimbandas da sem eurocentrismo! Os kimbandas, os che-
assumiu com o tempo. Cada kimbanda do Rio fes das macumbas cariocas e paulistas, eram
de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo mis- os últimos repositários da antiga sabedoria
cigenava em sua casa, templo ou terreiro as mágica africana, agora miscigenada com ca-
práticas de feitiçaria africana (congo-angola- toliscismo, pajelança cabocla, espiritismo e
na) aos passes magnéticos do espiritismo, a magia europeia. Quando você consulta um
pajelança cabocla, o catolicismo popular e a pai de santo da Umbanda e ele fala que você
magia europeia, segundo seu entendimento
particular.[74] [75] Tanto que no mito de Zélio de Morais (1891-1975) não há a
É somente nas décadas de 1940 e 1950 que presença de Exu, somente do Caboclo das Sete Encruzilhadas.
O caboclo representava o mestiço como símbolo da identidade
a Quimbanda começou a tomar contornos de nacional. Interessante notar que ele era das Sete Encruzilhadas,
terreno ou reino associado a Exu. Na sua luta contra as persegui-
[73] Sistema iniciático de desenvolvimento magistico porque a
ções do estado e na sua busca por validação e aceitação social
Quimbanda se preocupa apenas com uma questão: o aperfeiçoa-
a Umbanda ocultou Exu. Mas em 1940, na Tenda Espírita São
mento da arte de fazer magia. Veja o ensaio que abre essa edição:
Jorge no Rio de Janeiro, uma das tendas originárias do trabalho
Quimbanda & Magia Cerimonial: o Baphomet de Eliphas Levi & o
de Zélio de Morais, os Exus tiveram a autorização do Caboclo
Maioral da Quimbanda.
Tupinambás para retornarem a Umbanda, se apresentando no
[74] O grau de inserção de cada uma dessas práticas dependia, fim das giras. É quando a Quimbanda se torna um ritual dentro
portanto, de cada kimbanda. da Umbanda.

38 Edição 08
tem uma kimbanda, se trata de um exercício desenraizado das primeiras Macumbas, não
individual de relação com Exu, prática que mais àquele umbandista, pai de santo- ou
remonta aos kimbandas das macumbas. não -, que cuida da sua kimbanda. A partir de
Mas, a partir das décadas de 1940 e 1950, então, para que um indivíduo seja reconheci-
kimbanda deixa de ser uma prática individual do como um kimbanda, ele deve ter sido ini-
e torna-se a Quimbanda, uma tradição orga- ciado e pertencer a uma família tradicional
nizada com ritos, oferendas, praticas iniciató- de Quimbanda.
rias, sacrifícios propiciatórios a Exu, Maioral Alguns pais de santo da Umbanda Omo-
(ou Trindade Infernal), de caráter demono- locô têm tentado disseminar a ideia de uma
lógico e de iconografia diabólica. Nascem as kimbanda primordial, claro, conectada ao tra-
sete vertentes tradicionais da Quimbanda: balho deles, onde buscam apagar as raízes
Malei, Almas, Nàgô, Mussurumim, Caveiras, ancestrais da Europa. Eles têm tentado assas-
Caboclos Kimbandas e Mista. Cada uma tra- sinar a reputação dos feiticeiros brancos da
zendo arcanos secretos, na maneira de lidar Quimbanda, no sentido de representarem o
com Exus e Pombagiras. colonialismo, o sincretismo confuso e o euro-
A Quimbanda trata-se, portanto, de um centrismo. Muito àṣẹ jogado fora: não se apa-
sistema de práticas estabelecidas e repetidas ga memórias ancestrais tão profundamente
através do tempo e espaço. É uma prática enraizadas.
sistêmica e consistente de desenvolvimento
e comunicação com Exu, para o aperfeiçoa-
mento da arte de fazer magia.
Táta Nganga Kamuxinzela
Quimbanda passou a ser uma tradição e Mestre de Quimbanda Nàgô e
o kimbanda o indivíduo iniciado nessa tra- Quimbanda Mussurumin
dição, não mais àquele indivíduo disperso e Cova de Cipriano Feiticeiro

39 Edição 08
O Sacrifício de Animais
O sacrifício animal é um dos temas mais quanto ao sacrifício é que como não é um
controversos dentro das práticas espiritua- elemento da religião mais difundido, rara-
listas, principalmente aquelas que possuem mente temos sacerdotes preparados para
uma matriz ou uma forte influência africa- fazer a imolação do animal com o encan-
na. Parte disto dá-se pelo desconhecimen- tamento correto, com o propósito correto e
to, parte pelo preconceito e ainda podemos tendo fundamentação de mão de faca. Pou-
acrescentar uma campanha hipócrita e di- cas Umbandas têm Axoguns[1] dentro de
famatória a essa baila. suas fileiras.
Eu já tive pensamentos antagônicos Se não temos um especialista para isso
sobre o sacrifício animal, principalmente quando procedemos com a imolação, pode-
aquele dentro da Umbanda. Existe uma di- mos cometer vários erros, dentre eles o so-
ferença grande entre o trabalho com carne, frimento do animal, por meio de um corte
sangue e vísceras e o sacrifício em si. malfeito. Não basta só abrir a garganta do
Em minha tradição de Umbanda o uso animal, é preciso saber como fazer isso, no
de carne sempre foi feito, além de outros local correto, a posição da faca e o que se
elementos animais. Fazíamos a entrega de faz posteriormente ao corte.
carne seca, de coração de galinha, de mo- Agora, o sangue em si é o elemento vital
ela de galinha, de bifes bovinos e suínos e do animal e possui muito Moyo,[2] provoca-
outros para os Exus, podendo também in- dor e carreador de mudanças energéticas e
cluir pertences na feijoada de Ogum e ou- mágicas. A princípio, apenas as umbandas
tros elementos de origem animal, como ovo com muita raiz Congo e Nagô acabam pra-
para Oxum, mel para Oxalá, camarão para ticando o corte ritual, sendo que as Um-
Oxum, Nanã e Iemanjá, entre outros. bandas, após 1908, aboliram essa prática
O grande porém, dentro da UMBANDA em uma “espiritização” da Umbanda. Mas,
essa prática não foi abolida apenas no que
tange o corte, mas também o uso de qual-
quer elemento de origem animal, o que não
faz muito sentido com a raiz e tradição das
casas mais antigas.
Além disso, há toda uma carga precon-
ceituosa que impinge, na população religio-
sa da macumba, o entendimento que a ma-
gia que usa do sacrifício é menos evoluída,
baixa e maligna. Nada disso é verdade!
Quando há o processo do sacrifício ani-
mal, existe respeito por aquela vida que
está sendo dada em função de outra. Existe
um contexto nessa troca, existe uma paga
a essa vida e existe uma sacralidade, jus-
tamente por isso o termo sacrifício advém
dos termos Sacro-Ofício, ou seja, Ofício Sa-
grado.

[1] Axogum ou Ashogun é o sacerdote responsável pelo sacrifício


animal. Ele é preparado para isso, recebe o Axé da faca e tem os
encantamentos corretos.
[2] Moyo é o termo em quimbundo sinônimo ao Axé, do povo
iorubano.

40 Edição 08
abates animais para os povos judeus (que
inclusive é defendido na bíblia em Levíticos
22, e claro que na bíblia judaica também)
e entender como é esse processo de holo-
causto.
Estou defendendo a procura do sacrifí-
cio no judaísmo, pois o cristianismo deriva
dessa religião. Se fosse citar as religiões dos
povos originais, dos gregos, dos romanos,
dos celtas, dos teutões e de todas as outras
culturas não-cristãs mundo a fora, seria ta-
xado como um recurso pagão.
A prática de sacrifício animal, para fins
religiosos, foi considerada constitucional
pelo STF (Supremo Tribuna Federal) em
agosto de 2018.
O entendimento do sacrifício não pode
Na Quimbanda, o sangue é pilar básico, ser visto como um recurso de “povos pri-
sem sangue não há Quimbanda. A Quim- mitivos”, mas sim como um direito e base
banda é o culto da faca, então não ter sa- fundamental das religiões de matriz afro
crifício na Quimbanda, impede a prática -brasileira - além de ter todo seu contex-
da Quimbanda em si. Quanto a Umbanda, to místico e religioso, dentro de cada uma
isso fica a cargo da formação do dirigente dessas religiões!
espiritual, temos umbandas sem sacrifícios Existe uma necessidade de compreen-
(Branca, Esotérica, Sagrada, etc.) e temos der isto, respeitar e saber que há porquê em
umbandas com sacrifícios (Omoloko, An- tudo!
gola, Banto-ameríndio, Congo, etc.).
O processo do uso do animal é um se-
gredo de família, não se revela. Sabemos
Kimbanda Zelawapanzu
que é usado bichos de dois pés (aves em Sacerdote do Templo de
sua maioria, como pombos, galinhas, ga- Quimbanda Cova de Tiriri
los etc.), temos os chamados de quatro-pés Agendamentos e atendimentos:
(bois, carneiros, cabritos, cabras, bodes www.instagram.com/covadetiriri
etc.) e podemos – em algumas tradições –
encontrar os meio quatro pés (patos, fai-
sões, pavões e outras aves maiores).
O uso de cada um depende muito das
situações em que eles são necessários, além
disso, podemos sempre confirmar o tipo de
bicho, a cor do bicho, a quantidade de ani-
mais que serão dados em sacrifício as enti-
dades e orixás, por meios oraculares.
Na Quimbanda, onde só trabalhamos
com Exus e Pombagiras, os próprios podem
pedir seus bichos ou o oráculo irá revelar,
ao sacerdote, qual o bicho apropriado.
Claro, que muitos ainda torcem o nariz
para o que é feito com o animal e por se
tratar de uma religião onde o preconceito
racial ainda está muito explícito. Então,
para esses recomendamos que leiam sobre

41 Edição 08
UM ORÁCULO PARA A UMBANDA
E PARA O UMBANDISTA
Aprofunde seu contato com a espiritualidade
Mude sua espiritualidade para melhor
Descubra seus orixás e guias tutelares
O processo oracular sempre esteve envolvido na comunicação
com os deuses, espíritos e encantados. Por meio de várias fer-
ramentas, conseguimos saber os desejos, os aconselhamentos e
orientações que a espiritualidade tem para nossas vidas.
Contudo, dentro da Umbanda, onde o oráculo é a Entidade in-
corporada, muito se sentia a falta de um processo oracular para
conversar com essas entidades, então unindo os conhecimentos
de oráculos e com a inspiração dos mentores dos trabalhos es-
pirituais, Tata Kamuxinzela, Mestre em Quimbanda Nàgô e Mos-
surumin e Kimbanda Zelawapanzu, sacerdote de Umbanda e de
Quimbanda, trouxeram um método eficiente para auxiliar nesse
processo.
Neste curso é possível receber instruções tanto da Umbanda
(direita), quanto da Quimbanda (esquerda) por meio do Caboclo,
Preto-Velho, Exu ou Pombagira Tutelares.
Também é possível descobrir os espíritos que compõe a coroa
mediúnica de um indivíduo assim como os seus Orixás de cabe-
ça.
Inscreva-se Já e garanta uma ferramenta importante para o
progresso dos seus trabalhos espirituais, que não necessita do
envolvimento do espírito e sua manifestação pela incorporação.
Saravá! Mucuiu! Nguzo ê!

www.oraculodeumbanda.com.br
Idealizadores

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