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Índice
Apresentação
1. O envelhecer e o tempo: um olhar filosófico
Bibliografia
2. Saber chegar, saber passar, saber partir
Citações Bibliográficas
3. Espelho, espelho meu...
Bibliografia
4. Metamorfoses da alma após a meia-idade...
Começando a refletir...
Questões fundamentais da meia-idade
Onde me encontro? Qual o sentido da vida?
Metamorfoses reativas ao envelhecer
Questões fundamentais da meia-idade
As metamorfoses da alma de Nietzsche e a metanóia de Jung
Parando de refletir...
Bibliografia
5. Metanóia e história: Conflitos e rupturas na meia-idade
Referência Bibliográfica
6. A dimensão religiosa da existência e o envelhecer – Diálogo entre
Kierkegaard e Jung
A dimensão estética e a sedução pelo prazer
O sentido do Ético e o jogo dos opostos
O envelhecer e a dimensão religiosa da existência
Bibliografia
7. Serenidade – ser é unidade: Um encontro entre Heidegger e Jung
METANÓIA: A Virada no Caminho
ENVELHECER COMO ENCONTRO DO SER: os desafios do
caminho
ANGÚSTIA E MORTE: na contradição da experiência para o sentido
do ser
A IDADE DO SER: ser realizando o Ser
SER É SABER: a conquista do não-ser através da serenidade
Bibliografia
8. Sobre a vida e a dor da meia-idade: Articulação entre Jung e
Schopenhauer
Considerações Gerais

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Sobre as considerações teóricas
Sobre a idéia de vontade
Sobre o mundo, a vontade e a representação
Sobre as dores do mundo – viver é sofrer?
A supressão das dores do mundo
A velhice, metanóia e transcendência
Referências Bibliográficas
9. O caminho do espírito na ciência e nos sonhos
Introdução
O inconsciente e o “sopro espírito”
Testemunho do espírito e testemunho histórico
O testemunho do espírito e o Processo de Individuação
A atividade do espírito no sonho de Jung e a formação da consciência
de si
O Plano A e o Plano B
Conclusão
Referência Bibliográfica
10. Metanóia e mudança de paradigma
Referências Bibliográficas
11. A psicologia junguiana e a física no tempo da maturidade
Introdução
Rupturas e resgates na ciência
O início da ciência e suas transformações
O tempo origem e totalidade múltipla: no indivíduo e na ciência
Discussão final
Referências Bibliográficas

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Apresentação

Idade, plural-idade, meia-idade, envelhecimento, velhice... quantas significações,


mistérios, mitos e preconceitos!
Numa sociedade cada vez mais impregnada pelos valores da eterna juventude,
como envelhecer?
Como assumir as marcas do tempo, que fazem suas inscrições no corpo e na alma?
Como assumir a passagem do tempo que vai levando esta vida para uma
finalização, quando a sociedade materialista e consumista quer negar tal realidade?
As marcas do tempo se revelam nas rugas, nos óculos, nos cabelos brancos, na
menopausa, no colesterol, na aposentadoria, nos lutos cotidianos pelos que partem...
Enfim, como disse Jung, as perdas são sinais que a vida nos dá de que somos seres de
passagem. Mas atualmente parece que é normal negar isso, queremos parecer eternos
e eternamente jovens, porém não tem como reverter tal situação; pelo menos por
enquanto, todos nós envelhecemos – bem ou mal, esta é a única opção que nos cabe
ter.
Quando acontece a meia-idade? Poderíamos situá-la entre os 40 e os 50 anos,
período que traz muitos questionamentos e ressignificações – período de trevas e luz.
Mas como envelhecer numa sociedade que privilegia de forma tão acentuada os
valores da juventude? Um dia chegamos à meia-idade, normalmente com certa
estranheza ou até constrangimento mas sempre há algo de perturbador. Marta
Medeiros, em artigo da revista Globo de 11/9/2005, diz que, ao envelhecer,
descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisa nenhuma; estamos todos
no mesmo barco, com motivos para dançar e para se refugiar no escuro,
alternadamente. Nesta linha de pensamento, Jung diz: “A vida é, ao mesmo tempo,
significativa e louca. Se rirmos de um dos aspectos e não rirmos e especularmos
acerca do outro, a vida se torna banal; e sua escala se reduz ao mínimo. Há, então,
igualmente pouco sentido e pouco absurdo”.
Envelhecer é um processo vital inerente ao viver, vai do nascimento à morte, mas
ganha maior visibilidade após os 40 anos. É uma grande experiência que põe à prova
a nossa caminhada existencial, que pode ser uma aventura ou um desastre. Porém,
diante de uma sociedade que privilegia os valores da eterna juventude, acontece uma
ferrenha negação desse processo natural e irreversível. Estamos premidos pela
necessidade de querer parecer sempre jovens. A partir do século XX, os valores
cultivados foram: SENSAÇÕES, APARÊNCIA e IMAGEM. Busca-se a todo o preço
ter um corpo de jovem, sentir prazer e ser feliz, manter a boa forma, tendo sempre
como referência de desempenho o padrão jovem. Isto é o que mais importa. Vale a
performance externa, e cada vez mais corremos o risco de nos tornar escravos desses
valores sociais. Nossa sociedade atual tem sido denominada a Sociedade do Espetá-

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culo (Debord, 1997), isto é, das aparências, da deificação do efêmero, do presente.
Um querido professor de Filosofia e colaborador neste livro, Tiago Lara, falando
sobre temporalidade e travessia, afirma que nos cabe conciliar o sabor do tempo que
flui com o sabor do eterno. Isto nos lembra Guimarães Rosa, que por meio de
Riobaldo diz: “Ah! Tem uma repetição que sempre, outras vezes, em minha vida
acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era
entretido com a idéia dos lugares de saída e de entrada”. Portanto, cabe-nos a inserção
na consciência da passagem do tempo, da travessia, e saborear cada etapa ou estação
da vida, pois todas elas têm suas riquezas e suas privações. Talvez o maior perigo
seja nos iludirmos com as máscaras de juventude e negarmos a beleza de sermos
eternos aprendizes do viver, como canta Gonzaguinha: “viver e cantar e cantar a
alegria de ser um eterno aprendiz...”, aprendiz do desejo de viver o mais plenamente
possível, independentemente da idade.
Numa sociedade em que, a cada ano, à medida que aniversariamos, começamos a
esconder a idade, passamos a ter vergonha dela. Como é comum ouvirmos: “Parei
nos 40, 50...”. Enquanto continuarmos a fazer isso, estaremos perpetuando o
preconceito contra a velhice e fazendo a apologia da juventude. Cada vez mais, se faz
necessário assumir a realidade da passagem dos anos com seus prós e contras. Qual o
glamour da segunda metade da vida? O que significa metanóia?
Nos tempos atuais, cada vez mais estamos nos distanciando das dinâmicas do SER
para o TER, e indo além, estamos caminhando para o PARECER TER. Lembrando
Platão, podemos dizer que estamos deixando de nos conectar com o Mundo das
Idéias, com a subjetividade e a consciência de si mesmo, e nos articulando
predominantemente com a realidade dos Simulacros. Nossa sociedade individualista,
consumista e materialista, vive sob o domínio da mídia, que nos impõe modelos.
Estamos, segundo a visão de Jung, massificados e alienados, nos distanciando de
nossas raízes, de nossa alma. Quando em contato com ela – nossa alma –, somos
levados a ter consciência do tempo, pois nele tecemos nossa história, nos
construímos. Na consciência do fluir de nossa temporalidade, temos a possibilidade
de questionar o viver, suas verdades e mentiras, e esta possibilidade se acerca de nós
de modo mais evidente após a meia-idade. Passamos a buscar o sentido da vida. A
idade em si é o que menos importa, pois, afinal, somos uma plural-idade. Porém, o
que realmente importa é o questionamento do que fazemos de nossa vida. O que
realmente vale a pena? Aos questionamentos dessa fase Jung denominou metanóia.
Metanoein significa mudar a maneira de pensar, sair para outro nível de
consciência ou de atitude mental. Jung anunciou a necessidade de mudanças, de
expansão da consciência ao longo da vida, sempre ligada às demandas externas tanto
quanto às internas e do inconsciente. A esta realidade transformacional, de encontro
com a própria potencialidade intrínseca, chamou de Processo de Individuação.
Como fica nossa auto-imagem? Como saímos da identificação com os valores da
massa impostos pela mídia e ganhamos espaço para nossa singularidade ou nossa
individuação, como propôs Jung?
Jung foi um dos pensadores da atualidade que, de fato, estudou e deu valor à
segunda metade da vida; assim, reunimos um grupo de psicólogos e professores de
filosofia com a leitura junguiana pra refletir acerca deste processo vital. Visando

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enriquecer nossas reflexões, fizemos a articulação do pensamento de C. G. Jung com
alguns filósofos: Platão, Heidegger, Schopenhauer, Nietzsche, Hegel, Kierkegaard,
Benjamin e com o pensamento quântico.
Torcemos para que estas reflexões possam ajudar a compreender as belezas e as
luzes, tanto quanto as trevas e o sofrimento da travessia – vida após a meia-idade.
Viver e ser feliz não é só valorizar a alegria e o prazer, mas também aprender e
refletir sobre as perdas, o fracasso e o sofrimento. Jung diz que precisamos forjar um
Eu que suporte a verdade, que seja forte para aceitar a realidade do vivido: perdas,
nãos, críticas, erros, decepções... que são inerentes à vida. Poeticamente, nos dando
setas de orientação na caminhada, na velhice, Cora Coralina nos presenteou com um
de seus belos poemas:

A PROCURA
ANDEI PELOS CAMINHOS DA VIDA,
CAMINHEI PELAS RUAS DO DESTINO
PROCURANDO O MEU SIGNO.
BATI NA PORTA DA FORTUNA
MANDOU DIZER QUE NÃO ESTAVA.
BATI NA PORTA DA FAMA
ELA NÃO QUIS ME RECEBER.
PROCUREI A MORADA DA FELICIDADE
A VIZINHA DA FRENTE ME AVISOU
QUE ELA SE MUDOU SEM O NOVO ENDEREÇO.
PROCUREI A MORADA DA FORTALEZA
ELA ME FEZ ENTRAR: DEU-ME VESTE NOVA,
PERFUMOU-ME OS CABELOS,
FEZ-ME BEBER DE SEU VINHO.
ACERTEI O MEU CAMINHO.

Rio de Janeiro,10 de janeiro de 2007.


Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (org.)

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O envelhecer e o tempo: um olhar filosófico
Estrella Bohadana*

QUANDO ALGUÉM DIZ QUE SABE ALGUMA COISA,


FICO PERPLEXA:
OU ESTARÁ ENGANADO, OU É UM FARSANTE,
OU SOMENTE EU IGNORO E ME
IGNORO DESTA MANEIRA?
E OS HOMENS COMBATEM PELO QUE
JULGAM SABER.
E EU, QUE ESTUDO TANTO
INCLINO A CABEÇA SEM ILUSÕES,
E A MINHA IGNORÂNCIA ENCHE-ME
DE LÁGRIMAS AS MÃOS.1
Cecília Meireles,
Não sei distinguir no céu as várias constelações, 1960.

Pensar talvez seja o maior desafio no alvorecer do terceiro milênio. Alvorecer que
traz o seu próprio entardecer, que anuncia este “novo” Tempo. Tempo de excesso.
Excesso de informação, de imagem, de movimento. Mas também excesso de
petrificação, de mumificação, de padronização intercambiável, de imobilismo. Tempo
de paradoxos, em que jamais se produziu tanta informação e tão pouco
conhecimento; tempo em que o conhecimento consagra-se matéria-prima da trama
das decisões e do poder, enquanto o ato de educar é posto em xeque e não raro
tornado obsoleto.
Os novos horizontes abertos parecem conduzir a um sem-fim, desenhando o século
XXI como um mundo de sólida forma, mas de pérfida opacidade, de onde surgirão as
ressignificações e o nascimento de civilizações.
Neste novo cenário, emergem interrogações básicas do homem sobre si mesmo,
sobre seu estar no mundo e na sociedade. Valores existenciais são afetados e
questionados. O saber é posto à prova assim como sua impossibilidade de controlar o
todo do conhecimento. Discriminações antes feitas entre o objeto e sua imagem
correspondente desaparecem. O tempo extensivo, garantia de um tempo infinitamente
grande, se desvanece, enquanto o tempo intensivo, acentuando o infinitamente
pequeno, encarrega-se de dissimular o futuro, abrindo possibilidades de um tempo
real. Tempo instantâneo, interativo, concomitante, do qual reverbera a presença real
do acontecimento que, à espreita, aguarda o insólito, o abrupto. Nesse tempo de
simultaneidade, a surpresa – o acidente – sobrepuja o suspense: aquilo que preserva a

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substância durável da mensagem (VIRILIO, 1994).
São épocas como estas, nas quais dúvidas e incertezas se aprofundam, que Hannah
Arendt situa como propícias a falar-se de crise (1972). No entanto, no seu sentido
mais originário, crise quer dizer movimento, mudança, e não necessariamente
desastre. Um movimento de crise é de (de)cisão do padrão ou do arranjo sistemático
(arcabouço) das partes repetidas ou correspondentes que constituem o cenário de uma
época. Trata-se, enfim, de um “momento” crucial ou ponto de inflexão, de
transformações inesperadas e repentinas, no curso dos eventos, que rompem com o
estabelecido, com o paradigma. Articular crise e desastre é retirar da crise o que nela
há de criativo, revelando um gosto pela fixidez, pela permanência. Vivemos hoje
numa realidade que, à tradicional fixidez, contrapõe todas as “surpresas” da
circulação e do movimento.
É, portanto, do interior do movimento que ocorre a oportunidade de se retornar ao
cerne de algumas interrogações. As respostas não devem visar necessariamente ao
que se apresenta como novo. O que faz de qualquer resposta algo criativo é o fato de
ela nos conduzir a um novo pensar.
As possibilidades tecnológicas trazidas pelo universo digital favorecem o
prolongamento da juventude, criando a ilusão de que é possível evitar o
envelhecimento – e, por conseguinte, a morte. E, ainda que pareça uma questão
própria do terceiro milênio, esse é um desejo atávico, já presente em alguns mitos, em
que a busca pela eternização vincula-se à busca pela eterna juventude, como na
história do herói babilônico Gilgamesh.
Gilgamesh, fitando o cadáver do amigo Enkidu, interroga: “Também eu terei, um
dia, de me deitar como ele, para não mais levantar?”. Ciente de que dificilmente
escaparia do mesmo fim, Gilgamesh vai ao encontro de Ut-Napishtim para pedir-lhe
ajuda. Único sobrevivente do dilúvio, e a quem os deuses concederam a imortalidade,
o sábio Ut-Napishtim habitava a “foz dos rios”. Apesar do caminho longo e cheio de
obstáculos, Gilgamesh não mede esforços e enfrenta as águas da morte que rodeavam
a ilha em que morava o sábio. Diante deste, Gilgamesh é submetido às mais diversas
provas e, tendo fracassado, o sábio não lhe concede a vida eterna. Mas, atendendo às
súplicas da esposa, Ut-Napishtim revela a Gilgamesh a existência de uma planta
“cheia de espinhos” que, localizada no fundo do oceano, embora não lhe fornecesse a
vida eterna, prolongar-lhe-ia a juventude por um tempo indeterminado. Gilgamesh
aceita o desafio e parte, feliz, finalmente retornando com a planta. Durante o percurso
de volta, Gilgamesh pára em uma fonte. Atraída pelo odor da planta que ele deixara
ao lado, uma serpente – adversária da imortalidade, sempre à espreita do homem que
almeja sair de sua condição de humano – aproxima-se e a devora, tornando-se ela
própria viva e jovem para sempre.
Seja “escondida” em meio ao Éden, como no caso do mito hebreu, seja no fundo
do oceano, como aquela tão procurada pelo herói babilônico, a Árvore da Vida
revela, em suas diferentes formas, o atávico anseio do homem por uma existência
plena, na qual nada jamais lhe venha a faltar – principalmente a própria Vida.
Em face dessa busca que, de diferentes formas, tem permeado a existência humana,
é bem-vindo o exercício de contrapor visões de mundo que tentam negar a
perspectiva ontológica contida no tempo cronológico. É desde o interior dessa

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perspectiva que consideramos importante compreender a noção de envelhecer. O
envelhecimento como próprio de quem vive as vicissitudes do humano. Humano,
exposto à linearidade intrínseca à cronologia e ao movimento incontido nela presente.
É neste sentido que lançamos um olhar filosófico sobre as diversas noções de tempo
que desde a aurora do Ocidente marcam nossas experiências.
Numa breve apreensão da história da Grécia Antiga, verificamos que os
acontecimentos concernentes ao apogeu do império micênico foram conservados
durante vários séculos, embora tenham sofrido modificações em seus conteúdos
graças a acréscimos resultantes do folclore popular, fundando a poesia épica grega.
Tais acontecimentos foram recitados pelos aedos – cantores que iam de cidade em
cidade narrando os feitos dos heróis, acompanhados pela musicalidade emanada da
cítara. Esses cantos criaram a história dos aqueus desse período e nos deixaram como
legado três tipos de personagens que se caracterizavam pela relação temporal que
estabeleciam. Assim, encontramos nas narrativas épicas o aedo, o profeta e o velho.
O aedo conhece os conteúdos passados, o profeta conhece o por-vir, enquanto o
velho conhece o passado, o presente e sabe avaliar o por-vir; dos três, é o único que
traduz o percurso propriamente humano.
Cabe ressaltar que, na própria poesia épica, como no caso da Ilíada, a morte é vista
como um acontecimento “nefasto”. Já no primeiro canto, Aquiles ressalta sua
condição de mortal, dizendo: “Mãe, que me dotaste de uma vida tão curta, não devia
o Olimpo cumular-me de honras?” (HOMERO, 2002. Canto 1: 352-4). A mãe, Tétis,
reconhecendo essa “triste” condição do filho, em tom lamentoso diz: “Ai de mim! Te
criei nutrido de infortúnios: Sem lágrimas, sem dor, assim eu te quisera sentado junto
às naves, pois te espreita a Moira, tens vida breve” (HOMERO, 2002. Canto 1: 414-
17). Passagens desse tipo nos mostram a importância da questão da imortalidade na
épica homérica.
Se por um lado a guerra mata, por outro a poesia revive. Portanto, o aedo canta o
que supostamente teria passado e que, ao ser lembrado, é assim perenizado. Neste
caso, o aedo, mais do que sabedor de um conteúdo ou dotado de uma memória eficaz
que armazena informações, é o pretexto de um ritual que, tendo em si o motivo, não o
encerra. Ao longo de suas narrativas, o aedo, trazendo para o presente algo que
pertencia ao passado, leva seus ouvintes a reviver um mundo de acontecimentos
antigos que, ao ser revivido, funda um novo estar no tempo. Tempo que dissolve as
noções de passado, presente e futuro, instaurando o que estamos chamando de tempo
do acontecer.
Tempo desobediente a qualquer cronologia, funda a noção de tempo kairótico.
Assim, o aedo esquece que o passado é passado, e por isso pode torná-lo presente;
não há, então, retorno ao passado, é o passado que se torna presente. Nessa junção,
passado e presente se fundem e, lançando-se para o por-vir, constroem-se num único
tempo: o tempo do acontecer; tempo que é pura duração. Fora da linearidade
cronológica, o tempo dá-se na experiência kairótica, tempo sinuoso que arrebata os
aconteceres, assim como faz o deus Crono, que, ao lhe nascerem os filhos,
incontinente, os devora. No eclodir do acontecer, já lá está, impaciente, a sua
dissolução: a ação é tudo. Instauradora do acontecer, a ação não é desdobrável em
causa e efeito. Aquém e além dela nada há.

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O profeta – o adivinho – é aquele que tem a capacidade especial de interpretar os
ambíguos sinais que os deuses enviam aos homens, na forma de sinais atmosféricos,
de vôo das aves, aspecto das entranhas de animais, entre outros, predizendo o futuro.
Já no primeiro Canto da Ilíada, diante da terrível peste enviada por Zeus e que
dizimava o exército grego, Aquiles solicita que se reúna a assembléia a fim de saber
do adivinho Calcas como proceder. Ou, ainda, no Canto VI da mesma Ilíada, quando
o herói troiano Heitor segue as orientações de seu irmão, o adivinho Heleno, que
ordena preces públicas à deusa Atená para aplacá-la. Nas duas situações, o adivinho é
chamado para fazer a mediação entre a fúria de deuses e mortais (HOMERO, 2002).
O adivinho vive, assim, nas bordas do divino e do humano. Nos dois cantos
mencionados, o adivinho faz a decifração das imagens divinas. Vincula essas
imagens, simultaneamente, às ações dos deuses e dos homens, pois está imerso em
duas temporalidades: a kairótica e a cronológica.
Diferente do adivinho, o velho participa, na épica grega, do tempo cronológico,
tempo dos mortais. No Canto IX da Ilíada, o velho Nestor é consultado quando
Agamêmnon, rei de Micenas, reúne os chefes aqueus para lhes propor o levantamento
do cerco. Nesse momento, Nestor, após avaliar a situação, julga fundamental, antes,
aplacar a ira de Aquiles. O rei concorda. E logo uma embaixada, formada por Fênix,
Ájax e Ulisses, dirige-se à tenda de Aquiles e, sem êxito, busca aplacar a ira do herói
(HOMERO, 2002).
De maneira similar, no Canto III da Odisséia, o velho Nestor também é
mencionado como alguém que é consultado, no momento em que Telêmaco chega a
Pilos, buscando notícias do seu pai, Odisseu. É Nestor quem conta o trágico fim de
Agamêmnon e aconselha a ida do jovem Telêmaco a Esparta (HOMÈRE, 1999).
Nas duas situações, Nestor é apresentado como aquele que sabe analisar as
situações próprias da guerra. É aquele que tem serenidade capaz de direcionar as
ações dos heróis. Ao averiguar o passado, o velho analisa o presente a fim de que as
situações do futuro possam ocorrer de forma satisfatória. Na épica, o velho é
respeitado pelos heróis. A título de ilustração, o dizer de Cícero talvez possa nos
ajudar a compreender a função do velho na épica grega: “Viver na ignorância do que
aconteceu antes de nascermos é ficar para sempre na infância. Pois qual é o valor da
vida humana se não a relacionarmos com os eventos do passado que a história
guardou para nós?” (CÍCERO, s/d).
Diferente do tempo kairótico, que se volta para o tempo mítico – a duração –, o
tempo cronológico é um tempo mensurável, que se nutre de acontecimentos tornados
fixos. Assim, espera-se que o velho tenha a habilidade de relacionar os
acontecimentos passados com o presente, a fim de poder balizar a ação futura.
A partir de Platão, no entanto, dois novos termos são introduzidos para designar a
noção de tempo: aion e chronos. O primeiro significa em grego “época da vida”,
“tempo da vida”, “duração da vida”. De forma geral, o termo se prestava para
designar vida ou destino de uma existência individual. O termo chronos designava
“duração do tempo”; tempo, portanto, em todo o seu conjunto, inclusive “tempo
infinito”.
Segundo Ferrater Mora (1982), aion e chronos significavam, respectivamente,
“uma época ou parte do tempo e o tempo em geral. No entanto, o vocábulo aion

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passou logo a ser usado para designar eternidade, de tal forma que chegou um
momento em que o significado de aion passou a ser mais amplo do que o de
chronos”. Ao analisar os motivos dessa mudança, Mora, citando A. J. Festugière,
lembra que, já no século V a.C., produz-se entre alguns gregos trágicos uma extensão
do conceito de aion, que deixa de significar “período da vida” para designar
um tempo que abrange desde o “início até o final da vida”. Concebida a vida num
sentido amplo, o termo aion passou a indicar “vida sem fim”, então, “eternidade”.
Sob essa perspectiva, encontramos a noção de arquétipo tal qual a formulou Jung,
cuja expressão ocorre por meio de símbolos variados, e não por meio de um símbolo
único e, por isso, fixo. Em seu Aion – Estudos sobre o simbolismo do si mesmo
(1988), Jung ressalta que “a este nível do mito, que é provavelmente o que melhor
expressa a natureza do inconsciente coletivo, a mãe é, simultaneamente, velha e
jovem, Deméter e Perséfone, e o filho é, ao mesmo tempo, esposo e criança
adormecida”.
Neste sentido, compreende-se o porquê de Platão usar para o termo “eternidade” o
vocábulo aion. Em o Timeu (37d, 1979), Platão define o tempo (chronos) como sendo
“a imagem móvel da ‘eternidade’ – aion. Neste caso, aion passa a ser entendido como
‘totalidade do tempo, modelo do tempo’”.
A associação entre velhice e finitude confronta o homem com sua condição
ontológica: a de ser mortal e de ser o seu viver não só um constante processo de
envelhecer, mas também um percurso para a morte. Portanto, o tempo não envelhece,
quem envelhece é o homem. Como lembra Cícero: “Curto na verdade é o tempo da
nossa vida, mas é bastante longo para se viver bem e honradamente” (CÍCERO, s/d).
O envelhecer, visto como um processo inevitável, é afirmado e tornado algo
positivo por Platão. A crença de que a velhice confere ao ser humano melhores
condições de lidar com o poder talvez explique por que o filósofo, em sua proposta
para a Pólis ideal, criou um programa de educação no qual somente após os 50 anos o
homem seria capaz de exercer a dialética. Pessoas mais velhas estariam mais aptas a
realizar tal “estudo” por serem mais comedidas, podendo honrar suas atividades. Esta
serenidade seria fundamental para o aprendizado da “dialética”, o qual só ocorreria
por meio de “continuidade e aplicação”. Os mais dedicados poderiam contemplar a
verdade do ser e das idéias (o que é belo, por exemplo), obtendo as condições para
desempenhar adequadamente suas funções governamentais. De posse desse saber,
deveriam retornar à “caverna”, para que pudessem “exercer os comandos militares”,
alternando “a vida social com o exercício da contemplação”. Vale mencionar que o
ideal de educação, nesse quadro, é comum para os dois sexos. As mulheres e os
homens poderiam igualmente ter acesso aos cargos públicos, ambos devendo prestar
o serviço militar segundo tempos diferenciados: para as primeiras, até os 50 anos,
para os segundos, dos 20 aos 60 anos (PLATON, 1979).
Para Platão, a autoridade está ligada, assim, à construção, e não à prepotência, ao
obstáculo, à repressão e ao despotismo que caracterizam o autoritarismo. A
autoridade é um elemento estruturante de crescimento, operador de desenvolvimento,
enquanto o autoritarismo é o uso indiscriminado do poder, diametralmente oposto à
verdadeira educação que transforma e forma cidadãos livres.
É interessante ressaltar a diferença apresentada por Arendt entre os conceitos de

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autoridade e de autoritarismo que, trazidos da esfera política para a educação, são,
muitas vezes, mal assimilados e motivo de confusão e perplexidade para muitos
educadores. Remontando à origem latina de autoridade, auctoritas, derivada do verbo
augere, aumentar, significa aquilo que a autoridade ou os de posse dela,
constantemente, fazem de todas as coisas futuras. Quem detinha a autoridade eram os
anciãos, o Senado Romano e os patres, que a obtinham por descendência e
transmissão de seus antepassados. Em contraposição à força ou ao poder, a
característica mais proeminente dos que detêm autoridade é não possuir poder:
“Enquanto o poder reside no povo, a autoridade repousa no Senado”, mostra Arendt
citando Cícero (1972: 164). Assim era que a idade provecta, distinta da simples
maturidade, continha para os romanos “o próprio clímax da vida humana, não tanto
pela sabedoria e experiência acumuladas, como porque o homem velho crescera mais
próximo aos antepassados e ao passado” (1972: 166). Se, para o mundo moderno, o
crescimento é dirigido para o futuro, para os romanos, o crescimento se dava no
sentido do passado, santificado através da tradição, a qual leva de uma geração a
outra “o testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a
sagrada fundação e, depois, a engrandeceram por sua autoridade no transcurso dos
séculos” (p. 166).
Apesar desse olhar que os romanos lançam sobre o velho, parece que o Ocidente se
ocidentalizou na perspectiva da modernidade, lançando e dirigindo seu olhar para o
futuro. Olhar que, traduzindo as diversas lógicas explicativas, construiu uma história
que passou a dizer o Ocidente. Nela, o pensamento mergulhou na ilusão de que
somente o explicável existe, ficando o inexplicável encarcerado no lugar do
irracional. Ofuscado pela clareza dos signos, o homem ocidental, arauto do
raciocínio, chega mesmo a acreditar que o viver ocorre obediente à ordenação que lhe
é conferida. Transbordando cada vez mais em humanidade e reivindicando um
sentido para a vida, o homem ocidental impõe-se a si mesmo a tarefa de conhecer,
momento que se revela mais dedicado às empreitadas do raciocínio do que às do
pensamento, ambicionando conhecer o conjunto dos objetos – conhecidos e
desconhecidos.
Em face da existência, que, como nos lembra o já esquecido Lucrécio, é composta
deste mundo do qual se pode ter uma percepção parcial – haec summa – e de vários
outros mundos dos quais não se pode ter praticamente nenhuma percepção – summa
rerum –, o raciocínio vagueia, buscando um conhecimento que explique o viver
(LUCRÉCIO, s/d).
A constante construção de sentido, contexto e palavra, verdadeira modelagem e
remodelagem do mundo das significações, talvez justifique a conhecida profecia de
Nietzsche, segundo a qual “não se pode demonstrar nem o sentido metafísico, nem o
sentido ético, mas somente o sentido estético [sensação] da existência”
(NIETZSCHE, 1984). Com esta sentença, Nietzsche, dispensando qualquer pergunta
sobre o sentido do acontecer da existência, revela o acontecer como sendo o próprio
sentido. Entretecidos, acontecer e existência confundem-se. Indissociável do
acontecer, o sentido nele se faz. Sem nada dizer, deslizando sem território ou
localidade, o sentido brota, efêmero, das rugas do próprio acontecer. São rugas do
tempo, de onde nasce a condição do envelhecimento, do sentir-se envelhecer, e da

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consciência da morte.
Vendo na arte uma afirmação da vida, Nietzsche propõe “uma nova imagem do
pensamento”, em que o conceito de verdade, até então um “universal abstrato”,
vincula-se às noções de sentido e valor (NIETZSCHE, 1984). Percebida como “a
efetuação de um sentido ou a realização de um valor”, a verdade torna-se uma busca,
na qual o pensado, ao encontrar uma força correspondente no pensamento, apropria-
se também de toda força fora do pensamento. Somente através da avaliação das
forças e do poder que conduzem o pensamento a pensar é que a verdade de um
pensamento seria encontrada, nunca enquanto elemento intrínseco ao próprio
pensamento. Ironizando o entendimento dos filósofos quanto à verdade, Nietzsche
proclama: “A arte foi-nos dada para nos impedir de morrer de verdade”
(NIETZSCHE, s/d). Como arte, o pensamento abandona o “cogito”, e a vida deixa de
se mostrar uma reação, enquanto a ação do pensar torna-se a expressão do amálgama
entre o pensamento e a vida. Assim, “a vida faz do pensamento uma coisa ativa” e o
“pensamento faz da vida qualquer coisa de afirmativo” (NIETZSCHE, 1984). A
verdade de um pensamento deve ser, então, avaliada a partir das forças ou do poder
que se apropriam do pensamento, momento no qual se efetua o sentido estético da
existência.
Talvez a apreensão desse sentido estético da existência possa ser comparável ao
venerável conto oriental que, exilado há muito para as sombras do esquecimento, fala
de um rei que, tendo sido coroado muito jovem, resolve, para tornar-se erudito,
convocar sábios do mundo inteiro a fim de lhe ensinarem a verdade sobre o homem.
Os sábios trabalharam por vinte anos e trouxeram 500 volumes contendo a “verdade”,
para que o rei conhecesse. Mas, como o rei já estava com 40 anos, solicitou-lhes que
reduzissem o número de volumes. Mais vinte anos se passaram e os sábios
retornaram com 100 volumes. Mas a essa altura o rei já estava com 60 anos e pediu
nova redução. Mais dez anos se passaram e os sábios voltaram com cinco volumes.
Mas agora o rei já tem 70 anos, está quase cego, e solicita a redução da obra para um
único volume. Após cinco anos os sábios finalmente trazem ao rei um único pequeno
livro, mas o encontram agonizante. Ao avistar os sábios, ele diz: “Morrerei sem
conhecer a verdade do homem!”. Aproxima-se o mais velho dos sábios e diz: “Em
três palavras eu vos contarei a verdade do homem, Majestade: o homem nasce, anseia
e morre”. E o rei, feliz, morre.
Diante desse pequeno conto, constatamos que a consciência de que o envelhecer é
um inevitável percurso de todo ser humano e pode nos consagrar uma espécie de
viajantes do tempo. Viajante cuja única companhia é o tempo. Viajante cujas viagens
serão sempre solitárias. Que, livre do passado e do futuro, afirma o presente. Viajante
privado de esperança e nostalgia, e assim livres da frustração do ideal não alcançado,
do paraíso não reconquistado. Viajante que vive o que é e não o que era ou o que
será.
Envelhecer na vitalidade própria da vida é viver livre das amarras do passado e do
futuro, mas sem negar as forças que invadem a memória. Nessa liberdade de ação,
vive-se tão intensamente as experiências do presente, que elas jamais se tornarão
passado. E o futuro? Este existirá com tal grau de flexibilidade que nos colocará
abertos o suficiente para redimensionar o mais grandioso dos projetos. Quando

14
inscrito na ordem do possível, nosso futuro jamais se sobreporá ao presente. O futuro
não será a marca projetada do presente adiado, mas o tempo do tempo. Tempo que se
faz simultâneo, um: passado, presente e futuro. Nessa fusão temporal, somos o que
vivemos e, por isso, nada somos. Afirmamos o que a nós não é dado eludir: termos
sido lançados na vida de modo idêntico a como dela seremos retirado. Submetidos às
forças que nos ultrapassam, apostamos na vivacidade da vida, só encontrável no vigor
do eterno presente. Neste presente, podemos rir do que nos é apresentado. Rir o riso
da criança, do poeta e do dançarino. Riso que acompanha a simplicidade e a grandeza
do viver. Riso do brincar, riso que, guardando a inocência e a sabedoria, desfruta do
brilho e do terror da vida. Riso que esconde a sabedoria que secretamente sabe que a
vida nos ultrapassa. Riso que faz enternecer um conjunto de valores, toda vez que
com eles depara. Riso que nada valora, pois o que é valorar, senão julgar as forças da
vida? Seria a vida julgável? E nós, seríamos nós os melhores juízes?

Bibliografia

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.


BRANDÃO, Junito. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1986.
BOHADANA, Estrella. Sobre deuses e poetas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
CÍCERO, Marco Túlio. Oração. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
DREIFUSS, René Armand. A época das perplexidades. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
JUNG. Aion - Estudos sobre o simbolismo do si mesmo. Petrópolis: Vozes, 1988.
_____. Simbolismo da transformação. Petrópolis: Vozes, 1989.
LEITE, Marques e JORDÃO, Novaes. Dicionário latino vernáculo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lux Ltda., 1956.
LUCRÉCIO. Da natureza. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
HOMERO, Ilíada. 3ª ed. São Paulo: Arx, 2002. Tradução de Haroldo de Campos. Edição bilíngüe.

HOMÈRE. Odyssée; texte traduit e établi par Victor Bérard, notes de Silvia Milanezi. Édition bilingue.
Paris: Les Belles Lettres, 1999 (3 vols.).
MORA, Ferrater. Diccionario de Filosofia. 4ª ed., Madri: Alianza editorial, 1982, vol. IV, p. 3240.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
NASCENTES, Antenor. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras/Departamento de Imprensa Nacional, Brasil, 1961.
NIETZSCHE, Friedrich. A Vontade de potência. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d
_____. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Hemus, 1984.
_____. Para além do bem e do mal. Lisboa: Irmãos Guimarães, 1987.
PLATON. Obras completas. Madri: Aguilar, 1979.
VIRILIO, Paul. A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1994.

1. Agradeço ao meu filho Henrique Bursztyn que, quando tinha apenas 23 anos, apresentou-me este poema.

* Doutora em História dos Sistemas de Pensamento pela ECO – UFRJ. Professora de Filosofia do Mestrado de Educação e Cultura
Contemporânea, e da graduação da Faculdade de Psicologia da Universidade Estácio de Sá. Publicações: Ver a Vida, Ver a Morte: da

15
filosofia e da linguagem. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1987. Mito-imagem: o corpo e a palavra. Rio de Janeiro: Ed. Tempo
Brasileiro, 1989. Sobre Deuses e Poetas. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 1991

16
2
Saber chegar, saber passar, saber partir
Roberto Crema*

É interessante imaginar um ser humano de remotas épocas visitando a nossa


civilização ocidental contemporânea: um antigo egípcio, um chinês da época de Lao-
Tsé, um hindu de alguns séculos antes de Cristo, um grego da Antigüidade Clássica,
um asteca ou maia ou nativo americano de séculos atrás. Qual não seria a sua
surpresa diante de nosso espetacular avanço científico e tecnológico? Como resistiria
a um gesto de maravilhamento diante de um computador, de um arranha-céu, de
veículos maravilhosos e velozes deslizando em pistas, singrando mares e
atravessando nuvens no espaço?
Passada a vertigem desta comoção diante do espetacular progresso material e
exterior, prosseguindo em sua atenta observação, qual não seria a desilusão de nosso
visitante do longínquo passado, ao constatar a nossa inépcia e incompetência quase
total no comando e na movimentação do mundo interior, dos pensamentos,
sentimentos, desejos e imaginação? Como resistiria a expressar um gesto de pura
decepção diante do analfabetismo psíquico e consciencial, da estupidez no mundo
relacional com suas guerras infindáveis e a barbaridade atitudinal diante dos fatos
básicos da existência, como o nascer, o existir, o coexistir e o morrer? Em grande
medida, esta deplorável miséria psíquica, consciencial e ética se deve ao que
denominamos de normose, uma patologia da normalidade (1), caracterizada pela
adaptação a um sistema dominantemente doente e corrompido e a um estado de
estagnação evolutiva.
Eis a grande contradição implícita na megacrise sem precedentes que
testemunhamos: todo o poderio racional e técnico que desenvolvemos encontra-se nas
mãos, dominantemente, de seres desprovidos de qualidade subjetiva, padecendo de
anemia da alma e da consciência. Neste contexto, vale escutar a mensagem de
sabedoria dos antigos chineses que afirma que um instrumento justo, nas mãos de
uma pessoa não justa, terá conseqüências não justas... A emergente visão holística
(2) e abordagem transdisciplinar da realidade (3, 4) são respostas da inteligência
humana, visando transcender esta ruptura dissociativa entre a razão e o coração, a
efetividade e a afetividade, a sensação e a intuição, o masculino e o feminino,
geradora de um desequilíbrio, que pode ser fatal para a humanidade. Nesta visão
emergente, é preservado o positivo das conquistas analíticas e do progresso exterior,
do ter, do poder e do parecer, ao mesmo tempo em que é feita uma premente
convocação para o investimento maciço no mundo da subjetividade, da convivência e
dos valores, no terreno da consciência e nos domínios do Ser.

17
Tudo indica que a humanidade encontra-se no limiar de um despertar para uma
nova idade da consciência (5). Recentemente, comemoramos os cinco séculos das
descobertas marítimas, que descortinaram o Novo Mundo. A partir do início do
Século XIX, chegamos aos confins dos átomos e nos aventuramos, nas últimas
décadas, pelo espaço sideral e também pelo virtual, o ciberespaço, de um mundo em
processo frenético de globalização. A grande questão é: quando iniciaremos a viagem
de autodescoberta, com a investigação do cosmo interior e com o processo de
globalização dos múltiplos mares, continentes e universos da alma humana? Neste
tempo, onde um processo de metanóia coletiva encontra-se em curso, o investimento
no fator humano, da subjetividade, intersubjetividade, dimensão onírica e noética, é o
grande imperativo, no marco de uma estratégia de auto-sustentabilidade e de
reencantamento do mundo. É tempo premente de cuidar, de cuidar-se.
Bem sabemos, como nos recordava Buda, que o oposto da morte é o nascimento,
pois a Vida é eterna. Assim, o processo existencial evolutivo transcorre no reino das
polaridades, através de estações definidas, cada uma solicitando a atualização de
valores que lhe são próprios (6). Sempre implica esta tarefa de morrer para uma etapa
a fim de renascer para a seguinte. A primavera é a estação das flores, do brincar e do
desenvolvimento psicossomático, onde necessitamos inclinar o coração para
aprender, sobretudo, quem somos, de onde viemos e para onde vamos. O verão é a
estação da maturidade, onde urge cultivar os valores da cidadania e da vocação, para
que possamos nos enraizar, de forma criativa e proativa, contribuindo para a
sociedade a que pertencemos. O outono, às vezes denominado de meia-idade, é a
estação dos frutos, onde o mais fundamental é transmutar os valores do ter e poder
para os do ser e transparecer. Finalmente, o inverno é a estação da partida, do silêncio
e da prece, quando nos preparamos para o retorno ao Lar, de onde jamais partimos...
Nessa visão, processual e de individuação, juventude nada tem que ver com a idade
cronológica. É um estado de consciência jovial, de alguém que conquistou uma
dimensão de Sujeito e se capacitou para a tarefa fundamental de amar e de servir, já
que só nos pertence o que ofertamos. Enfim, estamos aqui de passagem e o único
passaporte que levamos é o das nossas ofertas, das nossas doações.
Como afirmavam os antigos Terapeutas de Alexandria e, posteriormente, o criador
da terapia iniciática, Graf-Durckheim, segundo Jean-Yves Leloup (7), a trilha
evolutiva nos apresenta sete portais, referindo-se a sete etapas de um itinerário de
realização, a saber: 1. experiência do numinoso; 2. a metanóia; 3. as consolações; 4. a
dúvida; 5. o esvaziamento; 6. a transformação; 7. o retorno à vida cotidiana.
A experiência do numinoso significa a irrupção do sagrado em nossas existências,
esta vivência que constela luz e sombra, fascinação e terror, que nos coloca de pé para
uma travessia que nos conduzirá, da margem da ignorância existencial para a da
iluminação. Ocorre, então, a metanóia, ir além de nous, onde o Mistério habita (8).
Trata-se de um processo de retorno ao nosso eixo essencial, que alguns denominam
de conversão. A etapa seguinte, das consolações, constela sincronicidades e encontros
inesperados, como se o próprio Mistério estivesse conspirando pelo caminhante,
estimulando-o a seguir adiante, no caminho com coração. Desponta, então, o portal
da dúvida, que João da Cruz indicava como a noite escura da alma, quando somos
acossados pelo que Graf-Durckheim denominava de inimigo, Satã, segundo a

18
tradição hebraica, que tem a função de nos tentar e testar. É quando o que nos
impulsiona precisa ser a força da fidelidade. Se insistirmos, apesar de tudo, haverá a
passagem pelo vazio, um processo de desnudamento do conhecido e do passado, que
antecede a transformação. Como afirma Leonardo Boff (9), a ressurreição é a
resposta total de Deus ao esvaziamento total de Jesus!... A última etapa é o regresso
à yoga do cotidiano, esta ascese do dia-a-dia, quando tudo se torna uma ocasião de
consciência, com a suprema arte de se fazer grande as pequenas coisas. Esta é uma
descrição meramente indicativa e didática, para o desafio infindável da individuação
que, como indicava Jung (10), trata-se de um borboletear em torno do eixo do Self...
A aventura humana tem início com o assombro do nascimento e finda com o ritual
de passagem da morte, um amanhecer, de acordo com a feliz expressão de Kubler-
Ross (11), que representam as duas faces do milagre da existência. Como afirma a
tradição mística basca, todos chegamos pelo portal de prata do nascimento e
partiremos pelo portal de ouro da passagem – já que a morte não existe –, após a
travessia de muitos outros portais, que caracterizam o processo evolutivo de nossa
jornada. Lembro-me de certa ocasião em que estava sendo entrevistado, e a jornalista
indagou-me se eu tinha contato com “pacientes terminais”. Respondi, para a sua
surpresa, que eu só tenho contato com terminais! Afinal, quem não é terminal? Todos
caminhamos para o fim e este deveria ser um tema fundamental de estudo e
consideração.
Infelizmente, refletindo sobre esta alienada cultura normótica de compulsividade
racionalista e tecnicista, a reflexão sobre a finitude não é apenas desconsiderada como
também banida e reprimida. Não consta de nossos programas sociais e educacionais,
o que determina um completo despreparo para o enfrentamento desta realidade
inexorável, no que diz respeito à sua vivência individual bem como à imprescindível
tarefa de acompanhar o outro no processo de findar. Mesmo os profissionais de saúde
não são educados para lidar com este fato (12). Este disfuncional tabu com relação à
morte e ao morrer impede a atitude saudável e a conquista de qualidade e dignidade
no que deveria ser uma arte de viver o ritual de passagem, com lucidez, aconchego e
consciência.
Na tarefa da reconstrução humana, necessitamos de uma alfabetização psíquica e
consciencial, de uma imprescindível pedagogia iniciática (13), que nos possibilite o
enfrentamento criativo com os desafios inexoráveis de uma existência evolutiva. Para
poder, em algum dia, feliz e justo, cantar este poema de fé, de Rabindranath Tagore
(14):

DORAVANTE NADA MAIS TEMEREI NESTE MUNDO, E TU CONQUISTARÁS A VITÓRIA EM TODAS AS MINHAS LUTAS.
DESTE-ME A MORTE POR COMPANHEIRA, E EU VOU COROÁ-LA COM A MINHA VIDA. A TUA ESPADA ESTÁ COMIGO PARA
CORTAR AS MINHAS AMARRAS, E NADA MAIS TEMEREI NESTE MUNDO.

Citações Bibliográficas

1. Leloup, J-Y; Weil, P.; Crema, R. Normose, a patologia da normalidade. São Paulo: Verus, 2003.
2. Crema, R. Introdução à Visão Holística. São Paulo: Summus, 1989.

19
3. Weil, P.; D’Ambrosio, U.; Crema, R. Rumo à Nova Transdisciplinaridade – sistemas abertos de
conhecimento. São Paulo: Summus, 1991.
4. Nicolescu, B. O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999.
5. Crema, R. Saúde e Plenitude. São Paulo: Summus, 1995.
6. Crema, R. Antigos e Novos Terapeutas. Petrópolis: Vozes, 2002.
7. Leloup; J.-Y.; Boff, L. Terapeutas do Deserto. Petrópolis: Vozes, 1997.
8. Nicolescu, B. (org). Le Sacré aujourd’hui. Paris: Éditions du Rocher, 2003.
9. Boff, L.; Betto, Frei. Mística e Espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
10. Jung, C. G. “A dinâmica do inconsciente.” In: Obras completas,
v. 8. Petrópolis: Vozes, 1984.
11. Kubler-Ross, E. La Muerte: um amanecer. Barcelona: Ediciones Luciérnaga, 1989.
12. Leloup, J.-Y.; Hennezel, M. A Arte de Morrer. Petrópolis: Vozes, 1999.
13. Crema, R.; Washigton, A. Liderança em Tempo de Transformação. Brasília: Letrativa, 2001.
13. Tagore, R. Poesia Mística. São Paulo: Paulus, 2003.

* Coordenador do Colégio Internacional dos Terapeutas - Brasil, vice-reitor da Rede Unipaz. Publicações: - Crema, R. Introdução à
Visão Holística. São Paulo: Summus, 1989. - Crema, R.; Washigazton, A. Liderança em Tempo de Transformação. Brasília:
Letrativa, 2001.

20
3
Espelho, espelho meu...
Celso Magalhães da Cruz Lima*

“EU NÃO TINHA ESTE ROSTO DE HOJE,


ASSIM CALMO, ASSIM TRISTE, ASSIM MAGRO,
NEM ESTES OLHOS TÃO VAZIOS, NEM O LÁBIO AMARGO.

EU NÃO TINHA ESTAS MÃOS SEM FORÇA,


TÃO PARADAS E FRIAS E MORTAS;
EU NÃO TINHA ESSE CORAÇÃO QUE NEM SE MOSTRA.

EU NÃO DEI POR ESTA MUDANÇA,


TÃO SIMPLES, TÃO CERTA, TÃO FÁCIL:
- EM QUE ESPELHO FICOU PERDIDA A MINHA FACE?”

(RETRATO. CECÍLIA MEIRELES, 2001)

Quarenta e cinco anos seria uma boa idade para comemorar um aniversário, mas
ele não andava pensando exatamente assim. Fazia algum tempo que se via estranho,
meio virado pelo avesso, apático e, ao mesmo tempo, repleto de sensações e
sentimentos à sua revelia.
Tudo vinha acontecendo aos poucos, quando começou a ser tomado por
reminiscências inusitadas: lembrava-se de coisas que pareciam estar esquecidas para
sempre. Era como se houvesse algo a resgatar, ou existisse outro ou outros dentro
dele. Sentia-se um tanto à deriva, puxado de seu centro por forças autônomas e
desconhecidas. Se não tivesse praticamente esquecido os gregos antigos ou, quem
sabe, folheado vez por outra a Bíblia – São Paulo, por exemplo – e mesmo lido um
pouco de psicologia, reconheceria mais rapidamente uma crise existencial específica,
“...uma época crítica, pois representa o início da segunda metade da vida de um
homem, quando não raro ocorre uma metanóia, uma retomada de posição na vida”
(Jung, O.C., v. V: XXV).
Na aparência, continuava o mesmo. Bem... Não exatamente o mesmo. Começara a
sentir mais fortemente a passagem do tempo. O bigode que embranquecia, assim
como uns fios do cabelo, e a disposição de vida perdera em animosidade. Quase havia
recusado o convite para tomar um chope após o expediente, mas acabara sendo
levado pelo entusiasmo dos colegas da repartição. Festejaria com eles e depois
voltaria para casa. Afinal, sua família não o esperava mais em casa por causa de um

21
aniversário.
No início estavam presentes no bar os homens e as mulheres, de modo que a
conversa transcorreu fraternalmente, a despeito de uma ou outra piada maliciosa ou
comentário inadequado. Embora um tanto ausente, tentou não decepcionar, pois era
seu aniversário e sempre soubera corresponder às expectativas alheias. Atualmente,
porém, algo nele parecia se rebelar, como na adolescência. Nesta idade, havia se
sentido meio especial, como que designado. Seria uma espécie de retorno? Talvez, já
que com o passar do tempo...

A VOZ INTERIOR É SUBSTITUÍDA PELA VOZ DO GRUPO SOCIAL E DE SUAS CONVENÇÕES; EM LUGAR DA DESIGNAÇÃO
APARECEM AS NECESSIDADES DA COLETIVIDADE. A NÃO POUCOS SUCEDE QUE, MESMO ESTANDO NESSE ESTADO
SOCIAL INCONSCIENTE, SÃO CHAMADOS POR UMA VOZ INDIVIDUAL E ASSIM COMEÇAM A DISTINGUIR-SE DOS OUTROS E
A DEPARAR COM PROBLEMAS A RESPEITO DOS QUAIS OS OUTROS NADA SABEM. EM GERAL É IMPOSSÍVEL PARA ESSE
INDIVÍDUO EXPLICAR ÀS OUTRAS PESSOAS O QUE LHE ACONTECEU, POIS EXISTE COMO QUE UM MURO DE FORTÍSSIMOS
PRECONCEITOS A IMPEDIR A COMPREENSÃO (JUNG, O.C., V. XVII, § 302).

De fato parecia suceder com ele algo de tal natureza, embora não pretendesse se
isolar ou ser diferente dos demais. Simplesmente se sentia um pouco isolado e
diferente. Queria estar entre as pessoas e não se encaixava inteiramente. Tinha certeza
de que se tratava de uma vivência particular e solitária por natureza, mas,
paradoxalmente, era como portar um segredo exclusivo que também pertencia a
todos. Isto o tornava um estranho e diferente, ainda que entre os iguais. Quase podia
dizer que crescia dentro de si mesmo uma vida maior do que a dele... Sozinho e
solidário na multidão. Melhor seria pedir outro chope.
Individuação – “processo de diferenciação do indivíduo do inconsciente coletivo e
da coletividade” (Ulson, 1988: 76). Mais especificamente, “...significa tender a
tornar-se um ser realmente individual, na medida em que entendemos por
individualidade a forma de nossa unicidade, a mais íntima, nossa unicidade última e
irrevogável; trata-se da realização de seu si-mesmo, no que tem de mais pessoal e de
mais rebelde a toda comparação... O si-mesmo, no entanto, compreende infinitamente
mais do que um simples eu... A individuação não exclui o universo, ela o inclui”
(Jung, 1996: 355).
Depois de algum tempo, as mulheres foram se retirando e ficaram apenas os
homens. Inevitavelmente a conversa mudou. É verdade que continuaram a falar do
trabalho, de automóveis, de futebol e de assuntos variados, evitando, claro, suas vidas
mais íntimas e problemas pessoais. Começaram, porém, a falar das mulheres. E de
modo diferente de quando elas se achavam presentes. Ele notou a transição de modo
acentuado e incomodou-se, como se reparasse naquilo pela primeira vez. Falavam das
mulheres como quem fala de estranhos seres adversos e quase combatentes. Devia já
estar um pouco bêbado, pois, na realidade, o mundo era assim mesmo e as mulheres,
entre elas, falavam dos homens do mesmo jeito. Aliás, todo mundo fala diferente
sobre os outros que não estão presentes. Mas aquele dia...

...DEUS, LANÇANDO POR ASSIM DIZER UM OLHAR DE REPROVAÇÃO PARA “ESTES TEMPOS DE IGNORÂNCIA”
(INCONSCIÊNCIA), ENVIOU À HUMANIDADE A MENSAGEM: “PANTAS PANTACHÕN METANOIEN”, ISTO É, QUE EM TODA

22
PARTE TODOS SE ARREPENDESSEM (MUDASSEM DE PENSAR); COMO, AO QUE PARECE, O ESTADO INICIAL FORA
INTEIRAMENTE DEPLORÁVEL, O “METANOEIN” (MUDAR DE MENTE) ASSUMIU CARÁTER MORAL DE
VERBO
ARREPENDIMENTO DOS PECADOS, DE MODO QUE A VULGATA O TRADUZIU POR “POENITENTIAM AGERE” (FAZER
PENITÊNCIA). O PECADO DO QUAL SE DEVE FAZER PENITÊNCIA É EVIDENTEMENTE A “AGNOIA” OU “AGNOSIA”, A
INCONSCIÊNCIA (IGNORÂNCIA) (JUNG, O.C., V. IX/2, § 299).

E ele não pediu mais um chope. Olhou para os amigos como quem se compadece e
sentiu uma espécie de pena – deles e de si mesmo. Diabo de chope – pensou.
Levantou-se, disfarçou a emoção e, antes que surgisse o “...lobo cansado, carente de
cerveja e velhos amigos” (Teixeira, 1998), despediu-se, deixando-os sob protestos.
Estava perto de casa e decidiu caminhar para espairecer e espantar aquela paranóia
que o invadia. Teria se saído melhor se dissesse metanóia, ou seja, a já citada palavra,
também de origem grega, que significa “mudança essencial de sentimentos,
pensamento ou de caráter; transformação espiritual; arrependimento por falta
cometida; penitência. Mágoa” (Houaiss, 2001).
O tempo avançara rapidamente, como tudo parecia avançar nos últimos anos. Já era
quase meia-noite quando cruzou com um adolescente parado na esquina, um desses
andarilhos sem eira nem beira. Pensou desviar, como sempre fazia, mas seguiu em
frente. Ao passar por ele, não conseguiu evitar o confronto. Encararam-se brevemente
com a intimidade dos andarilhos e viu nos olhos do menino dois brilhos que lhe eram
conhecidos: um, sereno, benigno e outro, desesperado, decididamente maligno. Luz e
escuridão, deuses e demônios, o bem e o mal pedindo passagem em igualdade de
condições. Acelerou os passos, antes que topasse com um gato preto ou algo pior.
Não acreditava em tais coisas, mas, naquele dia parecia estar fugindo de sua
“sombra” ...

...A PARTE INFERIOR DA PERSONALIDADE. SOMA DE TODOS OS ELEMENTOS PSÍQUICOS PESSOAIS E COLETIVOS QUE,
INCOMPATÍVEIS COM A FORMA DE VIDA CONSCIENTEMENTE ESCOLHIDA, NÃO FORAM VIVIDOS E SE UNEM AO
INCONSCIENTE, FORMANDO UMA PERSONALIDADE PARCIAL, RELATIVAMENTE AUTÔNOMA, COM TENDÊNCIAS OPOSTAS
ÀS DO CONSCIENTE.A SOMBRA SE COMPORTA DE MANEIRA COMPENSATÓRIA EM RELAÇÃO À CONSCIÊNCIA. SUA AÇÃO
PODE SER TANTO POSITIVA COMO NEGATIVA.NO SONHO, A SOMBRA TEM FREQÜENTEMENTE O MESMO SEXO QUE O
SONHADOR (JUNG, 1996: 359).

Entrou em casa e foi recebido pelo silêncio. Era sexta-feira e sabia que não
encontraria nem a mulher, nem os filhos. Com certeza estariam ausentes no final de
semana e teria o apartamento só para si. Pouco depois se deitava e, antes de
adormecer, pensou no sonho que tivera há uns cinco anos. Nunca mais se esquecera
dele. Sonhara que estava em seu antigo quarto de solteiro, da época de universitário,
com a premente sensação de que alguém invadira sua intimidade. Não um ladrão,
mas uma espécie de novo morador que ali se alojava contra sua vontade, vindo não se
sabe de onde. Os móveis tinham sido tirados do lugar, incluindo sua cama, arrastada,
e notou em um canto uma estranha cômoda antiga, com um espelho grande e uma
banqueta. Um toucador feminino... Tenso, e achando tudo aquilo muito esquisito,
aproximou-se e sentou-se diante do espelho. Olhou-se. Mas não foi a própria imagem
que viu. Refletida no espelho, móvel e completamente nítida, como se fosse ele
mesmo, uma mulher antiga, talvez grega, triste e calma, mas sabiamente firme e

23
inquisitiva. E ela lhe disse:

– OLÁ! LEMBRA-SE DE MIM? PELO JEITO QUE ME OLHA, CREIO QUE NÃO. JÁ FAZ ALGUM TEMPO.
MAS O TEMPO
AGORA CORRE DEPRESSA, NÃO É MESMO? AINDA LHE RESTA UM TANTO DELE E VOCÊ VAI SE LEMBRAR. QUEIRA OU
NÃO QUEIRA, ESTA VEZ EU VIM PARA FICAR. SE ME ACEITAR, SORTE SUA. SE NÃO ME QUISER, AZAR O SEU.

Dito isto, desapareceu, levando qualquer imagem no espelho. Ele acordara aos
gritos, suando, com a nítida impressão de que aquilo era real. Custou muito a cair em
si e voltar ao presente. Tinha sido apenas um sonho. Estranho demais, é verdade, mas
um sonho. Um pesadelo de retorno a um passado que julgava esquecido. E que
mulher tinha sido aquela que se atrevia a penetrar em seu sonho, apoderar-se de seu
quarto de rapaz, de sua imagem e propor-lhe tamanho disparate? Uma espécie de
alma do outro mundo? Ora, vá lá se dar crédito aos sonhos! No entanto, a sensação de
realidade e de certeza no que ela dissera tinham sido impressionantes. Tratara-o com
intimidade, como se o conhecesse desde sempre. Mais do que isso, comportara-se
como se fosse sua dona. Com tais pensamentos na mente, receou ter outro sonho
como aquele. A noite estava bem propícia para tanto... Por fim, adormeceu.

NÃO HÁ DÚVIDA DE QUE O PROCESSO DE TOMADA DE CONSCIÊNCIA DAQUILO QUE SE ACHA GUARDADO E MANTIDO
SECRETAMENTE NO RECÔNDITO DE NÓS MESMOS NOS PÕE DIANTE DE UM CONFLITO INTERIOR INSOLÚVEL. É ASSIM,
PELO MENOS, QUE SE AFIGURA À CONSCIÊNCIA. MAS OS SÍMBOLOS QUE EMERGEM DO INCONSCIENTE NOS SONHOS
REVELAM A CONFRONTAÇÃO DOS OPOSTOS, ENQUANTO AS IMAGENS DE FINALIDADE REPRESENTAM A UNIÃO BEM-
SUCEDIDA DESSES OPOSTOS.NESTE PONTO NOSSA NATUREZA INCONSCIENTE NOS VEM AO ENCONTRO COM UMA AJUDA
QUE PODEMOS CONSTATAR EMPIRICAMENTE. É TAREFA DA CONSCIÊNCIA COMPREENDER ESTAS INDICAÇÕES. MESMO
QUE ISTO NÃO ACONTEÇA, O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO CONTINUA, APESAR DE TUDO; SÓ QUE NESSE CASO SOMOS
VÍTIMAS DESTE PROCESSO E ARRASTADOS PELO DESTINO PARA AQUELA META INEVITÁVEL QUE PODERÍAMOS TER
ALCANÇADO COM PASSO FIRME E CABEÇA ERGUIDA, E NO MOMENTO DEVIDO, SE TIVÉSSEMOS APLICADO TÃO-SOMENTE
NOSSA PACIÊNCIA E NOSSO ESFORÇO, A FIM DE COMPREENDER OS “NUMINA” [NUMES] DO DESTINO (JUNG, O.C., V.
XI/4, § 746).

Ao despertar na manhã seguinte, parecia não se lembrar de sonhos, numes ou


quaisquer revelações das profundezas de si mesmo. Suspirou aliviado. No entanto, ao
pôr no chão os pés descalços em busca dos chinelos, como um raio, atravessou-lhe a
mente uma nova reminiscência. Sentiu-se como Sócrates, o antigo filósofo que
andava pelas ruas de Atenas a fazer discursos para o povo. Às vezes, descalço, sem as
tradicionais sandálias gregas. Sócrates? Que história! Havia lido Sócrates e Platão na
época do colégio, muitos anos atrás... Por que se lembrar dele agora? Se não tivera
outro pesadelo, as lembranças inesperadas continuavam a lhe ocorrer. Aliás, já não
estava tão certo de que não havia sonhado com nada, pois lhe veio a repentina
sensação de ter sido perseguido a noite inteira por um nome. Uma palavra incomum e
alheia, talvez um nome de mulher. O que seria? Parecia ser uma palavra estrangeira,
embora lhe soasse um tanto familiar, como se ecoasse no passado. Dione? Dionísia?
Fátima? Firmina? Havia muitas mulheres em sua vida. Só uma delas levara a sério e
com ela se casara. No entanto...
Sócrates e Platão... Fazia sentido. Não eram eles os homens das reminiscências?
Aqueles que diziam que não aprendemos nada e que o conhecimento já está dentro de

24
nós? Basta que nossa alma lembre o que viu lá em cima, antes de vir para a Terra
dentro de um corpo... Coisa mais estranha. De fato, ainda jovem, havia lido um pouco
de filosofia, até mesmo de poesia e preocupara-se com assuntos tais como a vida, a
morte, quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Coisas de jovens.
Emocionou-se e pensou que, se tivesse permanecido mais tempo no bar, a noite
anterior, correria o risco de fazer para os colegas um discurso perigoso. Achariam que
estava ficando louco... Todos conheciam dele apenas o chefe objetivo, camarada e até
afetuoso, mas dirigido pela realidade da vida e pela conquista dos valores mais
comuns e coletivos. A pessoa, o indivíduo, a alma mesmo... Pelo visto nem mesmo
ele conhecia ou dela se lembrava.
Depois das rotinas habituais do despertar, tomou seu café da manhã e decidiu
caminhar pela praia, tentando, mais uma vez, voltar à vida normal. Encontrou uns
amigos, tomaram algumas cervejas, conversaram e falaram de tudo um pouco, como
sempre. Nunca havia entre eles um assunto definido ou mais explorado. Todavia, a
natureza do grupo, exclusivamente masculino, trouxe-lhe de volta os antigos filósofos
gregos. Mais uma vez, admirou-se por lembrar uma palavra que nunca mais
pronunciara: symposium. Os contemporâneos de Sócrates, filósofos uns, pretensiosos
outros, faziam reuniões que levavam esse nome, quando escolhiam um assunto e
discorriam sobre ele ao sabor de muito vinho e comidas. Olhou para os amigos de
cerveja e de praia e não pôde conter o que teria sido uma risada. Será que o
entenderiam? Quem sabe também andavam se lembrando de coisas esquecidas e não
se arriscavam a compartilhá-las com os demais. Como homens que crescem
urgentemente. Um dia encerram não apenas a adolescência, mas também seus sonhos
e terminam por esquecer o todo que um dia foram... Decidiu não arriscar e despediu-
se. Mais uma vez.
Desistiria de brigar com as lembranças e com os sonhos. Que viessem e que o
levassem para onde pareciam pretender. Começava a achar que havia uma intenção
em tudo aquilo. Nunca se importara seriamente com filosofia e muito menos com
sonhos, mas a insistência do que lhe acontecia era evidente e talvez significativa.
Sócrates, por exemplo, nunca havia escrito um livro. Platão escrevia-os e, como
discípulo de Sócrates, revivia a sabedoria do mestre, colocando-o como personagem
em seus “Diálogos”. Um conhecimento que retornava, como que pedindo para ser
inscrito no tempo. Quem nunca teve vontade de escrever um livro? Como ter um
filho que deixe para sempre a marca da passagem pela existência. E ele? Não estaria
na hora de escrever ou, pelo menos, imaginar o livro de sua vida? Pensando assim,
voltou para casa decidido a dar uma olhada em suas antigas leituras. Talvez ainda
houvesse entre elas aqueles exemplares de Sócrates e Platão que lera no colégio.
Diotima! Este era o nome. A mulher do sonho, cinco anos atrás? O nome de
mulher que o perseguira a noite anterior? Talvez ambas as coisas e talvez estivesse
mesmo ficando maluco. A estranha criatura do sonho dissera-lhe que tinha vindo para
ficar, quisesse ele ou não. Fosse lá o que significasse tudo aquilo, era o que parecia
estar acontecendo. Nunca mais esquecera o sonho e, agora, revisando por curiosidade
os textos de Platão, dera com aquele nome. Nem Dione, nem Dionísia, tampouco
Fátima ou Firmina, mas Diotima, a mulher sábia da Mantinéia.
Anima e animus - Personificação da natureza feminina do inconsciente do homem

25
e da natureza masculina do inconsciente da mulher. Tal bissexualidade psíquica é
reflexo de um fato biológico: o maior número de genes masculinos (ou femininos)
determina os sexos. Um número restrito de genes do sexo oposto parece produzir um
caráter correspondente ao sexo oposto, mas, devido à sua inferioridade, usualmente
permanece inconsciente.
C. G. Jung:

DESDE A ORIGEM, TODO HOMEM TRAZ EM SI A IMAGEM DA MULHER; NÃO A IMAGEM DESTA OU DAQUELA MULHER,
MAS A DE UM TIPO DETERMINADO. TAL IMAGEM É, NO FUNDO, UM CONGLOMERADO HEREDITÁRIO INCONSCIENTE, DE
ORIGEM REMOTA, INCRUSTADA NO SISTEMA VIVO, TIPO DE TODAS AS IMPRESSÕES FORNECIDAS PELA MULHER, SISTEMA
DE ADAPTAÇÃO PSÍQUICO HERDADO... O MESMO ACONTECE QUANTO À MULHER...
A FUNÇÃO NATURAL DO ANIMUS (COMO A DA ANIMA) CONSISTE EM ESTABELECER UMA RELAÇÃO ENTRE A
CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E O INCONSCIENTE COLETIVO. ANALOGAMENTE, A PERSONA REPRESENTA UMA ZONA
INTERMEDIÁRIA ENTRE A CONSCIÊNCIA DO EU E OS OBJETOS DO MUNDO EXTERIOR. O ANIMUS E A ANIMA DEVERIAM
FUNCIONAR COMO UMA PONTE OU PÓRTICO, CONDUZINDO ÀS IMAGENS DO INCONSCIENTE COLETIVO, ASSIM COMO A
PERSONA REPRESENTA UMA PONTE PARA O MUNDO. A ANIMA DO HOMEM PROCURA UNIR E JUNTAR, O ANIMUS DA
MULHER PROCURA DIFERENCIAR E RECONHECER. SÃO POSIÇÕES ESTRITAMENTE CONTRÁRIAS...
A ANIMA É O ARQUÉTIPO DA VIDA... POIS A VIDA SE APODERA DO HOMEM ATRAVÉS DA ANIMA, SE BEM QUE ELE PENSE
QUE A PRIMEIRA LHE CHEGUE ATRAVÉS DA RAZÃO. ELE DOMINA A VIDA COM O ENTENDIMENTO, MAS A VIDA VIVE
NELE ATRAVÉS DA ANIMA. E O SEGREDO DA MULHER É QUE A VIDA VEM A ELA ATRAVÉS DA INSTÂNCIA PENSANTE DO
ANIMUS, EMBORA ELA PENSE QUE É O EROS QUE LHE DÁ VIDA. ELA DOMINA A VIDA, VIVE, POR ASSIM DIZER,
HABITUALMENTE, ATRAVÉS DO EROS; MAS A VIDA REAL, QUE É TAMBÉM SACRIFÍCIO, VEM À MULHER ATRAVÉS DA
RAZÃO, QUE NELA É ENCARNADA PELO ANIMUS (JUNG, 1996: 351-352).

Platão escrevera um diálogo chamado Banquete e nele, além do personagem


Sócrates, havia também uma mulher sábia chamada Diotima. Se Platão escrevia as
palavras que Sócrates havia dito, Diotima falava por Sócrates coisas que ele não se
atrevia a dizer diretamente a seus ouvintes. Então, invocava uma voz feminina em um
mundo de homens. Eram todos homens os antigos filósofos gregos. E o que pretendia
Platão, ou Sócrates, deixando que uma mulher falasse em seu lugar? Naqueles
tempos, então... A verdade é que também em seu sonho uma mulher lhe roubara a
própria imagem. Será que também falava coisas que ele não se atrevia a revelar ou,
mesmo, admitir? E havia falado dentro dele, como se fosse ele, uma mulher dentro
dele...
Todo mundo cresce ouvindo dizer que homem não chora, pois chorar é coisa de
mulher. Acontece que as coisas parecem realmente mudar com a idade e para ambos
os sexos. Seu casamento, por exemplo. Anos de convivência e nunca se entenderam
de fato. Ele, sempre lógico, objetivo e prático, seguidor de normas e atento
observador da opinião comum, do chamado bom senso e amante dos bens materiais.
Ela, subjetiva, sonhadora e sentimental, questionando todas as regras e priorizando os
relacionamentos individuais. Opostos em muitas coisas que só a paixão dos primeiros
anos equilibrou.

AO ATINGIR A IDADE ADEQUADA PARA O CASAMENTO, JÁ TEM O JOVEM A CONSCIÊNCIA DO EU... MAS SÓ HÁ POUCO
TEMPO ELE EMERGIU DO NEBULOSO INCONSCIENTE INICIAL... ISTO SIGNIFICA NA PRÁTICA QUE O JOVEM TEM UM
CONHECIMENTO INCOMPLETO TANTO DE SI MESMO COMO DO OUTRO; POR ISSO TAMBÉM CONHECE DE MODO
INSUFICIENTE OS MOTIVOS DO OUTRO COMO TAMBÉM OS PRÓPRIOS. NA MAIORIA DAS VEZES O JOVEM COSTUMA AGIR

26
LEVADO APENAS POR MOTIVOS INCONSCIENTES (JUNG, O.C., V. XVII, § 327).

Nos últimos tempos, porém, os opostos pareciam estar trocando de lugar: ele, cada
vez mais crítico e introspectivo; ela, cada vez mais voltada para fora, como que
disposta a reconquistar um lugar no mundo e o tempo perdido. Homem não chora.
Chorar é coisa de mulher... Se assim fosse, então ele teria amolecido com o passar
dos anos, enquanto sua mulher teria endurecido. Talvez, o que antes era por dentro
tivesse ficado por fora; e vice-versa em cada um deles. Quem sabe tivesse visto na
esposa a imagem de uma mulher que não era de fato ela? A contrapartida também
podia ter sido verdadeira. Quando se casaram estavam fortemente apaixonados e
atraídos um pelo outro e, nesse período...

O RELACIONAMENTO SE CONSERVA DENTRO DOS LIMITES DA FINALIDADE BIOLÓGICA DO INSTINTO: A CONSERVAÇÃO


DA ESPÉCIE. SENDO ESTA FINALIDADE DE NATUREZA COLETIVA, O RELACIONAMENTO PSÍQUICO DOS ESPOSOS É
TAMBÉM ESSENCIALMENTE COLETIVO E NÃO PODE, PORTANTO, SER CONSIDERADO RELACIONAMENTO PESSOAL EM
SENTIDO PSICOLÓGICO. SOMENTE PODEREMOS FALAR EM TAL RELACIONAMENTO, QUANDO SE TORNAR CONHECIDA A
NATUREZA DA MOTIVAÇÃO INCONSCIENTE E QUANDO ESTIVER SUPRIMIDA EM LARGA ESCALA A IDENTIDADE INICIAL.
RARAS VEZES, OU ATÉ MESMO NUNCA, UM MATRIMÔNIO SE DESENVOLVE TRANQÜILO E SEM CRISES, ATÉ ATINGIR O
RELACIONAMENTO INDIVIDUAL. NÃO É POSSÍVEL TORNAR-SE CONSCIENTE SEM PASSAR POR SOFRIMENTOS.
GERALMENTE A MUDANÇA COMEÇA COM O INÍCIO DA SEGUNDA METADE DA VIDA (JUNG, O.C., V. XVII, § 331-
331A).

No Banquete, a tríade Platão, Sócrates e Diotima fala do amor imperfeito,


incompleto e carente, do amor que deseja aquilo que não tem e que, portanto, sofre.
Fala-se do amor humano. Segundo Diotima, Eros não seria filho de Afrodite com
Ares, o deus da guerra, ou com Hermes, o mensageiro dos deuses. Seria filho de
Poros, a Fartura ou a Atividade, com Penia, a Miséria ou a Inércia. Apesar de muitas
vezes ser esperto e pleno, o Amor seria também miserável e mendigo, como também
tolo e sábio. Eros não seria um deus tão poderoso como os demais, pois seria quase
humano – um gênio, um filósofo, um intermediário entre os homens e os deuses, um
daimon ou demônio...
Sorriu, entristecido e pensou nos filhos. Fossem filhos dos deuses, ou dos homens,
a verdade é que estavam cada dia mais longe do pai. O que ele tinha feito da própria
vida? Também havia sido jovem e, quando jovens, sonhamos tanto com uma vida que
queremos, que esquecemos da vida que vamos tendo. Depois, como na canção,
dizemos “que a vida é aquilo que a gente não quer” (Caymmi – Lobo, 1975). Claro,
se a recusamos. E se a aceitarmos? Ou seja, se deixarmos que Diotima – a Alma de
Sócrates, a alma dos homens – fale o que dificilmente conseguimos dizer? E fazer?
Será a vida tão ruim que até as flores têm espinhos? Ou ela é tão boa que até os
espinhos têm flores?

O MEIO DA VIDA É UM TEMPO DE DESENVOLVIMENTO MÁXIMO, QUANDO A PESSOA AINDA ESTÁ TRABALHANDO E
OPERANDO COM TODA A SUA FORÇA E TODO O SEU QUERER. MAS NESSE MOMENTO TEM INÍCIO O ENTARDECER, E
COMEÇA A SEGUNDA METADE DA VIDA. A PAIXÃO MUDA DE ASPECTO E PASSA A SER DEVER, O QUERER TRANSFORMA-
SE INEXORAVELMENTE EM OBRIGAÇÃO; AS VOLTAS DA CAMINHADA, QUE ANTES ESTAVAM CHEIAS DE SURPRESAS E
DESCOBERTAS, AGORA NADA MAIS SÃO DO QUE ROTINA... EM VEZ DE SE OLHAR PARA A FRENTE, MUITAS VEZES, SEM

27
QUERER, SE OLHA AGORA PARA O PASSADO; PRINCIPIA-SE A PRESTAR CONTAS SOBRE A MANEIRA PELA QUAL A VIDA SE
DESENVOLVEU ATÉ O MOMENTO. PROCURA-SE ENCONTRAR SUAS MOTIVAÇÕES VERDADEIRAS E SURGEM DESCOBERTAS.
O INDIVÍDUO CONSEGUE CONHECER SUA PECULIARIDADE POR MEIO DA CONSIDERAÇÃO CRÍTICA DE SI PRÓPRIO E DE
SEU DESTINO. MAS ESSES CONHECIMENTOS NÃO LHE SÃO DADOS DE GRAÇA. CHEGA-SE A TAIS CONHECIMENTOS
APENAS POR ABALOS VIOLENTOS” (JUNG, O.C., V. XVII, § 331A).

Abalos não haviam faltado durante os últimos anos. No princípio, ao surgirem as


primeiras dificuldades e diferenças mais sérias, optara comodamente por satisfações
egocêntricas e soluções que evitassem grandes confrontos. E assim prosseguiu. Era o
carro do ano, os inúmeros casos sem compromissos com outras mulheres, os
presentes para os filhos e para a esposa, o conforto que o dinheiro possibilita e um
casamento de aparência. Os anos foram passando e nem sequer se separaram...

MAS AQUILO QUE SUSTENTA A VIDA TAMBÉM NOS CRUCIFIXA; A SALVAÇÃO E A PLENITUDE DA VIDA PODEM OCORRER
MESMO ATRAVÉS DA PERDA OU DA RENÚNCIA DAQUILO QUE PARECIA SER A ÚNICA VIDA – A VIDA SOB A VONTADE DO
EGO CONSCIENTE, DEVOTADA À SATISFAÇÃO DE SUAS EXIGÊNCIAS... (WHITMONT, 1995: 78).

Na verdade, o que parecia ser vida já não era mais. As estratégias manipuladoras se
repetiam, enquanto a vida seguia na frente e exigia mudanças. Era como se ele ainda
insistisse em atingir seus propósitos da maneira mais protegida possível. Deveria,
porém, estar se perguntando: “O que devo à vida? Onde fui incapaz de corresponder
àqueles sacrifícios que a vida exige de mim?” (Idem). E, de repente, o casamento
desandou de vez e o carro do ano não satisfazia mais; o filho envolvia-se com drogas;
a filha revelava-se um tanto promíscua e, ele próprio, viu-se com problemas de
depressão e impotência sexual. Castigos? Ou avisos definitivos da exaustão de um
padrão coletivo de vida que chegava a seu limite? Tratava-se de sua vida e de sua
família, e não da vida de todos ou da família de qualquer um. Finalmente concluía
que ignorar a situação ou trocá-la por outra não resolveria sua própria implicação
nela.

CONTRA O EFEITO MASSIFICADOR DE TODAS AS MEDIDAS COLETIVAS, EXISTE SOMENTE UM MEIO: A ACENTUAÇÃO E A
ELEVAÇÃO DE VALOR DO INDIVÍDUO. FAZ-SE NECESSÁRIA UMA MUDANÇA DE CONCEITO, OU SEJA, UM VERDADEIRO
RECONHECIMENTO DO HOMEM TODO. ISTO SÓ PODE SER TAREFA DE CADA UM, E TEM DE COMEÇAR POR CADA UM,
PARA SER VERDADEIRO (JUNG, O.C., V. 10/4, § 719).

Mudar de atitude e de valores? Ele sentia que seria como trocar o certo que não
dava mais certo pelo incerto, desconhecido e duvidoso. Uma vida inteira que se
pensava decidida como que desmoronava. Se acaso houvesse escolhas, eram como se
fossem nada. Mas era possível sentir que algo dentro dele escolhia em silêncio,
enquanto outro algo gritava. E só ele ouvia.

À MEDIDA QUE O CONSCIENTE ASSUME A RESPONSABILIDADE E FAZ SUAS DIFÍCEIS ESCOLHAS, E ACEITA OS RISCOS
INERENTES A ELA, ESSES ELEMENTOS QUE, À PRIMEIRA VISTA, PODEM PARECER DESENCORAJADORES, OU DAR A
IMPRESSÃO DE QUE ESTÃO FECHANDO A PORTA, TENDEM A MUDAR SEU CARÁTER (WHITMONT, 1995: 82).

28
Realmente, o sentimento era de derrota, de humilhação, de perda e fracasso. Um
espaço aberto de desamparo e sofrimento onde, aparentemente, só restava esperar que
a fé surgisse e prevalecesse. Um aprendizado de humildade perante a desorientação.
Foi quando entendeu a necessidade humana de religiosidade e aprendeu a respeitar o
lugar sagrado onde os deuses nascem. Um lugar bem além de meros desejos e
vontades.

É CURIOSO QUE TAMBÉM AS IGREJAS, COM A PROMESSA DE CUIDAR DA SAÚDE DA ALMA INDIVIDUAL, SIRVAM
OPORTUNAMENTE À AÇÃO MASSIFICADA, EXORCIZANDO O DIABO COMO BELZEBU. PARECE QUE ELAS NÃO SE DÃO
CONTA DA CONSTATAÇÃO MAIS ELEMENTAR DA PSICOLOGIA DE MASSA, SEGUNDO A QUAL O INDIVÍDUO NA
MASSIFICAÇÃO SOFRE UMA DEGRADAÇÃO MORAL E ESPIRITUAL, E ELAS SE ESQUECEM DE QUE SUA PRÓPRIA TAREFA É
– COM A GRAÇA DE DEUS – A METANÓIA, OU SEJA, O RENASCIMENTO ESPIRITUAL.
POSSIBILITAR AO HOMEM SINGULAR
JÁ SABEMOS QUE SEM UMA RENOVAÇÃO ESPIRITUAL DO INDIVÍDUO, A SOCIEDADE EM SI NÃO CONSTITUI UM CAMINHO
DE RENOVAÇÃO, JÁ QUE ELA NADA MAIS É DO QUE A SOMA DE INDIVÍDUOS QUE NECESSITAM DE SALVAÇÃO (JUNG,
O.C., V. X, § 536).

Ele ainda não sabia o que fazer, mas sabia o que devia tentar. Acordou tarde no
domingo, fez um lanche e saiu para a rua. A vida seguia seu ritmo normal. Logo na
primeira esquina, ouviu a conversa de dois homens de meia-idade que passavam a
caminho da praia.
– Envelhecer, meu amigo? – dizia um deles. – É uma merda!
– Merda mesmo ou merda como se diz no teatro? – comentou o outro.
– Você quer dizer sorte? Sei lá eu! Acho que nem a Fernanda Montenegro
responde a esta pergunta!
E afastaram-se, às gargalhadas. Um pouco mais adiante, outro representante da
meia-idade falava ao celular com o filho.
– Mas meu querido, dois mil e trezentos? E você acha que eu sempre tenho de lhe
dar tudo, não é mesmo? Ah, meu Deus! E como faço para mandar isso on, on, on, on,
on on... – ele parecia estar latindo, até que soltou: – On-line!
– Coitado! – comentou alguém passando. – É assim que cachorro aprende a latir!
Parecia que se tornava realmente difícil ficar on-line após a meia-idade. Já
chegando à rua da praia, uma cigana saiu detrás de uma árvore e veio em sua direção.
– É ela! Aquela mulher de novo! – quase gritou. – O que será que ela quer agora?
– Moço, quer ler a mão? Ver a sorte?
– Só isto? – suspirou aliviado e estendeu-lhe a mão. – Pode ler à vontade.
– Que confusão, moço! Muita mudança, não é mesmo? Mas está aqui, veja: mais
ou menos aos quarenta e cinco anos...
Ele apenas seguiu adiante, rumo ao espaço aberto na direção do mar. Nunca soube
se foi do céu claro e azul, do vento nas copas das árvores, das vozes das pessoas, do
burburinho das crianças ou da cigana... Quem sabe foi do fundo de seu coração? Mas
teve certeza de ouvir:
– Feliz aniversário, coroa!

Bibliografia

29
CAYMMI, D. - LOBO F. Saudade. CD Nana Caymmi, CID, 1975.
HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2001.
JUNG, C. G. Resposta a Jó. O .C., v. XI/4. Petrópolis: Vozes, 1971.
_____. Aion. O.C., v. IX/2, Petrópolis: Vozes, 1988.
_____. Um mito moderno sobre coisas vistas no céu. O .C., v. X/4. Petrópolis: Vozes, 1991.
_____. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
_____. Presente e Futuro. O.C., v. X. Petrópolis: Vozes, 1999.
_____. O Desenvolvimento da Personalidade. O .C., v. XVII. Petrópolis: Vozes, 2002.
MEIRELLES, Cecília. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
PLATÃO. Diálogos: Mênon-Banquete-Fedro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
TEIXEIRA, Renato. Sentimental eu fico. CD Elis, Polygram, Philips, 1998(1977).
ULSON, Glauco. O Método Junguiano. São Paulo: Ática, 1988.
WHITMONT, E. C. A Busca do Símbolo. São Paulo: Cultrix, 1995.

* Psicólogo Clínico, pós-graduado em Psicologia Junguiana, membro Analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA.

30
4
Metamorfoses da alma após a meia-idade...
Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro*

Começando a refletir...

“VIVER E NÃO TER A VERGONHA DE SER FELIZ


CANTAR E CANTAR E CANTAR
A BELEZA DE SER UM ETERNO APRENDIZ, AH, MEU DEUS...”
GONZAGUINHA

A natureza, em sua sabedoria, entrelaça-se em ciclos sucessivos: dia e noite;


primavera, verão, outono, inverno; infância, adolescência, maturidade e velhice... Os
exemplos seriam intermináveis. Portanto, nosso processo vital explicita diferentes
ciclos ou fases de transformação, deixando claro que não há uma fixação de datas ou
limites, pois a subjetividade humana está além da rigidez do tempo cronológico.
Rubem Alves, em seu Tempus Fugit (2002: 11), diz: “Quem sabe que o tempo está
fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será...”.
Na realidade, nossa subjetividade, segundo a sabedoria grega, está articulada não só
ao tempo secular, do corpo e do relógio, referente ao deus Kronos, mas também, ao
tempo mítico e ao da subjetividade, referente ao deus Kairos, em que segundos
podem trazer a sensação de séculos. Sendo assim, falamos de tempos diferentes. Por
isso, a questão da idade se torna tão complexa; mas de que idade estamos falando?
Somos uma plural-idade!
O que diretamente nos interessa é refletir um pouco acerca das marcas do tempo
em nossos corpos, em nossa alma ou psique, com seus afetos, seus valores, enfim, em
nossa vida. Como vivenciamos estas marcas do tempo que se manifestam com maior
clareza a partir da meia-idade. Quando acontece a meia-idade? Poderíamos situá-la
entre os 40 e os 50 anos. Período que traz muitos questionamentos, ressignificações,
período de trevas e luz. Mas como envelhecer bem numa sociedade que privilegia de
forma tão acentuada os valores da juventude?
Meia-idade, envelhecimento, velhice... quantas significações, mistérios, mitos e
preconceitos! Envelhecer é um processo vital inerente ao viver, vai do nascimento à
morte, porém, ganha maior visibilidade após a década dos 40 anos. Envelhecer é uma
grande experiência, que põe à prova a nossa caminhada existencial. Pode ser uma
aventura ao darmos o burilamento de nosso ser, como diz Hillman, ou pode ser uma
desgraça. O envelhecer pode articular-se a ver a vida sob prismas diferentes,
armazenar um arsenal de experiências e recordações, fazer o confronto com as marcas

31
e a passagem do tempo, poder rir de si mesmo, libertar-se de tantas convenções...
Mas, também, pode articular-se a lamentar pelo que passou, contabilizar só as perdas,
se isolar, ficar triste, reclamar de tudo, se sentir inútil, ser só deterioração... Nesse
prisma, envelhecer é uma triste realidade, é uma danação! Inegavelmente todas essas
possibilidades estão presentes, cada um de nós fará a sua escolha. Talvez a questão
essencial seja, parafrasendo Descartes, escolho, logo existo. Daí, a natureza tão
plural, heterogênea e singular da velhice.
Viver é estar a cada momento diante de encruzilhadas, elas definem nossa vida;
mas as escolhas são sempre de nossa responsabilidade. Segundo Hillman (2001),
precisamos perceber o que expressa a nossa natureza mais íntima, com que nos
identificamos: com as estruturas da fisiologia e as limitações do corpo, ou com as
estruturas da psicologia e do caráter, com suas possibilidades de contínua recriação?
A escolha sempre será pessoal e única, com todas as suas conseqüências. Compete a
cada um de nós descobrir a verdade e a riqueza do envelhecer, pois se ele é inerente à
vida, deve ter um sentido, afirma Jung. Velhice é um modo de ser, de existir; é uma
realidade arquetípica, isto é, faz parte da estrutura, da genética da alma. Viver para
camuflar esta realidade será sempre uma contrafação, um engodo.
Talvez, o que de pior possa acontecer seja a não-aceitação desse processo,
promovendo a necessidade de querer parecer sempre jovem. Por quê? Ao longo da
história há uma contínua mudança de valores, costumes... Antigamente, a velhice não
era vista como decadência e um caminhar rumo à morte. Os velhos eram os guardiães
dos costumes e dos valores, eram conselheiros e balizadores do viver cotidiano. A
morte não era articulada à longevidade, mas à vida em si, pertencia tanto à infância e
à juventude quanto à velhice; pois morriam natimortos, crianças, jovens e adultos em
guerras, brigas e epidemias... Foi a partir do século XIX que se iniciou essa
articulação entre longevidade e mortalidade, como também uma mudança de valores
acerca do envelhecimento e da morte.
Numa análise mais próxima de valores dominantes, podemos afirmar, segundo
alguns estudiosos da cultura, como Freire (2004), que a partir do século XVIII os
valores cultivados foram: sentimentos e interioridade/ subjetividade; buscava-se ser
uma pessoa íntegra, honesta, sensível, ter uma rica vida psicológica, ser capaz de
mergulhar em seus conflitos psíquicos; os valores éticos estavam presentes. A partir
do século XX os valores passaram a ser o cultivo das sensações, da aparência e da
imagem; busca-se a todo o preço sentir prazer e ser feliz, manter a boa forma, ter um
corpo saudável, tendo como referência o padrão jovem. Isto é o que mais importa, é a
referência vital. Vale a performance externa, e cada vez mais corremos o risco de nos
tornar escravos desses valores sociais. Nossa sociedade atual tem recebido várias
denominações que expressam os valores nela embutidos, como vemos em alguns
autores: Sociedade do Espetáculo (Debord, 1997); A barbárie interior: ensaio sobre
o mundo moderno (Mattéi, 2002); Era do Vazio e o Império do Efêmero (Lipovetskz,
2004); Sociedade Escópica (Quinet, 2000); Amor Líquido (Baumann, 2004)...
A pergunta que se impõe é: Como envelhecer na Sociedade do Espetáculo?
Compartilho com vocês um texto que encontrei, pela internet, como sendo de Hebert
Viana, do conjunto Paralamas do Sucesso, e que cabe perfeitamente em nossas
reflexões.

32
“HOJE, DEUS É AUTO-IMAGEM. RELIGIÃO É DIETA. FÉ, SÓ NA ESTÉTICA. RITUAL É MALHAÇÃO... GORDURA É
PECADO MORTAL. RUGA É CONTRAVENÇÃO... ESTRIA É CASO DE POLÍCIA. FILHO DA PUTA BEM-SUCEDIDO É EXEMPLO
DE SUCESSO... A SOCIEDADE CONSUMIDORA, A QUE TEM DINHEIRO, A QUE PRODUZ, NÃO PENSA MAIS EM NADA ALÉM
DA IMAGEM, IMAGEM, IMAGEM. IMAGEM, ESTÉTICA, MEDIDAS, BELEZA... ADULTOS PERDEM O SENSO EM BUSCA DA
JUVENTUDE FABRICADA...”

Os valores da juventude estão tão difundidos, que, diante da inevitabilidade das


marcas do tempo no corpo e com o passar dos anos, é muito comum dizer que
“o corpo está velho, mas o espírito está jovem”. Luft (2003: 128) expressa com
veemência a repulsa a essa atitude tão preconceituosa, por que o espírito jovem seria
melhor que o espírito de um velho sábio? Ambos os espíritos tem seus prós e seus
contras, suas alegrias e suas dores.
Mas predomina a idéia de que a velhice é uma sentença da qual se deve fugir a
qualquer custo – até mesmo nos mutilando ou nos escondendo. No espírito de
manada que nos caracteriza, adotamos essa hipótese sem muita discussão, ainda que
seja em nosso desfavor. Isso se manifesta até na pressa com que acrescentamos, como
desculpa: “Sim, você está, eu estou, velho aos 80 anos, mas... jovem de espírito”. Por
que ser jovem de espírito seria melhor do que ter um espírito maduro ou velho?...
Vou detestar se, ficando velha, alguém quiser me elogiar dizendo tenho espírito
jovem.
Quase poderíamos afirmar que envelhecer é estar na contramão da cultura. Então, o
que fazer? Nós nos enquadramos nesses valores? Nós nos rebelamos? Albon (1998:
117), em sua obra A Última Grande Lição, tem um capítulo sobre o medo de
envelhecer, onde questiona a ênfase que é dada à juventude como se fosse uma
maravilha, mas ela também é tão cheia de conflitos, problemas e grilos, que muitos
jovens pensam em se matar. Os velhos que dizem “ah, se eu fosse jovem...?” revelam
vidas insatisfeitas, sem realizações, sem sentido, pois quem encontra sentido não quer
voltar, deseja ir em frente.

“QUEM PASSA O TEMPO BATALHANDO CONTRA O ENVELHECIMENTO SEMPRE SERÁ INFELIZ, PORQUE O
ENVELHECIMENTO É INEXORÁVEL. (...) PRECISAMOS DESCOBRIR O QUE EXISTE DE BOM E VERDADEIRO E BELO EM
CADA FASE DA VIDA. (...) SOU TODAS AS IDADES, DA ATUAL PARA BAIXO.”

Envelhecer é um processo vital de construção individual e singular, cada um o


viverá segundo suas escolhas. “O problema não é inventar. É ser inventado hora após
hora e nunca ficar pronta uma edição convincente”, disse o poeta Drummond.

Questões fundamentais da meia-idade

DEIXE-ME ENTRAR NA HISTÓRIA DO MUNDO / NEM QUE SEJA PARA SEGURAR UMA MAÇÃ (WIM WENDERS E PETER
HANDKE, 1987, ASAS DO DESEJO).

Onde me encontro? Qual o sentido da vida?

33
Essas questões fundamentais são colocadas normalmente a partir da meia-idade e
na velhice. Individuação, para Jung, constitui o processo de constituição e
particularização da essência individual e original que cada um de nós é; implica o
desenvolvimento do “individuum”, como um ser único e original, não há cópias.
O processo de desenvolvimento da personalidade é obra de toda uma vida,
processo que só deveria terminar na experiência da morte. Na mesma perspectiva do
desenvolvimento por toda vida, encontramos Luft (2003: 22):
“A elaboração desse ‘nós’ iniciado na infância ergue as paredes da maturidade e
culmina no telhado da velhice, que é o coroamento, embora em geral seja visto como
deterioração”. Também Heráclito diz: “Mesmo percorrendo todos os caminhos,
jamais encontrarás os limites da alma, tão profundo é o seu logos”. Portanto, não
podemos fixar um tempo para o desenvolvimento, é o tempo da vida de cada um até
seu momento derradeiro, e quantas ressignificações a consciência da morte pode
trazer!
A plena expressão da personalidade leva uma vida inteira para atualizar-se. Do
nascimento até a morte, vivemos um contínuo de transformações e opções.
Envelhecer implica acolher e desenvolver o seu “quinhão” com a sua singularidade
específica. Hillman (2001) explicita que os velhos tornam-se com maior clareza
aquilo que sempre foram. O centro da personalidade permanece constante, exceto que
talvez mais intensamente, não há uma descontinuidade da personalidade com a idade,
mas sim uma crescente consistência em contínuo refinamento e modificação. Em
sintonia com esta verdade, diz Luft (2003: 92): “Existir é poder refinar nossa
consciência de que somos demais preciosos para nos desperdiçarmos buscando ser
quem não somos, não podemos, nem queremos ser”. O Processo de Individuação é
obra de toda uma vida em contínua transformação, exigindo o esforço de se gerar e se
recriar sempre. Também, para Spinoza, “a liberdade consiste em conhecer os cordéis
que nos manipulam”. Contudo, esse impulso não se atualiza espontaneamente, ele
requer muito esforço e transpiração. Viver e tornar-se si-mesmo requer 10% de
inspiração e 90% de transpiração, proporção que foi dada por Thomas A. Edson para
o processo criativo.
Segundo Jung, em A Natureza da Psique (O.C., vol. 8/2), no processo vital de
desenvolvimento acontecem dois ciclos (ou fases): o natural e o cultural. A fase
natural é a fase heróica da expansão egóica, com lutas e enfrentamentos
principalmente focados no mundo externo, estende-se do nascimento até a meia-
idade. A libido ou energia vital concentra-se principalmente no campo sexual e no
profissional; os mecanismos psicológicos buscam a expansão egóica no mundo
externo e na adaptação. Independentemente das diferenças culturais, há um padrão
arquetípico que é esperado do jovem – o padrão heróico – imagem ideal de
realização. Nesse processo de expansão e conquistas, criam-se as máscaras sociais ou
personas para se ter melhor aceitação social; contudo, corre-se o risco de ficar
aprisionado pelas máscaras, levando ao processo de massificação (Jung) e à
escravização aos valores sociais (Nietzsche).
Após a meia-idade, inicia-se a fase cultural, o desenvolvimento físico começa a
apresentar o declínio das funções orgânicas, aparecem as rugas, flacidez, dores etc.,
lembretes constantes da passagem do tempo e da finitude.

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“Querer ter os mesmos impulsos e igual velocidade de antes deixa-nos claro que
houve falhas, paralisia no processo de iniciação para a vida adulta”, diz López-
Pedraza (1997). A velhice traz uma aceleração do declínio físico, ela é dirigida por
um programa genético e é inexorável – é assim que é. Como experiência clínica,
percebo que é quando realmente começa a vir à consciência a realidade da passagem
do tempo. “Tempus fugit”, como disse Rubem Alves. Esta consciência nos remete à
questão do sentido ou do significado da vida. Cada etapa da vida humana ativa alguns
instintos e arquétipos, que resultam em padrões de sentimentos, pensamentos e
comportamentos; por exemplo, podemos falar dos arquétipos – do herói e do velho
sábio que predominam em diferentes fases da vida, mas devem estar sempre
presentes em todas as fases.
Gabriel Garcia Marquez, em sua última obra, Memória de mis putas tristes (2004:
14), relata vivências de um homem aos 90 anos, que começa descrevendo como se
deu a percepção de estar envelhecendo. Aos 40 anos, como primeiro sinal, começa a
perceber que se parece com seu pai e também começam as dores ocasionais que seu
médico diz serem naturais, ao que ele questiona: “O que não é natural?”. A verdade é
que as primeiras mudanças são tão lentas que apenas se notam, e segue-se vendo-se
desde dentro como havia sido sempre, mas os outros as percebem desde fora. Aos 50
anos, começam os lapsos de memória e a constatação de que o que estamos dizendo,
já havíamos dito antes. Quanto à vida sexual, diz não se preocupar muito, pois ela
dependia tanto de si mesmo como delas e elas sabem o como e o porquê, quando
querem. Mas apesar dos sobressaltos sexuais, eles sempre são rasgos de estar vivo. E
isso é o que importa, conclui ele.
Nesta segunda fase, segundo Jung, a expansão da libido deve buscar o mundo
interno e o encontro com o self ou si-mesmo – nossa totalidade originária e original,
que contém as predisposições, tendências, inclinações em nossa genética da alma ou
do self. Essa transição – metanóia – significa que a personalidade passa a estar mais
articulada ao self, que é um núcleo organizador e irradiador de potencialidades e
energia para o ego. Passamos a ter uma maior consciência do nosso Processo de
Individuação, de nos tornar cada vez mais fiéis a nós mesmos, ao nosso self, isto é,
únicos, excêntricos ou diferentes. Inevitavelmente, a meia-idade nos arremessa ao
confronto com o sentido da vida e com a finitude.
METANÓIA, época de balanço de vida, mudanças de rota, desesperos existenciais
pela consciência do não vivido, do tempo que não volta mais... Trevas e luz, luz e
trevas alternando-se, mas promovendo a possibilidade do aumento da consciência e o
resgate de desejos, sonhos etc.

Metamorfoses reativas ao envelhecer

PRECISAMOS FORJAR UM EU QUE SEJA CAPAZ DE SUPORTAR A VERDADE (JUNG).

Repetindo, a realidade do processo de envelhecimento não é um acidente em nossa


vida, ela é estrutural, tem um sentido, está contida na genética do corpo e da alma.
Ele não é aleatório, é necessário. Como diz Hillman (2001), a biologia é um processo

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que leva à inutilidade, mas a velhice, em vez de processo, pode ser considerada como
uma estrutura da alma, que permite a mais plena auto-realização de nossa totalidade.
A grande questão que se impõe é: qual o sentido do envelhecer? Para Jung, seria
justamente a possibilidade de dar um maior burilamento à alma, à personalidade ou
ao caráter. Portanto, a velhice traz uma oportunidade única, realmente nos permitir
ser nós mesmos, nada além ou diferente.
Será decadência ou auto-realização? Será transformação e individuação ou rigidez
de papéis e massificação? O aspecto psicológico básico do processo de envelhecer é o
balanço entre os limites e as perdas e a abertura para novas possibilidades
existenciais. Rollo May (1979) diz que o ser humano é incapaz de suportar
constantemente a experiência da impotência. Nós somos uma construção ideativa
com a qual nos identificamos ao longo de nossa vida, mas, após a meia-idade, nossa
identidade enquanto auto-imagem é constantemente afetada. Acontecem as perdas
narcísicas e nosso corpo é o primeiro a sinalizar a passagem do tempo. Jung nos
conclama a pensar:

PARA O SEGUNDO OBJETIVO, CONTAMOS COM POUCA OU NENHUMA AJUDA. FREQÜENTEMENTE REINA UM FALSO
ORGULHO QUE O VELHO TEM DE SER COMO O JOVEM, OU PELO MENOS FINGIR QUE É...É POR ISSO QUE A PASSAGEM
DA FASE NATURAL PARA A CULTURAL É TÃO TREMENDAMENTE DIFÍCIL E AMARGA PARA TANTA GENTE, AGARRAM-SE
ÀS ILUSÕES DA JUVENTUDE OU AOS FILHOS PARA ASSIM SALVAR UM RESQUÍCIO DE JUVENTUDE (...). NÃO É DE
ADMIRAR QUE MUITAS DOENÇAS GRAVES SE MANIFESTEM NO INÍCIO DO OUTONO DA VIDA... MAS ANTIGAS RECEITAS
NÃO SERVEM MAIS PARA RESOLVER OS PROBLEMAS QUE SE COLOCAM NESTA IDADE. TAL RELÓGIO NÃO PERMITE GIRAR
OS PONTEIROS PARA TRÁS. O QUE A JUVENTUDE ENCONTROU FORA, O HOMEM NO ENTARDECER DA VIDA TEM DE
ENCONTRAR DENTRO DE SI... MUITAS VEZES É NECESSÁRIO PERCEBER O ENGANO DE CONVICÇÕES DEFINIDAS ATÉ
ENTÃO, DE RECONHECER E SENTIR A INVERDADE DE VERDADES ACEITAS ATÉ O MOMENTO, E RECONHECER E SENTIR
TODA RESISTÊNCIA E MESMO A INIMIZADE DO QUE ATÉ ENTÃO JULGÁVAMOS AMAR.

De um modo geral, podemos considerar três reações possíveis diante do


envelhecimento: negativa, involutiva e evolutiva. As metamorfoses da alma, segundo
Nietzsche (2002), foram descritas como sendo: Camelo, Leão e Criança, que serão
exploradas a seguir, mas podemos desde já associar a dinâmica do Camelo, o que
carrega, suporta todos os valores, à reação negativa; a dinâmica do Leão, o que tudo
pode, à reação involutiva; e a dinâmica da Criança, a que se renova e cria, à reação
evolutiva.
A reação negativa expressa uma fixação no passado, há um saudosismo, uma
perda da dimensão do agora; tudo é desconstrução, só decadência. Viver é um pesado
fardo – como a carga pesada do Camelo. Geralmente, tende a só contabilizar perdas e
danos, vive-se premido pelo “ter sido”; há um real desinvestimento na realidade
externa e no ego. O poeta W. B. Yeats, referindo-se ao corpo que envelhece, diz:
“Um homem idoso é uma coisa sem valor, um casaco esfarrapado sobre uma
vareta...”. Infelizmente, para muitos essa pode ser a realidade escolhida. Vivem um
narcisismo negativo, como que na antecâmara da morte. Geralmente, tais pessoas, ao
longo de suas vidas, abriram mão de si mesmas, de seus desejos e sonhos em prol de
outros (marido, filhos...), viveram dominadas pelo apego e dedicação exclusiva a
pessoas, a coisas, e isto normalmente gera a necessidade do reconhecimento, que é
muito difícil de concretizar. A conseqüência inevitável é o crescimento da tristeza e

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do ressentimento. Esta realidade foi explorada por Nietzsche em Genealogia da
Moral (1998), mostrando como o ressentido vive inspirado no mundo exterior, e não
sobre si mesmo, e sua impotência transforma-se em bondade, submissão,
obediência... O ressentimento pode ser considerado como o cupim da alma, vai
corroendo, corroendo por dentro e deixando um grande vazio no viver. E à medida
que essas pessoas vão se fechando, se isolando, correm o risco de ser tomadas pela
desilusão e pela depressão. Descrevendo fenomenologicamente a depressão,
encontramos sintomas negativos como: irritabilidade, rigidez, desconfiança,
desânimo, mau humor, diminuição da atividade sexual e da fantasia... Jung explica:

A TONICIDADE CEDE, O QUE É SENTIDO SUBJETIVAMENTE COMO DESÂNIMO, MAU HUMOR E DEPRESSÃO. A PESSOA JÁ
NÃO TEM NENHUM DESEJO OU CORAGEM DE ENFRENTAR AS TAREFAS DO DIA-A-DIA. ELA SE SENTE COMO UM
CHUMBO, PORQUE NENHUMA PARTE DO SEU CORPO PARECE DISPOSTA A SE MEXER, O QUE É CAUSADO PELO FATO DE A
PESSOA NÃO MAIS POSSUIR NENHUMA ENERGIA À SUA DISPOSIÇÃO (O.C., VOL. 10/1, § 213).

A reação involutiva expressa uma regressão, uma negação da passagem do tempo e


da idade, a pessoa não quer aceitar o envelhecimento de forma alguma, mobiliza a
potência do Leão para manter a aparência da juventude. Nessa perspectiva, a velhice
também é um mal, é feia, triste, deprimida e inútil... cada marca da passagem do
tempo é vista como decadência trazendo tremor e temor: “Oh! meu Deus? O que será
de mim? Como estou horrorosa! Já fui bonita, agora...”. O espelho torna-se o pior
inimigo. A pessoa vive como se fosse uma máscara de juventude, há uma
hiperatividade social, esportiva ou sexual, busca-se uma intensidade extrovertida da
juventude como uma defesa, uma forma de não entrar em contato com a realidade
vivenciada.

“TODO INTERVALO ENTRE AS OCUPAÇÕES É UM FARDO”, OS OCUPADOS SÃO OS QUE MAIS MENDIGAM EM SUAS
ORAÇÕES POR ACRÉSCIMO DE POUCOS ANOS, PROCURAM PARECER MENOS IDOSOS, LISONJEIAM-SE COM MENTIRAS E
ENCONTRAM ENORME PRAZER EM ENGANAR A SI PRÓPRIOS (SÊNECA, 1993: 48).

É nessa perspectiva que constatamos o quanto é difícil revelar a idade, e o quanto


as pessoas começam a ocultar a idade – parei nos 40, nos 50... Passamos ao longo da
vida cantando em todos os aniversários: “Parabéns pra você, nesta data querida,
muitos anos de vida...”. Os anos vão se acumulando se tivermos o lucro dos anos, e
no entanto, passamos a nos envergonhar deles! Que paradoxo! Nesta reação
involutiva, envelhecer é estar totalmente na contramão da vida e dos valores culturais.
Talvez pudéssemos mudar a letra e cantar: “Parabéns pra você, nesta data querida,
muitos anos de vida e muita vida em seus anos...”
A reação evolutiva é a que realmente expressa a inserção no processo vital de
contínuo desenvolvimento, como a Criança de Nietzsche, que está sempre se
renovando. A pessoa é capaz de encarar a velhice como a última etapa do
desenvolvimento vital, fase que traz declínios e perdas, como também abre novas
possibilidades existenciais. Portanto, significa continuar inserido no processo de
viver, aceitando as mudanças e as limitações inerentes. A vida, podemos dizer, é um
jogo de perdas e ganhos, isto perfaz todas as idades, do nascimento à morte. Viver

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requer aprender a mais básica verdade – a aceitação do inevitável. Nietzsche (2000)
afirma que fixaria até mesmo a posição e o valor de um homem conforme a
amplitude e diversidade do que ele pode suportar e assumir. Poeticamente, Rubem
Alves (2002) explicita a reação evolutiva:

HÁ MORANGOS QUE SE COMEM SOBRE ABISMOS.


BALÕES QUE SOBEM AO CREPÚSCULO.
E BELEZAS QUE SÓ EXISTEM NO OUTONO.
É PRECISO BEBER A TAÇA, ATÉ O FIM.

Estamos num contínuo devir, pois o desenvolvimento é obra de toda vida, do


nascimento à morte os porquês se farão presentes, o que vai se modificando são as
respostas que damos e o como vivemos. Jung (O.C., vol. 8/2 &785) diz:

O HOMEM QUE ENVELHECE DEVERIA SABER QUE SUA VIDA NÃO ESTÁ EM ASCENSÃO NEM EM EXPANSÃO, MAS NUM
PROCESSO INTERIOR INEXORÁVEL QUE PRODUZ UMA CONTRAÇÃO DA VIDA. (...) PARA O HOMEM QUE ENVELHECE É UM
DEVER E UMA NECESSIDADE DEDICAR ATENÇÃO SÉRIA AO SEU PRÓPRIO SELF. DEPOIS DE HAVER ESBANJADO LUZ E
CALOR SOBRE O MUNDO, O SOL RECOLHE OS SEUS RAIOS PARA ILUMINAR-SE A SI MESMO. EM VEZ DE FAZER O
MESMO, MUITOS IDOSOS TORNAM-SE HIPOCONDRÍACOS, AVARENTOS, DOGMÁTICOS E LOUVADORES DO PASSADO OU ATÉ
MESMO ETERNOS ADOLESCENTES, LASTIMOSOS SUCEDÂNEOS DA ILUMINAÇÃO DO SELF, CONSEQÜÊNCIA INEVITÁVEL DA
ILUSÃO DE QUE A SEGUNDA METADE DA VIDA DEVE SER REGIDA PELOS MESMOS PRINCÍPIOS DA PRIMEIRA.

Questões fundamentais da meia-idade

OLHAR PARA A FRENTE TEM DE SE CONVERTER EM OLHAR PARA DENTRO DE SI (JUNG).

Individuação, vista como uma contínua iniciação em nossa realidade interna,


requer a metanóia. Bonder (2001: 5) refere-se a essa fase como de libertação do
círculo vicioso do eu e do meu, passando-se a ter o senso de forças além do ego, de
um criador interno ou do self, na expressão de Jung. Viver em plenitude é estar
“antenado” com o self, aceitando o chamado ou inspirações internas. A individuação
é uma predeterminação que vem de dentro, é um processo permanente de
autotranscendência que culmina com a consciência do self, pela qual o ego ou a
consciência percebe que há poderes “além” de si, que a ultrapassa.
Jung (vol. 8/2) denominou metanóia – mudança de mentalidade, transformação da
mente além do mental, reorientação do eixo vital, do sentido da vida ou conversão.
São essas mudanças que dão toda densidade à concepção de vida. Época de
reavaliação, de captar o não vivido, o não realizado e de tornar-se cada vez mais si-
mesmo; ser seu próprio “co-criador”, reconhecer o que nos compete e descobrir que
cada um de nós é um milagre. Nossa memória, sexualidade, afetividade, relações
sociais e entusiasmo perduram em nossa vida, mas com modificações; aceitar essas
transformações é o único caminho para ser feliz. Nós escolhemos como queremos
viver e, conseqüentemente, envelhecer; a escolha sempre será de nossa
responsabilidade, ninguém pode escolher por nós. Aliás, isso até pode acontecer,

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quando cedemos ao outro o domínio de nossa vida. Nietzsche nos alerta dizendo que
só pode obedecer a outrem quem não pode obedecer a si mesmo. Mais uma vez,
podemos afirmar que a escolha e a responsabilidade são sempre nossas. Contudo,
nessas mudanças, também percebemos que não somos os únicos autores de nossa
vida, somos movidos por forças que nos antecedem e nos determinam. Para
Nietzsche: “A potência do super-homem é a fidelidade ao seu destino”. A principal
tarefa dos que iniciam a segunda metade da vida é a mudança de mentalidade, é
voltar-se para si. Conclui Jung: “Olhar para a frente tem de se converter em olhar
para dentro de si”.
Helio Pellegrino resume, sem o saber, o Processo de Individuação proposto por
Jung, na introdução de O Encontro Marcado, de Fernando Sabino:

O HOMEM, QUANDO JOVEM, É SÓ, APESAR DE SUAS MÚLTIPLAS EXPERIÊNCIAS. ELE PRETENDE, NESSA ÉPOCA,
CONFORMAR A REALIDADE COM SUAS MÃOS, SERVINDO DELA, POIS ACREDITA QUE, GANHANDO O MUNDO,
CONSEGUIRÁ GANHAR-SE A SI PRÓPRIO...
É MEIO-DIA EM NOSSA VIDA E A FACE DO OUTRO NOS CONTEMPLA COMO
ENIGMA. FELIZ DAQUELE QUE, AO MEIO-DIA, SE PERCEBE EM PLENA TREVA, POBRE E NU. ESTE É O PREÇO DO
ENCONTRO, DO POSSÍVEL ENCONTRO COM O OUTRO. A CONSTRUÇÃO DE TAL POSSIBILIDADE PASSA A SER, DESDE
ENTÃO, O TRABALHO DO HOMEM QUE MERECE O SEU NOME.

Jung confirma que fugir disso torna a vida frívola. Usou a imagem do rizoma como
sendo uma “lasca da eternidade infinita”:

A VIDA PARA MIM SEMPRE PARECEU COMO UMA PLANTA QUE VIVE DO SEU PRÓPRIO RIZOMA. A SUA VERDADEIRA
VIDA É INVISÍVEL, OCULTA NO RIZOMA.
A PARTE QUE APARECE ACIMA DO CHÃO SÓ DURA UM ÚNICO VERÃO, ENTÃO
MURCHA – UMA APARIÇÃO EFÊMERA. QUANDO PENSAMOS NO CRESCIMENTO E NA DECADÊNCIA INFINITOS DA VIDA E
DA CIVILIZAÇÃO, NÃO PODEMOS DEIXAR DE TER A IMPRESSÃO DE UMA ABSURDA NULIDADE. NO ENTANTO, NUNCA
PERDI O SENTIMENTO DE PERENIDADE DA VIDA SOB A ETERNA MUDANÇA. O QUE VEMOS É A FLORAÇÃO E ELA
DESAPARECE, MAS O RIZOMA PERMANECE (O.C., VOL. 8/2).

Raul Seixas, com irreverente sabedoria, diz com acerto: “Tem gente que passa a
vida inteira travando a inútil luta com os galhos sem saber que é lá no tronco que está
o coringa do baralho”. Parece que ambos falam da mesma realidade.
Entramos despreparados na segunda metade da vida, mantendo, segundo Jung, a
falsa suposição de que nossas verdades e ideais continuarão como dantes, a tarde da
vida deve ter um significado e finalidade próprios. O processo de metanóia, descrito
por Jung (vol. 8/2), pode ser assim sintetizado:
– buscar conscientemente sentido para a vida;
– voltar a libido para o self, ter o movimento da sístole;
– ressignificar as experiências vividas, ter maior consciência da realidade dos
opostos;
– compreender a vida como um contínuo processo de auto-eco-organização;
– reconhecer o envelhecimento como sinalização de que somos seres de passagem;
– ter consciência da finitude;
– encarar a morte como meta, potencializando a vida.

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PARA O SEGUNDO OBJETIVO CONTAMOS COM POUCA OU NENHUMA AJUDA. FREQÜENTEMENTE REINA UM FALSO
ORGULHO QUE O VELHO TEM DE SER COMO O JOVEM, OU PELO MENOS FINGIR QUE É... É POR ISSO QUE A PASSAGEM
DA FASE NATURAL PARA A CULTURAL É TÃO TREMENDAMENTE DIFÍCIL E AMARGA PARA TANTA GENTE; AGARRAM-SE
ÀS ILUSÕES DA JUVENTUDE OU SEUS FILHOS PARA ASSIM SALVAR UM RESQUÍCIO DE JUVENTUDE (...). NÃO É DE
ADMIRAR QUE MUITAS DOENÇAS GRAVES SE MANIFESTEM NO INÍCIO DO OUTONO DA VIDA. (...) MAS AS ANTIGAS
RECEITAS NÃO SERVEM MAIS PARA RESOLVER OS PROBLEMAS QUE SE COLOCAM NESSA IDADE. TAL RELÓGIO NÃO
PERMITE GUIAR OS PONTEIROS PARA TRÁS. O QUE A JUVENTUDE ENCONTROU FORA, O HOMEM NO ENTARDECER DA
VIDA TEM DE ENCONTRAR DENTRO DE SI. (...) MUITAS VEZES É NECESSÁRIO PERCEBER O ENGANO DAS CONVICÇÕES
DEFENDIDAS ATÉ ENTÃO, DE RECONHECER E SENTIR A INVERDADE DAS VERDADES ACEITAS ATÉ O MOMENTO, DE
RECONHECER E SENTIR TODA A RESISTÊNCIA E MESMO A INIMIZADE DO QUE ATÉ ENTÃO JULGÁVAMOS AMAR (JUNG
O.C.,VOL. 8/2).

Transferir-se são e salvo para a segunda metade da vida requer viver a metanóia, o
esforço e o risco para fazer um mergulho na interioridade, na busca de ser cada vez
mais si-mesmo e de forjar um ego que suporte as transformações e verdades, muitas
vezes difíceis de ser vividas. Há o encontro com o “centro vazio”, tudo é relativizado.
Jung (O.C., vol. 9/1) expressa este processo comparando o ego sendo forjado entre “o
martelo e a bigorna” num todo, num individuum. O ego reconhece as limitações e o
poder de forças que o transcendem. Platão também fala de duas forças primordiais:
Ananque e Razão. Ananque refere-se ao que é necessário, tem de acontecer, portanto,
não é acidental à vida. Razão é o que explica o que podemos entender, isto é, não
explica tudo. No Processo de Individuação após a meia-idade, é da ordem de
Ananque que a própria psique passe a ser o foco da atenção, havendo a possibilidade
de um maior reconhecimento da unidade entre psique e mundo ou do unus-mundus,
como diziam os alquimistas medievais. Essa manifestação da consciência da unidade
que o envelhecer propicia, está articulada à dimensão espiritual da libido; para Jung
(vol. 10/1, § 505): “A religiosidade significa dependência e submissão aos dados
irracionais”, isto é, aos dados que a razão, a consciência não explicam, mas estão no
inconsciente. Hillman (1997: 23) questiona: “Por que não de fato na psicologia, o que
antigamente se chamava de providência – algo invisível que vela por nós?” .

As metamorfoses da alma de Nietzsche e a metanóia de Jung

POSSIBILITAR A METANÓIA, OU SEJA, O RENASCIMENTO ESPIRITUAL.


(...) A RELAÇÃO INDIVIDUAL COM DEUS SERIA
UMA PROTEÇÃO EFICAZ CONTRA A INFLUÊNCIA NEFASTA DA AÇÃO MASSIFICADA (JUNG, O.C., VOL. X, § 536).

No Processo de Individuação, entre os vários eixos do desenvolvimento psíquico,


encontra-se o eixo Criança / Velho ou Puer / Senex. “O padrão ordenador de puer e
senex é essencial a uma noção sadia e saudável de autocontinuidade e auto-
identidade, nos diversos estágios da existência” (Yeoman, 2002: 24). Pode-se dizer
que esse eixo é como um arquétipo de duas cabeças, dois lados da mesma moeda, um
não existe sem o outro, e quanto mais um aspecto for polarizado e o outro pólo que
traz dentro de si ficar inconsciente, maior será a tendência a projetar e a invalidar o
que não pertence ao seu dinamismo. Quando polarizados, são vividos de forma
negativa, tornando-se, quando jovem, o puer-eterno e, na velhice, o velho senil. Vale

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lembrar o quanto nossa sociedade atual está impregnada pelos valores do puer, em
todos os seus aspectos, desde o comer, o vestir, a estética; o viver é regido pela
fantasia e imagética do jovem, quase não se considerando o pólo oposto; e se o faz,
geralmente, é de modo negativo e/ou destrutivo (López-Pedraza, 1997). Essas duas
dinâmicas psicológicas trazem aspectos positivos e negativos, na Criança / Puer
encontramos: espontaneidade, curiosidade, liberdade, mudança, pressa, fantasia, tanto
quanto irresponsabilidade, desligamento da realidade, onipotência...; no Velho / Senex
encontramos: compreensão, lentidão, sabedoria, tanto quanto rigidez, impotência,
negatividade...
O arquétipo da Criança / Puer tem função vital na maturidade e na velhice, é ele
que nos distanciará dos aspectos negativos do velho senil. Dinamizar o eixo Criança–
Velho, expressa-se sob diferentes formas:
– capacidade de ser mais pleno de si, de buscar integrar o fazer, o sentir e o pensar,
evitando desequilíbrios devido ao excesso ou atrofia de algumas dessas
dinâmicas;
– capacidade de deixar que nossa energia flua de modo mais natural, com uma
maior capacidade de aceitação das coisas, pessoas e acontecimentos. A
individuação, vista sob o prisma do eixo Criança x Velho, explicita que o homem
é sempre “co-criador de si”, reconhece a sua missão, o que lhe cabe fazer ou ser
nesta vida. Isso equivale à capacidade definida no hassidismo (Bonder, 2001), de
sermos tudo o que somos e não de sermos mais do que somos; precisamos, sim,
ser tudo o que potencialmente podemos ser. Portanto, ser velho pode significar
paz para sermos nós mesmos, sermos diferentes e em sintonia com nossa chama
interior, respeitando nossos potenciais distintos, e ao mesmo tempo nos sentindo
profundamente iguais;
– interagir mais pela experiência e busca das verdades do que pela necessidade de
certezas. É articular-se cada vez mais à realidade do E / E , isto é, a capacidade de
integrar os opostos inerentes à tudo o que é humano, de ver os dois lados da
realidade, e que a filosofia hindu chama de Neti-Neti – nem isto, nem aquilo, para
não cair na unilateralidade dos opostos, que propicia o dogmatismo. Sem os
contrários, sem a tensão dos opostos não há progresso nem vida saudável,
segundo Jung (1975);
– manter os investimentos libidinais orientados na pluralidade da busca dos
sentidos existenciais, que levam naturalmente à consciência da passagem do
tempo, ao confronto com a finitude e à morte. A busca do significado da vida
equivale à dimensão espiritual para Jung, e é tão vital para o homem como o é a
dimensão sexual da libido. Envelhecer requer ativar o “revolucionário” que existe
em cada de nós, precisamos dele para encararmos as limitações do envelhecer e
seguirmos em frente. Só assim poderemos ser os artífices de nossa própria vida.
Vivenciar as dinâmicas da velhice requer esforço para confrontar e integrar novos
valores. Envelhecer saudável é poder aceitar as inverdades que nos escravizaram e
que agora delas podemos nos libertar. Segundo Jung, o enrijecimento das posições é
medo, medo de confrontar o problema dos contrários, de poder ver o outro lado da
questão, o ponto de vista do outro. Talvez seja mais fácil seguir unilateralmente
apegado ao seu próprio ponto de vista, se colocando sempre como dono da verdade;

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ficar encarcerado na postura unilateral do OU / OU. Envelhecer desenvolvendo-se
requer manter sempre ativada a curiosidade e abertura para o novo, requer ativar
sempre o arquétipo criança dentro de si.
Envelhecer crescendo, isto é, aumentando a própria sonoridade, segundo o Aurélio,
requer a atualização das potencialidades originais do nosso “DNA” psíquico – self.
Portanto, é vital fazer acontecer o seu self, a totalidade originária ou o caráter.
Segundo Hillman, (2002), nossa diferença é a diferença ativa da forma, isto é, do self,
da alma; nossa herança genética ganha forma individual através do caráter: traços,
fraquezas, gestos, relações, nossa história e nosso rosto, tudo espelha a nossa alma.
Construir o caráter aumenta a longevidade, conclui Hillman, pois permite ser o que se
é, nada além ou diferente. “Existe na vida uma inteligência que tem a intenção do
envelhecimento, assim como, também, tem a intenção de crescimento na juventude.”
Envelhecer requer impregnar-se do sentido da transformação, crer mesmo que a
vida é como um laboratório de mudanças e não fixação em certezas ou em posições
anteriormente assumidas. Buscar, sempre que for possível, transformar os fatos (algo
que aconteceu) em experiências (o que isso significa). O que importa é poder se
perguntar sempre: Qual o significado disso para minha vida? O que posso modificar?
Podemos afirmar, que talvez o maior perigo da velhice é ter a alma empacotada, é
não estar inserido na vida, não ser senhor(a) de si mesmo, é não ter a própria “tábua
de valores”, é viver de forma unilateral, sem integrar a dinâmica do E / E. É seguir
pela vida com: rigidez de papéis, impessoalidade de relações (solidão/depressão),
performance centrada no trabalho, no desempenho sexual, alienação das vivências da
criança que trazem a espontaneidade, a curiosidade, a imaginação...
O Processo de Individuação no envelhecer requer descobrir objetivos diferentes
dos da primeira metade, senão a aproximação da velhice só será vista como uma
diminuição da vida. Segundo Jung:

SE TAIS PESSOAS TIVESSEM ENCHIDO, JÁ ANTES, A TAÇA DA VIDA ATÉ TRANSBORDAR, E A TIVESSEM ESVAZIADO ATÉ A
ÚLTIMA GOTA, CERTAMENTE SEUS SENTIMENTOS AGORA SERIAM OUTROS; TUDO O QUE QUISESSE PEGAR FOGO ESTARIA
CONSUMIDO, E A QUIETUDE DA VELHICE SERIA BEM-VINDA PARA ELAS. MAS NÃO DEVEMOS ESQUECER QUE SÓ
POUQUÍSSIMAS PESSOAS SÃO ARTISTAS DA VIDA, E QUE A ARTE DE VIVER É A MAIS SUBLIME E A MAIS RARA DAS
ARTES (O.C., VOL. 8/2 & 789).

Nietzsche (2000: 51), em sua obra Assim falou Zaratustra, expressa possibilidades
inerentes ao desenvolvimento da personalidade e ao Processo de Individuação.
Destaco de modo privilegiado e recomendo a leitura do capítulo “As metamorfoses
da alma”, onde descreve, com mestria, três estados de alma que nos são inerentes e
peculiares: Camelo, Leão e Criança.
O estado de Camelo, de modo geral, expressa as vivências de submissão e
obediência, de assimilação dos valores impostos. É o espírito de suportação, que
geralmente se liga ou só faz amizade com os surdos, os que nunca ouvem o que
dizemos, não nos escutam. Impera o eu devo, eu preciso, eu tenho da força
civilizatória, é o viver carregado pelas obrigações. “Todos esses pesadíssimos fardos
tomam sobre si o espírito de suportação; e, como o camelo, que marcha carregado
para o deserto, marcha ele para o próprio deserto. ” Ao vivermos sempre voltados

42
para fora e para os compromissos, não criamos nosso oásis interno. Vivemos
escravizados ao profano sim aos outros, mais do que a nós mesmos, pois é o
constante sim aos outros que nos distancia de nós mesmos, nos faz seguir sempre o
desejo ou a lei do outro, seja ele marido, mulher, patrão, filho, amigo... Encontramos
afinidade com o pensamento de Sêneca (1993: 53), que diz:

A CONDIÇÃO DE TODOS OS OCUPADOS É MISERÁVEL, CONTUDO A MAIS MISERÁVEL É A DAQUELES QUE NEM SE
MOLESTAM COM SUAS PRÓPRIAS OCUPAÇÕES, QUE REGULAM SEU SONO PELO ALHEIO, QUE CAMINHAM SEGUNDO AS
PASSADAS DE OUTRO E QUE ESTÃO SOB ORDENS, MESMO NAS MAIS LIVRES DAS COISAS: AMAR E ODIAR. ESSES, SE
QUISEREM SABER QUÃO BREVE É A VIDA, QUE CONSIDEREM QUÃO INSIGNIFICANTE É A PARTE QUE LHES CABE.

O estado de Leão tende a surgir ao se tomar consciência do deserto da vida, do


estar estagnado nas obrigações cotidianas, esta consciência ocasiona uma mexida em
direção à conquista da liberdade, começa-se uma fase de correr riscos. Os riscos
devem ser corridos, senão nada de novo acontece. Viver a dinâmica Leão é
desacorrentar-se das atitudes escravas, é dar um grito de liberdade. Impera o eu
quero, aprende-se a dizer o sagrado não, indo cada vez mais em busca da própria
autodeterminação, na busca da liberdade para novas criações. Adélia Prado (1991:
19) poeticamente fala do movimento: “Eu sempre sonho que uma coisa gera, nunca
nada está morto. O que parece vivo, aduba. O que parece estático, espera”. O estado
de Leão nos incita ao movimento, à geração de algo. Para viver este estado, é preciso
quebrar a tábua de valores imposta e começar a criar a própria tábua de valores, para
isso, é vital enfrentar nosso maior inimigo – o medo. As regras seguidas serão as que
estiverem a serviço da vida, e não mais as que serviam para reprimir a vida. É a fase
de abandonar as regras, de despir as máscaras da persona ou das convenções sociais e
ir em busca da própria auto-afirmação. Permite o início da aventura da criatividade, e
só então poderá surgir a Criança. O que será que a Criança pode que o Leão não
conseguiu, pergunta Nietzsche.
Criança expressa uma referência de conquista e liberdade. Representa, assim, a fase
da mais plena criação, de inocência, do esquecimento, da curiosidade, da
espontaneidade. Expressa o começo e o fim, um começar de novo, um sagrado sim a
si-mesmo e à vida. Impera o eu crio, e isso possibilita uma ligação visceral com a
alegria. Pois, para Nietzsche, o único pecado original seria a falta da alegria, e ela está
em coisas singelas e passageiras, basta ter olhos para ver. Trazer à tona o arquétipo da
Criança que vive em nossa psique, é uma forma de buscar a realização pessoal, não
significa voltar a ser criança ou a ter uma máscara juvenil. Viver a criança pode
significar tantas coisas! Viver essas metamorfoses da alma em época de metanóia é
estar em constante transformação, abrindo-se para possibilidades impensáveis, que
muitos chamam de sabedoria. Jung (O.C., vol. IX & 260) diz que o “velho mestre vê
no opus(obra) alquímica uma espécie de ‘apokatástasis’, o restabelecimento de um
estado inicial na ordem escatólogica – o fim olha para o começo, e vice-versa. É
precisamente isto que acontece no Processo de Individuação”, cita a mensagem cristã:
“Se não vos tornardes como as crianças...”.
Significa estar aberto ao agora, ao momento presente, esse é o tempo que temos,
tempo vital de ação – gerúndio. “Fazem-se planos a longo prazo; no entanto, protelar

43
é o maior prejuízo para a vida: arrebata-nos cada dia que se oferece a nós, rouba
nosso presente ao prometer o futuro”, Sêneca (1993: 37). Com beleza, Mário
Quintana nos diz qual é a idade para ser feliz:

EXISTE SOMENTE UMA IDADE PARA A GENTE SER FELIZ


SOMENTE UMA ÉPOCA NA VIDA DE CADA PESSOA
EM QUE É POSSÍVEL SONHAR E FAZER PLANOS
E TER ENERGIA BASTANTE PARA REALIZÁ-LOS
A DESPEITO DE TODAS AS DIFICULDADES E OBSTÁCULOS.
UMA SÓ IDADE PARA A GENTE SE ENCANTAR COM A VIDA.
...
ESSA IDADE TÃO FUGAZ NA VIDA DA GENTE
CHAMA-SE PRESENTE
E TEM A DURAÇÃO DO INSTANTE QUE PASSA.

Significa colocar pra fora as emoções, ser capaz de expressar os sentimentos, de


dizer “estou com medo, estou triste, chateado ou estou feliz, eu te amo...”. Pois só se
nos abrirmos, teremos chance de sermos compreendidos, vale a pena tentar.
Atualmente, tenho observado o quanto as pessoas acariciam, tocam, demonstram o
maior carinho aos seus animais de estimação, normalmente não ficam esperando uma
demonstração de carinho, elas logo se doam, elas iniciam o vínculo, o afago. Digo
então que, se elas dessem 10% desse carinho ao seu companheiro, filho, amigo etc., a
vida seria bem melhor. Realmente, são as relações afetivas que nos dão sustentação e
fazem a vida ser gostosa de ser vivida.
Significa ser capaz de brigar, negar, se opor e logo em seguida perdoar e pedir
perdão. Talvez o maior aprendizado seja perdoar a si mesmo, nos perdoar pelos erros
e também pelo que não fizemos, mas como gostamos de nos culpar e criticar. Leloup
(1999) diz que se seu coração lhe condena, lembre-se de que Deus é maior que seu
coração. Como as crianças sabem, o que dá pra rir dá pra chorar, e elas choram e
riem, sem medo de serem taxadas de neuróticas. Deixar as lágrimas se soltarem,
esvaziar, vale a pena; os estudiosos da medicina psicossomática recomendam como
sendo eficaz na prevenção de muitas doenças, incluindo a depressão.
Significa ser capaz de esquecer, as crianças têm memória curta e como isso é
saudável. Elas não ficam remoendo raivas, dores de mil anos atrás, elas não vivem
tirando mágoas e ressentimentos do baú, porque elas não deixam nada se acumular.
Como as crianças têm memória curta para esquecer as coisas ruins, tudo passa
rápido. Mas, como elas têm memória longa para buscar a realização de seus desejos,
para lutar pelo que querem, elas sabem insistir como ninguém. Porém, muitas vezes,
ao envelhecer, paramos de expressar nossos desejos, como se os outros tivessem
obrigação de saber; e se não advinham, nos sentimos magoados – “como até hoje
ele(a) não sabe que eu ...”.
Significa manter ativada a capacidade de fantasiar, a fantasia pode levar a fugas,
como Peter Pan, e viver na terra do nunca, ou viver o mito da criança eterna – a que é
sempre incapaz de... (Yeoman, 2020). Mas a fantasia traz a chance de crescimento
psíquico, abre possibilidades de lidar com a realidade de forma mais criativa e bem-
humorada. Hillman (2001: 134) falando especialmente da fantasia/ imaginação

44
erótica, acredita que ela possa fazer mais para o vigor físico e intelectual da velhice
que halteres etc. Relata descrições do diário do psicanalista Samuel Atkin, afligido
pela doença de Parkinson, aos 88 anos. Relatos:

ACORDEI EM ESTADO DE EXCITAÇÃO SEXUAL. VIVA! O IMPULSO ERÓTICO AINDA FUNCIONA.... EU AINDA ME SINTO
ANIMADO. ESTOU ME DIVERTINDO. ESTA ERUPÇÃO ERÓTICA. UM IMPULSO CRIATIVO. PIRUETAS. UM PALHAÇO....
COMECEI O DIA EM ESTADO DE DEPRESSÃO – MEIO MORTO. VOU TERMINÁ-LO COM GLÓRIA. PENSAMENTOS ERÓTICOS:
POSSUO TRÊS COISAS: 1 - UMA MENTE ATIVA, TALVEZ PELO MENOS CAPAZ DE LIDAR COM AS TAREFAS DA VIDA
MADURA, MAS INTEIRAMENTE CAPAZ DE FANTASIAS ERÓTICAS; 2 - UM FALO QUE PERDEU A CAPACIDADE TOTAL DE
VIRILIDADE E DE EJACULAÇÃO, MAS AINDA É CAPAZ DE SENSAÇÕES AGRADÁVEIS, GRAÇAS À IMAGINAÇÃO; 3 - MINHA
MULHER... OBJETO DE MEUS SENTIMENTOS ROMÂNTICOS...

E o brincar? Winnicott (1975) diz que é brincando e só brincando que a criança ou


o indivíduo adulto torna-se criativo; só sendo criativo, o indivíduo descobre o seu eu
e pode dar vazão a tantas potencialidades ainda inconscientes.
Significa estar aberta ao novo, as crianças são curiosas e não se sentem na
obrigação de saber tudo, elas não têm medo de errar. No aprendizado de seus
primeiros passos, do caminhar, como as crianças caem, elas caem e logo em seguida
se levantam e vão em frente, sem medo do outro ou de ser feliz. Podemos aprender
que todo novo caminhar requer aprendizagem, e para isto precisamos cair e levantar
sem ficar nos criticando pelos erros e quedas. Uma das aventuras da velhice é estar
aberta, ainda que com lentidão, a novas aprendizagens. Como tem sido enriquecedor
para tantos idosos, e de modo especial para os deprimidos, abrir-se para as saídas
criativas, seja elas quais forem (Monteiro, 2002); podemos falar da mobilização de
capacidades expressivas, de recursos lúdicos, de vivências grupais, da capacidade
criativa.
Significa ser capaz de mudar a experiência. Albon (1998) expressou essa verdade
que muito me fez refletir, pois somos condicionados a repetir, a pensar igual. Relata a
realidade de um professor que contrai ELA (esclerose lateral amiotrópica) e,
questionado sobre o que seria para ele a maior impotência, a rendição máxima
quando paralizado pela doença, afirmou ser quando “precisasse que limpassem sua
bunda”. Finalmente esse dia chegou. Deve-se ficar deprimido diante dessa realidade
imutável ou mudar a experiência? Percebeu que o bebê recebe todos os cuidados, é
banhado, carregado, limpo em sua higiene, acariciado, e como isso é agradável! Por
que não poderia ser assim também? Ele aprendeu aos 78 anos a se dar como um
adulto e receber como uma criança.
Finalizando As metamorfoses da alma, conclui Nietzsche: “Sim, meus irmãos, para
o jogo da criação é preciso dizer um sagrado sim: o espírito, agora, quer a sua
vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista seu mundo”.

Parando de refletir...

SONHAR, MAS UM SONHO IMPOSSÍVEL. LUTAR, QUANDO É FÁCIL CEDER (FERNANDO PESSOA).

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Parando de refletir ou concluindo significa dizer que estamos no tempo verbal mais
propício ao desenvolvimento – o gerúndio. É esse tempo verbal que nos coloca
sempre na atividade, que nos retira do lugar das certezas e nos coloca no lugar da
busca e na eterna aventura de sermos eternos aprendizes de nossos desejos. Estarmos,
ou não, inseridos nessa perspectiva nos abre diferentes possibilidades.
Delineamos duas possibilidades de trilhar o nosso processo de envelhecimento
após a meia-idade. Uma nos articula ao crescimento quantitativo, à plasticidade
biológica, à criatividade e produtividade de algo, portanto, tendo um foco mais no
externo, nas realizações. A outra nos articula ao refinamento qualitativo, à articulação
com as capacidades psíquicas e à criatividade e desenvolvimento de si mesmo,
portanto, tem o foco mais no interior, na subjetividade. Norberto Bobio (1997:55),
aos 87 anos, escreve:

DEVEMOS EMPREGAR O TEMPO MENOS PARA FAZER PROJETOS PARA UM FUTURO DISTANTE AO QUAL JÁ NÃO
PERTENCEMOS, E MAIS PARA TENTAR ENTENDER, SE PUDERMOS, O SENTIDO OU A FALTA DE SENTIDO DE NOSSAS VIDAS.
CONCENTREMO-NOS. NÃO DESPERDICEMOS O POUCO TEMPO QUE NOS RESTA.

Podemos nos fixar nas ilusões e no apego articulando possibilidades de maior


sofrimento e dor ou buscar aprender o desapego elaborativo, que é ligado às
possibilidades de sabedoria. “Somos o limite de nossas ilusões perdidas”, disse
Bachelard.
Como encarar as perdas, dores e desilusões inerentes ao processo do viver e do
envelhecer? “Ninguém é sábio se não conhecer a escuridão”, diz Herman Hesse.
Muitas vezes são os tempos difíceis, de perdas, de sofrimento que nos levam aos
questionamentos sobre os motivos para viver, o sentido e a buscar respostas. A vida é
repleta de momentos difíceis e no envelhecer eles se acentuam. A experiência do
sofrimento diante das perdas da pessoa amada, dos filhos que se ausentam, do
trabalho que se encerra, dos ouvidos surdos que não captam a melodia, dos olhos que
não vislumbram a beleza do pôr-do-sol, das mãos já tão debilitadas que não alcançam
os lábios, das pernas que não nos conduzem ao alcance dos objetos desejados, da
memória que se esvai deixando nossa identidade difusa ou perdida... Como vivenciar
tudo isto? Para vivenciar tudo isto, precisamos forjar um eu que suporte a verdade,
aprendizagem de toda uma vida.
Para Boff (2000), o sertão, a seca, o deserto, são a pátria da humanidade, pois eles
propiciam a transcendência. A emergência da dimensão espiritual da libido/energia
psíquica, se não tiver sida ativada, encontra nesses momentos oportunidade de se
atualizar (Monteiro, 2006). Na penumbra, os olhos enxergam de um modo que a
claridade não permite, pois na claridade os “olhos vêem apenas o que a mente está
preparada para compreender” (Bonder, 2001: 80). Assim, os que estão acostumados
com a penumbra discernem as formas no escuro, conclui, que por si só o sofrimento
não é capaz de ver, mas faz com que acendamos as lanternas do “encontro” que se
abre em infinitos caminhos. Também Platão (2002) finaliza seu discurso afirmando
que a visão do pensamento começa a ver com agudeza quando os olhos começam a
perder a força. Envelhecer é arte e sabedoria, mais que biologia, disse Hillman.
As provações do tempo são inevitáveis e podemos escolher vê-las como inimigas a

46
nos destruir ou como amigas a nos ensinar que “As coisas humanas não são eternas e
vão sempre em declinação desde o início até o seu último fim, especialmente a vida
dos homens”, como disse Cervantes. Isso nos remete ao budismo, ao afirmar que uma
das maiores causas de sofrimento humano é a crença na permanência das coisas,
levando ao apego e à posse. Porém, tudo, tudo na vida e na natureza passa e se vai.
Como canta Lulu Santos: “Nada do que foi será /do jeito que já foi um dia/ tudo
passa/ tudo passará.../ como uma onda no mar/ como uma onda no mar...”.
No processo vital do desenvolvimento, na contínua autoconstrução do eu após a
meia-idade, na vivência do eterno sou, e não do fui ou do serei, inerente ao Processo
de Individuação, compete-nos ao chegar à velhice alcançar o estado ideal desejado de
se tornar um velho sábio e não um velho senil. Como lembra Shakespeare (2002: 40):
“Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”. O que é exatamente a
sabedoria? É quase inefável, mas sabemos que existe, sabemos principalmente
quando a encontramos. Quando jovens esperamos um dia compreender o mundo e
ficar mais sábios, mas, ao ficar velhos, nem por isso nos sentimos sábios; seguimos
sendo eternos aprendizes de nossos desejos e da vida. Contudo, para Leloup (1999)
sábio é o homem que tem o gosto de ser. Sábio vem do verbo sapere, isto é, saborear
o seu ser, seu centro, ter seu jeito estruturado de ser. Esta estrutura interior não é a
aparência, é o sabor, a “delícia de ser o que é”. Tudo vai depender diz Luft (2003:
113), “de cada um de nós, que sua vida seja território seu ou apenas emprestado, com
má vontade, de outros – mesmo filhos. Que seja campo para correr perseguindo
projetos e colhendo vivências, ou cova estreita onde a gente se esconde e aguarda o
golpe final”.
Para Jung, a meta da vida é “criar consciência”, é nos tornarmos especiais,
alcançarmos a plenitude de nossa identidade, essa é a nossa maior responsabilidade, é
o nosso livre-arbítrio. A responsabilidade de sermos quem e como somos, não cabe
ao outro ou até mesmo a Deus, ela cabe exclusivamente a cada um de nós.
Em um depoimento ao final da vida, Jung expressa de forma singela o que para ele
era essa meta ou seja, essa sabedoria, ele diz:

O ARQUÉTIPO DO HOMEM IDOSO QUE CONTEMPLOU SUFICIENTEMENTE A VIDA É ETERNAMENTE VERDADEIRO; EM


TODOS OS NÍVEIS DA INTELIGÊNCIA, ESSE TIPO APARECE E É IDÊNTICO, QUER SE TRATE DE UM VELHO CAMPONÊS OU
DE UM GRANDE FILÓSOFO COMO LAO-TSÉ. ASSIM, A IDADE AVANÇADA É... UMA LIMITAÇÃO, UM ESTREITAMENTO. E,
NO ENTANTO, ACRESCENTOU EM MIM TANTAS COISAS: AS PLANTAS, OS ANIMAIS, AS NUVENS, O DIA E A NOITE E O
ETERNO NO HOMEM. QUANTO MAIS SE ACENTUOU A INCERTEZA EM RELAÇÃO A MIM MESMO, MAIS AUMENTOU MEU
SENTIMENTO DE PARENTESCO COM AS COISAS. SIM, É COMO SE ESSA ESTRANHEZA QUE HÁ TANTO TEMPO ME
SEPARAVA DO MUNDO TIVESSE AGORA SE INTERIORIZADO, REVELANDO-ME UMA DIMENSÃO DESCONHECIDA E
INESPERADA DE MIM MESMO (1975: 310).

Que possamos aprender sempre :


– a não abrir mão do próprio desejo de ser nós mesmos, do jeito que formos – pois
esse é o nosso jeito, nossa essência;
- a manter presente o arquétipo da criança para nos colocar na aventura do
momento presente;
– a ser feliz, pelo milagre ou pelo dom da vida em si e não por ela ser desse ou
daquele jeito...

47
Que possamos todos dizer, com a mestria de Cervantes em Dom Quixote:

“EU TIREI O MÁXIMO DE MIM MESMO. ESTA É A MELHOR VITÓRIA QUE SE PODE DESEJAR.”

Bibliografia

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* Graduada em Filosofia, Educação e Psicologia. Mestre em Educação; Analista Junguiana – AJB (Associação Junguiana do Brasil) e
da IAAP (Associação Internacional de Psicologia Analítica); Professora de Psicologia da Pós-graduação do Instituto Brasileiro de
Medicina de Reabilitação (Uni-IBMR); Gerontóloga – Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Publicações: -

48
Mulher: Feminino Plural. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos (Record), 1998. - (Org.). Depressão e Envelhecimento. Saídas Criativas.
Rio de Janeiro: Revinter, 2002. - (Org.). Dimensões do Envelhecer. Rio de Janeiro: Revinter, 2004. - (Org.). Espiritualidade
e Finitude. Aspectos Psicológicos. São Paulo: Paulus, 2006. Participação: - “Afetividade, Intimidade e Sexualidade no
Envelhecimento”, cap. 113, In: FREITAS, E. V. et al. Tratado de Geriatria e Gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
2004.

49
5
Metanóia e história: Conflitos e rupturas na meia-
idade
Fernando Cavalheiro*

No livro Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo (O.C.,V 10/2, § 299),


Jung cita uma passagem do apóstolo Paulo na qual Deus, vendo a “agnóia”
(ignorância) dos homens, sua inconsciência, deu início à redenção da humanidade.
Lembrou-lhes de sua linhagem divina e enviou uma mensagem que clamava para que
“mudassem de pensar”. O verbo citado é “metanoein”, que significa “mudar” a
maneira de pensar, sair da inconsciência na qual viviam para uma outra atitude
mental diante do mundo e compatível com uma nova condição humana. Aqui Jung
fala da necessidade de mudanças ao longo da vida, compatíveis com a demanda
inconsciente e a expansão da consciência. Para isso, é preciso um outro pensar e um
outro sentir o mundo. A acomodação leva à inibição da pessoa que permanece a
mesma, até que a doença ou a morte decida mexer as peças. Essa questão se dá no
coletivo, como no caso acima, quando a humanidade precisa mudar sua visão de
mundo e entrar numa outra ordem de existência. Assim como, da mesma forma, ela
ocorre nas etapas da vida de cada um, na adequação a um novo momento, a um novo
desafio pertinente à individuação, ou, como Jung também costuma dizer, em acordo
com a totalidade da personalidade.
Metanóia significa mudança radical vinda de uma força inconsciente que entra em
conflito com a consciência sintônica com o status quo adquirido com tanto esforço.
Ela produz angústia, depressão, pensamento de morte, assim como perspectiva de
liberdade, de planos, de um novo renovador que muda o rumo de uma vida. Enfim,
remete-os ao conflito. A metanóia remete ao corte que rompe o contínuo da história,
estabelecendo uma outra ordem. Um início, uma mutação, um outro que traça no
presente uma origem. Queremos dizer com origem uma eterna condição de
possibilidade do novo adentrar na consciência e desviar a história para um outro
modo de ser.
A metanóia enfrenta uma enorme resistência na forma do progresso histórico. A
crença no progresso é a grande ilusão iluminista: desvendar todos os mistérios e dar à
humanidade o conforto da certeza do descanso eterno. Mas o progresso é tão-somente
o prolongamento do presente, do mesmo, no qual a origem é o início de uma história
dada que termina no juízo final. Por isso mesmo é preciso o corte que rompe o
contínuo e permita uma nova origem. Essa é a abertura da metanóia e, ao mesmo
tempo, sua angústia dilacerante.

50
O contínuo do progresso, essa agnóia atávica, em nossa sociedade é camuflado em
novidades permanentes que nos dão a ilusão do novo, mas que nasce envelhecido e
superável. A crença é que haverá um novo que nos dará uma longa vida, o hedonismo
terreno ou o descanso eterno ao lado de um Deus ocioso que nos aguarda para
gozarmos de uma lassidão infindável. Construímos e destruímos nossa escada rumo
ao céu, numa ansiedade estonteante que nos faz antever, através de ilusões, o último
degrau, antes de cairmos.
A corrida por esse troféu do prazer infinito, prometido pelo progresso, expressa o
individualismo que se diferencia do que Jung chama de individualidade. Enquanto a
individualidade é o indivíduo no mundo, o individualismo é o indivíduo em si
mesmo. É a radicalidade da linguagem babélica, na qual cada um só fala e entende a
si mesmo. Todo outro é um potencial competidor a ser excluído. Basta ouvi-lo e logo
estaremos em pânico, desejando seu fim imediato. A estranha presença do outro é
como Pã saltando dos arbustos. O olhar, a fala, o toque, tudo nos assusta, nos põe em
prontidão. O motivo dessa luta é inconsciente, ele é apenas um grito, mudo. Por ela,
nos esquivamos do outro, nos isolamos. O encontro é fugaz ou tão-somente parte de
um rígido contrato social. Sem abertura e sem espaço para mudar o pensar, somos
atormentados pelo pânico.
Como tememos a nós mesmos, perdemos a presença de Deus. Para nós ele morreu.
Não havendo outra intervenção apostólica, o mundo da revelação adormeceu em seu
crepúsculo. Preces e loas se perdem em nosso assustado vazio. Carecemos de cortes,
de quebras, de dobras. Aquilo que mude o rumo e rasgue a história como o mesmo,
apropriada na engessada forma narrativa. Essa tarefa de ruptura passou a ser humana,
pois o Deus de Paulo emudeceu, ou não mais o ouvimos.
A tarefa criativa de falar de nós mesmos e, na medida em que nos reconhecemos
nessa fala, adquirirmos uma identidade, teve início na elaboração da história humana
pela descrição dos mitos de origem. E origem aqui significa um início absoluto. A
partir dela tece-se o relato interpretado da história. De início, a história, mesmo sem
ser dessa forma nomeada, é relatada oralmente. “Fala de um tempo longínquo, de um
tempo das origens, tempo dos deuses e dos heróis, do qual só as musas podem nos
fazer lembrar, pois, sem elas, não podemos saber (idein) daquilo o que não vemos”
(Gagnebin,1997: 17). Essas memórias dão algum sentido ao homem solitário e
desprotegido; gerando neste ser humano um sentido de identidade, de grupo, de
parceria e proteção. A linguagem cria e une um povo, dá-lhe identidade e proteção
diante do vazio. A linguagem constitui uma nação, por necessidade.
Nesse mundo, o tempo é circular, retorna com a narrativa fácil e acolhedora de uma
grande mãe, contando histórias de ninar. Ela é um útero que gera e aborta seus
rebentos, acostumando-os com a idéia de um nós, dando o ponto na mistura. Mas esse
fechamento permanente empobrece a linguagem e atrofia o sujeito. Por isso mesmo, o
discurso mítico vai sendo substituído pelo discurso lógico; embora a linguagem
mítica permaneça sempre ao seu lado. Há um tempo em que um grego chamado
Heródoto passa a escrever o que se dizia. Que descreve em seus escritos o que viu e
pesquisou do relato dos outros. Para Gagnebin, “a palavra grega historiè tem, nesta
época e neste contexto, uma significação muito mais ampla: ela remete à palavra
histôr, àquele que viu, testemunhou’”. (Gagnebin, 1997: 16). Portanto, há de se ter

51
pesquisa, testemunha e relato coerente dos fatos. Curiosamente, o objeto de pesquisa
e de descrição histórica pode variar no tempo e no espaço. “A historiè pode pesquisar
a tradição dos povos longínquos, as causas das enchentes do Nilo ou as razões de uma
derrota militar” (Gagnebin,1997: 16). É essa forma ilógica que não cessa de evocar o
logos como forma, mas que é flexível com o conteúdo, que nos importa. É a forma
cruzada onde o tempo retilíneo atravessa o circular, abrindo uma fenda por onde entra
o passado. Walter Benjamin diria que é por essa abertura que passa o messias, a
origem, a possibilidade de uma nova história.
Com Tucídides, a retificação da história se estabelece por inteiro. Não admite
emoções no relato, pois ficaria à mercê da simpatia do relator, modificando os fatos.
Desconfia da memória, falha e enganadora. Bastava perguntar para algumas pessoas
sobre o ocorrido para verificar as diferenças nos relatos e confirmar a desconfiança
nas emoções e na memória. “Tucídides não se contenta com um ceticismo
benevolente; exige uma reconstituição crítica dos acontecimentos, cujos critérios
racionais são a verossimilhança da situação e a pertinência das palavras
pronunciadas” (Gagnebin, 1997: 28). O logos se impõe no discurso histórico,
retificando a história e fechando as possibilidades de abertura, da fenda por onde o
estranho ao logos possa se insinuar. A semente iluminista se põe na linguagem que
passa a descrever e construir racionalmente a história. Paradoxalmente, é por isso
mesmo que ela se transforma em versão, a versão unilateral da consciência.
Sendo assim, a história só tem um sentido, e ele aponta para o progresso. O
progresso iluminista, de salvação do homem pelo homem, se põe a caminho
irreversivelmente. Nele, a memória “pertence ao mythodes e ao engodo” (Gagnebin,
1997: 29). O passado deve ser verificado, racionalizado, compreendido, interpretado
e explicado como um registro a ser lido no futuro com a autoridade da verdade.
Antecipando Descartes, deve-se desconfiar do sentimento, da memória, do mito ou de
qualquer coisa que possa cruzar a linearidade da razão.
Ao encadear os fatos racionalmente, a história adquire uma forma lógica, um
encadeamento de fatos, onde causas e efeitos ordenam o processo histórico. O que de
fato se inicia é um projeto que trata menos de colher dados e encadeá-los numa
seqüência lógica para a compreensão da história do que a criação de um modelo que
fará do tempo um ponto único que se estende infinitamente. O pré-posto determina o
presente, cujo futuro é sua extensão. O determinismo divino é copiado, com nuanças,
do determinismo histórico, do qual também não podemos escapar. A história vai se
configurando como um enquadramento, um roteiro que não cessa de se repetir, em
remakes trash. Não há espaço, não há fresta, tudo está previsto e contado. A isso se
deu o nome de historicismo, a historiografia iluminista do progresso. Como dito por
Benjamin, “um contínuo homogêneo e vazio” (Benjamin, 1996: 229).
A história pessoal e a história coletiva passam a ter uma forma rígida, cujo
conteúdo não cessa de se repetir. Na juventude olhamos o futuro como descobridores
de um mundo inexplorável, com mil possibilidades e novidades, mas logo recebemos
o diário de bordo com todas as regras e uma lista fechada de opções. A sociedade nos
enquadra. Neste período da vida, não olhamos para trás, pois não há uma história,
apenas traços espaçados de memória, como estrelas cadentes fugidias. Quando
adultos jovens, começamos a realizar o que projetamos na crença na liberdade das

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escolhas. Ficamos felizes pelas conquistas e não nos damos conta de que, cada vez
mais, nos enquadramos na história, no processo que promete nos levar a algum lugar
importante, referendado e legitimado pela sociedade.
Estamos dentro do contínuo homogêneo e vazio, e por isso mesmo não
identificamos a mão invisível da história que nos faz deslizar no mesmo, com a ilusão
de que experimentamos o novo. No texto intitulado “Sobre o Conceito da História”,
Benjamin diz que:

CONHECEMOS A HISTÓRIA DE UM AUTÔMATO CONSTRUÍDO DE TAL MODO QUE PODIA RESPONDER A CADA LANCE DE
UM JOGADOR DE XADREZ COM UM CONTRALANCE, QUE LHE ASSEGURAVA A VITÓRIA. UM FANTOCHE VESTIDO À
TURCA, COM UM NARGUILÉ NA BOCA, SENTAVA-SE DIANTE DO TABULEIRO, COLOCADO NUMA GRANDE MESA. UM
SISTEMA DE ESPELHOS CRIAVA A ILUSÃO DE QUE A MESA ERA TOTALMENTE VISÍVEL, EM TODOS OS SEUS PORMENORES.
NA REALIDADE, UM ANÃO CORCUNDA SE ESCONDIA NELA, UM MESTRE NO XADREZ, QUE DIRIGIA COM CORDÉIS A MÃO
DO FANTOCHE (BENJAMIN, 1996: 222).

Nós fazemos a história ou a história nos faz? O que vivemos é a presença do


corcunda dirigindo os cordéis de nossa história, enquadrando-nos num modelo que
enrijece, mas que, pela ilusão dos espelhos, nos dá a certeza do livre-arbítrio. Jung
nos fala que é na meia-idade que ocorre a metanóia. O momento de desmascarar e
destituir o corcunda. A meia-idade é o ponto de desequilíbrio, onde as certezas da
juventude se foram e as incertezas da velhice se apresentam. A finitude bate na porta
e o que sentimos é medo. Medo porque a continuidade da nossa história está
ameaçada. A certeza de que o futuro é uma continuação natural do presente se desfaz
no ar. Olha-se para trás e o passado está tão perto e ao mesmo tempo tão distante.
Olhamos para a frente e deparamos com a certeza da morte. Nesse ponto surge uma
fenda, uma fratura, uma possibilidade que permite o desvio, uma nova origem.
O passado não é um lugar para se passear ociosamente na lembrança triste do que
se foi, contemplando o crepúsculo do processo linear de nossa história. Para
Benjamin, o passado pode ter outra significação. Para ele, o passado é “uma
construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de
‘agoras’” (Benjamin, 1996: 229). Esses “agoras” são, por exemplo, lembranças
casuais, espontâneas, que chegam intuitivamente na consciência. Como as
lembranças de Proust, que, ao sabor das madeleines, marcas de sua infância,
fragmentos foram avivados em seu inconsciente, despertando no presente uma nova
constelação, uma nova história, que se constituiu em sua obra.
Às vezes, nos assustamos com fragmentos de lembranças inesperadas que
irrompem na consciência. Pensamos serem os primeiros sinais de demência. O temor
nos impede de ver o fragmento de ouro assentado no leito do rio que nos revela “um
passado carregado de ‘agoras’” explodindo a história (Benjamin, 1996: 230). Um
toque na água estagnada revela sua riqueza, oculta no véu que a embaçava. “O
historicista apresenta a imagem ‘eterna’ do passado, o materialista histórico faz do
passado uma experiência única” (Benjamin, 1996: 231), um instante revolucionário.
A imagem eterna do passado, a água estagnada, nos faz crer na mudança repetindo
o mesmo. A revolução, e não o instante revolucionário, é o que, ardilosamente,
preconiza o personagem Tancredi, do filme “O Leopardo”, de Visconti: há de se

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mudar para que tudo permaneça igual. A experiência única é a irrupção no presente
de fragmentos da história, como fragmentos significativos de memória, liberados das
amarras da censura, que transformam o presente. São instantes, momentos que a
idade sabe reconhecer. Com o tempo, cada vez mais vivemos de fragmentos, que são
significativos quando plenos de silêncio e de reticências sensíveis.
Jung, no texto chamado “As Etapas da Vida Humana”, nos remete aos conflitos da
meia-idade. A soberba, ensinou Paulo (2Cor 12,7), foi tratada pela compensação de
um espinho na carne. Quando se chega à meia-idade é comum a escolha defensiva de
uma das polaridades entre o passado e o futuro. Para Jung: “Quem se protege contra o
que é novo e estranho e regride ao passado está na mesma situação neurótica daquele
que se identifica com o novo e foge do passado” (8/767). Regredir e retornar à
infância, ao passado como uma linha histórica na qual se desliza de volta, é estancar a
vida, negando, por temor, o novo. Assim como agarrar-se ao novo cortando a linha da
história é viver a ilusão da jovialidade eterna, na qual o passado é o apêndice que
testemunha a temporalidade. Então Jung, numa passagem iluminada, nos diz que:
“Em princípio, os dois fazem a mesma coisa: mantêm a própria consciência dentro de
seus estreitos limites, em vez de fazê-la explodir na tensão dos opostos e construir um
estado de consciência mais ampla e mais elevada” (O.C., V. 8, § 767).
Os opostos neste caso são o passado e o futuro. Entre eles está o presente, onde as
coisas acontecem. E é na linha processual da história que o velho encontra-se com o
novo explodindo o contínuo neurótico “homogêneo e vazio” da história. Esse salto
significativo do fragmento histórico no presente abre uma fresta por onde passa o
novo, pleno de significado, mudando a maneira de pensar, de sentir, de ser. Jung
finaliza esse parágrafo, sobre a Metanóia, dizendo que “este resultado seria ideal, se
pudesse ser conseguido nesta segunda fase da vida” (O.C., V. 8, § 767).
A fixação no passado diz respeito à rememoração de um Senex saudosista que
reifica a história fazendo-a retornar em círculo. O tempo circular imposto pelas
lembranças cristalizadas, muitas vezes acompanhadas pelo ressentimento, aprisiona
os sonhos, desfaz a perspectiva e mergulha a vida na escuridão de uma morte em
vida. Os conflitos da juventude nos levam a uma adaptação social como modo de
sobrevivência. Ocupamos um lugar no mundo, fechado, competitivo e assustador.
Finalmente aceitos, respeitados e valorizados, procuramos manter, com todas as
nossas forças, o que deu certo, evitando qualquer desejo que possa abalar essa
estrutura social protetora, que, por outro lado, nos começa a engolir. Falando da
juventude, Jung mostra que:

A EFICIÊNCIA, A UTILIDADE ETC. CONSTITUEM OS IDEAIS QUE PARECEM APONTAR O CAMINHO QUE NOS PERMITE SAIR
DA CONFUSÃO DOS ESTADOS PROBLEMÁTICOS. ELES SÃO AS ESTRELAS QUE NOS GUIARÃO NA AVENTURA DA
AMPLIAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DE NOSSA EXISTÊNCIA FÍSICA; AJUDAM-NOS A FIXAR NOSSAS RAÍZES NESTE MUNDO,
MAS NÃO PODEM NOS GUIAR NO DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA HUMANA, OU SEJA, DAQUILO A QUE DAMOS O
NOME DE CULTURA OU CIVILIZAÇÃO (O.C., V. 8, § 769).

Na meia-idade esse alicerce, até então natural, passa a ser uma questão. São
pressões internas e externas, associadas a uma cornucópia de novos desejos, que
devolvem os sonhos, as descobertas, mas também o medo e a angústia. Momento

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mágico e trágico. Como deixar para trás a proteção e a aceitação social e buscar a
individualidade. O que significa individualidade? Primeiro a liberdade. Mas o que
fazer com a liberdade depois de tantos anos aninhado no colo social e familiar? Dela
nada precisa ser feito, porque ela é. É a condição de possibilidade de mudanças que
possam nos fazer tocar o que somos.
E o que somos, não é nada? Essa é também uma questão, basicamente neurótica,
do isso ou aquilo. Se o passado nos aprisiona à terra como forte raiz, ele é também, e
por isso mesmo, o esteio que nos possibilita a inserção no mundo e nossa produção.
Mas é também a possibilidade do salto deste passado, da nossa história, no presente,
rompendo o contínuo homogêneo e vazio de que falamos. O passado, bem entendido,
como fragmentos significativos, que se liguem ao presente por afinidades eletivas,
constelando uma nova configuração que nos dê um insight, um impulso, levando-nos
a uma “mudança de mente”.
Lembranças ocasionais, espontâneas e intuitivas, aparentemente desconectadas do
nosso contínuo histórico, costumam causar estranheza e rejeição. São perturbadoras e
angustiantes exatamente porque desfazem um caminho rígido e repetitivo. Ao
explodir o contínuo de uma maneira de pensar e sentir, tais lembranças se
transformam em centelhas que iluminam a escuridão de um futuro que se põe como
extensão do presente, uma linearidade que apaga nossos sonhos. Jung descreve com
mestria o conflito entre o enquadre social que sacrifica a individualidade e as
centelhas aparentemente apagadas que fazem renascer a esperança:

QUANTO MAIS NOS APROXIMAMOS DO MEIO DA EXISTÊNCIA E MAIS CONSEGUIMOS FIRMAR-NOS EM NOSSA ATITUDE
PESSOAL E EM NOSSA POSIÇÃO SOCIAL, MAIS NOS CRESCE A IMPRESSÃO DE HAVERMOS DESCOBERTO O VERDADEIRO
CURSO DA VIDA E OS VERDADEIROS PRINCÍPIOS E IDEAIS DO COMPORTAMENTO. POR ISSO, CONSIDERAMO-LOS
ETERNAMENTE VÁLIDOS E TRANSFORMAMOS EM VIRTUDE O PROPÓSITO DE PERMANECERMOS IMUTAVELMENTE PRESOS
A ELES, ESQUECENDO-NOS DE QUE SÓ SE ALCANÇA O OBJETIVO SOCIAL COM SACRIFÍCIO DA TOTALIDADE DA
PERSONALIDADE. SÃO MUITOS – MUITÍSSIMOS – OS ASPECTOS DA VIDA QUE PODERIAM SER IGUALMENTE VIVIDOS,
MAS JAZEM NO DEPÓSITO DE VELHARIAS, EM MEIO A LEMBRANÇAS RECOBERTAS DE PÓ; MUITAS VEZES, NO ENTANTO,
SÃO BRASAS QUE CONTINUAM ACESAS POR BAIXO DE CINZAS AMARELECIDAS (O.C., V 8, § 772).

A fixação no futuro nos remete a uma busca desenfreada do novo, muitas vezes
desconectado da realidade, numa repetição frenética de novidades que nos garanta a
juventude e nos afaste da temida velhice. O apelo para regredirmos quase à infância,
acaba por revelar uma puerilidade encoberta em projetos políticos e consumistas
pretensamente edificantes. Aqui surge a questão entre o que é o novo e a novidade. O
novo diz respeito às brasas acesas adormecidas em cinzas, que podem irromper na
consciência e constelar uma nova percepção, uma nova maneira de ser no mundo.
Isto diz respeito à conexão com o mundo interno e suas expressões. A novidade é um
sucedâneo consumista que conecta com o mundo externo e faz do consumo um ritual
de juventude, situado num futuro que não cessa de escapar. O véu de Maia
transformou, aos olhos do interessado, a subjetividade da personalidade em objeto
fetiche de consumo. Ele hipnotiza e faz esquecer o passado e seus conflitos,
mimetizando uma superação, fazendo do futuro um “novo controlado” que aplaca o
medo do imprevisível.
A fixação no passado nos remete a uma espécie de demência que repete o mesmo

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tema, protegendo do novo assustador. A fixação no futuro nada repete, não
permitindo, dessa forma, qualquer conexão. O objeto de consumo não se liga a nada,
não tem história para contar. Essa é sua função. Enquanto no primeiro a história
enrijecida, homogênea e vazia, obstrui a fresta por onde entraria o novo adormecido
em cinzas, no segundo o objeto isolado e repetidamente trocado impede qualquer
continuidade e memória, não havendo nem fresta nem conteúdo para irromper.
A metanóia é, principalmente, uma questão da meia-idade. Nela surgem
sentimentos ambíguos e conflitantes que, por isso mesmo, representam uma
possibilidade de mudança, a partir do abalo das certezas que até então nos
amparavam. É um momento importante, um jogo de forças entre o enquadre social e
a liberdade, entre novos e velhos valores. Onde estará presente e respeitada a nossa
individualidade? Onde estará o ponto de equilíbrio após a tempestade que provoca o
mar revolto do inconsciente e desestabiliza a consciência, convocando-a para o
conflito? As escolhas precisam ser feitas e a dor das perdas é inerente. Resta-nos a
certeza de que todo o conflito acaba e que as mudanças, com seu novo arranjo,
compensarão a travessia angustiante pelo desfiladeiro guardado por Cila e Caríbdis.

Referência Bibliográfica

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: Idem. Obras Escolhidas. Vol. I. São Paulo:
Brasiliense, 1996.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

* Psiquiatra; Analista Junguiano - membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e da IAAP- Associação Internacional de
Psicologia Analítica; Mestre em Filosofia. Participação: - “Mito do Herói e do Velho Sábio”, In: MONTEIRO, Dulcinéa M. R. (org.).
Dimensões do Envelhecer. Rio de Janeiro: Revinter, 2004. - “Sincronicidade e witz: Jung e o fenômeno de conexão acausal.”
Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol. 53, número 01, 2001 - UFRJ,CNPQ, Imago. - “Herói e violência.” Revista Junguiana 13,
SBPA, 30-45, 1995. - “A Ética do jogador na relação analítica - Uma ética do lugar e do amor.” Revista Junguiana 10, SBPA, 72-79,
1992.

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6
A dimensão religiosa da existência e o envelhecer
– Diálogo entre Kierkegaard e Jung
Luiz José Veríssimo*

Nosso mapa nos aponta para entrarmos no novelo da Filosofia com a Psicologia
Analítica, e focarmos a questão do envelhecer através da consideração da experiência
religiosa em Jung e em Kierkegaard. Estimamos que o Processo de Individuação
anuncia para quem se defronta com o envelhecer a chamada dimensão religiosa da
existência. Para chegarmos até ela, precisamos, antes, passar pela descrição das
dimensões que estruturam o desenvolvimento humano como um todo, que culminam
na mais radical experiência humana, a dimensão da fé em sentido existencial.
O filósofo dinamarquês Kierkegaard (1813-1855) é considerado por alguns
apreciadores da filosofia existencial como o pai do existencialismo. Numa época, em
pleno século XIX, em que se fazia apologia da ciência, em que nos vemos diante da
implantação das fábricas, do capitalismo, Kierkegaard procura resgatar a importância
dos processos de subjetivação, diante da moral coletiva e da preponderância na vida
social da racionalidade e da técnica. Ele descreve a existência através da concepção
de três “estádios”, ou seja, de três dimensões que se apresentam como possibilidades
de vivência para o ser humano: estética, ética e religiosa.
A dimensão estética é voltada para a busca do prazer como sentido da vida. Na
dimensão ética, o sujeito se defronta com suas próprias contradições, e sente que está
diante de uma escolha fundamental entre tornar-se mais autêntico ou esconder-se nas
máscaras das normas sociais. A dimensão religiosa não significa a adesão a um culto
em particular, mas diz respeito a uma questão decisiva para o ser humano: a fé. Fé
para nós funciona em termos psicológicos, e significa nada menos que a adesão ao si-
mesmo (o self), uma entrega, uma decisão de conversão ao self, o que pode implicar
no sacrifício da racionalidade calculadora e voltada para o externo em prol do
desenvolvimento e da ampliação do mundo interior.
Associamos essas três formas existenciais propostas por Kierkegaard ao Processo
de Individuação, descrito por Jung como um processo de constituição da pessoa.

A dimensão estética e a sedução pelo prazer

A primeira dimensão da existência é fundamentada na sedução e no prazer.


Kierkegaard se refere a uma história que ele cria para desfilar a sua filosofia. Era uma

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vez um sedutor, Johannes, um mestre na arte da sedução. O objetivo da sua vida era
obter das suas “presas” uma conquista avassaladora, um apelo irresistível, um desejo
incoercível. Ele não mede esforços para obter sucesso nas suas empreitadas. Não tem
nenhum compromisso ético, vale dizer, não tem nenhum compromisso com o outro
que não o de conduzi-lo até o terreno das paixões, levadas ao total entorpecimento da
razão, até o insuportável, e, a partir daí, desenvolver uma ansiedade sôfrega na
amante, que culmine numa entrega total. Sua vida se resume nisso: no ato ritual, de
certo modo repetitivo, da sedução, ao mesmo tempo criador, pois, cada caso demanda
uma estratégia própria, uma articulação engendrada por um intelecto ávido por uma
aventura desafiadora.
A sedução ocupa o lugar central para Johannes. As pessoas são vistas pelo sedutor
não como gente, mas como objeto. Não têm sentimentos merecedores do cuidado e
da responsabilidade. São tidas como vulneráveis, sentimentais e, sobretudo, regidas
pelo desejo. O desejo comanda toda a série de articulações erótico-racionais. O desejo
é o que guia o indivíduo, atravessando-o do corpo à alma. As pessoas não são
estimadas como dignas de subjetividade, de reconhecimento da alteridade, elas são
puro desejar. Um tipo específico de desejar: deixar-se perder, desejar-se esquecer por
completo, desejar ser possuído pelo invólucro da sedução. Elas sofrem com isso, mas,
no prisma sedutor, elas querem se ver envolvidas no véu da sedução. O véu é uma
mortalha. Leva à morte de muitas ilusões. Dispõe o ser para a perda da ingenuidade,
consumida no fogo da paixão.
Então, o sedutor aparece diante de si mesmo com pretensões ao termo “mestre”.
Ele se justifica como o iniciador. Graças a ele, no seu ângulo de abordagem, a perda
da inocência é, a bem da verdade, um ganho. De fato, devemos reconhecer que para
aquele que se vê seduzido abre-se uma oportunidade: a passagem da consciência para
um nível mais amplo. É passagem naufragada em tormento e desespero. Ela lembra
uma imagem fortíssima de Schopenhauer citada por Nietzsche (2003: 30): o
barquinho em meio às ondas.
Tal como em meio ao mar enfurecido que, limitado em todos os quadrantes, ergue
e afunda vagalhões bramantes [estrondosos], um barqueiro está sentado em seu bote,
confiando na frágil embarcação, da mesma maneira, em meio a um mundo de
tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante
no princípio de individualidade.
O mar representa o mundo das paixões, a existência na imagem acima é
apresentada como uma navegação sem fim, onde o barqueiro pode se iludir que tem
como conduzir seu barquinho para onde a sua vontade individual, narcísica e
independente do self quiser. Tais ilusões naufragam quando emerge com toda a
potência e incontida energia o mundo das paixões. Num momento de crise, em que as
paixões deixam em aberto o colapso das ilusões do ego de controle sobre o mundo
interior, o barqueiro se dá conta de que está diante de um mar imprevisível, dentro do
qual ele não tem mais o controle, ou, ao menos, todo o controle. De fato, na paixão
sentimos bem no íntimo o que significa o tema típico da perda da alma. Algumas
paixões são sentidas como a perda da alma diante do sedutor. A alma inundada pela
paixão sente-se como que sendo roubada pela pessoa amada. “Só penso nela, o tempo
todo, tudo o que faço já não tem mais muito sentido. O que eu gostava, já não quero

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mais. Só quero a pessoa amada. O tempo todo.”
E o que significa a sedução no prisma de Kierkegaard? A busca desesperada de ser
amado, de ser amado acima de tudo. O sentido psicológico desse “ser amado”
assinalado pelo filósofo dinamarquês sugere nas formas comportamentais reveladoras
da condição humana, a necessidade do sujeito de um acolhimento, de aceitação, de
inclusão. Para isso, ele parte para o mundo da relação munido de duas atitudes
básicas que estendem um eixo de sedução. Primeira atitude: ele desenvolve a
necessidade de capturar as escolhas do outro, ele quer como que drenar o desejo do
outro para a sua direção. Ele pretende fazer o outro seduzir-se ao seu próprio desejo, e
assim submeter o desejo do outro, através do fascínio da sedução ao seu desejo. Ou,
então, numa tentativa desesperada, o sujeito quer avidamente corresponder de
qualquer jeito, a qualquer preço ao desejo do outro, e, para isso, abre mão de suas
necessidades e formas de ser mais próprias para levar adiante o seu intento. No
estádio sedutor, permanecemos num jogo de sedutor-seduzido, buscando
intensivamente uma mistura com o outro, sem buscarmos uma identidade mais
própria, em termos junguianos, sem ativar a descoberta e o desenvolvimento do self,
sentido do Processo de Individuação.
O estádio estético equivale em Jung à noção de persona. A persona é uma máscara
que o indivíduo veste para lidar com uma apresentação de si perante o outro. É um
personagem criado pelo indivíduo para dar conta de um modo como arquiteta se
mostrar, selecionando e medindo seus gestos, palavras e atitudes, semelhante ao
modo do sedutor kierkegaardiano. A persona, não raras vezes, corresponde a uma
imagem idealizada do eu que se tenta passar para os outros, por vezes, até para si
mesmo. A persona se constela quando nos identificamos com um determinado papel
que desempenhamos ou queremos desempenhar – o sério, o crítico, o perfeccionista,
o disciplinador, o juiz, o pensador, o agüenta tudo, a ovelha negra, o “do contra”, o
conselheiro... Esses papéis se justificam a partir do momento em que tentamos criar
um personagem para que o outro nos veja segundo a nossa manipulação de uma
imagem, tal como na sedução apontada por Kierkegaard.

O sentido do Ético e o jogo dos opostos

A abertura do sujeito do ego para o self corresponde a uma chance para rasgar a
cortina de ilusão das personas. Quando percebemos o quanto é falaz a tentativa de
manter uma imagem apenas parcial, apenas montada para vender uma imagem para o
outro, na medida em que não conseguimos nos fixar nos próprios papéis que tentamos
desempenhar, que somos algo mais do que isso, começamos a ter uma oportunidade
para adentrar na instância do ser mais próprio, o si mesmo (self). Desenvolvemos a
personalidade não mais basicamente a partir dos olhares externos e das convenções
morais, mas sim somos remetidos a um princípio originário, o self, que clama
permanentemente por ser expresso, e se manifesta em sonhos, em fantasias, em nosso
imaginário. O self alcança um âmbito de se constituir como nossa autenticidade,
como querem os existencialistas, e ele não fica só nesse parâmetro. Ele atinge uma
camada profunda do psiquismo humano, o inconsciente coletivo, onde habitam os

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“deuses” que povoam o imaginário em todas as eras, mudando de nomes, mas com
funções estruturais bem semelhantes: o feminino, o masculino, o sagrado, a medida, a
perda da medida, a culpa, a liberdade, a lei, o destino, o herói, assim por diante. Por
isso, o Processo de Individuação concebido por Jung é tão complexo. Envolve o que
há de mais singular, mais próprio, misturado à dimensão arquetípica, a experiência
existencial do ser humano em sua totalidade, incluindo a sua relação com a natureza.
Voltando a Kierkegaard, o filósofo concebe uma dimensão do existir que implica
uma radical mudança no modo de viver. No estágio ético, o indivíduo realiza um
salto da consciência. O ético remete o sujeito para o reconhecimento do conflito que
habita dentro de si, entre duas figuras, que não são meras abstrações, são duas figuras
bem concretas que se digladiam, como um embate entre dois heróis, ou mesmo dois
deuses, em que nunca surge um definitivo vencedor. O ser e o não ser. Eis a luta
encarniçada que se trava dentro de nós, no correr de nossa existência, envolvendo,
simbolicamente, os tremendos poderes dos titãs, simbolizando princípios psíquicos da
inércia, da regressão, do manter-se atrelado aos impulsos mais primitivos com a
polaridade oposta, os tremendos poderes dos olímpicos, simbolizando a geração, a
criação, a ordenação, a vontade de ser. A dissolução, o caos, a geração e a
desenvoltura da vida disputam a negação e a afirmação da existência, quando
conclamamos com Nietzsche o problema de tornar-se aquilo que se é.
No estádio ético eu saio da sedução, ouso romper com o desespero não assumido
de tentar girar minha vida em função do outro, seja pelo modo da submissão, seja
pelo modo da sujeição do outro a mim. Sai do cenário a disputa entre o eu e o outro,
para entrar um drama que se desenvolve lá, bem dentro de mim mesmo: o desespero
de ser e o desespero de não ser. Como costumamos dizer nas salas de aula, nessa fase
permitimos que o conflito visite a nossa consciência.
Nessa instância da existência, o sujeito começa a desenhar uma imagem mais
fidedigna de si mesmo, o que em linguagem junguiana equivale a admitirmos que ele
começa a assumir uma ligação com o self, o significado mais próprio do Processo de
Individuação. Ao mesmo tempo que tem algum contato efetivo com a sua
interioridade, em que começa a estabelecer uma ligação com o seu inconsciente, ele
se assusta com essa perspectiva; então, esquiva-se e quer se manter alienado do self,
regredindo para os níveis da persona. Por isso, Kierkegaard percebe que, afinal, ele
quer ser e não quer ser. Para o filósofo, o ser humano é uma síntese de infinito
(desejo de liberdade, âmbito das escolhas) e finito (a precariedade da existência), de
temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade. Ora, uma síntese é a relação de
dois termos.

UMA RELAÇÃO DESSE MODO DERIVADA OU ESTABELECIDA É O EU DO HOMEM, É UMA RELAÇÃO QUE NÃO É APENAS
CONSIGO PRÓPRIA, MAS COM OUTREM. DAÍ PROVÉM QUE HAJA DUAS FORMAS DO VERDADEIRO DESESPERO. SE O
NOSSO EU TIVESSE SIDO ESTABELECIDO POR ELE PRÓPRIO, UMA SÓ EXISTIRIA: NÃO QUEREMOS SER NÓS PRÓPRIOS,
QUEREMO-NOS DESEMBARAÇAR DO NOSSO EU, E NÃO PODERIA EXISTIR ESTA OUTRA: A VONTADE DESESPERADA DE
SERMOS NÓS PRÓPRIOS (KIERKEGAARD, 1979: 195).

Kierkegaard assinala que o nosso eu não foi estabelecido apenas por si próprio. No
entender do filósofo, que tem uma forte marca teológica em sua filosofia, quem põe a

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relação finito/infinito que constitui o eu é Deus. Em termos junguianos, quem no
fundo estabelece a relação entre finito e infinito, com seus desmembramentos de
criatividade e necessidade é o self. No self está contido, a um só tempo, o temporal, o
ego consciente, investido nas estruturas lógicas de espaço e de tempo, e o eterno: a
dimensão dos arquétipos do inconsciente coletivo.
O desespero de ser e de não ser, a vontade de assumir quem se é potencialmente, e,
simultaneamente, a dificuldade de se mostrar tal como se é nos fazem notar o jogo de
opostos, apontado por Nise da Silveira ao tecer considerações sobre o Processo de
Individuação.
Aquele que busca individuar-se não tem a mínima pretensão de se tornar perfeito.
Ela visa completar-se, o que é muito diferente. E para completar-se terá de aceitar o
fardo de conviver conscientemente com tendências opostas, tragam estas as
conotações de bem ou de mal, sejam escuras ou claras (1981: 88).
Essa atitude corajosa dá acesso ao reino da interioridade profunda, ao inconsciente
em níveis cada vez mais originários, como descreve Nise da Silveira:

QUANTO MAIS A PERSONA ADERIR À PELE DO ATOR, MAIS DOLOROSA SERÁ A OPERAÇÃO PSICOLÓGICA DE DESPI-LA.
QUANDO É RETIRADA A MÁSCARA QUE O ATOR USA NAS SUAS RELAÇÕES COM O MUNDO, APARECE UMA FACE
DESCONHECIDA. OLHAR-SE NO ESPELHO, QUE REFLITA CRUAMENTE ESTA FACE, É DECERTO ATO DE CORAGEM. SERÁ
VISTO NOSSO LADO ESCURO ONDE MORAM TODAS AS COISAS QUE NOS DESAGRADAM EM NÓS, OU MESMO QUE NOS
ASSUSTAM (1981: 91).

O período das máscaras e da sedução é um primeiro momento de uma biografia, do


qual muitos não passam, permanecem apegados à imagem construída de si perante o
outro o resto da vida, numa busca desesperada de aprovação, segurança, prazer,
gratificação. Tudo o que possa contribuir para que a exterioridade esconda a perda de
sentido da vida é avidamente buscado. A perda de sentido pode ser encarada como
perder de vista a realização de si mesmo, essa meta oculta que vai sendo desvelada ao
longo do nosso existir quando conectados com o self através da individuação.
Ao longo de nossa existência, nos confrontamos com a sombra, ou seja, com as
tendências, impulsos e desejos que não gostamos muito de admitir. É o desmanche da
persona. O outro, não raras vezes, é quem denuncia conteúdos próprios aos quais
damos as costas. Além disso, no decorrer do processo de maturação interior, as
situações de vida, tais como relacionamento amoroso, trabalho, família,
relacionamento com pais e filhos etc., vão nos apresentando oportunidades muito
concretas para percebermos onde, através de nosso desejo e de nossas crenças, fala a
personalidade coletiva em detrimento de uma voz mais autêntica.
A diferença básica para o estádio estético é que, na dimensão ética de vida, o
sujeito está mais aberto a assumir de forma consciente a dialética entre o que acha
que deve fazer e o que realmente deseja (quais as suas reais necessidades). Esse
dilema persegue o indivíduo aonde quer que vá, e ele não consegue resolvê-lo de
todo, ainda que tente várias operações para, ao menos, minimizar sua situação
existencial, como terapias, aconselhamentos, remédios, oráculos, orações, meditação.
Por mais que algumas abordagens da alma humana sejam bem intencionadas, o
sujeito não tem como se “curar”, pois mal percebe que os problemas não são

61
externos, que a crise de identidade que marca o ser adulto é constituinte do próprio
Processo de Individuação. É precisamente nesse sentido que Sartre sugere que o
indivíduo não tem angústia, mas que ele é angústia, enquanto Kierkegaard utiliza-se
da imagem do desespero como uma questão ontológica (essencial).

O envelhecer e a dimensão religiosa da existência

Do adulto para o envelhecer, passamos lentamente para a fase da vida muito bem
desenhada por Nietzsche como o “ocaso do sol”, mencionada por Jung como “o
entardecer da vida”. Essa idéia não tem nada a ver com algo parecido com perda de
energia ou vitalidade. Ela quer trazer à luz que passamos da extroversão para a
introversão, da remissão às exterioridades, aos apelos cada vez mais prementes da
interioridade, a que Jung se refere de vários modos, entre eles, “a voz do íntimo”:

ALIÁS, A MIM ME PARECE QUE AS REALIDADES PSÍQUICAS FUNDAMENTAIS SE ALTERAM ENORMEMENTE NO DECORRER
DA VIDA. TANTO É QUE QUASE PODEMOS FALAR DE UMA PSICOLOGIA DO AMANHECER E OUTRA, DO ENTARDECER DA
VIDA (JUNG, 1987C: 37, §75).

A terceira e última fase da existência, a que Kierkegaard chama religiosa, coloca


como trabalho para a alma a experiência originária da fé. Para entrar na consideração
dessa etapa, Kierkegaard recorre à história de Abraão e Isaac. Abraão se vê
dilacerado entre o amor ao filho e o amor a Deus, e não renuncia a nenhum dos dois.
Kierkegaard interpreta a fé como um salto no absurdo; onde nada mais faz sentido, a
não ser a verdade de cada um. A fé proposta pela via vivencial está acima da moral.
Kierkegaard estabelece uma comparação entre a fé e a instância moral. A moral
significa aderir aos valores socialmente instituídos. O indivíduo se orienta pela norma
“geral”. A consciência coletiva fala mais alto. O sujeito moral, que, diga-se de
passagem, somos todos nós, presta contas a uma ordenação de vida que acata regras
que são justificadas como facilitadoras ou reguladoras da convivência com os seus
pares. Na fé, há o movimento de se dobrar sobre a moral, mas também ir além da
moral. Pois a fé não se baseia mais em regras estabelecidas, mas, sim, na voz do
coração, na voz do íntimo. Passamos do sujeito moral para a descoberta mais plena
possível do sentido existencial. As regras desse sentido são dadas pelo self e pelas
relações que vamos estabelecendo com as pessoas, mas não mais no modo do teatro,
e sim no modo da descoberta de si mesmo e do outro ao longo da imensa teia de
relações que a vida nos faz tecer.
Vejamos como o filósofo da paixão não tem meias palavras para interpretar, nas
imagens envolvendo Abraão e seu filho, o ponto de vista da fé em sentido existencial
em confronto com o ponto de vista restrito à moral vigente:

SOB O PONTO DE VISTA MORAL, A CONDUTA DE ABRAÃO EXPRIME-SE DIZENDO QUE QUIS MATAR ISAAC E, SOB O
PONTO DE VISTA RELIGIOSO, QUE PRETENDEU SACRIFICÁ-LO. NESSA CONDIÇÃO RESIDE A ANGÚSTIA QUE NOS CONDUZ
À INSÔNIA E SEM A QUAL, ENTRETANTO, ABRAÃO NÃO É O HOMEM QUE É (1979: 125).

62
Deus recomenda a Abraão imolar o próprio filho em sacrifício. Abraão mantém-se
com Deus, apesar da alma dilacerada em angústia pelo seu amor incomensurável ao
filho. Ao final, Deus acata a prova de fé de Abraão, e um carneiro é sacrificado em
lugar de seu querido filho. Ao final, pai e filho são salvos pela própria fé. Tal tipo de
experiência não é uma apologia do crime, do assassinato de um filho. Jung percebe a
experiência religiosa com a nitidez de quem a vivenciou em sua profundidade e
alcance. Jung tenta se referir ao que é muito difícil traduzir em palavras:

A NÃO POUCOS SUCEDE QUE, MESMO ESTANDO NESSE ESTADO SOCIAL INCONSCIENTE, SÃO CHAMADOS POR UMA VOZ
INDIVIDUAL E ASSIM COMEÇAM A DISTINGUIR-SE DOS OUTROS E A DEPARAR COM PROBLEMAS A RESPEITO DOS QUAIS
OS OUTROS NADA SABEM. EM GERAL É IMPOSSÍVEL PARA ESSE INDIVÍDUO EXPLICAR ÀS OUTRAS PESSOAS O QUE LHE
ACONTECEU (1988: 182, § 302).

O que nos faz existenciais é justamente a decisão de optar para além da moral
instituída pelas convenções. Porque, quando procuramos seguir regiamente as
prescrições morais sem confrontá-las com a nossa autenticidade, estamos botando a
perder o nosso próprio projeto de ser ético. Eis aí o que distingue a ética da moral. A
ética implica uma escolha. Uma escolha muito difícil, pois é feita a partir de um valor
íntimo, que responde também ao íntimo, vale dizer, ao self, e não apenas ao passivo
acatamento ou mesmo a submissão à “autoridade” moral. Caso nossa opção seja o
monopólio da vida exterior dos valores, nossa sombra e nossos sintomas irão
expressar-se, e anunciar que nosso desejo de agir à revelia do mundo interior é uma
tentativa de manipulação infrutífera.
O estágio religioso não se contenta apenas em nos ater a problemáticas éticas. As
questões que implicam o envelhecer levam a alma até os seus mais extremos limites:
não apenas o sentido da vida, como o sentido da morte. Tudo o que foi
experimentado até então sedimenta um conhecimento prático, a chamada “sabedoria
prática”, aquela que é assimilada, tijolo por tijolo ao longo de uma história. Essa
experiência, agora familiar, chega a seu ponto limítrofe. Daqui para a frente, o ser
depara com o que ele é, mas também com possibilidades que foram ficando para trás,
devido à atenção dada ao exterior, ao mundo das tarefas, dos desafios, da convivência
social, para muitos a educação dos filhos, o trabalho, as responsabilidades, a busca da
afirmação e da realização de si no mundo. “Devedora” do mundo, agora no
entardecer da vida, a pessoa encontra-se “devedora” de si mesma. É quando entra o
aspecto da fé existencial no que toca a uma redescoberta, revisão e transformação
(“metanóia”) do “tornar-se quem se é”.

O HOMEM QUE ENVELHECE DEVERIA SABER QUE SUA VIDA NÃO ESTÁ EM ASCENSÃO NEM EM EXPANSÃO, MAS UM
PROCESSO INTERIOR INEXORÁVEL PRODUZ UMA CONTRAÇÃO NA VIDA. (...) PARA O HOMEM QUE ENVELHECE É UM
DEVER E UMA NECESSIDADE DEDICAR ATENÇÃO SÉRIA AO SEU PRÓPRIO SI-MESMO (1986: 348, § 785).

Quem sabe, agora, possamos entender melhor o que quer dizer Kierkegaard quando
pensa que além de pontuar os dilemas éticos, a fé atinge o fundo existencial: “(...)
entendo eu por fé o que torna difícil o sacrifício” (1979: 125). Hora de recorrer
novamente a Jung. Ele assinala que o desenvolvimento da personalidade requer um

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sacrifício da nossa vontade à designação: “Se aceitarmos que a designação equivale à
noção de destino, (...) ressoa a resposta de que o indivíduo tem diante de si um
destino fundamental: ser, vale dizer, a experiência do si-mesmo” (Veríssimo, 2005:
159). Para Jung, “somente pode tornar-se personalidade quem é capaz de dizer um
‘sim’ consciente ao poder da destinação interior que se lhe apresenta” (1988, 185, §
308).
Esse processo só é acessado à consciência pelo dia-a-dia, pelo viver e pelo
conviver. Leva um longo tempo de maturação. No envelhecer, estamos diante das
mais radicais experiências. Nossa existência depara com a totalidade de nosso ser,
quando as convenções, organogramas e fórmulas de nossa vida não mais são
suficientes para fazer todo o sentido. Cada vez mais o exterior tornar-se relativo, e o
interior remete à voz do íntimo. Dar ouvidos à voz do íntimo constitui a tradução de
Jung para a pistis. Jung, aliás, prefere o termo pistis ao termo “fé”. A pistis “costuma
ser traduzida erroneamente por ‘fé’, mas o sentido específico é confiança, lealdade
repleta de confiança” (1988: 179, § 296). Essa lealdade é uma entrega ao self, uma
sintonia com o self, buscando um sentido para a vida afinado com uma dimensão
profunda da psique. Para além da ciência, para além da religião instituída, para além
da moral, para além da própria filosofia está o nosso confronto com a totalidade
humana, o self. Ela orienta uma sabedoria prática. Não está escrito em manuais. As
regras são quebradas a toda hora pelo particular de cada situação, pela singularidade
de cada pessoa, pelas travessuras do destino. Mas o problema da ética nos diz que
isso não nos autoriza a uma moral de casuísmos, como aquela a que muitos querem se
entregar.
O grande mestre, junto ao self é o tempo. O destino se articula ao tempo. Ninguém
faz um destino sem tempo de maturação. Nenhuma semente eclode antes do tempo, já
nos ensina a natureza. A nossa vida é natural e existencial. Por isso, somos tão
complexos. O tempo, se não traz a questão da fatalidade como um destino com o qual
nada há que se fazer, traz de forma cabal a questão da morte. “Articulada à
espiritualidade está a questão da finitude e da morte. Na busca do sentido
(espiritualidade), nós nos defrontamos com a finitude e a morte, somos seres que
temos consciência que caminhamos para o próprio fim” (Monteiro, 2004: 60). Faz
parte do destino humano não a morte apenas como fato – biológico inexorável, mas
como o mistério que radicaliza a consciência acerca da existência em seu jogo de
finitude e infinitude. No cruzamento dessas duas instâncias encontramo-nos todos. O
envelhecer nos coloca diante de uma janela de percepção para sentir mais
proximamente o confronto dessas duas modalidades que definem a existência. Chega
um tempo em que não dá mais para adiar a percepção e o sentido da questão mais
radical: o próprio tempo e sua dissolução. “O que significa morte?” ,“Apenas um
fim?”. “Existirão outros significados importantes para morte?” Para Jung, justamente
na segunda metade da vida nasce a morte. Porque ela se coloca como uma
perspectiva de uma meta de vida: elaborar o sentido da morte. Nessa elaboração,
descobrimos o sentido da própria vida: “A recusa em aceitar a plenitude da vida
equivale a não aceitar o seu fim. Tanto uma coisa como a outra significam não querer
viver. E não querer viver é sinônimo de não querer morrer (1986: 360, § 800).” Aqui,
parece fazer diferença qual o sentido que se dá para “fim”: fim como fim de linha ou

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fim como uma finalidade da própria existência, ou seja, como o que dá sentido a
partir do ocaso do sol em nossa existência. Vale aqui a
ponte com Kierkegaard: para o desespero, a morte é destituída de um sentido
significativo, nada mais que um término. Eis o destino de nosso eu,

ETERNAMENTE MORRER, MORRER SEM TODAVIA MORRER, MORRER A MORTE. PORQUE MORRER SIGNIFICA QUE TUDO
ESTÁ ACABADO, MAS MORRER A MORTE SIGNIFICA VIVER A MORTE; E VIVÊ-LA UM SÓ INSTANTE É VIVÊ-LA
ETERNAMENTE. PARA QUE SE MORRESSE DE DESESPERO COMO DUMA DOENÇA, O QUE HÁ DE ETERNO EM NÓS, NO EU,
DEVERIA PODER MORRER, COMO O CORPO MORRE DE DOENÇA. ILUSÃO! (...); ASSIM COMO UM PUNHAL NÃO SERVE
PARA MATAR PENSAMENTOS, ASSIM O DESESPERO (...) NÃO DEVORA A ETERNIDADE DO EU, QUE É O SEU PRÓPRIO
SUSTENTÁCULO (1979: 199).

Nos dias atuais se perdeu muito da elaboração do tempo, como nota Jung:

DISSE HÁ POUCO QUE NÃO TEMOS ESCOLAS PARA OS QUE CHEGARAM AOS QUARENTA ANOS. MAS ISTO NÃO É
TOTALMENTE VERDADEIRO. NOSSAS RELIGIÕES TÊM SIDO SEMPRE, OU JÁ FORAM, ESTAS ESCOLAS; MAS PARA
QUANTOS DE NÓS ELAS O SÃO AINDA HOJE? QUANTOS DOS NOSSOS MAIS VELHOS SE PREPARARAM REALMENTE
NESSAS ESCOLAS PARA O MISTÉRIO DA SEGUNDA METADE DA VIDA, PARA A VELHICE, PARA A MORTE E A ETERNIDADE?
(1986: 349, § 786).

Jung, ciente das questões do envelhecer, confronta o “amanhecer” da vida, com o


sujeito em seu processo de envelhecimento. A vida do jovem está em expansão-
extroversão, tem em vista metas objetivas a serem cumpridas. A sociedade demanda
essa tarefa, ou, antes, ele mesmo se cobra isso. Sendo assim, a neurose liga-se
sobretudo à hesitação ou ao recuo diante do rumo a seguir:

EM CONTRAPARTIDA, A VIDA DA PESSOA QUE ENVELHECE ESTÁ SOB O SIGNO DA CONTRAÇÃO DAS FORÇAS, DA
CONFIRMAÇÃO DO QUE JÁ FOI ALCANÇADO E DA DIMINUIÇÃO DA EXPANSÃO. SUA NEUROSE CONSISTE
ESSENCIALMENTE EM QUERER PERSISTIR INADEQUADAMENTE NUMA ATITUDE JUVENIL. ASSIM COMO O JOVEM
NEURÓTICO TEME A VIDA, O VELHO RECUA DIANTE DA MORTE (JUNG, 1987C: 37, § 75).

Esse “juvenil” não é a instância criadora e imaginadora do ser humano, mas, sim,
uma atitude passiva e reprodutora do que foi vivido como “assim foi, logo, assim é, e
assim será e deve ser”. Em se mantendo a crença de que tudo já foi visto e esgotado, a
morte aparece como um ponto terminal, até mesmo um alívio, por mais assustador
que seja, de carregar o peso de toda uma vida.
As potencialidades do self não têm a marca exata do tempo cronológico, e sim, são
marcadas pelo tempo existencial, pela vivência, pela abertura a essa mesma vivência
do Eu profundo, de si como uma totalidade. A partir do envelhecer, o ser humano
depara com limites: seu corpo, a morte de pessoas queridas da sua convivência, a
mudança das condições de vida, as mudanças das pessoas de seu convívio, que saem
do estado “de estar sob suas asas”, como se costuma dizer. Ao mesmo tempo, as
novas condições de vida colocam o sujeito diante de uma renovada perspectiva. Ele
tem o seu chamado interior ativado, ele tem a voz do íntimo menos sujeita a ruídos
pelas ocupações com as demandas do modo de ser voltado para o mundo das

65
ocupações antes tidas como “urgentes”.
Eis o momento crucial da fé (“estágio religioso”): a pistis, o termo que Jung toma
emprestado da concepção grega de “fé”, cuja etimologia aponta para confiança. Jung
(1988: 178, § 295-96) acrescenta: uma lealdade repleta de confiança ao interior, um
dar ouvidos ao que há de mais profundo e fundamental do ser de cada um, uma
descoberta que pode se dar tardia, não porque tenha perdido, como se diz, o trem da
história, mas porque se dá a partir da tarde, ao anoitecer, quando o interesse pelo
externo pode decrescer em favor das expressões que exigem o silêncio da rua para
poder ouvir a voz do íntimo.
A questão-problema do envelhecer não é uma colocação intelectual, ela está posta
pelo próprio existir e passa a ser, mais do que nunca, o sentido da vida. Uma chave
aqui é que esse sentido é trazido justamente pela dimensão religiosa da vida, aquela
em que estamos diante da chamada mais orquestrada ao religare: conectar o
consciente ao inconsciente, e a um apelo íntimo à conversão ao inconsciente, ao
mundo interior. O sentido de vida é em Jung um sentido religioso de vida,
convergindo com a dimensão religiosa do filósofo Kierkegaard. “Religião” é
associada pelo senso comum à instituição petrificada e sem vida. Porém, submetida à
tradução etimológica, temos a chance de verificar que ela vem de a) religare, b)
relegere e c) religere: respectivamente a) ligar-se a, religar (em termos psicológicos,
ao self), b) reler (interpretar a vida sob uma nova óptica) e c) eleger como valor. O
valor é um revisitar a existência não somente como um álbum de fotografias, como
uma grande parcela das pessoas faz, mas rever sobretudo sob a experiência do
entrelaçamento da vida com a morte, da transcendência com a finitude, da abertura a
possibilidades ainda não devidamente exploradas sem perder os pés no chão, ou seja,
dentro de um âmbito de aceitação das condições remetidas à fase noturna (remetida
ao amadurecimento e ao envelhecer) da vida. Nada disso pode ser feito sem uma
profunda transformação, uma conversão ao valor decisivo, à descoberta do
significado mais amplo do si-mesmo.
Gostaríamos de convidar Jung para a conclusão de nosso trabalho.

ENTRE TODOS OS MEUS DOENTES NA SEGUNDA METADE DA VIDA, ISTO É, TENDO MAIS DE TRINTA E CINCO ANOS, NÃO
HOUVE UM SÓ CUJO PROBLEMA MAIS PROFUNDO NÃO FOSSE CONSTITUÍDO PELA QUESTÃO DE SUA ATITUDE RELIGIOSA.
TODOS, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, ESTAVAM DOENTES POR TER PERDIDO AQUILO QUE UMA RELIGIÃO VIVA SEMPRE DEU
EM TODOS OS TEMPOS AOS SEUS ADEPTOS, E NENHUM CUROU-SE REALMENTE SEM RECOBRAR A ATITUDE RELIGIOSA
QUE LHE FOSSE PRÓPRIA. ISSO ESTÁ CLARO, NÃO DEPENDE ABSOLUTAMENTE DE ADESÃO A UM CREDO PARTICULAR OU
TORNAR-SE MEMBRO DE UMA IGREJA (SILVEIRA, 1988: 141-42).

Bibliografia

HÜHNE, Leda Miranda. “O irracionalismo de Kierkegaard.” In: REZENDE, Antônio. Curso de Filosofia. 3.ª
ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
JUNG, Carl Gustav. O Desenvolvimento da personalidade. Trad. de Frei Valdemar do Amaral, OFM. 4.ª ed.,
Petrópolis: Vozes, 1988 (Obras Completas, vol. XVII).
_____. Psicologia e religião. Trad. de Pe. Dom Mateus R. Rocha, OSB. Petrópolis: Vozes, 1987 (Obras
Completas, vol. XI/1).

66
_____. et alii. O Homem e seus Símbolos. Trad. de Maria L. Pinho. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1987.
_____. A prática da psicoterapia. Trad. de Maria Luiza Appy. Petrópolis: Vozes, 1987 (Obras Completas,
vol. 16/1).
_____. A natureza da psique. Trad. R. Rocha, OSB. Petrópolis: Vozes, 1986.
KIERKEGAARD. O desespero humano (doença até a morte). Trad. de Adolfo Casais Monteiro. São Paulo:
Abril Cultural, 1979.
MONTEIRO, Dulcinéa da Mata Ribeiro (org.). “Busca de sentido e significado existencial.” In: idem.
Dimensões do envelhecer. Rio de Janeiro: Revinter, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia ou helenismo ou pessimismo. Trad. J. Guinsburg.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SILVEIRA, Nise da. Jung, vida e obra. 11.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
VERÍSSIMO, Luiz José. A Psicologia do Self e a Função Religiosa da Alma. Um Estudo a partir de C. G.
Jung. Campinas: Livro Pleno, 2005.

* Doutor em Filosofia (UERJ), psicológo clínico, professor de Psicologia da Universidade Santa Úrsula e Veiga de Almeida, e de
Filosofia na UniBennett. Publicações: - A Psicologia do Self e a Função Religiosa da Alma. Um Estudo a Partir de C. G. Jung.
Campinas: Livro Pleno, 2005. Participação: - “Algumas Considerações Sobre a Experiência Religiosa”, In: ANGERAMI-CAMON,
Valdemar Augusto (org). Espiritualidade e Prática Clínica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.

67
7
Serenidade – ser é unidade: Um encontro entre
Heidegger e Jung
Gelson Luis Roberto*

METANÓIA: A Virada no Caminho

Caminhos, não obras, esta é a proposta de Heidegger, enfatizando o caráter não-


sistemático e não-linear de seu pensamento. O caminho é o encontro que nos move.
Viver é caminhar em busca do ser. Talvez essa seja uma das questões essenciais para
quem entrou na crise da meia-idade e um dos resultados da metanóia: reconhecer que
aquilo que conquistamos não é mais do que o exercício do caminhar, e que o caminho
se faz sempre e cada vez mais em favor da busca do nosso ser, de sermos inteiros,
plenos em nós mesmos, um caminho que Jung chamou de individuação. E isso não é
uma tarefa fácil.
Caminhos, possibilidades... O primeiro aspecto que podemos apresentar desse
cruzamento entre Heidegger e Jung é que o próprio envelhecer, o processo que todos
enfrentamos, é um grande e complexo caminho, um jogo de muitas possibilidades.
Isso quer dizer que a metanóia da meia-idade nos joga para além de uma visão
estreita, de declínios e perdas, todo caminho é cheio de possibilidades e envelhecer é
uma aventura de mil possibilidades em busca daquilo que Heidegger e Jung
exaustivamente, cada um a sua maneira, refletiram: o encontro com o ser. A
realização do ser, enquanto ser-aí e ser-no-mundo de Heidegger e a realização do ser
através do Processo de Individuação de Jung. O envelhecer, e todas as implicações
que isso conduz, é o desafio para que a vida seja vivida por inteiro, uma inteireza que
se manifesta na proposta desse trabalho de chegarmos a ser uma pessoa não dividida,
um indivíduo, uma unidade plena, atingindo assim a serenidade.
Idealmente, a adultez pressupõe a capacidade de: relacionar-se com o outro, de
uma mutualidade do orgasmo com um partícipe amado, de compartilhar confiança
mútua, de regular e gerar os ciclos de trabalho, procriação, recreação, busca de ideais
e transcendência. Uma das qualidades mais especial e esperada no adulto é a
capacidade de dialogar. O diálogo pressupõe maturidade para acontecer, pois o
indivíduo necessita se colocar no lugar do outro, saber falar de seus sentimentos e
refletir sobre a situação apresentada. É um ato de humildade e de amor para consigo e
com o outro.
A personalidade adulta também requer determinação, inteireza e maturidade. Em
outras palavras, um indivíduo dotado de decisão, resistência e força, sem perder a

68
espontaneidade e a criatividade.
O período que antecede os 40 anos tende a ser de conflitos diversos entre as
aquisições e orientações externas e impulsos de ordem interior. Pode-se ter a
sensação de estar “andando para trás” pela pressão dos outros e de conflitos e
inibições próprias. O indivíduo vivencia sentimentos de ansiedade por estar dividido
entre a necessidade de status e necessidades reprimidas, entre aprovação ou
necessidade de afirmação e vocações esquecidas que restringem o amor-próprio.
Esses desejos de virilidade acabam fazendo ressurgir o “garotinho” no homem. Existe
realmente uma ativação do ego infantil neste período.
Essa transição que ocorre na faixa dos 40 é chamada de transição da meia-idade.
Ela representa o confronto do eu superficial com o eu mais profundo do ser humano.
É como se um outro ser dentro de nós, mais profundo, começasse a reclamar a sua
participação na vida, com suas intenções e impulsos. O resultado desse desencontro
interno gera inúmeras reações, a mais comum é a do indivíduo tentar negar esse
conflito e buscar soluções superficiais que acabam afastando mais ele de si mesmo,
gerando atitudes ainda mais infantis, ou seja, ele busca vivenciar impulsos
regressivos para compensar essa crise. Podemos dizer que na meia-idade as partes
negligenciadas da nossa psique buscam insistentemente a sua manifestação. O
indivíduo ouve vozes de uma identidade prematuramente rejeitada, de um amor
perdido ou interrompido, de possibilidades abandonadas para se tornar o que ele é
agora.
O fato de se estar na vida adulta não quer dizer que não haja espaço para mudanças
e transformações, pois o desenvolvimento da personalidade ocorre em qualquer idade
através da interação das situações de desafio e de descoberta de si mesmo. Mas o
desenvolvimento da personalidade nos adultos requer um reconhecimento de suas
imagens interiores e uma participação ativa de avaliação e auto-análise de sua
postura, visando à descoberta de si mesmo. Nenhuma soma de situações ou
comportamentos em mudança levará ao crescimento pessoal sem uma tomada de
consciência.
Devemos nos perguntar, como fez Jung, por que o adulto recua assustado diante da
segunda metade da vida, como se o aguardassem tarefas desconhecidas e perigosas,
ou como se sentisse ameaçado por sacrifícios e perdas que não teria condições de
assumir, ou ainda como se a existência que ele levara até agora lhe parecesse tão bela
e tão preciosa, que ele já não seria capaz de passar sem ela. Talvez isto seja fruto de
um processo de transição onde as energias que estavam projetadas para as conquistas
do mundo começam a se recolher, num processo de introversão que o leva para
dentro de si, o que gera medo e imprevisto, pois o homem ocidental não foi preparado
para um encontro consigo mesmo, perdido que se encontra diante dos estímulos da
vida material.
A indagação pelo ser tem como objetivo devolver à vida o mistério que ameaça
desaparecer na modernidade. A filosofia de Heidegger interpela o indivíduo em sua
liberdade e responsabilidade, e leva a morte a sério.

ENVELHECER COMO ENCONTRO DO SER: os desafios do caminho

69
O problema do ser é para Heidegger o problema por excelência da filosofia. Para
isso ele parte da distinção entre o ser (essência) e o ente (existência) e passa a refletir
o ente que pode compreender o ser: o homem. Nessa reflexão, Heidegger se utiliza da
palavra Dasein, um termo do alemão corrente que significa existência e que é
geralmente traduzido como ser-aí. Palavra que designa a livre dimensão do aberto.
Conforme refere Michelazzo (1999), é interpretado como aquele que é sempre capaz
de revelar um sentido para o homem que já se encontra lançado e imerso num mundo
de significados que se mostram em sua existência fáctica e cotidiana. No seu dia-a-
dia, o homem lida a todo o instante com coisas ou situações que lhe são
significativas, isto é, têm valor de signo para um sentido de tal forma que elas sempre
lhe despertam interesse ou lhe mostram alguma utilidade.
Esse processo dinâmico de fazer, desfazer e refazer vínculos com aquilo que lhe é
significativo, é o que constitui essencialmente o “como” do seu estado de aberto (o
Da). A este “como”, Heidegger dá o nome composto de ser-no-mundo. Dasein quer
colocar na maior proximidade homem e mundo, até poder significar “morar junto a,
ser familiar com”. O Homem somente “existe” enquanto é, ou seja, um vínculo com
aquilo que lhe é significativo.
Dasein é um ente que revela o seu “é” apenas enquanto se acha prometido ao seu
“poder ser”, isto é, vincula do com o projeto de ser. Por outro lado, somos dotados de
incapacidades e limitações que fazem com que ele fique apenas na promessa de poder
ser, sem efetivamente ser.
Resumindo, o homem é Dasein (ser-aí), o ente aberto ao ser e que, além disso, esse
Dasein é um ser-no-mundo que é designado como cuidado. Vamos tentar então
compreender um pouco desse caminho para o ser e sua relação com as idéias de Jung.
Para Heidegger, o homem é o que há de mais estranho no estranho (1988: 172). O
estranho é aquilo que nos retira do que nos é familiar e seguro e nos coloca diante do
desconhecido e do nada. É aquilo que não nos deixa estar em casa, pois é da condição
do homem ser lançado em direção ao aberto e ao imponderável do seu ser, embora ele
tente o tempo todo contornar essa sua condição buscando abrigo e proteção no
familiar e conhecido. Essa condição de ser levado para além de si mesmo é uma outra
forma de entender o homem como aquele ente que habita a intimidade com o ser.
Proximidade e intimidade são traços característicos da relação do homem com o
ser. Ser significa aparecer, e este aparecer não é um atributo casual do ser, mas o
modo constitutivo de sua presença. Aparecer aqui significa poder acontecer enquanto
ser e isso não é tarefa fácil. Em uma vida humana são precisos vários nascimentos e
pode acontecer que nunca se chegue inteiramente ao mundo e muito menos ao ser.
Isto pode ser entendido que todo ser só existe enquanto relação e paradoxalmente
ainda assim se encontra isolado de tudo. O ser-em não significa que estamos em
alguma parte, mas que sempre lidamos com algo, sempre temos a ver com algo.
Existência é um modo-de-ser, e é o ser acessível a si mesmo.
A existência cotidiana é a existência de um mundo compartilhado, mas esse ser-
com-outros degenera em mero ser-entre-outros, e, assim, em inautenticidade. Isso é o
que sucede quando não possuímos a nós mesmos – quando negligenciamos a
peculiaridade de nossa existência como intérpretes do mundo, isto é, como Daseins.
Em nossa ansiedade de nos distinguir dos demais tornamo-nos, porém, dependentes

70
deles – não de alguém em particular, mas do outro em geral.
O homem existe não como um fato objetivo, mas como um acontecimento vivido e
isto significa que em cada instante ele se manifesta no Ser. Mas, em nossa realidade
cotidiana, temos uma pálida consciência do nosso ser-no-mundo, uma existência
superficial. Vivemos num jogo de projeções sobre as coisas e os outros de modo a
não sermos nós mesmos. Contrapondo essa atitude, devemos estar atentos ao apelo do
ser e assumir a sua própria estranheza diante do nada. Esse é o modo autêntico de
existência que Heidegger propõe, um modo de ser-no-mundo que estabelece sua
condição mais essencial, o seu poder-ser, além do cotidiano mediano.
Não somos itens “sem mundo” no interior do mundo, mas locais nos quais o
mundo se revela – se mostra para cada um de nós de acordo com os nossos vieses e
ângulo de interpretação. Somos essencialmente “dotados de mundo”, ou seja, seres no
mundo e não do mundo. Nosso ser é nossa abertura, estamos clareados em nós
mesmos enquanto ser-no-mundo, onde nós mesmos somos a clarificação. Essa idéia
de uma existência como clarificação está toda ela compreendida na palavra cuidado.
O mundo pode ser definido como aquilo a que dedicamos cuidado, e nós podemos ser
definidos como aquilo que dedica cuidado ao mundo.
Aliás, a vida adulta é a vivência da capacidade de saber cuidar-se e cuidar dos
outros. Assim, produtividade e criatividade estão inseridas nas diversas áreas do ser
adulto: no seu trabalho, na procriação, nas relações em geral, na preocupação com as
outras pessoas, com as próprias idéias e produtos.
Durante este período, o indivíduo geralmente assume muitos compromissos com o
trabalho e com a família. Podemos dizer que ele, nesta fase inicial, procura
estabelecer uma base por intermédio de uma carreira profissional e familiar.
Características como falar mais por si próprio, ter mais autoridade e tornar-se menos
dependente faz parte desses compromissos. Este desejo de afirmação na sociedade o
torna sensível à reação de outros bem como suscetível a suas influências. Parece que
é fundamental termos consciência sobre esse cuidado, como nos movemos no ser-no-
mundo, para reconhecer se estamos presos num jogo de valores coletivos ou se o
cuidado é fruto de uma profunda e intensa relação com a vida. Não poderemos
caminhar nessa direção até termos feito mudanças radicais de orientação. Faz-se
necessário reelaborar nossa noção de realidade, que implica reelaborarmos nossa
formação. Buscarmos o coração do mundo, um mundo com alma. Um lugar onde o
respeito possa estar presente. E respeito vem do latim respectare, que significa “olhar
de novo” (Hillman, 1993). Precisamos parar um pouquinho e olhar de novo o outro, a
situação que está ali, um segundo olhar, o olhar do coração. Para que possamos fazer
de nossa vida um encontro de almas; de nossa realidade, poesia.
Aqui encontramos a necessidade de um viver por inteiro. A individuação para Jung
é a capacidade do indivíduo de se tornar cada vez mais ele mesmo, um ser indivisível.
Diante disso tudo, devemos recuperar a noção de um todo integrado e com vida, onde
cada coisa, cada elemento do universo ocupa um lugar de importância própria e
intransferível. O que queremos mostrar é a necessidade de resgatar um mundo com
alma. A hipótese de que o mundo está vivo representa uma reversão completa de
valores, e o grande fator revolucionário é o amor. O que pode mexer com nossas
profundezas bem como com as profundezas da vida, do sexo, do outro? Só o amor

71
pode dar o sentido e o significado que mantenham viva a nossa alma. É ele que
concede vitalidade e um interesse em que se apóiam todos os outros esforços. E amar
pressupõe saber aceitar o que é diferente.
Para Heidegger, amar diferentemente pressupõe pensar diferentemente, pois, para
ele, não há separação entre ambos, ou seja, existe uma relação essencial entre amar e
pensar. A partir dos versos de Hölderlin: “quem pensa o que há de mais profundo,
ama o que há de mais vital”, ele vai dizer que mais do que afirmar que o amor pelo
que é mais vital seja uma conseqüência do pensar, o próprio pensar é ele mesmo um
amor, o amor para o que é mais vivo. Sugere Oliveira (2000) que esta é uma
indicação de que, para Heidegger, o pensar e o amar têm uma dimensão patológica,
ou seja, ambos são afetados pelo desejo e pela sensibilidade. Esse caráter patológico
não deve ser sanado, mas assumido. Isto significa que o pensamento está misturado e
contaminado de maneira tão primordial com o sensível, que não é mais lícito falar
nem de mistura nem de contaminação, mas sim de uma concretude originária do
pensar. Isto implica deixar o pensamento se guiar pela sensibilidade, deixar o
pensamento ser o que ele é: apaixonado, passivo, enfim, patológico.
Esse processo patológico e apaixonado de sentir e pensar é fundamental para que o
significado do ser não se perca, pois temos uma tendência a cair num processo de
acomodação e condicionamento diante da realidade. Como um poema ou uma prece
que aprendemos de cor na infância, a questão sobre o significado de ser soa tão
embotada e familiar, que nunca nos damos conta de que ignoramos esse significado.

ANGÚSTIA E MORTE: na contradição da experiência para o sentido do


ser

O processo de envelhecer nos confronta com diversos temores, mas também com o
desafio do apóstolo Paulo quando propõe que, mesmo que a carne envelheça, o corpo
se glorifica. É preciso reconhecer que o corpo é muito mais do que carne e é esse
corpo carne/psique que encerra a vida plena. Para isso, não evitemos a angústia do
envelhecer. Para Heidegger, a angústia é o caminho mais fácil para a autenticidade. É
como o medo, só que pior, uma apreensão insondável que jamais podemos
compreender. Um tipo de náusea ontológica que nos apodera sempre que chegamos
perto de compreender a instabilidade inerente da existência. A natureza indefinida da
angústia que nos ameaça oferece paradoxalmente a qualidade de existência autêntica.
Na angústia nos sentimos estranhos, diz Heidegger, e isso traz de volta o ser de sua
queda e absorção no mundo. O ser se individualiza, mas como ser-no-mundo. O
solipsismo existencial é o oposto do sentido clássico: não uma tímida retirada do
mundo, mas uma ousada descoberta e reapropriação deste (Rée, 2000).
Ser-no-mundo é ser um ente que possui na sua morte um duplo acabamento em seu
mais agudo contraste: é tanto a apreensão de sua totalidade e aperfeiçoamento, quanto
a apreensão de sua mortalidade e desaparecimento.
Com a expressão “ser-para-a-morte”, Heidegger quer indicar que a vida do homem
é a trágica tensão entre ser e não-ser. O ser-para-a-morte exprime o fato de a vida do
homem ser uma vida criadora, em que viver é configurar-se, estruturar-se em limites,

72
em delimitações. A vitalidade consiste não simplesmente em preservar a força da
vida, mas de só poder preservá-la fixando a vida em construções, em modos de viver.
Esses modos de viver é o fechamento numa forma, uma fixação que nega a vida, uma
espécie de morte. Assim, podemos afirmar que a vida se realiza na sua própria
negação, na sua morte. O ser-para-a-morte refere que a vida do homem é vida
criadora, confronto com o aberto das possibilidades para reuni-las numa unidade,
numa forma, num limite. A vida se define, então, numa tensão entre a abertura de
possibilidades e a sua própria inscrição no limite. Ter limite então não é
necessariamente ser limitado, mas ser forçado a se abrir para outras possibilidades, e
a metanóia que se impõe com o envelhecer é exatamente isso, uma busca de novas e
mais profundas possibilidades para o ser.
A morte é uma manifestação da própria vida, tudo que começa a viver também
começa a morrer, a caminhar para a morte. A palavra grega Eksístasthai, ou seja,
existência, significa não ser, isto porque o não-ser tem para eles o sentido de desistir,
a existência é o que declina o ser e o faz declinar. Apreendemos a nossa existência
desistindo continuamente de sua consistência, para posteriormente expressá-la através
do declinar das palavras. O seu morrer não é acidental, mas a derradeira manifestação
do contínuo declinar de sua própria existência. A morte é a proximidade segura da
terra natal. A morte como uma certeza indefinida, mas iminente que é a cada instante
possível. Cada momento de sua existência é afetado por morte, por seu ser para a
morte. Nossa vida está sempre impregnada pelo sentido que você tem de seu fim.
Também na psicologia junguiana a morte se encontra intimamente ligada à vida,
sendo que viver bem também pressupõe um morrer bem. Aniela Jaffé (1989) nos
mostra que “Vida” significa ascensão e queda, desenvolver-se e definhar, ou seja,
uma totalidade vida-morte. Nascimento e morte são elementos de uma mesma
equação que é a vida. Mas quantos se preocupam com este lado da questão da vida?
O pensamento de Heidegger e de Jung nos lança para uma perspectiva mais ampla
e nos leva para uma nova postura na preparação e no enfrentamento da morte.
O homem moderno, carente de fé religiosa, em geral vai despreparado ao encontro
da morte. O medo da morte e sua negação parece ter se constelado de modo
particularmente elevado na época atual. Liliane FreyRohn (1989: 26), analista
junguiana, numa conferência realizada em 30 de abril de 1979, em Zurique, coloca
brilhantemente a questão quando refere que no medo da morte se

EVIDENCIA O DESAMPARO DO HOMEM, QUE PERDEU A CONEXÃO COM SEUS PODERES NUMINOSOS. DEIXADO POR
CONTA PRÓPRIA, O HOMEM SE SENTE INTIMIDADO, TANTO NA VIDA SOCIAL COMO NA VIDA ÍNTIMA. O HOMEM NÃO
SENTE APENAS O MEDO DE UMA CATÁSTROFE MUNDIAL, MAS É ACOMETIDO TAMBÉM PELO MEDO E PELA AMEAÇA
CONTIDOS NO QUE CONSTITUEM AS PREDISPOSIÇÕES DEMONÍACAS, TAIS COMO A INVEJA, O ÓDIO, BEM COMO A
CRUELDADE DA SUA PRÓPRIA ALMA. A VALORIZAÇÃO DESMEDIDA ATRIBUÍDA, POR UM LADO, AO PODER, AO
CONHECIMENTO E À FORTUNA OCASIONA, POR SUA PRÓPRIA NATUREZA, UMA DESVALORIZAÇÃO CORRESPONDENTE DOS
VALORES ESPIRITUAIS DO ALÉM. ISSO FAZ COM QUE O INDIVÍDUO SE DISTANCIE DAS FORÇAS NORMALIZADORAS DA
SUA PRÓPRIA PSIQUE. A MORTE TORNA-SE ENTÃO UM FANTASMA NOTURNO, TOTALMENTE ESTRANHO, QUE ABRE
BRECHAS AMEAÇADORAS DE INCRÍVEIS DIMENSÕES E QUE ANIQUILA A SUA PERSONALIDADE. NÃO É DE ESTRANHAR
QUE, DIANTE DO ESVAZIAMENTO E DA DESPERSONALIZAÇÃO CRESCENTE DO INDIVÍDUO, O INCONSCIENTE EXERÇA
PRESSÃO, PROCURANDO ELEVAR VALORES ESPIRITUAIS REPRIMIDOS ATÉ O CONSCIENTE ATRAVÉS DE PROJEÇÕES. AS
EXPERIÊNCIAS RELATIVAS À MORTE PRESTAM DE MODO PARTICULAR A ISSO, COMO PROJEÇÕES PORTADORAS DESSES
VALORES, JÁ QUE PARECEM ABRANGER NÃO SÓ O MISTÉRIO DO DESTINO NO ALÉM, COMO TAMBÉM PODEM CONTER

73
UMA AMPLIAÇÃO DO ESPÍRITO QUE TRANSCENDE AS FRONTEIRAS DA VIDA ATÉ AGORA EXISTENTE. A
CONSCIENTIZAÇÃO DE AMBAS AS COISAS PODE LEVAR O INDIVÍDUO DE VOLTA AO SEU CENTRO, À SUA TOTALIDADE.

Podemos dizer que a experiência da morte chama a atenção para algo que procura
restabelecer o equilíbrio com a Unidade e a Ordem perdidas. “Os mortais são os
homens. Nós os chamamos de mortais porque eles podem morrer. Morrer significa:
ser capaz da morte como morte. Só o homem morre. O animal perece” (Heidegger,
1958: 212).
Queremos dizer com tudo isso que só podemos superar o medo da morte e
transcendê-la como simples término quando conseguirmos entender que a finitude da
vida material não determina a minha vida e que o morrer então é na verdade uma
realização. Como colocamos anteriormente, precisamos encontrar novas
possibilidades dentro das nossas limitações. Para isso, precisamos ter consciência do
tempo. Quando a casa dos quarenta é deixada para trás, o tempo passa a constituir um
drama entre o mundo que nos impõem suas necessidades e as necessidades
esquecidas que começam a nos exigir atenção. Aí deparamos com um outro tempo, o
tempo da alma a exigir mais qualidade, entrega e cuidado. Não um cuidado neurótico
em torno do medo, mas o cuidado de alguém que busca profundidade. Aí a limitude
da idade se torna um amplo campo para a alma. No dizer de Hillman, a alma precisa
ser adequadamente envelhecida para partir e esse processo faz do idoso uma figura de
valor única e insubstituível no teatro da civilização, faz do processo de envelhecer
uma forma de arte. E toda arte é, ao mesmo tempo, dura e deslumbrante, exigente e
encantadora.

A IDADE DO SER: ser realizando o Ser

Existem diferentes regiões de realidade ou de objetividade e que, em cada uma


dessas regiões, as categorias têm sentidos diferentes. Os objetos da física, por
exemplo, constituem um domínio dos atos psíquicos: os primeiros são mortos e, por
isso mesmo, matematizáveis. Os atos psíquicos são momentos do espírito humano
abertos para Deus e, por conseguinte, exigem, a fim de ser compreendidos, a
elaboração de conceitos capazes de captar de maneira viva a orientação do ser
humano para o Deus vivo.
A experiência humana dá-se no mundo do si-mesmo, o mundo compartilhado
(família etc.) e o mundo ambiente (a natureza e o social). Embora aconteça nesses
três espaços, a vida humana é centrada no mundo do si-mesmo, no qual é
experienciada a origem, isto é, o Absoluto. Conta-nos Loparic (2004) que, no enterro
de Heidegger, foram lidos fragmentos extraídos da poesia de Hölderlin, evocando a
paisagem do aberto, da verdade, da presença, o lugar da manifestação originária do
ser, o ponto extremo ao qual Heidegger buscou pensar a origem, o “Absoluto” sem
mediação do conceito. Ser humano como signo, carente de interpretação (um signo
não interpretado).
Ser e dizer torna-se uma busca de unidade original, a fim de que se torne visível a
intimidade de ser e homem. O pensamento de Heidegger se consolida cada vez mais

74
por meio do sagrado. Entre fatos naturais que podem ser mostrados e também ditos,
existem coisas que só podem ser mostradas, mas não ditas. Espanto e angústia diante
de algo que existe e o sentido além da verbalização.
Como nos propõe Safranski (2000), Heidegger quer ser o mestre do princípio.
Queria descobrir o ponto em que a filosofia renasce. Isso acontece na disposição. Ele
critica a filosofia que finge começar com pensamentos. Na realidade, diz Heidegger,
ela começa com uma disposição, com o espanto, a preocupação, a curiosidade, o
júbilo. A disposição liga a vida com o pensamento. É como se tivéssemos uma
pergunta a priori que nos orienta, e toda pergunta é uma busca. Toda busca é
previamente orientada pelo que é buscado. Isso é um convite para entrarmos num
processo de problematização sem fim especificável, em um acontecer não gerado por
nós – por nosso espanto diante do que há ou por nossas necessidades –, mas pela
retenção por um retraimento.
Alétheia é desvelamento, desocultação. Mas na busca de um sentido ainda mais
originário, Heidegger refere algo que vai além do desvelamento. Para Michelazzo
(1999), ele procura onde a coisa se mostra e encontra a abertura, isto é, o âmbito da
aparição das coisas, onde o ser da coisa e o Dasein se encontram. Assim, o ser-aí
descobre os entes não porque ele possua a abertura, mas porque o ser dos entes se
abre a ele, possibilitando a sua relação, o seu encontro com os entes. Essa
possibilidade é possível pelo dom da presença do ser e pelo deixar-ser do Dasein.
Ambos, dom e deixar-ser, repousam na liberdade. Esta é a própria essência da
verdade. O deixar-ser então se transforma numa prática meditante, uma busca pelo
ser das coisas, um deixar que o ente seja ele mesmo. Um engajamento cujo propósito
fundamental é abandonar-se ao ser. Atende ao seu apelo: pôr-se à sua escuta.
Esse encontro demonstra que, mais cedo ou mais tarde, devemos nos confrontar
com a nossa natureza essencial e nos posicionarmos diante dela. Geralmente, esse
processo ocorre durante a segunda metade da vida, momento que tudo aquilo que está
dentro de nós e que foi esquecido começa a fazer pressão para ser reconhecido. Este
processo todo também é chamado de arquétipo de Jó por Edinger (2004). Arquétipo
porque é um padrão universal, e Jó por sua história na Bíblia ser um relato exemplar e
simbólico desse encontro com o si-mesmo. A partir desse autor e das referências de
Jung, podemos resumir os aspectos maiores desse encontro como:
1. Encontro eu/si-mesmo, que se manifesta na imagem divina ou em algum ser
superior, seja personificado simbolicamente, seja por um acontecimento;
2. Ferida ou sofrimento do eu (ego) como resultado do encontro;
3. O ego persevera, suportando pacientemente a prova, para entender o significado
do encontro;
4. A combinação da experiência como uma revelação divina, na qual o eu é
recompensado através de um entendimento em nível de psique transpessoal.
Neste momento, o eu reconhece a sua posição subordinada e está preparado para
servir à totalidade e aos seus fins. Jó se tornou um eu individuado.
A vida adulta, depois dos 40 anos, necessita do reconhecimento de que cada vida é
completamente singular e peculiar. Cada pessoa, em sua experiência, está realizando
a parte que lhe cabe no universo. Sendo assim, podemos dizer que nesta fase se inicia
uma derrota do ego individualista e que necessita de auto-afirmação para um outro

75
elemento: o Si-Mesmo (Self, Eu Maior, Centelha Divina que habita em todo ser
humano).
O Si-Mesmo seria uma força superior, de orientação, que impulsiona para a auto-
realização do indivíduo dentro de uma ética de plenitude e crescimento. Pode vir
como uma intuição ou sensação vaga de busca de algo que implica um sentido maior
e religioso para a sua vida. É como se a nossa natureza mais essencial nos
confrontasse com aquilo que nossa vida íntima está comprometida na atual
encarnação, aquilo que a psicologia chama o mito pessoal de cada indivíduo.
Embora toda essa inclinação do Si-Mesmo, a maioria dos indivíduos acaba se
identificando ainda mais com o ego, não deixando espaço para este sentido maior.
Isto acaba gerando uma dissociação interna que provoca várias perturbações ou
mesmo situações-limite de vida que podem colocar esse indivíduo em colapso, pois
quanto mais o ego resiste e se “infla”, mais o si-mesmo tenta compensar essa
unilateralidade. Onde podemos encontrar um contato com o si-mesmo? Jung busca na
experiência simbólica, Heidegger na poesia.

SER É SABER: a conquista do não-ser através da serenidade

Heidegger encontra na poesia a manifestação de toda a linguagem originária.


Aquela linguagem que mais se aproxima do ser por ela ser especialmente capaz de
realizar, de forma mais direta, sem intermediações, a conversão do Ser em palavra. A
poesia, como linguagem primordial, suspende o nosso modo corriqueiro de falar e de
nos comunicar, pois ela retira o véu que constantemente encobre a linguagem
corrente. Com a poesia, diz Michelazzo (1999), o sentido usual dado às coisas sai do
domínio do público para tornar-se singular, novo e problemático, obrigando-nos a ver
o mundo numa outra perspectiva.
Aprendemos com Heidegger que o poeta é aquele que mais está exposto à
excessiva claridade dos relâmpagos de Deus, correndo assim um supremo risco. A
poesia também é uma luta entre o que se desvela e, ao mesmo tempo, se oculta da
verdade do ser.
O sagrado é o sinal do mistério de tudo o que se apresenta e se oculta e que
provoca no homem tanto a atração do maravilhoso (fascinans), quanto o recuo do
espantoso e monstruoso (tremendum). Sagrado como o centro onde o poeta se
encontra, um papel mediador no entrelace da vida, sendo a linguagem poética a única
que pode traduzir esse sagrado.
Como podemos ligar o poético dentro da temporalidade de uma vida que se impõe
inexoravelmente? Um tempo que não deixa dúvidas em relação ao seu poder. Quais
as imagens que podem melhor nos falar sobre o envelhecer? Segundo Almeida (apud
Dias, 2001), essas são aquelas que tratam de forma mais poética, mais humana e
conflituosa a questão da velhice, o poético é lento e complexo, não é explícito, mostra
a ambivalência o tempo inteiro. A sociedade, porém, não suporta a ambivalência, a
ambigüidade, e tudo deve ser muito rápido e tudo deve ser muito explícito.
A temporalidade pertence por essência ao sentido do ser, o tempo é o fundamento
da manifestação e da apreensão do ser. O ser é aquele que sai do puro infinito para ser

76
modulado no tempo. O tempo é produção do instante. Os idosos deveriam ser
exploradores, diz o poeta T. S. Eliot.
Temos aí uma relação entre tempo e finalidade, uma vida de significado que se
constrói no viver com inteireza o que a vida lhe propõe. Assim, uma vida orientada
para um objetivo maior em geral é melhor, mais rica e mais saudável do que uma
vida sem objetivos, e que é melhor seguir em frente acompanhando o curso do tempo,
do que caminhar para trás e contra o tempo. O idoso que for incapaz de se separar da
vida é tão fraco e doentio quanto o jovem que não é capaz de construí-la.
O tempo como presença, o ser como um dar-se, um se mostrar como presença, dom
e gratuidade, ele não é. Um sentido de destinar, aquilo que nos foi enviado como
presença (ser) em determinada época. A conjunção de presença e história como
destinação. Um acontecer que se dá no âmbito dinâmico em que o homem e ser
atingem a sua essência. Apreender o real em sua unidade é conseguido através do
entendimento de dar-se do ser e do tempo por intermédio da metáfora poética,
proferida no horizonte mítico do sagrado.
Para Schuback (2000), a filosofia de Heidegger tem no seu pathos o clamor
nietzscheano da vida e a força antidogmática do mote fenomenológico de Husserl,
“para as coisas elas mesmas”. A vida se apresenta em sua determinação radical, na
indeterminação aberta da possibilidade.
Esta capacidade e coragem para uma entrega ao que é indeterminado, é fruto
daquele confronto com o Ser, com o si-mesmo (self). Em nossa busca, em algum
ponto, somos confrontados com a queda: sermos abandonados ou cairmos em nosso
próprio mundo, (a)traídos para o interior de nós mesmos, onde somos deixados sós.
Para Jung, a mais decisiva experiência de todas é estarmos sozinhos com o nosso
próprio si-mesmo. Devemos ficar sozinhos se quisermos encontrar aquilo que nos
sustém quando não podemos suportar a nós mesmos. Só essa experiência pode nos
dar uma base indestrutível.
Assim, segundo Jung, o homem que envelhece deveria saber que sua vida não está
em ascensão nem em expansão, mas em um processo interior inexorável que produz
uma contração da vida. O homem que envelhece tem o dever e a necessidade de
dedicar séria atenção ao seu interior, ao seu si-mesmo.
A partir de então, ser e ente, essência e existência não serão interpretados como
pertencentes a “dois âmbitos irredutíveis”, mas, ao invés, como expressão de um jogo
ininterrupto entre aquilo que uma coisa é (ente) e aquilo que nela provoca a sua
própria ultrapassagem (ser).
Aonde leva esse pensamento que renuncia a todo o conhecimento proposicional e
se entrega a essa simplicidade do apelo do ser? Esse modo de pensar, segundo
Heidegger, leva ao despertar da serenidade. Um repouso como atitude do
pensamento, que, diante da presença das coisas, não toma nenhuma iniciativa, nem
faz interferência alguma, apenas compreende e abriga, recebe e guarda o que nessa
abertura é revelado, seja ele agradável ou estranho, sublime ou espantoso. A
serenidade se torna o centro e a força de todo o movimento. Percebemos que a razão
de nossas vidas e o seu maior momento é o encontro do eu com a Grande
Personalidade. Um encontro que determina a possibilidade de um novo amanhã. Só
quem teve esse tipo de experiência sabe o que isso significa, é algo extremamente

77
difícil de fazer entender. Mas isso não importa, pois, como diz Jung,

SE ALGUÉM SE OPUSER A ESSA EXPERIÊNCIA, SÓ PODEMOS DIZER “SINTO MUITO, EU TIVE”. NÃO OBSTANTE O QUE O
MUNDO PENSE A RESPEITO, AQUELE QUE VIVENCIA POSSUI UM GRANDE TESOURO, ALGO QUE SE TORNOU PARA ELE
UMA FONTE DE VIDA, SIGNIFICADO E BELEZA, PROPORCIONANDO AO MUNDO E À HUMANIDADE UM NOVO ESPLENDOR.
ELE POSSUI PISTIS (CONFIANÇA, FÉ) E PAZ (O.C., V. XI, § 116).

Chegamos então à grande questão que moveu essa discussão: que o envelhecer
bem vivido resulta no sentimento sólido e amplo da serenidade. Passamos pelos
vincos das experiências que ficam marcadas em nosso corpo velho, passamos pela
superação de não nos assustarmos com a presença acelerada da vida, conquistando
nosso próprio tempo, passamos pela consciência da nossa limitude e da não mais
necessidade de sermos heróis, passamos pelo desafio de romper com as exigências e
deixar que as coisas partam, que nosso corpo possa partir e assim ficar só o que é
essencial, ficar com a condição de ser. E ser é encontrar a unidade essencial de uma
vida inteiramente vivida, com todas as suas contradições. Ser é unidade, ser e
unidade, serenidade: o fruto suave e doce que resultou da força sábia da metanóia que
não pede, exige que sejamos devolvidos a nós mesmos.
Este estado de serenidade, de um ser que sabe, mas que se comporta como uma
espera e um não-saber, uma atitude humilde que é conquistada por aquele que se
espanta diante do que é simples e aceita este espanto como morada. Este ser é, então,
aquilo que liga os entes na sua totalidade, o que reúne as coisas na unidade, o que
provoca e conduz, aproxima e tece a nossa realidade (Michelazzo, 1999). Uma
teologia mítico-poética segundo Resweber (1979).

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78
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* Psicólogo, mestre em Psicologia Clínica, analista junguiano, membro da Internacional Association for Analytical Psychology.
Publicações: - Conhecimento e Família. Porto Alegre: Kuarup, 1997, 2 volumes. - Aquém e Além do Tempo. Porto Alegre: Age,
2004; Participação: - “Novas Questões em Psicologia Clínica: O Sujeito Contemporâneo e a Crise da Subjetividade”, In: Revista
Cadernos Junguianos, n.º 01, 2005. - “Xamanismo e Psicologia Junguiana”, In: VERRES, Joyce (org.). Ensaios sobre a Clínica
Junguiana. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005.

79
8
Sobre a vida e a dor da meia-idade: Articulação
entre Jung e Schopenhauer
Jorge Luiz de Oliveira Braga*

Considerações Gerais

Na medida em que nos propomos a examinar e discutir algumas das implicações


inerentes à fenomenologia da meia-idade, nada mais adequado do que fazê-lo a partir
do ponto de vista da Psicologia Analítica, do psiquiatra suíço C. G. Jung. Sua
abordagem é de inequívoca singularidade, já que considera essa etapa como um dos
momentos cruciais da existência humana, a que denominou: Processo de
Individuação. Jung a considera como uma experiência plena de transformações onde
cada qual, a seu modo, se defronta com seu próprio mito pessoal, seu destino e,
enfim, com sua própria vida.
A argumentação a ser utilizada é fiel à proposição de Jung, que considera a
Individuação como um processo inerente e inato ao homem de todos os tempos, e
articulada com alguns elementos da filosofia de Arthur Schopenhauer. O que na
verdade se pretende examinar e discutir são os fenômenos desta etapa da vida que
estão implicados no processo da busca de si-mesmo. Enfim, o eixo central é:
“Conhece-te a ti mesmo e torna-te aquilo que realmente és”, a finalidade
transcendente do viver e do Processo de Individuação que encontra em Memórias,
sonhos e reflexões um respaldo relevante e uma síntese da vida e obra de C. G. Jung.

Sobre as considerações teóricas

Das várias concepções próprias do universo junguiano, destacaremos três delas que
são de grande valor teórico e dão consistente sustentação filosófica à discussão do
tema proposto que são: libido, arquétipos e inconsciente coletivo e Processo de
Individuação.
A articulação psicologia e filosofia é natural e uma aliança necessária e usual às
tentativas de compreensão dos fenômenos da psique e da vida. A escolha de
Schopenhauer é quase auto-explicativa, pois, por diversos motivos e analogias
pessoais, entendemos ser surpreendente e, por demais evidente, a nítida impressão de
que, a exemplo de Nelson Rodrigues e Machado de Assis, o filósofo nos mostra “a
vida como ela é” em um estilo de narrativa tão particular que nos remete, a exemplo

80
de uma das grandes expressões da literatura mundial, ao poeta Jorge Luis Borges,
quando afirma que: “...Schopenhauer que acaso descifró el universo” (Borges, 1981:
78).
O filósofo introduz a dor, o sofrimento na concepção do processo da vida e do
viver e, conforme cita Jung em suas memórias:

O GRANDE ACHADO DE MINHAS INVESTIGAÇÕES FOI SCHOPENHAUER. PELA PRIMEIRA VEZ OUVI UM FILÓSOFO FALAR
DO SOFRIMENTO DO MUNDO, QUE SALTA AOS OLHOS E NOS OPRIME, DA DESORDEM, DAS PAIXÕES, DO MAL, FATOS QUE
OS OUTROS FILÓSOFOS APENAS TOMAVAM EM CONSIDERAÇÃO, ESPERANDO RESOLVÊ-LOS MEDIANTE A HARMONIA E A
INTELIGIBILIDADE. ENCONTRARA, ENFIM, UM HOMEM QUE TIVERA A CORAGEM DE ENCARAR A IMPERFEIÇÃO QUE
HAVIA NO FUNDAMENTO DO UNIVERSO. NÃO FALAVA DE UMA PROVIDÊNCIA INFINITAMENTE BOA E INFINITAMENTE
SÁBIA NA CRIAÇÃO, NEM DE UMA HARMONIA DA EVOLUÇÃO; PELO CONTRÁRIO, DIZIA CLARAMENTE QUE O CURSO
DOLOROSO DA HISTÓRIA HUMANA E A CRUELDADE DA NATUREZA PROVINHAM DE UMA DEFICIÊNCIA: A CEGUEIRA DA
VONTADE CRIADORA DO MUNDO (JUNG-MSR 1968:71).

Em seu referido trabalho, Jung ainda discute profundamente sobre as influências


sofridas ao longo de sua vida e de sua obra em todos os âmbitos e, ainda no capítulo
“Anos de Colégio” faz um interessante comentário no que diz respeito ao pensamento
do filósofo:

APROVAVA SEM RESTRIÇÕES O QUADRO SOMBRIO QUE SCHOPENHAUER FAZIA DO MUNDO, MAS NÃO CONCORDAVA
COM SUA MANEIRA DE RESOLVER O PROBLEMA. ESTAVA CERTO QUE SEU TERMO VONTADE CORRESPONDIA, DE CERTA
FORMA, A DEUS, AO CRIADOR “CEGO”. COMO SABIA POR EXPERIÊNCIA PRÓPRIA QUE
E QUE ELE O CONSIDERAVA
NENHUMA BLASFÊMIA PODE FERIR A DEUS, MAS QUE, PELO CONTRÁRIO, ELE PODE PROVOCÁ-LA PARA SUCITAR NÃO
SÓ O ASPECTO LUMINOSO E POSITIVO DO HOMEM, MAS TAMBÉM SUA OBSCURIDADE E SUA OPOSIÇÃO A ELE, A
CONCEPÇÃO DE SCHOPENHAUER NÃO ME CHOCOU (JUNG, MSR, 1968: 71).

A filosofia de Arthur Schopenhauer, em articulação com a psicologia de C. G.


Jung, para discussão do tema da Metanóia como tema central deste trabalho, estará
circunscrita essencialmente à articulação da idéia e do conceito de Vontade e às
concepções de Jung no que diz respeito ao Processo de Individuação, principalmente
em relação à fenomenologia que envolve a segunda metade da vida.
A Metafísica de Schopenhauer pode ser entendida como de natureza ontológica
apresentando fundamentos teleológicos, uma vez que discute a finalidade do mundo,
da vida e principalmente do homem. Esse voluntarismo, tido como pessimista, no
qual se insere o autor e sua obra, parte de princípios específicos, como se a vida
fosse, em forma geral, dor; uma forma defendida tanto pelo Budismo quanto por
Schopenhauer. Ainda dentro dessa visão, o mundo seria, em sua totalidade, uma
manifestação de uma força irracional, uma “vontade de vida” que se dilacera e
atormenta.

Sobre a idéia de vontade

A articulação proposta entre psicologia-filosofia nos permite apreender o berço


filosófico de onde podem ter sido originados muitos dos conceitos psicológicos sobre

81
a psique. Todavia, tomaremos em particular o conceito psicológico de libido,
articulado com o de vontade, aproveitando o significado do termo em sua origem
latina libidum, ou seja: vontade.
Schopenhauer considera a natureza e o mundo como dominados e movidos por um
impulso e um querer, um querer viver cego, uma vontade considerada como sendo
toda a realidade. Essa idéia poderia ser articulada tanto com o conceito de libido
como o de desejo, id, self, ou mesmo de energia psíquica.
A libido, tanto para Schopenhauer quanto para Jung, é a priori um conteúdo sem
forma que dá ao Ser as suas respectivas “infinitas possibilidades” de existência. E é
baseado na concepção dessa libido, ou vontade, que podemos, ainda segundo
Schopenhauer, enunciar:

ATÉ MESMO O CORPO É O PRODUTO DA VONTADE. O SANGUE, IMPELIDO POR AQUELA VONTADE A QUE VAGAMENTE
CHAMAMOS VIDA, CONSTRÓI SEUS PRÓPRIOS VASOS IMPRIMINDO SULCOS NO CORPO DO EMBRIÃO; OS SULCOS FICAM
MAIS FUNDOS, FECHAM-SE E PASSAM A FORMAR AS ARTÉRIAS E VEIAS (...) A VONTADE DE ENXERGAR CRIA OS OLHOS,
A VONTADE DE SABER FORMA O CÉREBRO, EXATAMENTE COMO A VONTADE DE AGARRAR FORMA A MÃO OU COMO A
VONTADE DE COMER DESENVOLVE O TUBO DIGESTIVO (...) NA VERDADE ESSAS FORMAS DE VONTADE E ESSAS FORMAS
DE CARNE - “NÃO SÃO SENÃO DOIS LADOS DO MESMO PROCESSO E REALIDADE” (DURAT, 1996: 241).

No entanto, Schopenhauer afirma que a vida segue uma espécie de movimento em


direção à individualidade perfeita. Em sua obra máxima, O Mundo como Vontade e
Representação, podemos ler que é nos extremos graus da objetividade (objektitä) da
vontade que vemos a individualidade se produzir de uma maneira significativa,
especialmente no Homem, sendo que a escala dos seres vivos segue um movimento
em direção ao indivíduo.
E, segundo o autor, só o Homem é um indivíduo, pois no reino inorgânico da
natureza toda individualidade desaparece em murmúrios anônimos da vida, da pedra
e do vegetal. De certa forma conclui que devemos observar que a vontade obscura
que habita todo ser existente se objetiva seguindo uma regra geral que é a vida se
elevar em direção à maior das individualidades, ou seja, ao homem.
O princípio da individuação parece ser essa luta sem trégua que é a vida, a vida
como ela é. A analogia com o Processo de Individuação abordado na psicologia de
Jung parece evidente, e as palavras parecem se alternar entre um discurso filosófico e
um psicológico.

Sobre o mundo, a vontade e a representação

“O mundo é minha representação” (Schopenhauer, 1990: 7). É com essa


afirmação que o filósofo Arthur Schopenhauer inicia sua obra magna, O Mundo como
Vontade e Representação, conteúdo fundamental de toda a sua doutrina. E é
justamente assim que ele próprio quis que a posteridade a ele se referisse, ou seja,
como o autor desta grande obra e como aquele que deu ao grande problema da
existência uma solução que iria, talvez, substituir as soluções anteriores e, de
qualquer forma, ocupar os pensadores dos séculos vindouros.

82
Apesar do estigma de pessimista, em grande parte das vezes em sentido pejorativo,
Schopenhauer defende a compaixão como base da ética; critica a produção de
fantasmas pela razão, prega o respeito aos animais e à natureza em geral, exortando à
união mística, a nos consolarmos por termos em nossa subjetividade, integralmente, a
unidade do mundo esclarecendo a arte de tornar a vida o mais feliz e agradável
possível, fazendo uma espécie de síntese explicativa das principais características de
seu pensamento.
A partir das distinções apresentadas na doutrina de Kant, Schopenhauer encerra sua
visão de que o mundo não seria mais do que representações, entendidas por ele, num
primeiro momento, como uma espécie de síntese entre o subjetivo e o objetivo, entre
a realidade exterior e a consciência humana. Como afirma em O Mundo como
Vontade e Representação:

POR MAIS MACIÇO E IMENSO QUE SEJA ESTE MUNDO, SUA EXISTÊNCIA DEPENDE, EM QUALQUER MOMENTO, APENAS DE
UM FIO ÚNICO E DELGADÍSSIMO: A CONSCIÊNCIA EM QUE APARECE (SCHOPENHAUER, 1990: 137, § 19).

Schopenhauer constrói uma filosofia original muito mais diferente e ousada do que
a de Kant, em que a coisa-em-si é inacessível ao conhecimento humano, um elemento
além dos limites das estruturas do próprio ato cognitivo. Schopenhauer, ao contrário,
pretendeu abordar a própria coisa-em-si como a raiz metafísica de toda a realidade
como sendo a vontade.
A filosofia de Schopenhauer entende o real como se fora, em si mesmo, cego e
irracional, enquanto a vontade e as formas racionais da consciência não passariam de
ilusórias aparências, e a essência de todas as coisas seria alheia à razão. Em síntese,
afirma que: “A consciência é a mera superfície de nossa mente, da qual, como da
terra, não conhecemos o interior, mas apenas a crosta” (Schopenhauer, 1990; 228, §
32). Vemos assim iniciada a dialética inconsciente x consciente, irracional x racional,
onde o primeiro representa, assim, papel fundamental na filosofia de Schopenhauer.
Sob esse aspecto, podemos dizer que o filósofo Schopenhauer antecipou-se a uma
das concepções mais importantes da psicologia de Jung, a realidade objetiva da
psique, uma experiência superlativamente real conforme discute em suas obras
completas.

Sobre as dores do mundo – viver é sofrer?

Para Schopenhauer, a idéia da vontade ocupa o lugar de raiz metafísica do mundo e


da conduta humana sendo, a um só tempo, razão e fonte de tudo, inclusive de todos
os sofrimentos. É um querer irracional e inconsciente, inerente à existência do
homem, gerando inevitavelmente a dor. Segundo o filósofo, o que se conhece como
felicidade seria apenas a interrupção temporária de um processo de infelicidade, e a
lembrança de um sofrimento passado criaria a ilusão de um bem-estar presente.
É complexa a compreensão dessa visão de mundo, já que exige que tenhamos
condição de apreender, até mesmo pela observação não-sistemática, que a vida vive e
se alimenta da morte. Em suas memórias, no ápice de sua maturidade, Jung mostra-se

83
sensível a esse ponto de vista quando fala da crueldade da natureza proveniente da
cegueira da vontade criadora do mundo quando assim enuncia:

TUDO O QUE OBSERVARA EM MINHA INFÂNCIA CONFIRMAVA ESSA VISÃO: OS PEIXES DOENTES E AGONIZANTES, AS
RAPOSAS SARNENTAS, OS PÁSSAROS MORTOS DE FRIO E FOME, A TRAGÉDIA IMPIEDOSA ENCOBERTA PELAS CAMPINAS
FLORIDAS: MINHOCAS TORTURADAS ATÉ A MORTE PELAS FORMIGAS, INSETOS QUE SE DESPEDAÇAVAM AOS POUCOS
ETC. POR OUTRO LADO, MINHAS EXPERIÊNCIAS ACERCA DOS HOMENS CONTRADIZIAM A CRENÇA NUMA BONDADE
HUMANA ORIGINAL E EM SUA MORALIDADE. JÁ ME CONHECIA SUFICIENTEMENTE PARA SABER QUE NÃO HAVIA ENTRE
MIM E UM ANIMAL MAIS DO QUE UMA DIFERENÇA DE GRAU (JUNG, MSR, 1968: 71).

Todo prazer é ponto de partida de novas aspirações, sempre obstadas e sempre em


luta por sua realização: “Viver é sofrer”. Sua compreensão sobre a existência, o ser e
o viver em muito pode contribuir para a discussão sobre o processo e o fenômeno da
metanóia e da individuação. É preciso que nos aproximemos um pouco mais de sua
doutrina quando diz que:

SENTIMOS A DOR, MAS NÃO A AUSÊNCIA DA DOR; SENTIMOS A INQUIETAÇÃO, MAS NÃO A AUSÊNCIA DA INQUIETAÇÃO;
O TEMOR, MAS NÃO A SEGURANÇA. SENTIMOS O DESEJO E O ANELO, COMO SENTIMOS A FOME E A SEDE; MAS APENAS
SATISFEITOS, TUDO ACABA, ASSIM COMO O BOCADO QUE, UMA VEZ ENGOLIDO, DEIXA DE EXISTIR PARA A NOSSA
SENSAÇÃO. ENQUANTO POSSUÍMOS OS TRÊS MAIORES BENS DA VIDA, SAÚDE, MOCIDADE E LIBERDADE, NÃO TEMOS
CONSCIÊNCIA DELES, E SÓ OS APRECIAMOS DEPOIS DE OS HAVERMOS PERDIDO, PORQUE ESSES TAMBÉM SÃO BENS
NEGATIVOS. SÓ NOTAMOS OS DIAS FELIZES DA NOSSA VIDA PASSADA DEPOIS DE DAREM LUGAR AOS DIAS DE TRISTEZA.
À MEDIDA QUE OS NOSSOS PRAZERES AUMENTAM, TORNAMO-NOS CADA VEZ MAIS INSENSÍVEIS; O HÁBITO NÃO É JÁ
UM PRAZER. POR ISSO MESMO A NOSSA FACULDADE DE SOFRER É MAIS VIVA; TODO O HÁBITO SUPRIMIDO CAUSA UM
SENTIMENTO DOLOROSO. AS HORAS CORREM TANTO MAIS RÁPIDAS QUANTO MAIS AGRADÁVEIS SÃO, TANTO MAIS
DEMORADAS QUANTO MAIS TRISTES, POR QUE O GOZO NÃO É POSITIVO, MAS SIM A DOR, CUJA PRESENÇA SE FAZ
SENTIR. O ABORRECIMENTO DÁ-NOS A NOÇÃO DO TEMPO, A DISTRAÇÃO TIRA-A. (...). É POR ESTE MOTIVO QUE TODOS
OS POETAS SÃO OBRIGADOS A COLOCAR OS SEUS HERÓIS EM SITUAÇÕES CHEIAS DE ANSIEDADES E DE TORMENTOS, A
FIM DE OS LIVRAREM DELAS: DRAMA E POESIA ÉPICA SÓ NOS MOSTRAM OS HOMENS QUE LUTAM, QUE SOFREM MIL
TORTURAS, E CADA ROMANCE OFERECE-NOS EM ESPETÁCULO OS ESPASMOS E AS CONVULSÕES DO POBRE CORAÇÃO
HUMANO. VOLTAIRE, O FELIZ VOLTAIRE, QUE TÃO FAVORECIDO FOI PELA NATUREZA, PENSA COMO EU, QUANDO DIZ:
“A FELICIDADE NÃO PASSA DUM SONHO, SÓ A DOR É REAL”; E ACRESCENTA: “HÁ OITENTA ANOS QUE O
EXPERIMENTO. NÃO SEI FAZER OUTRA COISA SENÃO RESIGNAR-ME E DIZER A MIM MESMO QUE AS MOSCAS NASCERAM
PARA SEREM COMIDAS PELAS ARANHAS, E OS HOMENS PARA SEREM DEVORADOS PELOS PRAZERES” (SCHOPENHAUER,
1931: 25-26).

Em sua obra As dores do mundo, o filósofo elabora questionamentos pertinentes ao


nosso tema no que diz respeito à segunda metade da vida, em que parece referir-se a
um encontro com o destino e, fundamentalmente, à transcendência como fenômeno
natural, inerente à individuação conforme fala da dor na segunda metade da vida.
Nesse particular, lemos:

ENQUANTO A PRIMEIRA METADE DA VIDA É APENAS UMA INFATIGÁVEL ASPIRAÇÃO DE FELICIDADE, A SEGUNDA
METADE, PELO CONTRÁRIO, É DOMINADA POR UM SENTIMENTO DOLOROSO DE RECEIO, PORQUE SE ACABA POR
PERCEBER MAIS OU MENOS CLARAMENTE QUE TODA A FELICIDADE NÃO PASSA DE QUIMERA, QUE SÓ O SOFRIMENTO É
REAL. POR ISSO OS ESPÍRITOS SENSATOS VISAM MENOS AOS PRAZERES DO QUE A UMA AUSÊNCIA DE DESGOSTOS, A UM
ESTADO DE ALGUM MODO INVULNERÁVEL. – NOS MEUS ANOS DE MOCIDADE, UMA CAMPAINHADA À PORTA CAUSAVA-
ME ALEGRIA PORQUE PENSAVA: “BOM! É QUALQUER COISA QUE SUCEDE”. MAIS TARDE, EXPERIMENTADO PELA VIDA,

84
ESSE MESMO RUÍDO DESPERTAVA-ME UM SENTIMENTO VIZINHO DO MEDO; DIZIA DE MIM PARA MIM: “QUE SUCE-
DERÁ?” (SCHOPENHAUER, 1931; 17).

Sua perspectiva é contundente quando fala da velhice, como um ocaso da pessoa e


da personalidade, do viver e do próprio ser, quando continua a comentar:

NA VELHICE AS PAIXÕES E OS DESEJOS EXTINGUEM-SE UNS APÓS OUTROS, À MEDIDA QUE OS OBJETOS DESSAS PAIXÕES
SE TORNAM INDIFERENTES; A SENSIBILIDADE DIMINUI, A FORÇA DA IMAGINAÇÃO TORNA-SE SEMPRE MAIS FRACA, AS
IMAGENS EMPALIDECEM, AS IMPRESSÕES JÁ NÃO ADEREM, PASSAM SEM DEIXAR VESTÍGIOS, OS DIAS DECORREM CADA
VEZ MAIS RÁPIDOS, OS ACONTECIMENTOS PERDEM A SUA IMPORTÂNCIA, TUDO SE DESCOLORA. O HOMEM
ACABRUNHADO PELA IDADE PASSEIA CAMBALEANDO OU REPOUSA A UM CANTO, NÃO SENDO MAIS DO QUE A SOMBRA,
O FANTASMA DO SEU SER PASSADO. VEM A MORTE, QUE LHE RESTA PARA DESTRUIR. UM DIA A SONOLÊNCIA MUDA-SE
EM ÚLTIMO SONO E OS SEUS SONHOS... JÁ INQUIETAVAM HAMLET NO CÉLEBRE MONÓLOGO. CREIO QUE DESDE ESSE
MOMENTO SONHAMOS (SCHOPENHAUER, 1931; 18).

Em seu livro de memórias, cabe observar e ratificar que esse é um dos aspectos que
revela a singularidade e a propriedade de Schopenhauer, ou seja, inserir o sofrimento
e a dor que constituem uma das faces mais significativas da vida humana.
Sua dura e pouco simpática obra foi profundamente influenciada pelo pensamento
e filosofia dos Upanishades e, de alguma forma, também influenciou o pensamento
de Nietzsche no que diz respeito à concepção da vida, da tragédia e do destino.
Dentro do tema que procuramos discutir, podemos ainda destacar uma outra
passagem apropriada à discussão com expressivo destaque em sua obra As Dores do
Mundo:

TODO HOMEM QUE DESPERTOU DOS PRIMEIROS SONHOS DA MOCIDADE, QUE TEM EM CONSIDERAÇÃO A SUA PRÓPRIA
EXPERIÊNCIA E A DOS OUTROS, QUE ESTUDOU A HISTÓRIA DO PASSADO E A DA SUA ÉPOCA, SEM QUAISQUER PRECON-
CEITOS DEMASIADO ARRAIGADOS QUE NÃO LHE PERTURBAM O ESPÍRITO, ACABARÁ POR CHEGAR À CONCLUSÃO QUE
ESTE MUNDO DOS HOMENS É O REINO DO ACASO E DO ERRO, QUE O DOMINAM E O GOVERNAM A SEU MODO SEM
PIEDADE ALGUMA, AUXILIADOS PELA LOUCURA E PELA MALDADE, QUE NÃO CESSAM DE BRANDIR O CHICOTE. POR
ISSO, O QUE HÁ DE MELHOR ENTRE OS HOMENS SÓ APARECE APÓS GRANDES ESFORÇOS; QUALQUER INSPIRAÇÃO NOBRE
E SENSATA DIFICILMENTE ENCONTRA OCASIÃO DE SE MOSTRAR, DE PROCEDER, DE SE FAZER OUVIR, AO PASSO QUE O
ABSURDO E A FALSIDADE NO DOMÍNIO DAS IDÉIAS, A BANALIDADE E A VULGARIDADE NAS REGIÕES DA ARTE, A
MALÍCIA E A VELHACARIA NA VIDA PRÁTICA, REINAM SEM PARTILHA, E QUASE SEM INTERRUPÇÃO; NÃO HÁ
PENSAMENTO, OBRA EXCELENTE QUE NÃO SEJA UMA EXCEÇÃO, UM CASO IMPREVISTO, SINGULAR, INCRÍVEL, PERFEI-
TAMENTE ISOLADO, COMO UM AERÓLITO PRODUZIDO POR UMA ORDEM DE COISAS DIFERENTE DAQUELA QUE NOS
GOVERNA. COM RESPEITO A CADA UM EM PARTICULAR, A HISTÓRIA DE UMA EXISTÊNCIA É SEMPRE A HISTÓRIA DE UM
SOFRIMENTO, PORQUE TODA A CARREIRA PERCORRIDA É UMA SÉRIE ININTERRUPTA DE REVESES E DE DESGRAÇAS, QUE
CADA UM PROCURA OCULTAR, PORQUE SABE QUE LONGE DE INSPIRAR AOS OUTROS SIMPATIA OU PIEDADE, DÁ-LHES
ENORME SATISFAÇÃO DE TAL MODO SE COMPRAZEM EM PENSAR NOS DESGOSTOS ALHEIOS A QUE ESCAPAM NAQUELE
MOMENTO; É RARO QUE UM HOMEM NO FIM DA VIDA, SENDO AO MESMO TEMPO SINCERO E PONDERADO, DESEJE
RECOMEÇAR O CAMINHO, E NÃO PREFIRA INFINITAMENTE O NADA ABSOLUTO (SCHOPENHAUER, 1931; 18-19).

A supressão das dores do mundo

Mas, apesar de todo o seu pessimismo, Schopenhauer aponta algumas duas grandes
formas para a suspensão da dor. No primeiro momento, o caminho para a supressão

85
da dor encontra-se na contemplação artística. A contemplação desinteressada das
idéias seria um ato de intuição artística e permitiria a contemplação da vontade em si
mesma, o que, por sua vez, conduziria ao domínio da própria vontade.
Assim, o intelecto e a inteligência deixam de ocupar a posição ativa, de atriz, para
assumir a posição contemplativa, de espectadora. A atividade artística revelaria as
idéias eternas, os protótipos, por intermédio de diversos graus, passando
sucessivamente por diferentes expressões até que encontrasse na música sua máxima
expressão. Para Schopenhauer, pela primeira vez na história da filosofia, a música
ocupa o primeiro lugar entre todas as artes. Liberta de toda referência específica aos
diversos objetos da vontade, a música poderia exprimir a vontade em sua essência
geral e indiferenciada, constituindo um meio capaz de propor a libertação em face dos
diferentes aspectos assumidos pela vontade.
A libertação proporcionada pela contemplação da arte, segundo Schopenhauer, não
é, contudo, total e completa. A arte significa apenas um distanciamento relativamente
passageiro e não a supressão da vontade. Para que atinja a libertação, é necessário que
o homem ascenda a um nível da conduta essencialmente ética, uma espécie de etapa
superior no processo de superação das “dores do mundo”, a grande e definitiva
metanóia.
A ética de Schopenhauer, a grande transformação que elevaria o Homem ao
Princípio da Individuação não está em nenhuma condição ligada à noção de “dever”.
Schopenhauer não menciona quaisquer formas imperativas de filosofia, já que assim
seria considerada como formas de coerção. Prefere não se apoiar em mandamentos,
mas sim, na noção de que o caminho é a contemplação da verdade e o caminho de
acesso ao bem.
Para Schopenhauer, o egoísmo, aquilo que faz do homem seu pior inimigo, advém
da ilusão ou mesmo de vontades independentes que afirmam seus ímpetos individuais
e assim constrói sua visão moral do mundo a partir de uma profunda reflexão sobre
esse tema. Para ele, o egoísmo é a própria forma da vontade de viver, e, através do
egoísmo do eu, considerado como uma gota d’água no oceano, se revela a
contradição íntima da vontade.
O egoísmo, para Schopenhauer, atinge a sua suprema intensidade nos casos
aberrantes dos grandes tiranos, sendo o princípio e a fonte do que denomina como
maldade. Em síntese, o egoísmo e a crueldade são duas molas de impulso, todas
fundamentais, fazendo a diferença entre o eu e o não-eu, entre mim e alguém. Em sua
visão, todos somos egoístas, os animais inclusive, os cruéis, e de fato, é bastante
elogiado quando alguém abandona essa perspectiva em favor de um eu carente, o
qual pode até matar a pessoa caridosa após essa tê-lo ajudado.
No entanto, a pessoa compassiva deixa-se seduzir pelo amor puro e amplia seus
horizontes para o bem da humanidade e se torna benevolente e misericordiosa. O
fundamento da ética de Schopenhauer indica um otimismo prático, ou seja, estar à
mercê da mola, impulso fundamental de uma boa ação, que anula as duas outras, o
egoísmo e a crueldade. Para ele o egoísmo é a fonte da injustiça e esta é tida como ato
de empurrar a afirmação de nossa vontade para além dos limites de sua forma visível,
até negá-la.
A superação do egoísmo somente seria possível mediante o conhecimento da

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natureza única universal da vontade. Como conseqüência moral do desaparecimento
de sua individualidade, o homem pode tornar-se bom; ao espírito de luta contra os
semelhantes segue-se o espírito de simpatia. Libertado, pela etapa ética, o homem
atinge o princípio que é o fundamento de toda verdade moral: “Não prejudiques
pessoa alguma, sê bom com todos”.
Essa ética da piedade e da comiseração, segundo Schopenhauer, encontrou sua
mais acabada expressão nos evangelhos, onde “ama a teu próximo como a ti mesmo”
constitui o princípio fundamental da conduta. Mas nem mesmo a ética da piedade
possibilitaria ao homem atingir a felicidade última. Para Schopenhauer, a mais
completa forma de salvação para o homem somente pode ser encontrada na renúncia
quietista ao mundo e a todas as suas solicitações, na mortificação dos instintos, na
auto-anulação da vontade e na fuga para o nada.
Um dos aspectos mais surpreendentes em Schopenhauer é sua capacidade de
retratar o sofrimento do homem comum valendo-se de um estilo de narrativa simples,
porém contundente. Mesmo diante desse pessimismo podemos encontrar,
paradoxalmente, em sua doutrina, palavras que expressam a possibilidade de
felicidade em um mundo até então concebido onde só a dor é real. Em A arte de ser
feliz, obra composta por cinqüenta máximas de seu pensamento, de natureza quase
pedagógica, o filósofo apresenta um prontuário de regras e comportamentos,
contemplando também algumas questões pertinentes a esse trabalho, quando afirma:

O QUE TORNA INFELIZ A PRIMEIRA METADE DA VIDA, QUE APRESENTA TANTAS VANTAGENS EM RELAÇÃO À SEGUNDA,
É A BUSCA DA FELICIDADE, COM BASE NO FIRME PRESSUPOSTO DE QUE ESTA DEVA SER ENCONTRÁVEL NA VIDA: O
RESULTADO SÃO ESPERANÇAS E INSATISFAÇÕES CONTINUADAMENTE FRUSTRADAS. VISUALIZAMOS IMAGENS
ENGANOSAS DE UMA FELICIDADE SONHADA E INDETERMINADA, ENTRE FIGURAS ESCOLHIDAS POR CAPRICHO, E
PROCURAMOS EM VÃO SEU ARQUÉTIPO.

Na segunda metade da vida, a preocupação com a infelicidade toma o lugar da


aspiração sempre insatisfeita à felicidade; no entanto, encontrar um remédio para tal
problema é objetivamente possível (Schopenhauer, 2001: 64-65).

A velhice, metanóia e transcendência

No prólogo do seu livro de memórias, Jung afirma:

MINHA VIDA É HISTÓRIA DE UM INCONSCIENTE QUE SE REALIZOU. TUDO O QUE NELE REPOUSA ASPIRA A TORNAR-SE
UM ACONTECIMENTO, E A PERSONALIDADE, POR SEU LADO, QUER EVOLUIR A PARTIR DE SUAS CONDIÇÕES
INCONSCIENTES E SE EXPERIMENTAR COMO TOTALIDADE (JUNG, MSR, 1968: 19).

Com essas palavras, parece sintetizar a mais pura essência de seu pensamento e o
que há de mais significativo, íntimo e delicado no que se refere à metanóia ou ao
Processo de Individuação e à vida. Com a simplicidade que só a sabedoria pode
trazer, apresenta o Processo de Individuação, a metanóia, como um inevitável e
insólito encontro com o destino, ou seja, com a realização, até as últimas

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conseqüências, de seu próprio Eu em todas as suas potencialidades, luzes e sombras,
a totalidade de cada singularidade.
Temos a íntima sensação de que nessas palavras estão contidas de forma sinóptica
a compreensão e a visão de mundo de um homem que viveu até as últimas conse-
qüências a sua própria individualidade e seu destino. Jung parece apresentar a
narrativa de seu próprio processo e confronto individual com a velhice, com o destino
e com o seu próprio caráter. James Hillman, em seu livro A Força do Caráter lida
com o velho ditado: ”caráter é destino”, onde lemos:

(...) POIS O QUE RESTA É O PEDAÇO DE DESTINO QUE O CARÁTER ÚNICO DE CADA PESSOA PERSONIFICA. SER ÚNICO É
SER ÍMPAR, DIFERENTE, ATÍPICO, DIVERSO DE QUALQUER OUTRA COISA EM QUALQUER LUGAR; AS SINGULARIDADES
QUE UMA PESSOA TENTA ABAFAR DURANTE A MAIOR PARTE DA VIDA REEMERGEM NO FINAL DA VIDA PARA COMPOR A
IMAGEM QUE É DEIXADA (HILLMAN, 2001: 28).

Ao enfocar propriamente a metanóia como um fenômeno natural e inerente ao


Processo de Individuação, observa-se que, no âmbito das relações familiares, é com o
momento e com a dimensão psíquica da velhice que a família e o indivíduo deverão,
ambos, se confrontar, suscitando assim o caráter e o destino pessoal de cada um,
tendo em vista que os artifícios e as necessidades da adaptação social não só não
funcionam mais, como também não fazem mais sentido, pois, nesse momento, o que
se constitui como o mais importante e significativo é o encontro com o si-mesmo.
As discussões sobre as relações com a velhice e com o idoso parecem sugerir, em
essência, a mesma problemática em que estão envolvidas as relações com a infância e
com as crianças. Os fenômenos inerentes às relações familiares e culturais para com
essas dimensões psíquicas vistas como extremos da vida são praticamente análogos.
O mundo, criado à imagem e semelhança de seus criadores, parece não contemplar
um lugar natural referente aos extremos da existência, fenômeno que faz com que
grande parte dos programas de inclusão promovida pelos órgãos e dispositivos
governamentais careça de sensibilidade e profundidade na abordagem do tema.
Habitualmente, os programas públicos e privados para idosos lembram muito o de
creches para crianças, onde cada qual procura, a seu modo, a formação de grupos
lúdicos para lazer criando, tal como é feito com crianças, um mundo à parte, onde
todos poderão continuar a viver livremente em outro tipo de isolamento social.
A utopia da inclusão social e cultural parece terminar na concepção com a
formação de grupos específicos para idades específicas voltados para um tipo de
recreação que, por vezes, conduz ao isolamento. A velhice, ou mesmo o velho, são
tratados de forma equivocada, pois, lamentavelmente, ainda são sinônimos de um
significado muito distante da concepção filosófica e psicológica de individuação,
espiritualidade e transcendência.
O comportamento do idoso e seu caráter individual e particular em muitos detalhes
são considerados como desvio típico da idade e daí parece surgir a necessidade de
isolar essas características em pequenos grupos, evitando vários incômodos e o
contágio psíquico que podem gerar. Criam-se para tal, espaços, atividades, dietas,
programas, vestuário e diversos outros elementos que, agregados, definem um grupo
social típico que poderá “aproveitar a vida” de forma descompromissada, tendo em

88
vista a utilidade, útil ao mundo patriarcal.
Há, no entanto, uma outra idéia de velho e de velhice que é interessante identificar
e desenvolver a fim de que possa ser possível apontar para a condição e para a
possibilidade de transcendência. Sabendo que essa possibilidade é viva e age
sincronisticamente ao longo da vida e vem por isso esboçando sua ação, mais
particularmente na segunda metade da vida, onde nos apresenta o encontro
transcendente com o caráter e com o próprio destino que, acima de tudo, sempre
estiveram presentes em todos os momentos da existência. Parece que é essa dimensão
psíquica, e não uma época específica com uma psicologia própria, que ainda é vista
como uma ameaça a um ego que insiste narcisicamente em se perpetuar petrificado.
Velhice e velho ainda sugerem um significado de petrificação, decrepitude, feiúra,
inutilidade e tudo o que há de pior, concepção que contradiz diametralmente a idéia
de um encontro com o destino e com o si-mesmo.
Jung parece sugerir e anunciar, em grande parte de sua obra, esse encontro e a
possibilidade da transcendência com o confronto originado com o destino superior,
uma dimensão e uma necessidade inerente ao Processo de Individuação. Jung
também afirma que uma psicologia da individuação sugere a vida de Cristo como um
modelo mítico, ou seja:

O DRAMA DA VIDA DE CRISTO DESCREVE, EM IMAGENS SIMBÓLICAS, OS EVENTOS DA VIDA CONSCIENTE – ASSIM
COMO DA VIDA QUE TRANSCENDE A CONSCIÊNCIA, DE UM HOMEM QUE FOI TRANSFORMADO PELO SEU DESTINO
SUPERIOR (JUNG, OC XI: 233).

Assim sendo, achamos interessante poder pensar em uma analogia da velhice e do


idoso com a transcendência a partir do encontro com seu próprio eu, o si-mesmo e
conseqüentemente o self. Psicologicamente, seria partir da condição inicial da psique
como um só centro, o self para uma condição final na individuação que é a elipse com
dois centros e uma interessante relação entre esses focos, uma nítida analogia com a
formação do eixo ego-self.
A melhor representação do si-mesmo para Jung é a imago-dei, uma expressão que
se conceituou como sendo de natureza numinosa e, em alguns textos de sua obra,
particularmente no volume IX, fez a representação através de Cristo como a melhor
representação do arquétipo do self. Em outra obra afirma:

SEMPRE QUE O ESPÍRITO DE DEUS É EXCLUÍDO DOS CÁLCULOS HUMANOS, SEU LUGAR É TOMADO POR UM SUCEDÂNEO
INCONSCIENTE. EM SCHOPENHAUER ENCONTRAMOS A VONTADE INCONSCIENTE COMO NOVA DEFINIÇÃO DE DEUS; EM
CARUS É O INCONSCIENTE E EM HEGEL A IDENTIFICAÇÃO E A INFLAÇÃO, A EQUIPARAÇÃO PRÁTICA DA RAZÃO
FILOSÓFICA AO ESPÍRITO PURO E SIMPLES, TORNANDO, ASSIM, APARENTEMENTE POSSÍVEL AQUELE APRISIONAMENTO
DO OBJETO, CUJA FLORAÇÃO MAIS FULGURANTE É A SUA FILOSOFIA DO ESTADO (JUNG, O.C., VIII: 359).

Na verdade, o encontro com o caráter, com o destino e com a individualidade dá


condições e possibilidades para um encontro consigo mesmo, com sua própria
história, uma verdadeira re-significação e re-ligação do significado de cada
existência, tarefa que faz da segunda metade da vida uma experiência tão plena,

89
estruturante e, sobretudo, necessária. De acordo com as palavras do filósofo, temos:

POUCOS HOMENS, PELO SIMPLES CONHECIMENTO REFLETIDO DAS COISAS, CONSEGUEM PENETRAR A ILUSÃO DO
“PRINCIPIUM INDIVIDUATIONIS”, POUCOS HOMENS POSSUIDORES DUMA PERFEITA BONDADE DE ALMA, DE CARIDADE
UNIVERSAL, CHEGAM POR FIM A RECONHECER TODAS AS DORES DO MUNDO COMO AS SUAS PRÓPRIAS, PARA OBTEREM
A NEGAÇÃO DA VONTADE. MESMO NO QUE MAIS SE APROXIMA DESSE GRAU SUPERIOR, AS COMODIDADES PESSOAIS, O
ENCANTO FASCINADOR DO MOMENTO, A VISÃO DA ESPERANÇA, OS DESEJOS INCESSANTEMENTE RENOVADOS SÃO UM
ETERNO OBSTÁCULO À RENÚNCIA, UM ETERNO INCENTIVO À VONTADE; DONDE RESULTA QUE PERSONIFICARAM NOS
DEMÔNIOS A INFINIDADE DE SEDUÇÕES QUE NOS TENTAM E ATRAEM.
TEM, PORTANTO, A NOSSA VONTADE DE SER QUEBRADA POR UM IMENSO SOFRIMENTO, ANTES QUE CHEGUE À
RENÚNCIA DE SI PRÓPRIA. QUANDO PERCORREU TODOS OS GRAUS DA ANGÚSTIA, QUANDO, APÓS UMA SUPREMA
RESISTÊNCIA, TOCA O ABISMO DO DESESPERO, O HOMEM VOLTA SUBITAMENTE A SI, CONHECE-SE, CONHECE O MUNDO,
TRANSFORMA-SE-LHE A ALMA, ELEVA-SE ACIMA DE SI MESMO E DE TODO O SOFRIMENTO; ENTÃO PURIFICADO,
SANTIFICADO DE ALGUM MODO NUM REPOUSO, NUMA FELICIDADE INABALÁVEL, NUMA ELEVAÇÃO INACESSÍVEL,
RENUNCIA A TODOS OS OBJETOS DOS SEUS APAIXONADOS DESEJOS, E RECEBE A MORTE COM ALEGRIA. COMO UM
PÁLIDO CLARÃO, A NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIVER; ISTO É, A LIBERTAÇÃO, JORRA SUBITAMENTE DA CHAMA
PURIFICADORA DA DOR (SCHOPENHAUER, 1931: 142-143).

Retomando à eudemonologia do filósofo, finalizamos com a Máxima 28 – “Ainda


sobre as idades”, quando se refere às idades:

SEM RAZÃO, COMPADECE-SE DA FALTA DE ALEGRIAS NA VELHICE E LAMENTA-SE QUE VÁRIOS PRAZERES LHES SÃO
NEGADOS. TODO PRAZER É RELATIVO, OU MELHOR, É UMA SIMPLES FORMA DE SATISFAZER E SACIAR UMA
NECESSIDADE. O FATO DE O PRAZER SE EXAURIR COM A ELIMINAÇÃO DA NECESSIDADE É TÃO POUCO DEPLORÁVEL
QUANTO O DE ALGUÉM NÃO CONSEGUIR MAIS COMER DEPOIS DA REFEIÇÃO, OU NÃO CONSEGUIR MAIS DORMIR DEPOIS
DE UMA NOITE DE SONO. DE MODO MAIS CORRETO, PLATÃO CONSIDERA A VELHICE COMO UM ESTÁGIO FELIZ DA
VIDA, POIS NELA SE AQUIETA O DESEJO DE POSSUIR MULHERES. COMODIDADE E SEGURANÇA SÃO AS PRINCIPAIS
NECESSIDADES DA VELHICE: POR ISSO, NESSA ETAPA DA VIDA, AMA-SE SOBRETUDO O DINHEIRO, COMO O SUBSTITUTO
DAS ENERGIAS QUE FALTAM. ALÉM DISSO, OS PRAZERES DA MESA SUBSTITUEM OS DO AMOR. A NECESSIDADE DE VER,
VIAJAR E APRENDER É SUPLANTADA PELA NECESSIDADE DE ENSINAR E FALAR. MAS É UMA SORTE QUANDO AO ANCIÃO
RESTA O AMOR PELO ESTUDO, PELA MÚSICA E PELO TEATRO (SCHOPENHAUER, 2001: 70-71).

Enfim, sabemos todos que a maior transcendência é a re-significação da morte


como uma meta natural que abre as portas do eterno e do infinito, pois sabemos,
conforme diz Jung:

(...) DO MEIO DA VIDA EM DIANTE, SÓ AQUELE QUE SE DISPÕE A MORRER CONSERVA A VITALIDADE, PORQUE NA HORA
SECRETA DO MEIO-DIA DA VIDA INVERTE-SE A PARÁBOLA E NASCE A MORTE. A SEGUNDA METADE DA VIDA NÃO
SIGNIFICA SUBIDA, EXPANSÃO, CRESCIMENTO, EXUBERÂNCIA, MAS MORTE, PORQUE O SEU ALVO É O SEU TÉRMINO. A
RECUSA EM ACEITAR A PLENITUDE DA VIDA EQUIVALE A NÃO ACEITAR O SEU FIM. TANTO UMA COISA COMO OUTRA
SIGNIFICAM NÃO QUERER VIVER. E NÃO QUERER VIVER É SINÔNIMO DE NÃO QUERER MORRER. A ASCENSÃO E O
DECLÍNIO FORMAM UMA SÓ CURVA (JUNG, O.C., VOL. VIII, § 800).

Além dessas citações e considerações apresentadas, tenho a convicção, extraída de


mim mesmo e de minha própria vida, de que, até hoje, cada instante vivido foi
trilhado rumo a uma meta. Experimento a cada momento a consciência de uma

90
finalidade que haverá de se revelar em sua totalidade, permitindo que eu possa nascer
e abrir as portas que me conduzam para a eternidade e para a infinitude da vida, pois,
em total acordo com Jung: “a meta não está no cume, mas no vale onde a subida
começou” (Jung, O.C., Vol. VIII, § 798).

Referências Bibliográficas

BARBOZA, Jair. Schopenhauer – A decifração do enigma do mundo. São Paulo: Moderna,1998.


BORGES, Jorge Luis. Antologia Poética 1923-1977. Madrid: Alianza Editorial, 1981.
BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades – Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
DURANT, Will. A História da Filosofia. Rio de Janeiro: Record, 1996.
HILLMAN, James. A força do caráter e a poética de uma vida longa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
JUNG. C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Tr. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1968.
_____. Obras Completas. Petrópolis: Vozes.
MARONI, Amnéris. Jung: Individuação e coletividade. 1.ª ed. São Paulo: Moderna, 1998.
MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar,
1979.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e Representação. Tr. M. F. Sá Correia. Lisboa: RÉS,
1990.
_____. As dores do mundo. Rio de Janeiro: Livraria Antunes, 1931.
_____. A arte de ser feliz. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SIMMEL, Georg. Schopenhauer and Nietzsche. Tr. Helmut Loiskande, Deena Weinstein e Michael Weintein.
Amherst: The University of Massachussetts Press, 1986.

* Graduado em Engenharia Civil; Psicologia; pós-graduado em Psicoterapia Analógica Holista (SBH-SP); em Psicologia Junguiana
(IBMR-RJ); mestre em Filosofia; professor do curso de pós-graduação em Psicologia Junguiana (IBMR-RJ); Psicólogo clínico e
trainee da AJB. Participação: - “Pinochio e Gepeto - Uma abordagem arquetípica do Puer e do Senex”, In: BOECHAT, W.
Masculino em questão. Petrópolis: Vozes, 1998. - “Perspectivas de abordagem da religião – Abordagem Junguina” – Revista de
Filosofia e Teologia do Instituto Teológico Arquidiocesano Sto. Antônio – vol. 6, n.° 23, – 2000.

91
9
O caminho do espírito na ciência e nos sonhos
Alvaro de Pinheiro Gouvêa*

Introdução

A HISTÓRIA DO ESPÍRITO É SUA AÇÃO (ATIVIDADE), POIS O ESPÍRITO É O QUE FAZ E SUA AÇÃO CONSISTE EM FAZER
QUE SE TORNE, ELE PRÓPRIO, ENQUANTO ESPÍRITO, OBJETO DE SUA CONSCIÊNCIA, APREENDENDO-SE E EXPLICITANDO-
SE PARA SI MESMO. ESSA APREENSÃO DE SI MESMO É SEU SER E SEU PRINCÍPIO, EFETUA-SE POR ETAPAS SUCESSIVAS E
CADA APREENSÃO, UMA VEZ COMPLETA, É, AO MESMO TEMPO, SUA ALIENAÇÃO E SUA PASSAGEM PARA UM OUTRO
(HEGEL IN CORBISIER, 1981: 126).

Ao escrever sobre as pulsões e os destinos das pulsões em seu livro


Metapsicologia, Freud reconhecerá, desde o início, que os conceitos científicos que
fundamentam as ciências nem sempre começam com precisão e nitidez. Freud diz
textualmente: “Sempre escutamos formular a seguinte exigência: uma ciência deve
ser construída a partir de conceitos fundamentais claros e muito bem definidos. Na
realidade, nenhuma ciência, mesmo a mais exata, segue essa norma” (FREUD, 1940:
11). Na verdade os conceitos nascem de fenômenos observados em nosso cotidiano.
Ao juntar e ordenar sistematicamente tais conteúdos, estaríamos produzindo
conhecimento e, conseqüentemente, fazendo ciência.
Os fenômenos por nós observados transformam-se em idéias e finalmente em
conceitos científicos. Qualquer observação científica está fundada em fenômenos
constatados e testemunhados pelo homem. As ciências e as teorias científicas nascem
de nossas experiências subjetivas quando em relação com o mundo que nos cerca.
Sendo assim, a vida cotidiana com a série de nossas experiências e percepções diárias
está na base das teorias científicas. Poderíamos então dizer que mesmo o homem
mais comum está fazendo ciência quando expõe no cotidiano sua interioridade e
intimidade.
Como é o próprio homem que faz ciência, necessitamos de uma ferramenta
humana capaz de tratar a relação Homem/Natureza dentro de certa objetividade. Essa
ferramenta é o “testemunho”. Em meio às incertezas e indeterminações produzidas
por nossa mente somente pelo “testemunho” é que poderemos registrar de maneira
correta um fato científico. Pelo “testemunho” é que transformamos os fatos da vida
cotidiana em pesquisa científica. O “testemunho” é a chave mestra para aquisição de
conhecimento.
Hegel, com muita propriedade, procura examinar as formas ou manifestações do
“ser” naquilo que ele pode saber de si mesmo. Ao tomar consciência de si mesmo, o

92
espírito objetiva-se em direito, em moralidade e em vida ética. Assim o espírito, além
de consciência, é consciência de si e razão. Von Franz vê a obra de Hegel como
sendo “a tentativa de dominar tudo com o intelecto” e fugir às experiências das
influências inconscientes, considerando essa atitude uma “fraqueza de Hegel” (Von
Franz, 1992: 43).
Mas, na verdade, a obra de Hegel é a obra de um gênio preocupado em explicar
racionalmente aquilo que escapa ao racional, ou seja, o próprio inconsciente. Vejo em
Freud e Jung esse mesmo desejo quando procuram mapear topograficamente através
de conceitos a estrutura básica da psique. Existe fragilidade em Hegel como existe em
Freud e na obra de Jung. Não é nada fácil fazer ciência procurando dar uma forma
sistematizada aos mecanismos que escapam ao raciocínio científico.
Escrever sobre a fenomenologia do Espírito engaja Hegel na difícil tarefa de
ajuizar pela experiência precisa de uma lógica formal o que a dinâmica intersubjetiva
e imaginária convencionou chamar de Espírito. O próprio título do livro de Hegel já
anuncia essa complexidade que é a questão da condição de possibilidade de o Espírito
poder encarnar-se na realidade sistematizada da linguagem filosófica e científica e de
como isso se daria.
Abordar a diversidade da alma humana em seus fenômenos ditos ocultos, de forma
a trazê-los para a luz da lógica racional, não é tarefa nada fácil. Escrever ou falar
sobre essa nossa metamorfose cotidiana muitas vezes nos deixa confusos. Certamente
que é por esse motivo que, como Hegel, Jung é por muitos considerado um escritor
confuso.
A dramaturgia do texto em alguns momentos, tanto em Hegel como em Jung,
parece perder o ritmo, e as idéias começam a se embaralhar entre os conceitos criados
por eles. Contudo, penetrar essa riqueza infinita que reside por trás de nossas
emoções diárias, dando a essas emoções uma sintaxe, emprestando-as conceitos
novos de forma a reproduzir em imagens o mundo imaginário do Espírito é o que
Hegel tentou fazer no que chamou “A ciência da fenomenologia do Espírito” e Jung
em sua concepção do aparelho psíquico. Ciência com consciência é o que busca
Hegel, Freud e Jung.
Em a Fenomenologia do Espírito, Hegel desenvolve idéias e mostra o poder que
tem nossa mente de tirar de si mesmo, através de um esforço da razão, da inteligência
e do afeto, o entendimento que precisamos para desvendar esse misterioso mundo
inconsciente que habita em nós. Para Hegel, o “testemunho do Espírito” é a auto-
atestação da essência absoluta, assim como para Jung todo testemunho humano não
deixa de ser um apelo à sinceridade na fé de um processo energético, originário de
um centro ordenador presente na alma humana e, denominado por ele de si-mesmo.
Assim, razão e emoção se traduziriam em imagens, produzindo nossos sonhos e nos
ajudando a “acordar para dentro”.
O Espírito se move dialeticamente de dentro para fora e de fora para dentro, que
aparece em nossos sonhos através de imagens simbólicas e nos leva a ter sonhos
premonitórios. Quando essas imagens premonitórias são discernidas pelo intelecto e
pelo ego, são anunciadoras de possíveis saídas para os acontecimentos dramáticos de
nossa vida. Tais premonições nos ajudam a ampliar nossa visão de mundo e dão
sentido às nossas transformações diárias.

93
Nossa inspiração básica nesse trabalho é a Fenomenologia do Espírito, publicada
em 1807 e que de início foi pensada por Hegel como ciência da experiência da
consciência. Assim, longe de ser um aprofundamento sistemático das idéias de Hegel,
queremos apenas refletir sobre a idéia de “Testemunho Histórico” e de “Testemunho
do Espírito”, relacionando essas idéias ao conceito de Si-mesmo (Selbst ou Self) e
Processo de Individuação de C. G. Jung. Quando Jung fala em Processo de
Individuação e da relação Eu-Si-mesmo (Eixo Ego-Self), de certa forma ele está
abordando dentro do universo psicanalítico a problemática da “Fenomenologia do
Espírito”. Em Jung, Individuação é Metanóia sendo também uma expressão
psicológica para o fenômeno da exteriorização do Espírito no mundo, o “Zeitgeist”
(Espírito da época).

O inconsciente e o “sopro espírito”

O mundo exterior não satisfaz inteiramente o íntimo encadeamento de forças


interiores que interferem e condiciona o nosso ser no mundo. Inicialmente, a urgência
em nomear essa força indeterminada que produz padrões instintivos de
comportamento no homem (o instinto, o desejo) foi o que levou os alquimistas a falar
de um princípio masculino e ativo gerador de vida.
Hoje, o homem continua a se perguntar sobre o que ocorre em nosso interior que
nos leva a produzir um mundo ideal e subjetivo que muitas vezes se opõe ou escapa
radicalmente ao mundo exterior. Assim, a ciência continua pesquisando sobre a
imaginação e as produções de imagens com o intuito de, se não elucidar, pelo menos,
vir a entender o fenômeno do “espírito” como lugar de produção de nossos sonhos e
devaneios.
Falar de “Espírito” é falar do “sopro” do Espírito. A noção de “Espírito” vem
associada à noção de “sopro”. O sopro de vida nasce do Espírito. Todo princípio de
entendimento da noção latina de Espírito nos remete ao termo hebreu Ruah e à
palavra grega pneuma. Mas como nos diz Chevalier (Chevalier, 1982: 900): “Em
todas as grandes tradições, o sopro possui um sentido idêntico, quer se trate de
pneuma ou de espírito”.
Em alemão, a palavra utilizada exaustivamente por Hegel é “Geist”. Hegel em A
fenomenologia do Espírito(Phänomenologie des Geistes), enumera possibilidades de
o Espírito se manifestar no mundo e nos fala sobre a existência do espírito, sobre as
experiências anteriores e exteriores do espírito, sobre as figurações do espírito, sobre
a força do espírito, sobre a linguagem do espírito, sobre a representação e imagem do
espírito etc. Trata-se verdadeiramente de uma obra monumental que procura dar
conta do dinamismo do espírito no mundo e que certamente vai fundamentar todas as
teorias agora existentes sobre a noção de consciente e inconsciente.
Embora Jung tenha revelado sua admiração profunda pela obra de Kant, a sua
noção de Si-mesmo (Selbst) nos remete à noção hegeliana de Geist – o espírito que
em sua virtualidade arquetípica e inconsciente é, por excelência, o doador da forma.
Enquanto uma potência virtual, o Si-mesmo (base arquetípica do Ego) aparece como
aquele que dinamiza os pólos “matéria/espírito” e “consciência do Ego/inconsciente”.

94
Na origem, o Si-mesmo, enquanto “arquétipo da divindade”, é que impulsiona o
inconsciente para a fabricação de nossos sonhos, nossas crenças e imagens
simbólicas.
Quando Jung fala em Processo de Individuação, ele está falando também de
fenomenologia do Espírito. O Espírito aparece então como uma espécie de atenção
interior que forma em nós esse centro ordenador (si-mesmo) que vai dar origem ao
Ego (centro da consciência), criando uma espécie de eixo entre o Ego e o Si-mesmo
(eixo Ego-Self).
Através das imagens simbólicas produzidas pela dinâmica dialética entre o Ego e o
Self, personificadas em nossos sonhos e devaneios, podemos avaliar a intensidade de
nosso instinto de poder, de nossa vontade, como diria Schopenhauer, da “pulsão”
como nos falou Freud, de nosso desejo e afeto como nos fala Lacan e da força de
trabalho como aparece em Marx.

Testemunho do espírito e testemunho histórico

Em seu livro Fenomenologia do Espírito, Hegel aborda o problema do espírito


como propiciador de consciência, deixando entrever duas espécies de testemunho: o
“testemunho do espírito” e o “testemunho histórico”. Poderíamos, então, abordar o
“testemunho” de duas maneiras: a primeira seria o “testemunho do espírito” que nos
reenvia a nós mesmos em busca de uma certeza indubitável, de um cogito que
legitima e dá veracidade àquilo que nosso ser invisivelmente capta de si mesmo, do
próprio inconsciente.
Trata-se de um testemunho que por natureza engendra sua própria veracidade. Já o
“testemunho da história”, essa segunda forma de testemunho, deixa um lastro de
evidências que só poderiam ser examinadas à luz de documentos ou da consulta às
pessoas que viveram em determinada época. Essa exteriorização na história será
imperfeita por estar limitada no espaço e no tempo, necessitando compor com o
“testemunho do espírito” para se tornar ciência com consciência.
Como nos diz Hegel, as ciências contêm nelas mesmas a necessidade de se
exteriorizar. Mas o objetivo primeiro continuará sempre sendo “o saber absoluto”. E
“saber seu limite é saber se sacrificar”, diz Hegel (HEGEL, 1993: 693). E este
sacrifício é a exteriorização do ser no mundo, esse parto doloroso da alma humana.
Portanto, o espírito exteriorizado guarda um movimento que se instaura no sujeito e
que o faz intuir seu Si-mesmo em estado puro.
Num segundo momento, essa exteriorização se faz história numa sucessão lenta de
espíritos e numa galeria de imagens dotadas de uma riqueza enorme de substâncias
advindas do próprio Si-mesmo. Assim, num afrontamento radical com a
exterioridade, o espírito se torna capaz de determinar e de ser determinado por ele
mesmo, juntando as imagens da consciência com as imagens do mundo. O resultado é
a totalidade das imagens do inconsciente, fruto de um saber absoluto que, ao gerar um
saber lógico, será capaz de produzir imagens fenomenológicas. Portanto, para Hegel,
a consciência é a relação determinada de um Eu com a coisa e suas propriedades.
Mas, ao mesmo tempo, é na relação consigo mesmo que o espírito vai testemunhar

95
dele mesmo e exercer sua função de automediador.
Segundo Hegel, em sua própria natureza interna, o espírito testemunha dele mesmo
mediante um testemunho automediador. Assim, o Espírito seria “sujeito e objeto” de
seu próprio testemunho. Nessa dinâmica automediadora, o homem prolonga a voz
interna do espírito promovendo a passagem dialética à natureza. Aqui o espírito se
definiria como a idéia, que, ao alcançar o seu ser para si, levaria o homem a se
posicionar nesse sistema como mediador da passagem da natureza ao espírito.

O testemunho do espírito e o Processo de Individuação

Ao se perguntar como se manifestam as formas da consciência, Hegel procura


conduzir a consciência ao nível do saber absoluto. Para isso, Hegel constrói um
sistema de significação objetiva sobre a subjetividade do espírito. Nasce assim uma
Metafísica da Subjetividade, lugar central cujo papel decisivo é levar o homem a
ultrapassar a consciência individual encaminhando-se na direção de uma consciência
universal. A consciência do Outro libera o indivíduo dele mesmo inscrevendo-o numa
nova ordem social antes percebida de maneira ingênua sem traços definidos do que
era o inconsciente e o consciente.
Em Hegel, viver é fazer história. Assim, a racionalidade se junta ao testemunho das
evidências históricas, às intuições e às certezas internas testemunhadas pelo espírito,
para formalizar em nós e no social o que Jung nomeou de Processo de Individuação.
Nesse sentido, individuar-se também é fazer história. Todos nós somos testemunhas
históricas pelo testemunho do espírito em nós mesmos. A fenomenologia do espírito
une o visível e o invisível em nós mesmos pelo desejo e pela operação de uma
“consciência de si”, que nos insere no mundo como agentes e sujeitos desse mundo.
Percebemos, então, que a atestação da verdade que tanto buscamos em fatos do
cotidiano precisa também ser encontrada em nós mesmos pela faculdade do espírito.
Existem intuições que só o espírito poderá ofertar às nossas pesquisas científicas.
Mas essas evidências intuídas de modo nenhum escapam definitivamente ao modelo
racional das ciências exatas. As ciências exatas não podem abrir mão do modelo
“subjetivo” do “testemunho do Espírito” e, por outro lado, as ciências humanas, na
qual incluímos a psicologia e as diferentes formas de abordagens psicanalíticas,
também não podem elas prescindirem do testemunho histórico dos fenômenos
psíquicos.
Todo o trabalho de Hegel segue uma orquestração precisa que procura encarnar o
Espírito na gênese mesma da linguagem e de sua sintaxe. Jung, por sua vez, teve a
coragem de fazer ciência a partir de suas próprias experiências, procurando captar o
que desse processo viria de dentro do indivíduo.
O olhar de Jung é mais um olhar de dentro para fora, enfocando o espírito naquilo
que emerge dele em sua substância. Certamente que Jung, para criar a noção de Si-
mesmo, de forma consciente e racional e formalizá-lo como um dos conceitos
principais da teoria dos arquétipos, contará com a influência da filosofia de Hegel.
Seu livro Memórias, Sonhos e Reflexões consegue dar conta de maneira brilhante
do “testemunho histórico” e do “testemunho do espírito”, o que torna esse livro uma

96
peça imprescindível no domínio das ciências humanas. Nesse livro, encontramos a
base estrutural de sua teoria sobre a relação entre o Eu e o inconsciente, e da noção de
“inconsciente coletivo”.
Em sua reflexão, Jung tece um duplo caminho: primeiramente narrando suas
próprias experiências e sonhos e, num segundo momento, de maneira sistemática,
inclina-se de maneira racional e científica sobre a significação simbólica e
psicológica das experiências por ele narradas. A partir dos próprios sonhos, como
sujeito e objeto de sua própria pesquisa, Jung perscruta o inconsciente em sua
dialética com o Eu.
Assim, empenha-se em testemunhar sobre si mesmo num “testemunho do espírito”.
E, como sujeito do discurso, procura distanciar-se de si mesmo ao perceber-se como
sujeito e objeto de sua própria pesquisa. Aborda o desejo, teoriza sobre a origem e
destino das pulsões e sobre a dialética do Eu e do Inconsciente, construindo a noção
de Processo de Individuação como sendo um movimento interno do Si-mesmo na
direção de um Eu que se faz história na natureza e no social.

A atividade do espírito no sonho de Jung e a formação da consciência de


si

Em seus escritos, Hegel e Jung anseiam por compreender de que maneira nossa
consciência se forma no mundo. Ambos apresentam a consciência de si como vindo
tanto do interior como do exterior, embora a ênfase de Jung seja no inconsciente
como a mola propulsora da dialética entre o Si-mesmo e o Eu. Como vimos
anteriormente, o olhar de Hegel se dirige justamente para as manifestações do ser
para si, ou seja, Hegel vê o espírito subjetivo como sendo aquele que se sabe a si
mesmo e, enquanto sabe, é consciência de si e razão.
Para Jung, o Espírito empenha-se em revelar-se a si mesmo ao se movimentar para
o mundo exterior levando o indivíduo a criar consciência e a individuar-se. Numa
dialética intermitente entre “mundo interno” e “mundo
externo”, o Eu, como uma tênue luz, nasceria do arquétipo do Si-mesmo, formalizar-
se-ia em imagem simbólica para depois se constituir numa identidade em si mesma
pela relação com a natureza e o homem. O resultado seria a síntese de algo de novo e
de singular que, numa dialética construtiva e produtiva (dialética entre o Eu e o
Inconsciente), revelaria o desejo em si e para si numa unidade criadora com o mundo
(unus-Mundus).
Como Hegel, Jung não considera, como no platonismo, a essência como sendo
exterior e transcendente ao real, nem “em si” como no kantismo. Para ambos, a
realidade nasce de um movimento muitas vezes contraditório que nos insere num
movimento dialético entre o mundo interno e o mundo externo. A meu ver, o sonho
de Jung relatado abaixo pode nos ajudar a compreender essa dinâmica
fenomenológica do espírito no mundo:

DE NOITE, NUM LUGAR DESCONHECIDO, EU AVANÇAVA COM DIFICULDADE CONTRA UMA FORTE TEMPESTADE. HAVIA
UMA BRUMA ESPESSA. IA SEGURANDO E PROTEGENDO COM AS DUAS MÃOS UMA PEQUENA LUZ QUE AMEAÇAVA

97
EXTINGUIR-SE A QUALQUER MOMENTO. SENTIA QUE ERA PRECISO MANTÊ-LA A QUALQUER CUSTO, POIS TUDO
DEPENDIA DISSO.SUBITAMENTE TIVE A SENSAÇÃO DE QUE ESTAVA SENDO SEGUIDO; OLHEI PARA TRÁS E PERCEBI UMA
FORMA NEGRA E GIGANTESCA ACOMPANHANDO MEUS PASSOS. NO MESMO INSTANTE, DECIDI, APESAR DO MEU TEMOR
E SEM PREOCUPAR-ME COM OS PERIGOS, SALVAR A PEQUENA LUZ, ATRAVÉS DA NOITE E DA TEMPESTADE. AO
ACORDAR, COMPREENDI IMEDIATAMENTE QUE SONHARA COM O “FANTASMA DE BROCKEN”, COM MINHA PRÓPRIA
SOMBRA PROJETADA NA BRUMA PELA PEQUENA LUZ QUE EU BUSCAVA PROTEGER. SABIA QUE ESSA PEQUENA CHAMA
ERA A MINHA CONSCIÊNCIA, A ÚNICA LUZ QUE POSSUÍA. O CONHECIMENTO DE MIM MESMO ERA O ÚNICO E MAIOR
TESOURO QUE POSSUÍA. APESAR DE INFINITAMENTE PEQUENO E FRÁGIL COMPARADO AOS PODERES DA SOMBRA, ERA
UMA LUZ, MINHA ÚNICA LUZ. ESSE SONHO TROUXE-ME UM GRANDE ESCLARECIMENTO: SABIA AGORA QUE O MEU N.º
1 ERA QUEM LEVAVA A LUZ, ENQUANTO O N.º 2 O SEGUIA COMO UMA SOMBRA (JUNG, 1975: 86).

Aventuraremo-nos a explicar a seguir o sonho de Jung, utilizando algumas idéias


de Hegel (Fenomenologia do Espírito e parágrafo 1 do 2.º Curso da Propedêutica
Filosófica), sobre o papel do desejo e do mundo externo na formatação da
consciência em nós mesmos.
A propósito desse sonho de Jung, a meu ver, Hegel interpretaria dizendo que,
enquanto consciência de si, o Eu de Jung inicialmente tivera a intuição de si mesmo
dividindo-se no n.º 1 e no n.º 2 e, numa segunda operação (da consciência), esse
duplo se metamorfoseia numa nova unidade simples enunciando-se na pureza dessa
equação: Eu=Eu, ou Eu sou Eu. Quando Jung diz: “Esse sonho trouxe-me um grande
esclarecimento: sabia agora que o meu n.º 1 era quem levava a luz, enquanto o n.º 2 o
seguia como uma sombra”; a meu ver ele está falando de um Eu que se reconhece em
si mesmo a partir de seu duplo, ou seja, como consciência de si, como nos fala Hegel.
Assim, no exato momento que percebe a existência de sua enorme sombra projetada,
o Eu frui puramente na forma de consciência e executa uma nova síntese.
Contudo, é preciso ter em mente que, para chegar a essa consciência na qual Jung
se percebe existindo na fragilidade de uma luz tênue, seria preciso antes que ele
tivesse reconhecido em si mesmo o que seria os poderes desse Eu como uma sombra
projetada. Isso nos leva a concluir que o Espírito, em sua atividade intrínseca e
dialética, conduz o Eu a uma divisão para em seguida tornar-se efetivo e chegar às
suas próprias determinações como “sujeito” no mundo. No sonho, vemos que a
consciência de si mesmo (Eu=Eu) se produziu a si mesma na medida em que se
orientou para a luz da consciência. O espírito determinou esse exterior e, em seguida,
se referiu a si mesmo, e às suas próprias determinações como sujeito de consciência.
Diríamos que esse sonho de Jung revela que a pulsão ou o desejo aparece
inicialmente envolto em sombras e inconsciente de si mesmo. Só depois ele (o
desejo) se orienta duplamente para outra consciência de si (luz e sombra), a princípio
desigual em relação ao próprio desejo originário (mundo dos arquétipos) e, num
segundo movimento, agora dialético, se faz novamente igual pela consciência
universal de si mesmo (evidente na luz precária da realidade exterior simbolizada no
sonho de Jung pela luz tênue).
A meu ver, Hegel finalizaria sua interpretação dizendo: “Para a consciência de si,
há uma outra consciência de si (o n.º 1 e o n.º 2). Apresenta-se a ela como vindo do
exterior”. Ou melhor: “A consciência é, absolutamente falando, o saber de um objeto,
interior ou exterior, quer esse objeto se ofereça à consciência sem nenhuma
interferência do espírito, quer seja produzido pelo espírito”.

98
O Plano A e o Plano B

As mudanças internas subjetivas se associam às mudanças corporais e leva nossa


inteligência a lidar com a díade “vida e morte”. Assim, paradoxalmente, nos
aproximamos mais da vida ao nos aproximarmos da morte. Incluímos nosso mundo
onírico ao nosso mundo de vigília, ampliando nosso tempo imaginário e, ao mesmo
tempo, percebemos que a morte se aproxima, ou melhor, que ela sempre está por
perto, no passar dos dias, das horas e dos instantes que vivemos em nossas emoções.
Se antes a nossa sensação era de que o Outro é quem morria, aos poucos vamos
dando conta de que a morte faz parte da vida; são dois aspectos da mesma emoção de
viver e que por isso deveriam ser abordados com mais sabedoria.
Vivemos continuamente em metamorfose. Assim, nossa mudança corporal e
hormonal nos aproxima de uma consciência de finitude e nos leva a conviver,
querendo ou não, com essa realidade que é viver e morrer. Se levássemos em conta
nossos sonhos, poderíamos antecipar os acontecimentos, quer sejam eles bons ou
difíceis de aceitar.
Freud nos fala, em seu primeiro volume do seu livro sobre os sonhos, que qualquer
mudança corporal que durante a noite nosso corpo possa estar vivendo, tal sensação é
comunicada ao psiquismo e é transformada em imagens e, conseqüentemente, em
símbolos que de certa forma poderiam anunciar transformações que estariam
começando a acontecer. Sendo assim, qualquer transformação hormonal que esteja
acontecendo em nosso corpo será detectada pela nossa mente em forma de imagens, e
seu conteúdo poderia anunciar uma gravidez, um tumor maligno ou desejos que ainda
estariam adormecidos no inconsciente.
Segundo Jung, por volta dos quarenta anos a consciência já avançou bastante no
lidar com as imagens das emoções e poderia nos informar, sempre por meio dos
sonhos e dos eventos sincronísticos da vida, a quantas andam nosso Plano A e se esse
plano estaria em consonância com o Plano B de forma a não nos inserir em crises
constantes em nosso envelhecer. Sem dúvida a nossa metamorfose é contínua e
implica a administração pelo nosso espírito (o Si-mesmo) que pode pressentir e levar
para o Ego analisar e discernir qual seria a melhor atitude diante dessa dinâmica
normal de nosso existir. Na verdade, envelhecer é viver e exige de nós o prazer de se
deixar levar pelo Espírito.
Acredito que uma atitude de fixação tanto na questão da juventude como na
questão da velhice nos leva a uma visão de mundo que nos levaria ao desequilíbrio.
Lembro-me, ainda hoje, de que a minha primeira experiência de velhice foi aos dez
anos de idade, quando percebia que deixava a vida de criança que tanto amava. As
pessoas que me rodeavam insistiam em me tratar de maneira diferente. Meu corpo
havia se transformado, eu havia crescido muito e fui obrigado a mudar minha maneira
de encarar o mundo.
No começo detestei toda aquela mudança e só quando comecei a compreender que
na verdade a vida se manifestava nessas pequenas mudanças diárias comecei a amá-
las e a tentar desvendá-las antes que se impusessem na minha vida de fora para
dentro. A melhor atitude é perceber as pequenas mudanças cotidianas, mesmo as mais
dramáticas, pensarmos sobre elas e deixar que o Ego fortalecido seja capaz de

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administrar pela individuação nosso ser no mundo.

Conclusão

Quando somos crianças e adolescentes, nossa vida de vigília parece mais um


sonho. Existe um corte profundo entre o “estar acordado” e o “estar dormindo”.
Lembro-me que, quando criança, fazia uma distinção muito radical entre dormir e
acordar. Ao dormir, sentia que desaparecia do mundo e só percebia que continuava
vivo quando era despertado durante a noite por um sonho ou um pesadelo. Ainda
dominado pela emoção do sonho que se estendia por bastante tempo depois de
acordado, gritava pelo meu pai ou por minha mãe dizendo: “Sonhei!”. Minha mãe,
experiente, dizia: “Vira para o lado!”.
Assim acontecia com todos os meus irmãos e a técnica da minha mãe em nos livrar
dos sobressaltos noturnos era sempre a mesma: “Vira para o lado!”. Só assim o sonho
se distanciava da vida de vigília e com ele nossos medos noturnos eram elaborados ou
permaneciam nessa outra dimensão do inconsciente. Por meio dos sonhos,
acordávamos para dentro de nossas angústias infantis e, de alguma forma, aos
poucos, tomávamos consciência da existência de um outro mundo que até então nos
era completamente desconhecido.
Com o passar dos anos, conclui que a metamorfose em seu processo inconsciente
aos poucos nos leva a contatar com esse mundo onírico de uma maneira mais
objetiva. A idade avança e os sonhos nos ensinam a aproximar o dia da noite.
Descobrimos que existimos também durante nosso sono. Essa descoberta amplia e
substancializa nossa vida, aumentando a qualidade de vida no mundo. Aqui, a noção
de tempo se amplia.
Ao incluirmos a noite em nosso dia, descobrimos que, na verdade, vivemos mais
do que antes vivíamos. Isso porque é a consciência que nos dá o sentimento de que
estamos vivendo no tempo e no espaço. Contudo, paralelamente ao sentimento de que
estamos vivendo mais, aos poucos percebemos com mais clareza que também
morremos todos os dias.
A morte, que para nós, como jovens, nos fazia sonhar acordado, aparecerá na
velhice como algo mais próximo da formação progressiva da consciência. Diante
desse fenômeno, podemos ter duas atitudes: fugimos dessa morte e de tudo o que
possa nos levar a pensar nela como realidade, procurando levar uma vida muito
ocupada, sem reflexão e sem contato com nosso mundo onírico; ou, em sentido
inverso, usaremos de tato e inteligência propondo às faculdades sensitivas de nosso
ser atos positivos de humildade e reflexão sobre nossa realidade singular de sujeito
condenado a morrer sabiamente.
A perseverança e a coragem em lidar com nosso corpo através da vida de vigília e
em nossos sonhos determinarão o recolhimento decisivo de que necessitamos para
que o velho sábio ou a velha sábia que existe em nosso ser possa se manifestar. O
espírito, em sua capacidade de auto-reflexão, habilmente dinamizará, em benefício do
Ego, os nossos desejos, nossas crenças, nossas alegrias e nossas dores.
Essa auto-reflexão, fruto de uma relação madura e dialética entre o Ego e o Si-

100
mesmo, é, em sua própria natureza, geradora de um silêncio que será particularmente
útil no tratamento de nossas angústias, paixões tristes ou inflacionadas, sentimentos
morosos, egoístas, ciúmes, ou de qualquer ressentimento que ainda possa existir em
nosso ser e que nos visita nos sonhos, turbilhona nossa vida cotidiana e nossas
relações. O resultado final é sempre o mesmo: a intuição de si mesmo como uma
essência livre.

Referência Bibliográfica

CHEVALIER, J. e GRERBRANT, A. Dictionnaire des symboles. Paris: Robert Lafont/ Júpiter, 1982.
CORBISIER, Roland. Hegel (Textos Escolhidos). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
FREUD, Sigmund. Métapsychologie. Paris: Éditions Idées/Gallimard, 1940.
HEGEL, Georg W. Friedrich. Phénoménologie de l’Esprit. Paris: Gallimard, 1993.
JUNG, Carl G. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
LIMA VAZ, Henrique C. Antropologia Filosófica. Volume 1. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

* Doutor em Psicologia Clínica; DEA em Filosofia da Existência no Centro Gaston Bachelard de Pesquisa sobre o Imaginário e a
Realidade (Dijon – França); professor do departamento de psicologia PUC-Rio e coodenador do curso de pós-graduação lato sensu
“Psicologia Junguiana e Imaginário” (PUC-Rio). Publicações: - A Tridimensionalidade da relação Analítica. São Paulo: Cultrix,
1999. - Sol da Terra: o uso do barro em psicoterapia. São Paulo: Summus, 1990.

101
10
Metanóia e mudança de paradigma
Tiago Adão Lara*

“NEM MESMO SEI


QUAL É A PARTE DA TUA ESTRADA
NO MEU CAMINHO: SERÁ UM ATALHO
OU UM DESVIO?”

Fui convidado a participar da elaboração desta obra. A proposta pareceu-me


tentadora, a proponente seguramente sedutora. Deixei-me envolver e aceitei. Mas
toda sedução tem seu preço. Comecei a pagá-lo imediatamente. Vieram-me as
inseguranças e, até, certa dose de angústia. Como inserir-me numa reflexão um tanto
alheia às minhas tarefas atuais de professor de filosofia? Palavra dada, no entanto, é
compromisso. Pus-me, então, a ler Jung e sobre ele, nos limites das minhas
possibilidades. Foi quando deparei com estas suas palavras, na contracapa de um
livro de Ysé Tardan-Masquelier:

NOVOS PONTOS DE VISTA NÃO SÃO GERALMENTE DESCOBERTOS EM TERRITÓRIOS JÁ CONHECIDOS, MAS EM LUGARES
DISTANTES, QUE COSTUMAM ATÉ MESMO SER EVITADOS PELA MÁ FAMA QUE POSSUEM (TARDAN-MASQUELIER,
1994).

Essas palavras de Jung tranqüilizaram-me; e casaram-se com as de Zeca Baleiro


que escolhi como epígrafe desafiadora do meu escrito:

“NEM MESMO SEI


QUAL É A PARTE DA TUA ESTRADA
NO MEU CAMINHO: SERÁ UM ATALHO
OU UM DESVIO?”

Atalho ou desvio, eis aqui minha colaboração nesta coleção, destinada à temática
da metanóia, em Jung.
1 – Vivemos tempos de mudanças. Mudanças radicais, ou seja, mudanças que
chegam a atingir as raízes. Dirigimo-nos a seres humanos e falamos de raízes. Trata-
se evidentemente de metáfora. As metáforas têm, porém, de ser levadas a sério. À
diferença dos conceitos que pretendem precisar ou definir, as metáforas transgridem
limites, soltam a imaginação, fazem explodir sentidos. Ligar ser humano a raízes é

102
descentrá-lo, torná-lo solidário, dar-lhe um chão, um território, convidá-lo à ciranda
da espacialidade e da temporalidade, como constitutivas do seu acontecer.
Tudo isso pode parecer, à primeira vista, de uma obviedade incontestável. Quem de
nós não se dá conta de que ocupa um espaço e preenche um tempo? Falamos tanto em
ocupar o nosso espaço e viver o nosso tempo. Mas a verdade é que a imagem que
cultivamos de homem, mesmo aquela imagem que os profissionais da cultura –
teólogos, filósofos e cientistas ocidentais – ajudaram a elaborar, em grande parte,
camuflam a espacialidade e a temporalidade que somos. É uma imagem que foca a
transcendência humana, como característica essencial, capaz de nos elevar acima das
vicissitudes do espaço e do tempo. Intuições da transcendência, sínteses
transcendentais e leituras de sentidos absolutos alicerçam nossas verdades e nossos
valores; consolidam nossas instituições e nossas normas de convivência;
fundamentam nossos saberes; e têm, até, a pretensão de normatizar nossos gostos,
nossa estética. Em síntese, engessam nossas subjetividades. Tudo em nome de uma
sacralidade que se chama ordem da unidade. O caos horroriza-nos. A multiplicidade,
ou melhor, as reais diferenças incomodam-nos. Queremos o mesmo, a identidade, o
planejamento que a assegure: o controle, se possível absoluto, do acontecer do ser. A
força, na qual a modernidade aposta para garantir esse intento, é a força da razão. A
ela atribui-se o encargo da construção de uma civilização, ou seja, de uma
convivência, na qual o ser humano se defenda do caos da barbárie.
2 – É quase consensual apresentar-se Descartes (1596-1650), como o filósofo que
sinalizou, de maneira reflexivamente mais explícita, logo no início da modernidade,
para essa imagem de ser humano, que se tornou hegemônica; e, para alguns analistas,
definidora da própria modernidade.
Para Descartes, o homem é essencialmente o eu consciente, transparente a si
mesmo, auto-referente, bastião seguro das verdades de cunho absoluto. Em torno dele
o mundo se organiza, ou seja, o caos devém cosmo, pelo encadeamento lógico das
razões, que emanam das idéias claras e distintas.
Instrutivo é atentar aos pormenores da descrição que Descartes nos faz, no
Discurso do Método, do seu itinerário intelectual e das disposições que requer de si
mesmo, para produzir o que lhe pareceu uma grande conquista: A descoberta de um
caminho “para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências”. No
início da segunda parte, escreve ele:

ACHAVA-ME, ENTÃO, NA ALEMANHA, PARA ONDE FORA ATRAÍDO PELA OCORRÊNCIA DAS GUERRAS QUE AINDA NÃO
FINDARAM, E, QUANDO RETORNAVA DA COROAÇÃO DO IMPERADOR, PARA O EXÉRCITO, O INÍCIO DO INVERNO ME
DETEVE NUM QUARTEL, ONDE, NÃO ENCONTRANDO NENHUMA FREQÜENTAÇÃO QUE ME DISTRAÍSSE, E NÃO TENDO,
ALÉM DISSO, POR FELICIDADE, QUAISQUER SOLICITUDES OU PAIXÕES QUE ME PERTURBASSEM, PERMANECIA O DIA
INTEIRO FECHADO SOZINHO NUM QUARTO BEM AQUECIDO, ONDE DISPUNHA DE TODO O VAGAR PARA ME ENTRETER
COM OS MEUS PENSAMENTOS (DESCARTES, 1979: 34).

No fim da terceira parte, volta à enfatização das condições ótimas de que dispunha
para pensar o que lançou depois no papel. Estava na Holanda, país que se tornou
asilo, para todos os intelectuais ousados, dado o clima liberal que ali reinava.
Escreve:

103
...E FAZ JUSTAMENTE OITO ANOS QUE ESSE DESEJO ME DECIDIU A AFASTAR-ME DE TODOS OS LUGARES EM QUE
PUDESSE TER CONHECIMENTOS, E A RETIRAR-ME PARA CÁ, PARA UM PAÍS ONDE A LONGA DURAÇÃO DA GUERRA LEVOU
A ESTABELECER TAIS ORDENS, QUE OS EXÉRCITOS NELE MANTIDOS PARECEM SERVIR APENAS PARA QUE OS FRUTOS DA
PAZ SEJAM GOZADOS COM TANTO MAIS SEGURANÇA, E ONDE, DENTRE A MULTIDÃO DE UM GRANDE POVO MUITO ATIVO
E MAIS ZELOSO DE SEUS PRÓPRIOS NEGÓCIOS, DO QUE CURIOSO DOS ASSUNTOS DOS DE OUTREM, SEM CARECER DE
NENHUMA DAS COMODIDADES QUE EXISTEM NAS CIDADES MAIS FREQÜENTADAS, PUDE VIVER TÃO SOLITÁRIO E
RETIRADO COMO NOS DESERTOS MAIS REMOTOS (DESCARTES, 1979: 45-46).

Descartes parece dizer-nos: a verdade só se revela em sua plenitude ao homem que


conseguir atingir a situação de calar seus instintos, suas paixões, suas relações com o
mundo, para fechar-se em si mesmo, enquanto racionalidade pura:

E ASSIM AINDA, PENSEI QUE, COMO TODOS NÓS FOMOS CRIANÇAS ANTES DE SERMOS HOMENS, E COMO NOS FOI
PRECISO POR MUITO TEMPO SERMOS GOVERNADOS POR NOSSOS APETITES E NOSSOS PRECEPTORES, QUE ERAM AMIÚDE
CONTRÁRIOS UNS AOS OUTROS, E QUE, NEM UNS NEM OUTROS, NEM SEMPRE, TALVEZ NOS ACONSELHASSEM O
MELHOR, É QUASE IMPOSSÍVEL QUE NOSSOS JUÍZOS SEJAM TÃO PUROS OU TÃO SÓLIDOS COMO SERIAM, SE TIVÉSSEMOS
O USO INTEIRO DE NOSSA RAZÃO DESDE O NASCIMENTO E SE NÃO TIVÉSSEMOS SIDO GUIADOS SENÃO PER ELA
(DESCARTES, 1979: 35).

É, então, guiado tão-somente pela razão, que o homem pode atingir a verdade. O
indivíduo René Descartes, assim municiado, ousa duvidar de todo o patrimônio
cultural da humanidade, porque obtido no espúrio da vida, feita também de
sensações, emoções, desejos e fantasias, tudo partilhado na solidariedade das
tradições. Não que Descartes se arvore em único capaz dessa proeza. Apesar de
reconhecer que nem todos tenham disposição para perfazer o caminho da razão pura,
esse é indicado como o caminho que cada indivíduo pode e deve perfazer, se quiser
atingir a essencialidade humana. O homem racional puro, eis o herói da modernidade.
Para definir-se, assim, o sujeito humano teve de atribuir-se características, outrora
conferidas à divindade.
Em A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno, escreve Jean-François
Mattéi:

QUALQUER QUE SEJA O CAMINHO QUE ELA FAÇA NA HISTÓRIA, A LÓGICA ESPECÍFICA DO SUJEITO É A DE RECUPERAR
POR SUA PRÓPRIA CONTA A DETERMINAÇÃO TRANSCENDENTE DE QUE ELE É ORIGINÁRIO E QUE DECIDIU ABOLIR: O
MUNDO GIRA DORAVANTE EM VOLTA DE UM EU HIPOSTASIADO E DILATADO À MEDIDA DO ABSOLUTO (MATTÉI, 2002:
27).

Mattéi está se referindo a essa forma-homem que se tornou característica própria da


modernidade e que ele descreve assim:

O CARÁTER MARCANTE DO HOMEM MODERNO, AQUELE QUE SE QUALIFICA COMO “SUJEITO” E QUE NEM SEMPRE
PONDERA SUA SUJEIÇÃO, É, COM EFEITO, A INTERIORIZAÇÃO E A NECESSIDADE DE TUDO RELACIONAR CONSIGO
MESMO. PODEM-SE SALVAR ESSAS APARÊNCIAS E FALAR EM “AUTONOMIA” PARA DESIGNAR ESSA SERVIDÃO
VOLUNTÁRIA, OU ESSA VASSALAGEM; RESTA QUE, DE FATO, A AUTONOMIA DO SUJEITO APARECE SOB MUITOS
ASPECTOS COMO UM LOGRO E UM ENCLAUSURAMENTO DO INDIVÍDUO EM SEU PRÓPRIO FUNDO (MATTÉI, 2002: 22).

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3 – A modernidade significou, contudo, um ousado projeto de emancipação
humana. Emancipação diante das forças brutas da natureza; emancipação diante de
instituições esclerosadas; emancipação diante de idéias e valores absolutizados e
sacralizados, que impediam o avançar dos saberes e a criatividade ética e estética. O
ser humano se projetou, então, como o protagonista da própria libertação, do próprio
esclarecimento, da própria realização. Para isso, mirou o absoluto de Deus, com quem
passou a rivalizar, e atribuiu a si as qualidades divinas.
Daí a enfatização da individualidade, como traço marcante da subjetividade
moderna, ao lado do direito à crítica, da autonomia do agir e do que poderíamos
definir como consciência histórica. Essa enfatização da individualidade acarretou,
contudo, conseqüências, hoje vistas como nefastas.
O paradigma cultural, sob cuja luz se concebeu e se gestou essa forma-homem
tornou-se veementemente questionado. Escreveu Miguel Doménech, Francisco
Tirado e Lúcia Gomes, no artigo “A dobra: psicologia e subjetivação”, da obra,
organizada por Tomaz Tadeu da Silva, intitulada Nunca fomos humanos:

HÁ MAIS DE DUAS DÉCADAS AS CIÊNCIAS SOCIAIS ASSISTEM À MORTE DO SUJEITO. SOB A RUBRICA “CRISE DO EU”,
CRITICA-SE E REJEITA-SE A DEFINIÇÃO DE UM SUJEITO UNIVERSAL, ESTÁVEL, UNIFICADO, TOTALIZADO E TOTALIZANTE,
INTERIORIZADO E INDIVIDUALIZADO. HÁ JÁ MAIS DE VINTE ANOS QUE O SUB-JECTUM NÃO É O SOL EM TORNO DO
QUAL GIRA NOSSO PENSAMENTO SOCIAL. EM SEU LUGAR, APARECEM NOVAS IMAGENS. FALA-SE DE SUBJETIVIDADE
DISTRIBUÍDA, SOCIALMENTE CONSTRUÍDA, DIALÓGICA, DESCENTRADA, MÚLTIPLA, NÔMADE, SITUADA, DE
SUBJETIVIDADE INSCRITA NA SUPERFÍCIE DO CORPO, PRODUZIDA PELA LINGUAGEM ETC (SILVA, 2001: 113).

4 – É um novo paradigma de pensamento que está atrás dessa proposta de


entendimento do processo de subjetivação. Nada de pressuposto ontológico, potencial
de identidade já dada, a ser explicitada, realizada ou atualizada historicamente,
segundo roteiro de essencialidade humana, ligada a planos de transcendência ou
transcendentalidade. Continuar a afirmar isso implica fechar-se às reais diferenças
(singularidades); reduzi-las a simples repetições; esvaziar de sentido os
acontecimentos e a história; colocar em questão a criatividade e a liberdade humanas.
Félix Guattari escreve em Caosmose: um novo paradigma estético:

ESTAMOS DIANTE DE UMA ESCOLHA ÉTICA CRUCIAL: OU SE OBJETIVA, SE REIFICA, SE “CIENTIFICIZA” A


SUBJETIVIDADE OU, AO CONTRÁRIO, TENTA-SE APREENDÊ-LA EM SUA DIMENSÃO DE CRIATIVIDADE PROCESSUAL
(GUATTARI, 1992: 24).

É preciso, pois, levar a sério a experiência da multiplicidade e da dinamicidade. É


preciso não transcender, apressadamente, para princípios unificadores, de ordem
epistemológica, ontológica, ética ou estética, os quais se mostraram terrenos férteis
para dogmatismos e autoritarismos comprometedores. É preciso tomar consciência de
que a imagem de cosmo, que fazemos da realidade, é uma produção humana e
acarreta limitações, cria exclusões, fecha-se à riqueza incomensurável da experiência
do ser. O ser se revela como excesso, em relação à nossa capacidade de compreensão,
que, no entanto, parece regida por uma exigência de ordem, que gera segurança.
Nesse sentido, a dimensão caótica da revelação do ser nos causa medo, mas não pode

105
ser recalcada sem que percamos o concreto da experiência e das condições de vida
humana rica e saudável.
5 – Sob esse novo paradigma, como, então, pensar a subjetividade? Ligando ao que
afirmamos no início, a primeira condição que se impõe é aquela de restituir o ser
humano aos aspectos concretos da sua existência, que passam pelas dimensões do
espaço e do tempo. Afirma Guattari:

A ÚNICA FINALIDADE ACEITÁVEL DAS ATIVIDADES HUMANAS É A PRODUÇÃO DE UMA SUBJETIVIDADE QUE ENRIQUEÇA
DE MODO CONTÍNUO SUA RELAÇÃO COM O MUNDO (GUATTARI, 1992: 33).

O ser humano não pode ser descrito ou definido como auto-referência transparente,
interioridade subsistente, mas como um estar-com, um ser-em, em estado de contínua
re-alocação existencial ou, falando de maneira mais radical, em contínuo estado de
fazimento, no contato com o outro si. Suely Rolnik, no artigo “Subjetividade antro-
pológica”, que integra o livro Texturas da psicologia: subjetividade e política no
contemporâneo, escreve:

ANTES DE MAIS NADA, ESTE MODO DE SUBJETIVAÇÃO DEPENDE DE UM GRAU SIGNIFICATIVO DE EXPOSIÇÃO À
ALTERIDADE: ENXERGAR E QUERER A SINGULARIDADE DO OUTRO, SEM VERGONHA DE ENXERGAR E QUERER, SEM
VERGONHA DE EXPRESSAR ESTE QUERER, SEM MEDO DE SE CONTAMINAR, POIS É NESTA CONTAMINAÇÃO QUE A
POTÊNCIA VITAL SE EXPANDE, CARREGAM-SE AS BATERIAS DO DESEJO, ENCARNAM-SE DEVIRES DE SUBJETIVIDADE...
ESTE TIPO DE RELAÇÃO COM A ALTERIDADE PRODUZ NO CORPO UMA ALEGRIA... PROVA DA PULSAÇÃO DE UMA
VITALIDADE (ROLNIK EM: MACHADO, 2001: 18).

Torna-se evidente, nessa concepção, que a subjetividade está em relação essencial


com a corporeidade. Quebra-se a dicotomia alma-corpo, interior-exterior, subjetivo-
objetivo. A subjetividade é vista, assim, como processo de dimensões
incomensuráveis:

A SUBJETIVIDADE, DE FATO, É PLURAL, POLIFÔNICA, PARA RETOMAR UMA EXPRESSÃO DE MIKHAIL BAKHTINE. E ELA
NÃO CONHECE NENHUMA INSTÂNCIA DOMINANTE DE DETERMINAÇÃO QUE GUIE AS OUTRAS INSTÂNCIAS, SEGUNDO
UMA CAUSALIDADE UNÍVOCA (GUATTARI, 1992: 11).

De maneira literariamente linda, diz a mesma coisa João Guimarães Rosa, em


Grande Sertão: Veredas:

A VIDA INVENTA! A GENTE PRINCIPIA AS COISAS NO NÃO SABER POR QUE, E DESDE AÍ PERDE O PODER DE
CONTINUAÇÃO – PORQUE A VIDA É MUTIRÃO DE TODOS, POR TODOS REMEXIDA E TEMPERADA (ROSA, 1986: 406).

Essa nova compreensão da subjetividade quebra a auto-referência e a transparência


racional como constitutivas da essencialidade humana. Define a subjetividade não em
termos de identidade substantiva, mas relacional; não em termos de transparência,
mas de desafio a contínuo jogo interpretativo. Poderíamos recordar aqui a frase de
Gadamer em Verdade e método:

106
A PARTIR DA CONVERSAÇÃO QUE NÓS MESMOS SOMOS, BUSCAMOS COMO NOS APROXIMAR DA OBSCURIDADE DA
LINGUAGEM (GADAMER, 1997: 555).

Somos conversação, convivência, abertura para a alteridade e, por isso mesmo,


nada transparentes, mas carentes de interpretação. É como relação, abertura, processo,
portanto, mudança e temporalidade essencial, que a subjetividade passa a ser
pensada; o oposto da interioridade auto-referencial e solidamente identitária da
interpretação cartesiana, na qual a temporalidade se subordina à eternidade das
essências. Assim como a categoria exterior ganhou predominância diante da categoria
interior, a de acontecer, que enfatiza o tempo e sobreleva aquela de ser.
6 – A temática do tempo ocupou lugar de destaque na filosofia moderna, como
injunção de libertação dos esquemas religiosos e metafísicos da Idade Média. No
entanto, uma crítica mais apurada aponta para a permanência do lastro metafísico e,
até do salvacionismo religioso, no historismo, que, durante bastante tempo,
impregnou a mentalidade e a produção filosófica e científica da cultura ocidental. A
idéia de progresso e de revolução encarnaram a aposta na história como unidade, em
evolução; rumo à meta única: racionalidade e liberdade em estados utópicos de
perfeição.
O passo último para a ruptura com o paradigma moderno concretiza-se, agora, na
nova concepção de temporalidade, fora do viés metafórico. A primeira conseqüência
é o fato de o tempo se partir, não ser comandado por injunção nenhuma de síntese,
aprioristicamente delineada. Não mais um tempo da humanidade inteira, mas tempos
diferentes. Benedito Nunes, em Crivo de papel, comenta, então:

O RESULTADO DESSA APRENDIZAGEM, QUE RECUSA A TRAJETÓRIA DE UMA SÓ HUMANIDADE, UNIVERSALIZADA À


CUSTA DA EXCLUSÃO ETNOCENTRISTA DE TENTAR OUTRAS, COMO O FEZ A HISTÓRIA UNIVERSAL HEGELIANA, É
DESLOCAR PARA OUTRO PLANO, SEM ABOLI-LA, A UNIDADE DO GÊNERO HUMANO. PELA MANCHA DA HISTÓRIA EM
LINHA RETA, SEGUINDO AS LEIS DA EVOLUÇÃO OU DO DESENVOLVIMENTO DIALÉTICO, NECESSÁRIO E PREVISÍVEL,
TERÍAMOS A UNIDADE, MAS COMO UNIFICAÇÃO DA ESPÉCIE POR UM PROGRESSO IGUAL OU POR UMA IGUAL
REVOLUÇÃO (NUNES, 1998: 152).

Na perspectiva nova:

O TEMPO PASSA ENTÃO A SER CONCEBIDO NÃO MAIS COMO LINHA, MAS COMO EMARANHADO, NÃO COMO RIO, MAS
COMO TERRA, NÃO FLUXO, E SIM MASSA, NÃO SUCESSÃO, PORÉM COEXISTÊNCIA, NÃO UM CÍRCULO, MAS TURBILHÃO,
NÃO ORDEM, E SIM VARIAÇÃO INFINITA, DE MODO QUE NÃO SE TRATA MAIS DE REMETÊ-LO A UMA CONSCIÊNCIA –A
CONSCIÊNCIA DO TEMPO – MAS À ALUCINAÇÃO. ENLOUQUECIMENTO DESSE TEMPO FORA DOS EIXOS, NÃO SEM
RELAÇÃO COM O TEMPO DAQUELES QUE FORA DOS EIXOS SÃO DITOS LOUCOS (PELBART EM ALLIEZ [ORG.] 2000: 90-
91).

Aplique-se a ousada riqueza dessa citação à subjetividade. Concebê-la não como


linha, unidirecionada, mas como emaranhado de possibilidades; não como rio que
passa, mas como terra, solo, chão, ligação-com, abertura-para; não como fluxo, mas
sim como massa de compromissos; não sucessão, mas sim coexistência de
multiplicidades, identidades complexas; não círculo de segurança e tranqüilidades, ou

107
a redondez do ser de Parmênides, mas o turbilhão do devir de Heráclito; não ordem,
mas incômodo continuado de variações infinitas, novidades provocativas. Coragem
da loucura para saborear o estranho de novo, do excêntrico.
O novo paradigma de pensar a realidade e, concomitantemente, a subjetividade
implica inevitavelmente uma metanóia também cultural. Implica, aliás, mais. Implica
aceitar a metanóia não apenas como radicalidade de mudança, em determinado
momento do processo de “individuação”, mas como dimensão intrínseca à totalidade
desse processo. Jamais estamos prontos. Escreve Roberto Corrêa dos Santos, em
Modos de ser, modos de adoecer:

O EXTERIOR OBRIGA-NOS A NOS FORMAR, A ESTABELECER RELAÇÕES COM PRÁTICAS – ESTÉTICAS, HISTÓRICAS,
CULTURAIS. A DEFINIR-NOS, NÃO COMO UMA UNIDADE, MAS COM O MAIS VARIÁVEL POSSÍVEL, CONFORME A REDE
COMUNICACIONAL QUE ESTABELEÇAMOS COM O OUTRO, O MUNDO, O FORA. DEFINIR-SE SERÁ COMPROMETER-SE COM
A EXISTÊNCIA DE MATERIALIDADES CORPORAIS (AS FALAS, OS GESTOS, AS ESCOLHAS É QUE DÃO CORPOREIDADE
ÀQUILO QUE – INTERNO, PESSOAL, ÍNTIMO – NOS FAZ AINDA INFORMES, OBSCUROS, HESITANTES, COMANDADOS). NÃO
QUE A EXTERIORIZAÇÃO PONHA SOBRE A EXISTÊNCIA CERTEZAS, MAS POSSIBILIDADES DE AÇÃO, POR ATOS QUE, NUM
CERTO MOMENTO, FORMAM SENTIDOS ÚTEIS À VIDA. SAIR PODE SER UM DELES, COMO QUEM ESCOLHE O AR. E A
SAÚDE (SANTOS, 1999: 58).

Pareceu-me, a partir do pouco que pude ler de Jung e sobre Jung, que a pergunta de
Tardan-Masquelier (1994: 37) justifica-se plenamente. Não para provar identidades
ou semelhanças, na linha de preocupações teóricas, à cata da unidade que gera a
verdade. Mas pesquisar Jung, na perspectiva da problemática dos nossos tempos de
hoje que já foram chamados, com razão ou não pouco importa, tempos pós-
modernos. Tempos nos quais temos de dar conta das diferenças que nos surpreendem
e, muitas vezes, nos atemorizam. É essa exterioridade cultural, é esse tempo
despedaçado que parecem oferecer-nos, como diz Roberto Corrêa, supracitado, uma
saída para o ar puro, para a saúde. E a tudo isso Jung visou.

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* Doutor em Filosofia, professor de Filosofia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Publicações: - Curso de História da
Filosofia, vol. 1, 2, 3. Petrópolis: Ed.Vozes. - A Escola que não tive... o professor que não fui. São Paulo: Cortez, 2003.

109
11
A psicologia junguiana e a física no tempo da
maturidade
Elizabeth C. Cotta Mello*

Introdução

Este artigo visa introduzir a grande transformação da ciência protagonizada pela


Física, das quais C. G. Jung participou discutindo as transformações dessas duas
áreas, e como a metanóia no indivíduo pode contribuir para a compreensão dos
resgates necessários na ciência e no indivíduo (Mello, 2003).
Jung (IX/1) propôs um modelo esclarecedor que já apontava as transformações que
estão ocorrendo nos saberes em geral. A escolha da Física para dialogar com a
Psicologia de Jung é antiga. A Física esteve à frente dos movimentos de
transformação da ciência em geral, e esse foi um dos motivos de Jung poder contar
com físicos por meio de suas ligações com Einstein e Pauli (Von Franz in: Jung s/d;
Jung, 1963).
A Psicologia de Jung rompeu com o modelo vigente, percebendo, com os físicos, a
necessidade de integrar na ciência, na cultura e no indivíduo diversos aspectos
buscando uma visão mais múltipla e integrada, evitando a separação entre as ciências
naturais e humanas. A última integração proposta por Jung é integrar o mundo
interior com o exterior. Como observamos nos livros sobre o assunto, e na
convivência com os grandes físicos brasileiros, ao olhar para o interior da matéria ou
olhar para o cosmos, os físicos são lançados na grande aventura rumo à interioridade,
no microcosmo psíquico. O homem, ao examinar a natureza e o universo, em lugar de
procurar e achar qualidades objetivas, “encontra-se a si mesmo” afirma Heinsenberg
(apud Arendt, 1958: 26). Analistas junguianos, ao aprofundarem o olhar para dentro,
descobrem-se voltando o olhar para o macrocosmo, para a exterioridade do universo.
No indivíduo, o momento propício para essas polaridades virem à tona e se
complementaram é a partir da segunda metade da vida. Para a psicologia de Jung, é
justamente no alvorecer da vida, especialmente quando chegamos a refletir sobre o
tempo já vivido, que podemos entender o sentido psicológico das passagens da nossa
existência, e do cosmo em geral. Na Física também, a grande transformação final
(com grande colaboração da matemática) surge dentro da mesma temática, o tempo.
A quebra com o cenário linear do tempo aparece na física e na psicologia de Jung
com o conceito de sincronicidade. A maturidade exige uma reflexão sobre o tempo. É
importante frisar que não é por acaso que atualmente as psicologias, em geral, estão

110
discutindo sobre a maturidade e a terceira idade, bem como sobre a temporalidade em
geral.

Rupturas e resgates na ciência

A psicologia (Jung, XIV/2) mostra que a ciência e o indivíduo precisam integrar


vários aspectos que a nossa cultura perdeu ao longo do tempo. Trataremos aqui da
integração da vivência corporal com os aspectos interiores (psíquicos) e exteriores do
indivíduo (sociais) (Mello, 2003).
Como afirma o antropólogo indígena Jecupé (1999), havia nas sociedades
tradicionais uma solidariedade humana e cósmica integral. Com a cultura ocidental,
houve uma perda das interconexões com a unidade original, ocorrendo uma primeira
ruptura com a totalidade do cosmos, o abandono do pensamento mítico, ou seja, a
perda do sentido e da busca de origem que inseria o ser humano dentro do cosmos
(cf. Jung, op. cit.).
Segundo a antropologia, quando o ser humano liberou as mãos e a boca, passando
literalmente a levantar a cabeça, aprendendo a ver o mundo, passamos a tocá-lo e
desenvolvemos a linguagem, que nos afastou do mundo (Leroi-Gourhan, 1985). O
homem passou a reconstruir, pelo menos em parte, esse mesmo mundo.
Ocorre, assim, o afastamento do olhar generoso e amplo do homem como criatura
dentro da vida e ela como parte nossa; passamos a enfatizar só o ser humano. É uma
espécie de segundo passo de afastamento mais definitivo, já que seria o abandono da
figura simbólica da mãe terra, da vida, do corpo. Ou seja, podemos dizer que há uma
atitude que enfatiza o nosso pensamento. Estamos diante da criação da racionalidade,
rumo à autonomia do humano e à independência do ser humano (ibid). Para esse
modelo de visão de mundo, só o homem passa a poder traduzir, com a sua linguagem,
a realidade. Estamos nos afastando cada vez mais do mistério.
Em termos de filosofia, podemos afirmar que, com Sócrates e Platão, ainda
estamos embebidos em um universo duplo: razão e irracionalidade, de mente e
sentidos. Mas, posteriormente, com Aristóteles, aparece o afastamento definitivo da
ligação entre as criaturas, passando a vigorar a classificação que individualiza os
objetos, havendo a criação de um modelo que acredita que a natureza é composta de
substâncias que são “[...] entidades puramente materiais, mecanicamente movidas por
acaso ou pela necessidade cega” (Tarnas, 1999: 35). No indivíduo, também vamos ter
a idéia de que devemos ser completamente racionais, sendo diferentes dos animais
neste aspecto, como imaginava a ciência dita clássica (Mello, 2002). Dentro da visão
junguiana, é a última separação do homem. Em nosso mundo desvitalizado (Tarnas,
1999), os outros seres seriam vistos como objetos sem vida e sem inteligência. O
homem passa a monopolizar a verdade. Esse fato é tão determinante, que se instaurou
uma percepção puramente objetiva e neutra do sujeito do saber, agora afastado diante
de seu objeto inerte. Será o ser humano, sozinho e autônomo, capaz de todas as
perguntas, fornecendo todas as respostas. A experiência do homem é determinante, é
um sujeito em busca de um objeto, agora ele próprio passível de ser paralisado e
eternizado no momento da investigação.

111
Em síntese, podemos afirmar que observamos: o rompimento com o pensamento
mítico; o afastamento posterior com a unidade natural do mundo; e por fim, o
isolamento radical do ser humano com a totalidade à sua volta. Porém, apesar da
separação entre natureza e cultura, sabemos que é “[...] ‘natural’ para os seres
humanos construir cemitérios, mercados públicos, comunidades políticas e sociais e
erigir estruturas para culto, educação[...], como também colher nozes e frutas, caçar
animais ou lavrar a terra” (Hillman, 1993: 124). O olhar científico é que se tornou
restritivo. O homem diminuiu seu espaço, mesmo em momentos marcantes como os
da doença e da morte. Philippe Áries (1981) comenta que, a partir aproximadamente
do século XVIII, as portas da casa dos indivíduos vão se fechando, como a ciência se
fechou para os outros seres vivos (e não vivos). Na doença, por exemplo, somente
alguns membros da família vão poder entrar no quarto do doente. Com o tempo,
sabemos, nem mesmo o doente vai poder decidir, algumas vezes até saber, sobre seu
estado de saúde. Os espaços vão diminuindo e a ciência ficou tão complexa que
perdemos a noção de que os seres fazem parte de um mesmo universo. Por exemplo,
ao ter problemas de saúde, o ser humano passou a ter de recorrer a diversos
especialistas, sendo visto como órgãos e sistemas, e não como uma pessoa que
adoeceu. O essencial no amadurecimento do homem e da ciência em geral é admitir
que:

[...] A OPOSIÇÃO ENTRE “DADO POR DEUS” E “FEITO PELO HOMEM” É DESNECESSÁRIA, ATÉ MESMO FALSA, ENTÃO A
CIDADE FEITA POR MÃO HUMANA É TAMBÉM NATURAL POR SEU PRÓPRIO DIREITO. [...] AS CIDADES PERTENCEM À
NATUREZA HUMANA; A NATUREZA NÃO COMEÇA NO LADO DE FORA DOS MUROS DA CIDADE. ASSIM SENDO, A CIDADE
NÃO PRECISA COPIAR O MUNDO VERDE PARA SER BONITA (HILLMAN, 1993, P. 124-125).

Como desafio da ciência e do homem, surge a questão de unir o humano à


natureza, o natural junto com o sentido de vida, porém, em nossa civilização, ainda
não conseguimos unir de uma forma adequada, sem misturar.

O início da ciência e suas transformações

Para o homem ocidental do século XX, as perguntas essenciais do mundo pareciam


ter sido respondidas. Mais que isso, ele tinha a convicção de que um dia tudo seria
desvendado pelas leis da ciência. Sem desmerecer os avanços realizados por
pensadores como Newton, Darwin, Marx e Freud, podemos dizer que o mundo
interior, a intuição e o irracional não foram devidamente valorizados em seus estudos
(Silveira, 1981).
Evitando enveredar por uma investigação de como se deu o processo de mudança e
crise da ciência, é fato que, quanto mais os estudiosos se aprofundavam nas suas
especialidades, mais tiveram de se confrontar com situações que lhes retiraram a
segurança de leis eternas. A ciência deixou de ser simplista, e o estudo passou a ser
feito buscando as partes isoladas. Os mistérios brotaram dentro dos campos que, para
os cientistas, eram invioláveis, como afirma o físico Nicolescu (apud Kuperman,
1993: 123): “A descontinuidade entrava pela porta principal - a da experiência

112
científica”. Na Psicologia a complexidade e o mistério permaneceram desafiadores.
Como afirma Burton (apud Silgelmann, 1995: 6), na Psicologia produziu-se, ao
contrário, uma entrada envergonhada “pela porta dos fundos”. Atualmente, as
próprias ciências naturais estão se reestruturando em função das descobertas
científicas e as novas teorias que se aproximam da complexidade estão vendo todas
as influências do externo e do interno. Ao utilizar a Física como exemplo modelar
nesse processo de questionamentos e mudanças, podemos dizer que o mundo não
seria mais “compromissado com essa visão absolutista e dogmática” (Novello, 993:
5) que dominara desde Newton e que influenciou “praticamente todas as atividades
do pensamento” (ibid: 6). O aspecto fundamental que operou essa mudança foi a
questão do tempo. Todas as evoluções são histórias de perdas e ganhos com as
mudanças de visões. Sobre os progressos e retrocessos, podemos citar o historiador
da arte Gombrich (1993, prefácio), que discorre sobre arte, mas que também faz uma
interpretação válida para toda a questão do tempo e da história; ele afirma que é uma:

[...] INTERPRETAÇÃO INGÊNUA E ERRÔNEA DA CONSTANTE MUDANÇA NA ARTE COMO UM PROGRESSO CONTÍNUO. É
VERDADE QUE TODO ARTISTA SENTE TER SUPERADO A GERAÇÃO QUE O PRECEDEU E, DO SEU PONTO DE VISTA, TER
FEITO PROGRESSOS EM RELAÇÃO A TUDO O QUE SE CONHECIA ANTES. [...] MAS DEVEMOS COMPREENDER QUE CADA
GANHO OU AVANÇO NUMA DIREÇÃO ACARRETA UMA PERDA EM OUTRA, E QUE ESSE AVANÇO SUBJETIVO, APESAR DE
SUA IMPORTÂNCIA, NÃO CORRESPONDE A UM INCREMENTO OBJETIVO EM VALORES ARTÍSTICOS.

Isso significa que cada desenvolvimento no caminho da “maturidade” de um saber


relega determinados aspectos a trevas. Se tomarmos consciência que desenvolvemos
certos aspectos e perdemos outros percebemos, o que não foi vivido, e que naquela
época talvez fosse mesmo inviável. O indivíduo e a ciência criam uma espécie de
oposto ou sombra em cada desenvolvimento da luz. Romperemos com nossas
tendências radicais produzindo uma transformação no “alvorecer da vida”, incluindo
novos começos e resgates de possibilidades antigas. Este é um momento em que o
tempo nos convida a refletir sobre a parcialidade e o limite em que estamos presos.
Na ciência, a perda da orientação no tempo reforça a idéia de que a realidade não se
reduz totalmente à seqüência de eventos à qual tínhamos acesso universalmente. Ou
seja, com a cosmologia quântica e com a psicologia de Jung, surge a introdução da
idéia de movimento energético (no psiquismo e no universo). As ocorrências da vida
se modificam com o tempo, há um ritmo de expansão e contração da vida; há
influências biológicas, sociais e psicológicas, incluindo as questões de diferentes
momentos na vida do indivíduo, dependendo da singularidade e do que cada sujeito
faz com ela. Um dos motivos a que os povos tradicionais dão tanta importância aos
seus velhos e também nossa psicologia (Jung, 1963) é que nos ensinam sobre o
tempo. É partir da metanóia que surge a reflexão sobre o que “se plantou”, tornando-
se mais presente a importância do sentido de vida, com a consciência da morte.

O tempo origem e totalidade múltipla: no indivíduo e na ciência

O TEMPO, PARA OS POVOS INDÍGENAS, É UMA DIVINDADE SAGRADA ENCARREGADA DE MANTER A LEI DOS CICLOS.
[...] O TEMPO FAZ A LIGAÇÃO DO RITMO – QUE É COORDENADO PELO CORAÇÃO. [...] QUANDO CHEGARAM AS

113
GRANDES CANOAS DOS VENTOS (AS CARAVELAS PORTUGUESAS), TENTARAM BANIR O ESPÍRITO DO TEMPO,
ALGEMANDO-O NO PULSO DO HOMEM DA CIVILIZAÇÃO. DESSA ÉPOCA EM DIANTE, O TEMPO PASSOU A SER CONTADO
DE MODO DIFERENTE. ESSE MODO DE CONTAR O TEMPO GEROU A HISTÓRIA, E MESMO A HISTÓRIA PASSOU A SER
CONTADA SEMPRE DO MODO COMO ACONTECEU PARA ALGUNS E NÃO DO MODO COMO ACONTECEU PARA TODOS
(JECUPÉ, 1999: 70-71).

O rompimento com a totalidade do homem, e do universo, e seu resgate na segunda


metade da vida, tem como fio condutor as transformações científicas e a questão da
temporalidade. Há na quebra de cenário linear do tempo-espaço, ou seja, percebemos,
como nos sonhos, um espaço além do passado, presente e futuro; bem como através
da idéia de retorno à origem, ou seja, passamos a pensar no sentido de nossa
existência e do mundo.
Utilizando um breve resumo do conto oriental “A toalha mágica”, podemos
compreender melhor a questão das passagens da ciência; sobre o tempo do retorno e a
entrada na totalidade; o caos e a ordem e a importância do erro como fator irracional
de aprendizagem sobre a multiplicidade e a vivência da totalidade:

ERA UMA VEZ UMA VELHA QUE MORAVA COM O FILHO E A NORA. [...] A MOÇA, MEIGA E BONDOSA, NUNCA SE
QUEIXAVA, O QUE DEIXAVA A VELHA AINDA MAIS ENFURECIDA. UM DIA, MANDOU QUE A MOÇA PREPARASSE UNS
BOLOS DE ARROZ E, QUANDO PRONTOS, OS CONTOU. [...] UM MONGE ANDARILHO PAROU JUNTO À CASA E A MOÇA,
GENEROSA, LHE DEU UM BOLO DE ARROZ. [...] A SOGRA [...] CONTOU OS BOLOS E NOTOU, NA HORA, QUE ESTAVA
FALTANDO UM.
– O QUE VOCÊ FEZ COMO BOLO QUE ESTÁ FALTANDO? – ESBRAVEJOU. – CRIATURA VORAZ E INÚTIL!
[A MOÇA EXPLICOU E A SOGRA GRITOU MANDANDO BUSCÁ-LO. APRESENTANDO MIL DESCULPAS, A MOÇA PEDIU O
BOLO DE VOLTA.]
O MONGE RIU E DEVOLVEU O PRESENTE. POR SUA VEZ, DEU À MOÇA UMA PEQUENA TOALHA. – LEVE-A PARA
ENXUGAR
O ROSTO – DISSE. – SEI QUE SUA VIDA, COM SUA SOGRA, NÃO É FÁCIL.
A PARTIR DE ENTÃO, A VELHA MÃE COMEÇOU A NOTAR QUE SUA NORA FICAVA CADA DIA MAIS E MAIS LINDA. [AO
VER A MOÇA ENXUGAR O ROSTO COM A TOALHA, MURMUROU CONSIGO]. – ELA USA UMA TOALHA MÁGICA! [...]. NO
DIA SEGUINTE [...] ROUBOU-LHE A TOALHA. LAVOU O ROSTO E OLHOU-SE NO ESPELHO. [INICIALMENTE NADA NOTOU]
– PRECISO ENXUGAR COM MAIS FORÇA! – [...] PARA SEU HORROR SEU ROSTO TORNOU-SE LONGO E EQÜINO, DEPOIS
PELUDO E REDONDO, COMO A CARA DE UM MACACO. FINALMENTE, FICOU COM A CARA DE UM GNOMO FEIO E
GROTESCO!
[A NORA] VIU O DEMÔNIO DENTRO DA CASA E PREPAROU-SE PARA FUGIR. A VELHA GRITOU: – SOCORRO! [A NORA
RECONHECEU A VOZ DA SOGRA E ESTA LHE IMPLOROU] [...] – VOCÊ PRECISA DAR UM JEITO! ENTÃO A NORA SAIU
CORRENDO, EM BUSCA DO MONGE.
ENCONTROU-O NÃO MUITO DISTANTE DALI. [ELE EXPLICOU:] – QUANDO UMA PESSOA MALVADA USA A TOALHA [...]
ACABA PARECENDO UM DEMÔNIO. [...] – DIGA À SUA SOGRA QUE USE O OUTRO LADO DA TOALHA!
A JOVEM [...] DISSE À VELHA QUAL A SOLUÇÃO. [...] [ELA ENXUGOU O ROSTO]. NA PRIMEIRA VEZ, SEU ROSTO
TRANSFIGUROU-SE DE GNOMO EM MACACO; NA SEGUNDA VEZ, EM UM FOCINHO DE CAVALO E, NA TERCEIRA,
TRANSFORMOU-SE EM SEU PRÓPRIO ROSTO ENRUGADO, MAS HUMANO.
A VELHA ABRAÇOU A NORA E CHOROU.
– QUERIDA FILHA – A SOGRA FALOU, IMPLORANDO PERDÃO –, EU NÃO VIA COMO EU ERA MÁ COM VOCÊ! – E DESSE
DIA EM DIANTE, NUNCA MAIS PRONUNCIOU UMA PALAVRA ÁSPERA PARA NINGUÉM [...]. TINHA A ESPERANÇA DE QUE
O VELHO MONGE DA TOALHA MÁGICA VOLTASSE UM DIA, PARA QUE PUDESSE AGRADECER-LHE. ELE, PORÉM, NUNCA
MAIS VOLTOU – NEM FOI PRECISO (CHINEN, 1993: 31-32).

Observamos três passagens e quatro fases, como na ciência em geral (cf. Mello,

114
2003). As personagens principais são representantes de um feminino dividido entre o
bem e o mal. Ao virar a toalha, a sogra usa o mesmo instrumento, através do aspecto
destrutivo. A sogra, símbolo do feminino sombrio, neste caso negativo, diante da
nora, representa a nossa cultura e a nossa maneira de fazer ciência. No segundo
momento, a sogra usa a toalha e encara o seu desconhecido. Desvela seu aspecto mais
envelhecido, mostra uma faceta rígida associada à frieza em um rosto alongado. Essa
“outra face” seria um aspecto do desconhecido. Para alguns pensadores em
psicologia, simboliza a verdadeira face. Em um terceiro momento, sua face se
transforma em um animal peludo e redondo, como um macaco. Em um quarto e
último estágio passa a ter o rosto de um ser sobre-humano, um gnomo, o “demônio”.
Podemos fazer um paralelo com a ciência tradicional com o início do conto. Há
uma invasão do caos, que invadiu o saber e invade a ciência, como nas crises e nas
mudanças de idade. Na ciência (Mello, 2002), uma espécie de “fantasma” invade a
ciência positiva, ressurgindo: sentimentos, intuições, aspectos que foram alijados do
processo do conhecer, reapareceram nas discussões sobre cientificidade. Percebeu-se
que o ritmo da vida inclui racionalidade e irracionalidade. O imprevisto aparece como
nas equações não-lineares. Essas equações, características do espaço quântico,
significam que a desordem, como uma forma de “crise de meia-idade”, aparecem e
mostram que se desenvolvem como caóticas, mas possuem uma ordem que se faz
naturalmente, pois com o tempo vão se desenvolvendo de forma ordenada para um
resultado posterior previsível (Eenwyk, 1991). Nestas equações, ocorrem rupturas de
bifurcações. Mas também há, como dissemos, um fio condutor, sendo periódicas,
repetindo-se de forma similar, tal como o ritmo da vida. Dessa forma, conclui o autor
(ibid.) que dinâmicas não-lineares, ou caóticas, refazem percursos diferentes, mas
demonstram padrões reconhecíveis. Como cada indivíduo, após se ocupar com as
tarefas da primeira metade da vida, é como que convidado para rever sua vida e
percorrer novos caminhos, dando um sentido para tudo o que foi vivido e que, apesar
de percursos aparentemente caóticos, guardavam também uma coerência, um fio
condutor que não se vê logo de início. Há peculiaridades óbvias, aspectos de cada
um, não se repetindo de modo previsível. Mas como na psicologia de cada um, nas
ciências também percebemos a necessidade de aceitar as rupturas de cada nova teoria
ou descoberta que “a vida apresenta”.
Podemos admitir que estamos diante da trajetória do herói no mito, esse caminho
só se cumpre após o tempo básico, na velhice, pois essas mudanças de rumo são não-
lineares, incluindo um retorno posterior à unidade perdida. Ou seja, após conquistar o
mundo, surge a necessidade de viver o que ainda não foi vivido e buscar a reflexão,
retornando ao lar de forma diferente. Muitas vezes não se sabe como e aonde chegar
em um primeiro momento caótico, mas o herói cotidiano (Jung, O.C. XVII) é aquele
que retorna a si mesmo, deixando de lado a correria dos primeiros anos da vida para
se entender, passando a construir sua existência a partir de seu próprio ponto de
partida.
Com a Psicologia do alvorecer, nos lembramos da questão da origem e do fim.
Justamente por isso podemos afirmar ser a metanóia o final da fase heróica, onde
“muitos dos valores construídos [...], e que tanto serviram [...] à diferenciação,
precisam ser deixados de lado. É necessário permitir a morte do velho para que, outra

115
vez, o novo tenha lugar” (Grimberg, 1997: 176).
Na Física, também aparece um outro lado “da toalha”, a entrada em um mundo
onde também existe o outro lado oposto que completava a metade perdida da
unidade, ou seja, tudo o que existe tem seu vazio fundamental (Novello, 1988).
Atualmente no estudo do cosmo existe um Pré-universo que é um vazio, um espaço
anterior ao Big-Bang. Este é um modelo de cosmologia que admite uma unidade
anterior, tendo as mesmas características do inconsciente coletivo. Como o
inconsciente coletivo, é uma visão de mundo que inclui a possibilidade de um vazio
que não seja nulidade, um vazio quântico que é cheio de potencialidade, podendo
manifestar-se a partir de efeitos observáveis (ibid.).

[E: ...] ASSIM, O ESPAÇO VAZIO, DE MATÉRIA, [...] PLENO, [...] POIS EM SEU SUBSTRATO, EM SUAS ENTRANHAS,
ENCONTRAMOS AQUELES PROCESSOS QUÂNTICOS DO ESTADO FUNDAMENTAL, REVISANDO-O, AGITANDO-O,
EXCITANDO-O, COMO QUE PROCURANDO REDUZIR-LHE A SIMPLICIDADE E O REPOUSO (NOVELLO, IBID.: 89).

Como o inconsciente coletivo, o pré-universo é também um: “lugar sem


diferenciação, origem e concentração de toda vida psíquica. [...] por simbolizar a
totalidade indiferenciada, inclui todas as possibilidades do via-a-ser” (Mello, 2002:
71), e manifesta-se através de seus efeitos, como o pré-universo. Como características
fundamentais, podemos enfatizar que nele não há tempo, espaço ou causalidade.
Com a idade mais avançada, podemos também passar por experiências que nos
levam a entender (Jung, O.C., VIII) que há uma relação de sentido entre o fato
subjetivo do indivíduo e o fato objetivo “externo”, ligando o mundo material ao
psicológico. Jung (ibid.) utiliza o termo sincronicidade como conexão acausal entre
as dimensões do material e do psíquico. Mais que isso, esse conceito nos coloca a
questão sobre o tempo que conecta essas duas instâncias. Nas palavras de Jung (ibid.,
§ 418):

COMO A PSIQUE E A MATÉRIA ESTÃO ENCERRADAS EM UM SÓ E MESMO MUNDO [...] EM ÚLTIMA ANÁLISE, SE
ASSENTAM EM FATORES TRANSCENDENTES E IRREPRESENTÁVEIS, HÁ[...] ATÉ MESMO CERTA PROBABILIDADE DE QUE A
MATÉRIA E A PSIQUE SEJAM DOIS ASPECTOS DIFERENTES DE UMA SÓ E MESMA COISA. OS FENÔMENOS DA
SINCRONICIDADE NOS MOSTRAM QUE O NÃO-PSÍQUICO PODE SE COMPORTAR COMO O PSÍQUICO, E VICE-VERSA, SEM A
PRESENÇA DE UM NEXO CAUSAL ENTRE ELES.

Desenvolver-se (o Processo de Individuação) seria “[...] cada um de nós tornarmos


a nós mesmos o mais completamente que formos capazes, dentro dos limites que nos
são impostos pela nossa sina” (Hollis, 2004, p. 133). Neste processo há a necessidade
de redirecionamento de energia envolvendo uma depressão. Por vezes ela é doentia,
quando a doença passa a ser crônica e não serve como um “mestre interior” nos
fazendo refletir. Porém pode ser chamada de “normal”, quando é uma entrada no
inconsciente e nos possibilita refletir. A atração interna da energia é uma espécie de
força gravitacional e aparece na forma de “fantasia ou imagem” para refazermos os
nossos caminhos. Se o indivíduo consegue trazer essa energia de volta e integrar a
imagem, ela passa a ter o sentido de “depressão criativa” (Ellemberger, 1970;
Harding apud Mello, no prelo; Steinberg, 1989 apud Mello, no prelo). Esse tipo de

116
depressão criativa é capaz de curar a dissociação entre nossos aspectos opostos (Jung,
O.C., XIV/1). Precisamos da depressão, pois ela faz parte da descida do mito de herói
que caminha rumo ao inconsciente, ao desconhecido. O herói é um símbolo de
alguém capaz de também fluir, de entrar em si (Steinberg, op. cit.). Segundo
Campbell (1988: 91), é necessário ultrapassar o limiar, ou seja, “é jogado no
desconhecido, dando a impressão de que morreu”. A trajetória do mito de origem se
completa quando, após o caos, o herói torna-se independente e refaz o ciclo: retorna à
totalidade com seu olhar não mais indiferenciado (ibid.). Todo diferenciar-se é
retornar ao Uno, esfacelar-se e refazer-se.
O autor aponta que fatos “[...] extraordinários são [...] necessários para forçar a
autoconfrontação” (Chinen, 1993: 34), rompendo com o que o autor chama de “lógica
típica da juventude, aceita as categorias de ou/ou, em que tudo se classifica como
preto ou branco”.
A ciência também precisa ultrapassar essa incapacidade de percepção (Pauli &
Jung apud Jaffé, 1990: 37), já com a Física quântica admite-se que o “[...] único
ponto de vista aceitável parece ser o que reconhece, como mutuamente compatíveis,
ambos os lados da mesma realidade – o quantitativo e o qualitativo, o físico e o
psíquico – podendo abarcá-los simultaneamente...”. Em termos individuais e
coletivos, há um sentido quântico-mítico do tempo de resgate, de revirar as
lembranças do passado, acertando contas com nossos projetos. Eis outro paradoxo
humano: precisamos mudar para continuar ser o que somos, o que foi uma conquista
para o indivíduo e a civilização. Como no conto do mestre zen Fukushima-roshi:

O MESTRE CONTA UMA HISTÓRIA EM QUE UM VELHO HOMEM TENTAVA EXPLICAR A SEU NETO A CRENÇA DA SEITA
JODO, DO BUDISMO, NA QUAL O NIRVANA EXISTE A OESTE. PORÉM O NETO COMENTOU QUE, SE ALGUÉM VAI SEMPRE
EM DIREÇÃO A OESTE, ACABA DANDO A VOLTA AO MUNDO E CHEGA AO PONTO DE PARTIDA. ISSO QUER DIZER, [...]
QUE O NIRVANA ESTÁ ONDE NÓS ESTAMOS, ‘É SÓ PARAR DE OLHAR EM VOLTA’. CONTUDO HÁ UM PARADOXO NESSA
HISTÓRIA: A CHEGADA AO PONTO DE ORIGEM GERALMENTE SE DÁ APÓS TER SIDO COMPLETADA A VOLTA AO MUNDO.
[....]. NAS HISTÓRIAS DE FADAS E NOS MITOS, ESSE PARADOXO É USUALMENTE REPRESENTADO POR UM HERÓI QUE
TEM DE PARTIR EM DIREÇÃO A UM MUNDO TOTALMENTE DESCONHECIDO E, NESSA PEREGRINAÇÃO, DESCOBRE SUA
PRÓPRIA IDENTIDADE, SUAS PRÓPRIAS POTENCIALIDADES (SALLES, 1992: 74).

Dentro desta múltipla temporalidade, o tempo de retorno à origem é resgatado por


Gödel. O matemático fez uma enorme contribuição para a Física e para os
fundamentos da ciência (Novello, 1997), produzindo uma profunda alteração no
conceito de temporalidade (ibid.). Em 1949, Gödel apresenta uma nova geometria
obtida a partir das equações de Einstein da gravitação, que possuía uma propriedade
que a singularizou dentre todas as demais soluções. A geometria de Gödel é uma
geometria onde há “uma configuração métrica desprovida de dificuldades causais”
(ibid., p. 71). A particularidade aparece quando se caracteriza o estado de movimento
da matéria. O movimento da matéria nesse espaço-tempo produz surpresa: sem
evolução temporal, onde o fluido cósmico que provoca essa geometria apresenta uma
rotação interna, própria (ibid.). Essa propriedade, aparentemente inocente, traz como
conseqüência excepcional de romper com a linearidade em todos os níveis, e significa
que ir para o futuro é também revisitar o passado.
Para podermos entender a psicologia de C. G. Jung, precisamos alcançar a

117
importância do tempo e a metanóia.
Na Física, a quebra de cenário ocorre como na Psicologia, e na vida individual,
através da noção de temporalidade. O tempo na Física tem como representação 3+1, e
associamos aos três aspectos do espaço e algo além, um retorno para o início. Na
Psicologia de Jung há um “eterno retorno”, a reflexão sobre todas as passagens da
vida. Surge a necessidade de um novo entendimento do tempo, rompendo com um
tempo rígido que faz do passado, presente e futuro uma linha sem possibilidade de
retorno. Na Física atual convivemos com essa interpretação matemática, ou seja, uma
nova realidade não-representável em termos de espaço-tempo (Novello, 1988). Como
também afirma Jung:

NA CONCEPÇÃO ORIGINAL DO HOMEM [...], O ESPAÇO E O TEMPO SÃO COISAS SUMAMENTE DUVIDOSAS. SÓ SE
TORNARAM UM CONCEITO “FIXO” COM O DESENVOLVIMENTO [...] DO HOMEM GRAÇAS À INTRODUÇÃO DO PROCESSO
DE MEDIR. [...] SÃO CONCEITOS [... HIPÓTESES] NASCIDOS DA ATIVIDADE [...] DA CONSCIÊNCIA E FORMAM AS
COORDENADAS INDISPENSÁVEIS PARA A DESCRIÇÃO DO COMPORTAMENTO DOS CORPOS EM MOVIMENTO [...]. MAS O
ESPAÇO E O TEMPO SÃO PROPRIEDADES APARENTES DOS CORPOS EM MOVIMENTO [...] NECESSIDADES INTELECTUAIS DO
OBSERVADOR (JUNG, OC VII, § 840).

Na Psicologia sabemos que a transformação só aparece quando se unem


necessidade e força de vontade (Jung, O.C., XVII). A necessidade da desordem em
nossa vida, e mesmo do erro permite transformação. Não errar, não sofrer excessos,
manter-se sempre em completo equilíbrio, sem crises e sem adoecer, é estar
cristalizado, é ser possuído pelo poder da consciência. Eis a metáfora cristã de que
quem não peca não poderá ser perdoado: eis nossa humanidade e seu paradoxo, nossa
possibilidade de mais trevas para alcançar mais luz.

NO FUNDO, SÓ ESSA CORAGEM NOS É EXIGIDA: A DE SERMOS CORAJOSOS EM FACE DO ESTRANHO, DO MARAVILHOSO E
DO INEXPLICÁVEL QUE SE NOS PODE DEFRONTAR. [...] AS EXPERIÊNCIAS A QUE SE DÁ O NOME DE “APARECIMENTOS”,
TODO O PRETENSO MUNDO “SOBRENATURAL”, A MORTE, TODAS ESSAS COISAS TÃO PRÓXIMAS DE NÓS TÊM SIDO TÃO
EXCLUÍDAS DA VIDA, POR UMA DEFENSIVA COTIDIANA. [...] NEM FALO DE DEUS. MAS A ÂNSIA EM FACE DO
INESCLARECÍVEL NÃO EMPOBRECEU APENAS A EXISTÊNCIA DO INDIVÍDUO, COMO TAMBÉM AS RELAÇÕES DE HOMEM
PARA HOMEM. [...] NÃO É APENAS A PREGUIÇA QUE FAZ AS RELAÇÕES HUMANAS SE REPETIREM NUMA TÃO INDIZÍVEL
MONOTONIA EM CADA CASO; É TAMBÉM O MEDO DE ALGUM ACONTECIMENTO NOVO, INCALCULÁVEL, DIANTE DO
QUAL NÃO NOS SENTIMOS BASTANTE FORTES (RILKE, 1985: 66).

A segunda metade da vida necessita do risco da mudança. Para uns, ter a


humildade de aceitar o erro, para outros, a coragem de enfrentar o desafio de viver.
Há uma necessária imprevisibilidade, as “bifurcações” ou “dobras” (Thom, 1985)
como na física mais ampla – na cosmologia (Novello, 1988) que representam
aspectos internos/externos que se “interpõem” no caminho do nosso eu conhecido.
Dois resgates são fundamentais e a metanóia nos habilita através da temporalidade:
o resgate da desmedida do viver e da entrega (Hillman, op. cit.): – a necessidade de se
assumir a beleza, admitindo as zonas reprimidas, participando das experiências em
comunidade, pois o protesto social e político não é suficiente. Resgatar a beleza não é
olhar, é reaprender a ver: as ondas do mar, o “falcão” planar, mergulhar (ibid.), e
entrar no ritmo da vida. Enfrentar o medo de amar está ligado a deixar que o belo – e

118
a dor – toque o coração. Neste ponto, estamos diante da sincronicidade, pois receber a
vida e suas imagens é essencial: a imagem é um evento psíquico poderoso. Refletindo
sobre a etimologia latina da palavra imagem, “imago, de in ager, [...] demarcar um
campo, aggerare, amontoar terra ou arar [...] terra arada, marcada” (ibid.). Se
unirmos a etimologia de amor que tem raiz dessa palavra indica “atividade”. O
vocabulário egípcio, afirma Sant’Anna, traz a raiz MR, MR J, no Egito:

ESCRITA COM HIERÓGLIFOS A PALAVRA MR ERA REPRESENTADA POR UMA ESPÉCIE DE PÁ OU DE CAVADEIRA DE
CAMPONÊS ABRINDO A TERRA. HÁ UM SENTIMENTO AGRÁRIO DE FECUNDAÇÃO CÓSMICA. AMOR, ENTÃO, ERA COMO O
ATO DE CULTIVAR A TERRA. [...] SEU ALFABETO ESPECIAL [...] PORQUE SABIAM TAMBÉM QUE O AMOR É COISA PARA
OS INICIADOS (SANT’ANNA, 1975: 10).

Podemos arriscar uma interpretação: se o amor é o instrumento do próprio ato de


cultivar, e se imagem significa arar produzindo uma terra marcada, o resultado de
termos oferecido um instrumento capaz de semear, em função do amor, é tornar
possível um espaço vazio para que a semente brote: em síntese, a imagem é um
resultado da própria ação de amar. A ação de cultivar simplesmente e esperar a
semente também produz imagens. Cultivar entendido como viver, às vezes
caminhando sem saber, aonde estamos indo, mas não deixando de arar. Isso significa,
em termos práticos, que é na busca, no ato cotidiano que talvez melhor possamos
deixar que o mundo nos ensine, enquanto nós exercitamos o saber.
Lembro Jung (O.C., VIII), quando ele afirma que devemos beber o cálice de dor e
prazer que nos cabe até a última gota; e Rilke (1985): se você não consegue perceber
beleza à sua volta, não culpe o que você vê, mas a você que não está sendo
suficientemente poeta. Ou ainda, da sabedoria popular, cito a literatura dos bonecos
do Nordeste (mamulengos), onde o “professor Bolastrino” nos ensina que descobriu o
segredo da felicidade, que é muito simples, nunca estagnar as energias e amar o dever
e o prazer (Góis, M. H. & Placer, 1960). Lidar com a diferença permite a
aprendizagem com a nossa polaridade interior, viver a dor e o prazer, resgatando a
beleza. No pessoal e no coletivo, partimos do pressuposto de que cada mudança
ocorre em um nível, ou seja, em cada metanível (Hofstader, 2001) expressam um
dinamismo específico. A proposta de Jung é a necessidade de uma circulação
(circulatio) de todos os níveis de produzir saber, de forma não hierárquica, onde cada
nível continua sendo válido dentro de cada contexto. Assim, na vida, necessitamos
integrar uma multiplicidade de tempos: os resgates do que foi perdido, quando
precisa ser revivido, o tempo do que não tivemos tempo, o tempo de agora e as novas
perspectivas do amanhã. Afinal, na psicologia de Jung, há uma necessária diversidade
do momento vivido e da multiplicidade humana que é o tempo de cada um (Jung,
O.C., VIII).
Na Psicologia, podemos incluir a necessidade de lidar com os múltiplos olhares
sobre o ser humano. Ou seja, incluir a importância de suas teorias e suas práticas,
colocando-as em contato, sabendo da diferença de cada uma, mas sem enfatizar uma
em detrimento da outra. Como admite a psicologia de Jung, só na maturidade da
ciência e da psicologia, como na vida do indivíduo, costumamos aceitar a necessidade
de conviver com a contradição entre a incerteza e a sensação de certeza interior,“[...]

119
apostando na totalidade, perseguindo-a como princípio inalcançável. E neste grande
paradoxo reside a utopia da ciência (MUNNÉ, 1997: 44). Temos apenas uma certeza,
todos precisamos ter humildade para aprender a ver quando a vida nos convida, pois
todos somos perigosos: os humanos, quando deixam “estancar as energias”, e as
“teorias, quando deixam de pensar”.
Podemos dizer que, a partir da meia-idade e a época chamada de velhice, somos
convidados a retirar as dependências pessoais, com os pais, que estão morrendo, com
os filhos, que estão partindo, com o corpo, que nos lembra, pelos seus limites “que
somos mortais, que existe um fim, mas também que não há como algum dia
realizarmos tudo o que o coração persegue e pelo que anseia” (Hollis, op. cit., p. 45).
Principalmente passamos, como a Ciência em geral em sua maturidade, a ter de
abandonar as certezas e voltar a refletir sobre o mundo que vivemos. No ser humano,
também precisamos, “voltar à terra” (ibid.), simbolizada pelo corpo e pelos limites da
humanidade em geral. Ao mesmo tempo, na Universidade de Harvard (cf. Chinen,
1993: 29), pesquisadores, utilizando 268 indivíduos nesta última etapa da vida adulta,
comprovaram as teses de Jung, pois “descobriram que as pessoas tendem na
mocidade a usar a projeção com freqüência, mas que deixam de fazê-lo na
maturidade. Mais ainda, que aqueles que não chegaram a amadurecer e que passaram
por dificuldade psicológica – desde o alcoolismo até a depressão crônica – continuam
a abusar da projeção”. Em contrapartida, “a autoconfrontação e a auto-
responsabilidade corresponderiam à saúde e à felicidade”, pois “enfrentar os
demônios interiores é um pré-requisisto de uma velhice feliz” (ibid.).
Esta época da metanóia é o final do caminho do herói, o retorno ao vazio
fundamental. Aqui não é o momento do herói guerreiro, nem do intelectual, mas
aquele que, após a conquista de ser criador, é alçado à condição de criatura. Um
duplo lugar se estabelece: desviar-se do que todos afirmam ser lugar de “velhice”
como vazio, mas também aproveitar das necessidades que a nossa idade nos convida
e nos permite. Para a psicologia de Jung, é quando o ego abandona seu lugar de única
instância que aprende a rever seu sentido. Na religião judaico-cristã, por exemplo, é
um sentimento de que aceitação da

“DEPENDÊNCIA” QUE SE EXPRIME NAS PALAVRAS DE ABRAÃO NÃO CONSISTE NO FACTO DE TER SIDO CRIADO, MAS NO
DE NÃO SER MAIS DO QUE UMA CRIATURA. O CONTRASTE ENTRE A MAGESTAS E A CONSCIÊNCIA DE SER APENAS “PÓ E
CINZA” [...]. CONDUZ ANTES, POR UM LADO, AO “ANIQUILAMENTO” DO EU E, POR OUTRO, À AFIRMAÇÃO DA
ABSOLUTA E ÚNICA REALIDADE DO TRANSCENDENTE; O QUE É TÍPICO DE CERTAS FORMAS DO MISTICISMO (OTTO, S/D,
P. 30).

O conto nos ensina sobre o sentimento de ser uma criatura, de reconsiderar nossas
ligações com a totalidade, onde há poderes maiores do que os nossos. Nos alerta
sobre como a dor e o errar (“só erra quem faz”), e tudo, começa com um bolinho de
arroz. Sabedoria é mais do que vivência, é vivência afetiva (Mello, 2002), de sabor,
eis sua etimologia, “Sapienter [...] destino. É prudente, razoável. Sapientia, s. ap. f.
(de sapiens). (...) Sabor. Ter bom paladar (para conhecer a bondade dos alimentos)
[...] Aptidão, habilidade, capacidade, [...] razão e bom senso” (Saraiva, 1993: 1061).

120
A DIFERENÇA ENTRE A SABEDORIA E O CONHECIMENTO APARECE NA CIÊNCIA QUANDO ESTA VOLTA A DIALOGAR COM
A NATUREZA. ESTES SABERES E O HOMEM, NA MATURIDADE, PASSAM A VIVER O PARADOXO DE PODER NOS
RELACIONARMOS MELHOR PORQUE NÃO SOMOS MAIS DEPENDENTES (HOLLIS, OP. CIT.), NÃO TERMOS TANTAS
PROJEÇÕES, MAS PERCEBEMOS QUE SOMOS PARTE DE UMA TOTALIDADE QUE NOS TRANSCENDE. PODEMOS NESTE
MOMENTO NOS ACEITAR COMO PARTE DA REALIDADE POIS NÓS CONSTRUÍMOS UM VITRÔ MISTERIOSO, UMA
TOTALIDADE SOCIAL E CÓSMICA. PASSAMOS A SER CRIATURAS E CRIADORES DE NOSSA VIDA. PODEMOS AGORA
ESCOLHER SERMOS NÓS MESMOS, COM O POTENCIAL QUE JÁ TRAZÍAMOS, EXPRESSANDO OUTRO PARADOXO, SENDO
ÚNICOS E MAIS INDEPENDENTES, MAS ACEITANDO FAZER PARTE DE UM MUNDO OBJETIVO QUE NOS ENVOLVE, OU SEJA,
ASSUMIR A DEPENDÊNCIA: DO NOSSO CORPO PELO AR QUE RESPIRAMOS; DOS LIMITES DO PENSAMENTO DA NOSSA
CIÊNCIA SOBRE O MUNDO; DA NECESSIDADE DE ALGUM APEGO INEVITÁVEL DOS AFETOS; E DA INTUIÇÃO QUE NOS
APONTA PARA UM SENTIDO QUE NUNCA TEREMOS CERTEZA DE SUA VERACIDADE.

Discussão final

A história da ciência é um caminho de substituição de perguntas, de


redirecionamento de olhares. Podemos dizer que a história do homem é a história da
transformação de seu olhar. Na ciência, abaixamos nosso olhar para o mundo,
deixamos de esperar respostas dos deuses e passamos a contemplar a natureza; o que
inicialmente ganhamos em horizontalidade, perdemos em amplitude. Quando
ultrapassamos esse olhar puramente objetivo, enfrentamos o limite da verdade
científica, na Física a relatividade do observador, resgatamos o desconhecido,
explodimos na arte as formas rígidas e imitativas, e aprendemos a ouvir o não dito.
Nesta transformação dos saberes, passamos a ter um olhar interior, subjetivo.
Separamos o homem do contexto, enfim, aprofundamos, verticalizamos a existência.
Outra mudança surge, e a relação com o meio externo acabou por ser resgatada, a
interdependência do mundo, e para alguns até o nosso lado animal. Após as guerras
surge, assim, na Psicologia, uma nova postura onde passamos a enfatizar a relação
com o outro, a questão da existência do ser-no-mundo e a angústia da mortalidade.
Neste mesmo momento, a Física subatômica resgata a importância dos instrumentos
de observação e a impossibilidade de entender a realidade de forma definitiva. Ainda
faltava ampliar a noção de tempo. A grande transformação, para a psicologia
analítica, estaria por vir, como vimos, entrando em cena os “novos tempos”, surgindo
a discussão sobre o tempo como uma linha reta. Com a cosmologia quântica, como
no amadurecimento do indivíduo, surge a discussão sobre o tempo, sobre a união da
realidade objetiva com a subjetiva.
Todas as transformações na ciência nos direciona para abandonar o racionalismo
sem perder necessariamente a racionalidade, a ciência necessita resgatar o irracional,
sua complexidade. As ciências humanas e naturais estão se contextualizando e
aceitando o natural e o cultural, o significado é grandioso: somos parte do planeta, a
ecologia que nos integra no todo.
Utilizamos aqui a história da arte e da vida de Monet para exemplificar estes
resgates que incluem o ser humano dentro da natureza, símbolo da maturidade após a
vida adulta. Cito dois momentos da busca dos pequenos detalhes, do sentido das
pequenas coisas: Monet, após as águas de Veneza no seu retorno à casa. As telas de
Veneza são um adeus às alegrias e aos dessabores do relativo e do acidental. Monet
está preparado para o desafio das ninféiais (Pessanha, 1999: 162).

121
[...] E, UNINDO SABEDORIA OCIDENTAL E SABEDORIA ORIENTAL, COLOCA SOBRE O LAGO PONTES JAPONESAS [...].
CONVITE AO RITUAL DE PASSAGEM QUE É A AUTO-REFLEXÃO, UMA DAS PONTES, NA PRIMAVERA, VEGETALIZA-SE.
[...]. É TODA VERDE, CONDUZINDO DO VERDE AO VERDE, LIGANDO NATUREZA À PRÓPRIA NATUREZA, MISTÉRIO AO
MISTÉRIO. AO SE PASSAR POR ELA, VIVE-SE UMA METÁFORA DA PRÓPRIA EXISTÊNCIA HUMANA. E PODE-SE OLHAR
PARA BAIXO [...], E SE VER A SI MESMO SOBRE A ÁGUA SERENÍSSIMA DO LAGO. O QUE SE VÊ ENTÃO É O REFLEXO DO
PRÓPRIO ROSTO, ENTRE AS IMAGENS DAS RAÍZES DO UNIVERSO, NO MEIO DE NENÚFARES: AUTO-RETRATO SEMPRE
INACABADO, COMO O PINTADO POR MONET.

Monet, em seu último resgate, refaz o caminho de busca de sentido através do


olhar, como os físicos através do diálogo com a natureza, procurando o absoluto, e a
idéia de sagrado ressurge. “[...] Sobre as águas, boiando, as ninféias” (ibid.: 162). O
pintor acreditava no final de sua vida que “as grandes ninféias não são paisagens, mas
ícones de um novo sagrado que escolheu se manifestar através das aparências da
natureza”. Como um herói em busca de seu sentido reproduzirá obsessivamente essas
flores: “[...] Seduzida pela luz, no verão, em cada alvorecer, a flor da ninféia emerge
das profundezas escuras do lago, ovo noturno que lentamente desabrocha – para de
novo se recolher sob a água quando a luz desaparece (ibid.: 162-163). Também no
último estágio do amadurecimento, o ser humano pode se arriscar a entrar no escuro,
deprimindo-se, aceitar ter medo e admitir que há sentidos além do que pode controlar.
Resumindo, o idoso é aquele, que como Monet (ibid.) e os grandes cientistas, podem
unir a racionalidade e irracionalidade, dedicando-se a se entregar às expressões da
vida em geral.

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123
* Pós-Doutora em Ciências (CBPF - MCT); coordenadora do curso de especialização de Teoria e Prática Junguiana (UVA) - Rio de
Janeiro e Brasília; analista junguiana filiada à Association for Analytical Psycology (IAAP) pela Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica (SBPA); especialista em Psicologia Clínica e Psicologia Hospitalar (CFP). Publicações: - Mergulhando no Mar sem Fundo
- Introdução sobre a Epistemologia Atual e a Clínica Junguiana. Rio de Janeiro: Aion, 2003. Participação: - Mello, E. C. C. &
Damião, Jr. M. 2005. “A hermenêutica simbólica: uma reflexão sobre a epistemologia da clínica junguiana”, In SANTOS, M. A.,
SUNIBM, C. P. E Leal, e MELO-SILVA, L. L. Contribuições teórico-clínicas. Formação em psicologia: processos clínicos. São
Paulo: Vetor, 2005, p. 391-418.

124
Coleção PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE

• Psicologia e espiritualidade, Mauro Martins Amatuzzi (org.)


• Espiritualidade e finitude, Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (org.)
• Metanóia e meia-idade, Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (org.)

125
Direção editorial
Claudiano Avelino dos Santos
Assistente editorial
Jacqueline Mendes Fontes
Coordenação de desenvolvimento digital
José Erivaldo Dantas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Metanóia e meia idade: trevas e luz / Dulcinéa da Mata Ribeiro Monteiro (org.). —
— São Paulo: Paulus, 2008. — (Coleção psicologia e espiritualidade)
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-349-2900-4
1. Crise da meia-idade 2. Envelhecimento - Aspectos psicológicos
3. Meia-idade - Aspectos psicológicos 4. Pessoas de meia-idade - Psicologia
I. Monteiro, Dulcinéa da Mata Ribeiro. II. Série.
07-9693 CDD-155.66

© PAULUS – 2013
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 – São Paulo (Brasil)
Tel. (11) 5087-3700 – Fax (11) 5579-3627
www.paulus.com.br
editorial@paulus.com.br
eISBN 978-85-349-3773-3

126
127
Scivias
de Bingen, Hildegarda
9788534946025
776 páginas

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Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja


Hildegarda de Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são
primeiramente escritas de maneira literal, tal como ela as teve, sendo, a
seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos tópicos presentes nas visões
são a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino de Deus, a queda do
ser humano, a santifi cação e o fi m do mundo. Ênfase especial é dada aos
sacramentos do matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara.
Como grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No
fi nal de Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta,
provavelmente um rascunho primitivo de Ordo virtutum, a primeira obra de
moral conhecida. Hildegarda é notável por ser capaz de unir "visão com
doutrina, religião com ciência, júbilo carismático com indignação profética, e
anseio por ordem social com a busca por justiça social". Este livro é
especialmente significativo para historiadores e teólogas feministas. Elucida
a vida das mulheres medievais, e é um exemplo impressionante de certa
forma especial de espiritualidade cristã.

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Santa Gemma Galgani - Diário
Galgani, Gemma
9788534945714
248 páginas

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Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para me


assegurar de que era verdadeiramente a Mãe de Jesus: deu-me sinal para me
orientar. Depois de um momento, fiquei toda contente; mas foi tamanha a
comoção que me senti muito pequena diante dela, e tamanho o
contentamento que não pude pronunciar palavra, senão dizer, repetidamente,
o nome de 'Mãe'. [...] Enquanto juntas conversávamos, e me tinha sempre
pela mão, deixou-me; eu não queria que fosse, estava quase chorando, e
então me disse: 'Minha filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício, por
ora convém que a deixe'. A sua palavra deixou-me em paz; repousei
tranquilamente: 'Pois bem, o sacrifício foi feito'. Deixou-me. Quem poderia
descrever em detalhes quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não,
certamente não existe comparação. Quando terei a felicidade de vê-la
novamente?

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DOCAT
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Doutrina Social da Igreja numa linguagem jovem. Esta obra conta ainda com
prefácio do Papa Francisco, que manifesta o sonho de ter um milhão de
jovens leitores da Doutrina Social da Igreja, convidando-os a ser Doutrina
Social em movimento.

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Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição
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acessível, principalmente às comunidades de base, círculos bíblicos,
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Este é um grandioso trabalho que oferece respostas e explica os caminhos


percorridos pela Bíblia até os dias atuais. Em estilo acessível, o autor
descreve como a Bíblia cristã teve seu início, desenvolveu-se e por fim, se
fixou. Lee Martin McDonald analisa textos desde a Bíblia hebraica até a
literatura patrística.

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136
Índice
Apresentação 5
1. O envelhecer e o tempo: um olhar filosófico 8
Bibliografia 15
2. Saber chegar, saber passar, saber partir 17
Citações Bibliográficas 19
3. Espelho, espelho meu... 21
Bibliografia 29
4. Metamorfoses da alma após a meia-idade... 31
Começando a refletir... 31
Questões fundamentais da meia-idade 33
Onde me encontro? Qual o sentido da vida? 33
Metamorfoses reativas ao envelhecer 35
Questões fundamentais da meia-idade 38
As metamorfoses da alma de Nietzsche e a metanóia de Jung 40
Parando de refletir... 45
Bibliografia 48
5. Metanóia e história: Conflitos e rupturas na meia-idade 50
Referência Bibliográfica 56
6. A dimensão religiosa da existência e o envelhecer – Diálogo
57
entre Kierkegaard e Jung
A dimensão estética e a sedução pelo prazer 57
O sentido do Ético e o jogo dos opostos 59
O envelhecer e a dimensão religiosa da existência 62
Bibliografia 66
7. Serenidade – ser é unidade: Um encontro entre Heidegger e
68
Jung
METANÓIA: A Virada no Caminho 68
ENVELHECER COMO ENCONTRO DO SER: os desafios do caminho 69
ANGÚSTIA E MORTE: na contradição da experiência para o sentido do ser 72
A IDADE DO SER: ser realizando o Ser 74
SER É SABER: a conquista do não-ser através da serenidade 76
Bibliografia 78
8. Sobre a vida e a dor da meia-idade: Articulação entre Jung e
80
Schopenhauer

137
Considerações Gerais 80
Sobre as considerações teóricas 80
Sobre a idéia de vontade 81
Sobre o mundo, a vontade e a representação 82
Sobre as dores do mundo – viver é sofrer? 83
A supressão das dores do mundo 85
A velhice, metanóia e transcendência 87
Referências Bibliográficas 91
9. O caminho do espírito na ciência e nos sonhos 92
Introdução 92
O inconsciente e o “sopro espírito” 94
Testemunho do espírito e testemunho histórico 95
O testemunho do espírito e o Processo de Individuação 96
A atividade do espírito no sonho de Jung e a formação da consciência de si 97
O Plano A e o Plano B 99
Conclusão 100
Referência Bibliográfica 101
10. Metanóia e mudança de paradigma 102
Referências Bibliográficas 108
11. A psicologia junguiana e a física no tempo da maturidade 110
Introdução 110
Rupturas e resgates na ciência 111
O início da ciência e suas transformações 112
O tempo origem e totalidade múltipla: no indivíduo e na ciência 113
Discussão final 121
Referências Bibliográficas 122

138

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