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Maria Carpi

Maria Elisa Carpi (Guaporé, 1939) é considerada uma das figuras mais
representativas da poesia feminina brasileira. Aos dezenove anos de idade, ingressa na
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e forma-se advogada
no ano de 1963. No ano seguinte, casa-se com Luis Carlos Versoni Nejar, com quem teve
quatro filhos: Carla, Rodrigo, Fabrício e Miguel. Além disso, ingressou, em 1978, através
de concurso público, na Defensoria Pública do estado dó Rio Grande do Sul, optando pela
área dos direitos da infância. Quatro anos depois, passa a dar aulas na Faculdade de Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e participa nos movimentos que
promulgaram a criação do Conselho Estadual de Direitos (CEDICA) e dos Conselhos
Tutelares. Ainda em 1982 ingressa no Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul,
participando como conselheira do CEDICA, por duas gestões; da primeira, representa a
Defensoria Pública e, da segunda, a OAB/RS.
Em 1990, a vida literária de Maria Carpi tem início: Nos gerais da dor, o primeiro
esboço da complexidade expressiva e cosmovisiva de suas produções poéticas. Depois
disso, a poeta publicou mais oito livros. Também participou da Coleção Petit Poa
(Secretaria Municipal de Cultura de POA, 1992), com o livro Pequena Antologia.
Maria Carpi é uma poeta de reflexão existencial e faz uma poesia baseada em temas
líricos como a dor, o acaso, o amor e a morte. Os seus versos são construídos a partir do uso
de imagens dissonantes, de metáforas e, principalmente, de paradoxos; nessa perspectiva,
seus textos buscam a significação profunda das palavras, revelando a natureza íntima do ser
humano.
O reconhecimento da crítica veio através dos diversos prêmios recebidos pela poeta.
Entre eles, figuram a Menção Honrosa no Casa de las Américas/1999, em Cuba, pelo As
Sombras da Vinha; o Revelação da Associação Paulista dos Críticos de Arte/1990, pelo
Nos Gerais da Dor; o Erico Veríssimo/1991, por Desiderium Desideravi; o Açorianos em
1997, na categoria Poesia, pela obra Os Cantares da Semente, e em 2004 por A força de
não ter força. Além desses, foi três vezes premiada pela Associação Gaúcha dos Escritores,
Livro do Ano, categoria Poesia, com: A Força de Não Ter Força/2004, As Sombras da
Vinha/2006 e O Herói Desvalido/2007. Essa última obra obteve no ano anterior, 2006, a
premiação Livro do Ano - categoria Poesia - pela Rede Pampa, Nacional e Sul.

Obra poética esencial


___________________________________________________

Nos gerais da dor (1990), Desiderium Desideravi (1991), Vidência e Acaso (1992),
Pequena antologia (1992), Os cantares da semente (1996), Caderno das águas (1998), A
migalha e a fome (2000), A força de não ter força (2003), As sombras da vinha (2005), O
herói desvalido (2006).
Obras Poéticas
Nos gerais da dor
(1990)
3

A dor protegeu
o meu corpo,
dentro do mar,
o mar profundo,
dentro dos céus,
o paraíso vertido.
E o meu parentesco
com as árvores
vem do alimento
armazenando na
câmara escura,
a luz que o depura.

O Império desviou-me do caminho,


mas o Despoder, em suas verduras,
vendo-me sem trilha, fez-me chegar
a estranha vereda, guiada somente
pela respiração de quem me aguarda.
Eu precisava descobrir, por outras
sendas, a forma que a Dor quer dar
a minha alma. Cobrir, no descaminho,
o espírito que a Dor põe ao Corpo.

O corpo padece-nos
na cápsula da Dor,
quanto mais Corpo.
Que eu não abra um
marisco, sem abrir
o mar. Que eu não
capte um inseto, sem
captar o vento. Que
que não aIcancé tua
boca, tangível, sem
arrojar-me contigo,
dorido, ao inacessível.
9

A Ferida, cicatrizada, dói.


A Ferida, curada, dói.
A Ferida - que é uma estampa - dói,
quando as nuvens se acumulam
e prensam a atmosfera de
nossos corpos, suarentos,
necessitados de água, taperas
nos Gerais da Dor. Almas.

13

Não era uma ferida centrada,


mas avançada, balda e todos
os glóbulos estavam impedidos
de repor a costura da pele no
corpo inteiro pungido de alma
privada e quando a carne esfria
permanece o foco aceso, distenso,
a chaga alastrada na deserção.
Uma desagregação sem desintegrar-se,
sem perder o laço com a Unidade
perdida. E dizer-te: meu Amigo
amargo, meu depreciador, comigo
vem ao encalço da mãe comum, à
nascente das tempestades e do
pranto. Denuncia-me com um beijo.

16

Entre nós, há um fogo


aceso que, unindo-nos,
é a nossa separação.
Juntos, nunca somos um;
separados, nunca seremos
dois. Um fogo, a duas vozes.
17

O Amor não há de vestir-me


do nada. Tecerá fio a fio
da brutalidade de meu esboço,
somará as dúvidas, os cerzidos
da pele, as vacilações, a
secura, com seda, fio a fio,
tal o meu corpo glorioso
começará do casulo aberto
de minha carne padecente
e sua coerência obscura.

20

Se eu encontrar dentro
da terra, o seu fogo,
dentro da rocha, se eu
encontrar dentro da água,
o seu fogo, dentro do gelo,
se eu encontrar o fogo em
seu fogo, poderá o cordeiro
alimentar-se junto ao lobo
e o bem-nascido de mim estar
entre víboras, nem que antes
tenha de suportar a privação
do fogo, no fogo, a Dor
sem dor do fogo em cinzas.

27

A alegria tem pontas,


arestas, como luzes,
disparadas de uma estrela.
Mas a Dor é redonda, sem
fagulhas.
O que a alegria dispersa,
a dor recolhe.
Na alegria, as asas
se distendem.
Na Dor, as asas
chegam bem antes
do que o pássaro.
31

Não saciou-se a Dor


com meu viver de Amor.
Quis também que, no Amado,
eu definhasse. Mas morrer
de morte ainda ser-me-ia
desbotado crivo. Ajuntou
que eu perecesse da pior
das sortes: morrer sem
morrer, de amor retirado,
que é a morte de quem fica,
entornado, amando, vivo.

40

Tu não podes arrancar


a dor de quem amas.
Ela é que te arranca
de tuas certezas.
E faz do teu amor
indefesas águas
em tomo a uma ilha.

47

A alegria não desce


nem antes nem depois
da Dor, como as calmarias
que antecedem e sucedem
às tempestades. A Alegria
é da Dor, o centro.

55

O que mais nos fere


é a distância. Essa,
residual, que permanece
depois da chegada
e no encontro. Essa
que é dura, palpável,
dentro dos sonhos
e tão sonho, intocável,
dentro da vida. A Dor,
porém, a interrompe.

61

Quando a sede
for mais além
da palavra sede,
mais além daquele
que tem sede, as
lágrimas irrompem
vindas de toda
a parte do corpo,
de todo vestígio
ele corpo, cavando
sua última e íntima
reserva de água
e assim descem
dos olhos à boca
aberta à convulsão,
dessendentando-a
no próprio pranto.

71

No centro da casa,
uma vertente.
No centro do movimento,
o Avental de minha mãe.
As toalhas não sabiam
secar-me.
Ali comprimia o rosto
molhado de frutas.
Ali acalmava as mãos
interrompidas de voar.
Ali as lágrimas
e toda a trégua.
72

A Dor faz-me lembrar


de minha filiação na
Alegria. Das entranhas
de leite. O meu normal
é a impaciência, mas
freqüentemente repouso
no deslocar dos verdes
ao Maduro. O meu normal
é a morosidade, mas
freqüentemente sou
célere dentro do mel,
implorante e implorado.

78

Qual o desejo de quem sofre


a Dor Geral, a não ser invadir
o desmedido com a parcela que
punge? Pôr asas no aguilhão
que bica como águia na crosta
do sorvedouro? E arremessar-lhe
um diminuto começo de imensidão:
fragilidade com fragilidade.

94

A vida inteira para cantar


o nosso encontro é pouco.
Até o último minuto exaltado
das macieiras em flor, é pouco.
O alento dos antepassados,
soerguido do peito, é pouco.
Nossos cílios ao vento e a
água aceita no sopro, é pouco.
Precisamos nos abastecer também
na Dor e no sofrimento, para
tecer o linho do encontro. E
empenhar também dos campos da
morte a colheita ainda é
pouco o vinho a nosso encontro.

Desiderium Desideravi
(1991)
Primeiro Canto
ÁRVORE

Voei sem saber se eram reais


as asas que me levavam. Mas,

em verdade, fui carregada


para além de meu nascimento

à desconhecida Árvore.

Ter chegado não é bater


à porta da Eternidade.

Ter chegado é quando o Eterno


Vem a nossa casa e vai entrando.

Árvore, o teu rumo está na fruta.


Se, calada, te negares aos ciclos,

o Amor dirá ao mundo que necessito


de tua floração. Eu serei de tua água,

a falta. Se os sonhos quiserem mudar


as raízes, o desejo se cumprirá mesmo

desconhecido, com a mortal tristeza


de não te saberes semeada. Árvore,

deixa-me colher dos galhos vergastados.


Deixa-me aliviar-te do excesso não dado.
Minha pele não transpirou
o que guardava minha alma

e o rosto pouco disse. Mais


dizia um ar de campo
que dentro me percorria,
mais dizia um cântaro

de água mansa que em minha


nuca se inclinava e como

lavava, me vestia. Eis-me aqui


a contemplar-te. Que

esplendor é esse que sai


de dentro da semente?

Eis-me aqui. O fruto mordido


despreende a boca consentida.
Segundo Canto
ÁGUA

Para acender tuas pálpebras,


tive de aceitar-me cega.

Para reanimar tua boca,


estive contigo em tua sepultura

pelo tempo que se leva


para andar uma milha.

Uma semente bem é lançada


quando te cobrir com sua sombra,

um filho tão é nascido


quando te vestir com sua luz,

uma água tal é brotada


quando escutar tua respiração

como um pomar outonal.

Aqui não encontrarás os frutos,


mas as sementes. E elas precisam

de teus rios.

Enquanto dormes, vou clarear


o dia;

enquanto dormes, vou madurar


os olhos;

se acordares, poderei adormecer


de, enquanto dormes,
ser o teu corpo luminoso.
11

O que a minha vida tem


a aprender com a morte:
silenciar. O que minha

morte tem a aprender


com a vida: gerar. Se
não fora o silêncio,

as ondas extravasariam;
os astros sairiam de sua
órbita e as frutas todas

cairiam por terra. Se não


fora o silêncio, as mãos
não tocariam os lábios

onde só o amor põe fartura.

16

Se houver um sol
intenso arrodeado
de sol, é porque
estou, do Amor,
à sombra. Se houver

uma fonte reclinada


na fonte, é porque
estou, em Amor,
imersa. Se houver

silêncio e somente
silêncio do sol e
da água silenciados,
é porque – Amor e eu –
somos boca a boca.
Terceiro Canto
FRUTA

Desejei ardentemente reparti-Ia


antes de ser, pela fruta, arrebatada.
Antes de sua inteira ciência.
A espera foi total amargor,

igual à película ainda verde.


Mas sem o fel que a encobria,
que seria de mim, depois, com
seu amadurecimento em demasia?

É mais fácil ao corpo


do que à alma, tornar-se
espírito. A alma reluta.

Ninguém pode invocar


a água e estar desunido;

ninguém pode fechar o


vento entre as pedras;

ninguém encarcera do
Amor, a degustação.
Quarto Canto
FOGO

Quando o fogo te envolve,


é só dizer: vou para fora.
Isso é nascimento. Quando,

porém, o fogo está dentro,


tudo aguarda que ele queira
abrir-se. Isso é ressurreição.

O fogo gerou o Amor para que


o víssemos. Tirai a vasta pedra.
Ter vindo à luz não nos basta.

Quando vieste, fogo


em seu sol, todas as
coisas tomaram corpo.

Quando desceste, corpo


em seu fogo, em todos
os corpos crepitaram

as sementes. Quando
te ergueste, semente,
corpo a corpo, eram

um só Fogo e em Um,
múltiplos e nominados.
Quinto Canto
LUZ

10

A luz que brilhava em torno,


por mais intensa, era tênue

névoa e assim se dispersava


quando um tal ventre carregou

a Luz incriada. À Luz sempre


apeteceu vir à luz, numa noite

velada, clareando todo o sítio


com um coro de vozes. Ao ver

que o Corpo da Luz crescia,


outra Luz de igual desmedida,

como uma pomba que pairasse


no ar, disse: eis meus olhos.
Sexto Canto
PEDRA

Às vezes, estas raízes


longas, amarradas umas

às outras, em rochedo,

quando me abeiro do ar,


parecem-me um tênue cabelo.

Um fio de nada a desatar-me


e mais arremata a pedra

e a maçã, a pedra do copo


de água, a pedra e a relva

do corpo, a pedra do brilho


dos olhos. A pedra e tudo

acumulado em mais dureza.


A pedra e tudo evaporado

na retina. A paixão da pedra


e minha lenta paixão amadurecida.

A passagem do corpo pela pedra


e a Pedra elevada ao espírito.
Sétimo Canto
VOZ

A copa da voz está


repleta de folhinhas

recentes e borbulham
como o cimo do mar,

ao vento, entre os
cílios alongados. Se

não estás aqui, a quem


dizer que o dia é airoso?

A quem dizer: vem?

Se não estás aqui, a


quem dizer que com

tais cavalos a erva


seca a campina na boca?

A quem repetir adeus?

15

Quando te ouço, em mim,


tudo se triplica.

Uma fonte, em três rios.

Um sol, em três sopros.

Um rosto, em três vozes.

Dentro de um corpo de asas


e uma só alma de raízes.
Oitavo Canto
DESEJO

Alguém que me chamou


e as roupas que eu vestia
e o chão que me sustinha
deixaram de ser meus.

Alguém que me chamou


e o ar respirado deixou
de ser meu e de ser minha
a árvore com seu fruto

colhido e tudo que da janela


avisto ou no coração abrigo.
De meu, comigo andante, alguém
que me chamou, constante.

De que vale tudo recordar,


se nada sei esquecer? O

despreendimento é o único
elo. Deixar o rio seguir

o seu curso e todo o fluxo


que depois vier sempre será

água nova. Essa vela fugaz


enquanto acesa e perene

quando apagada. Levar para


dentro do desejo, a árvore

e sua colheita. Levar para


dentro da árvore, como uma
vela num quarto, o desejo aceito.

12

Quando entrego minhas vestes,


eu não entrego minha pele;

quando entrego minha pele,


eu não entrego meu sangue;

quando entrego meu sangue,


eu não entrego meu espírito.

Meu espírito, ao desejo


de desejar-te, entrego.

E recebo o sangue, a pele


e folhas e folhas de nudez.

15

O Desejo não me quis desfa1ecida.


Recuou até que a fruta estivesse
cheia. Não me quis dentro do quarto.

As janelas escurecidas. Recuou


até a grande planície. O Desejo
recolheu-me ferida e recomendou

ao ar, à água e aos alimentos


do fogo que me fossem benignos
e me fortificassem até que

fôssemos iguais em luz. O desejo


aguarda por minha vida plena.
Epílogo

As vozes não são a Voz.


As vozes, sem a brandura da Voz,
são turbulência na água,
são tremores na terra,
são desvarios do vento.

Deixa-as, passantes,
em seu fulguramento.
Dentro da cava do Desejo,
serás fortalecido de silêncio,
como grãos, sem celeridade.
Vidência e Acaso
(1992)
3

Nunca ninguém viu o Amor.


Mas ele é do Amado, o rosto

acalmado no Amante. Ninguém


sabe de onde o Amor vem

nem qual o seu desatino.


Mas ele é do passante,

a raiz e da raiz, a fuga.

Quanto menos palavras


eu sabia, tinha acesso

ao primitivo luxuriante
e os seres me cercavam

soltos, ao acaso. À
medida em que aprendi

a linguagem, tudo ficou


mais seco e desolado. E

os seres fechados em sua


vidência. Começava o espanto.

10

Chegar a ti que me lês,


foi acaso ou vidência?

Se acaso, serei uma lufada


de folhas do efêmero. Se

vidência, teus olhos serei


entrando na incandescência

de uma árvore na Árvore.


13

O acaso cobria as
asas, mas as asas

não cobriam a Vidência


que voava, pois todo

o dia era um alçapão


e toda a hora era

centelha que o navegava.

17

Vou guardar
um pouco de acaso

para avançar
nas areias

escaldantes
da Vidência.

20

Ninguém impediu que o mar


ingressasse naquele peito.
Como querem, pois, abafá-Io
com a gota de uma laje?

Ir de escuro em escuro,
a saber que estes olhos
carnais, ao término,
contemplarão o Insuportável,

não há acaso que os fadigue


nem vidência que os cegue,
por mais intensa a visão.
30

Mais esplêndido que o nascer


do sol, é o seu esgotamento.

Mais belo que o encher


da fonte, é o seu esvaziamento.

Mais forte que o fogo


dos amantes, é o seu exaurir.

36

Pára, um pouco, a ver


o Amor passando. E mais
cedo levanta, a vê-Io
pousante. Abrindo os

olhos ao amoroso dormente


e cerrando-os, suaves,
quando sentires que,
fitando, te suscita.

E ignora a essa hora,


se é dia ou noite. Se
és nascido ou já morreste.

42

Tu que estás separado


de ti mesmo, pelos acasos,

na vidência encontrarás
tua parte rejeitada, de

roupa lavada, de corpo


aquecido e fome alertada.
45

O meu amor sempre foi maior


que o carecido e meus restos

bem mais alma do que a alma.


Esses que cavalgam. Na infância

pressenti a morte. Na morte,


era tudo infância. Aceito-lhe

o desafio, com sossego sideral.


Aceito a cardação da palavra,

a captar em minha boca a junção


dos rios e eu própria seja-lhes

as margens, a cisura. A pausa.

47

A casa não é somente


a intimidade. Os quartos.
O corpo que se lava,

o amor que o nutre


e a noite que ali recolhe.
Mais é casa as janelas

que se abrem, o arvoredo


que a cerca, as hortas
e cultivos, o poço e

as ervas. O portão sempre


destrancado. E mais é casa
quando vens regressando.
50

Eu sou filha do interior

onde os pães não levedam


com acúmulos do acaso,

mas artesanal virtude


desde a luz do trigo

à luz da fome. Onde a


farinha e a água estão

à flor da pele. Onde não


é o grão que se prepara

para a boca, mas a boca


que amadurece para o grão.

O trigo dali não sobe,


mas desce-entre-nós.

O pão dali não apenas


sustenta, mas profere

a palavra que dorme na


apetência. O pão escuta.

52

Os acasos fizeram-me
isolada, fragmentada,

dispersa. Na vidência,
o mínimo casa comigo

e me unifica, coisa a coisa


e a alma de tantos nadas.
57

No acaso, eu encontro a palavra.


Na vidência, a palavra quer meu
corpo para proferir-me. No acaso,

eu declaro a árvore. Na vidência,


escuto-a dizer-me: Não vinga
jogares um grão de minha espécie

no coração de um sulco. Terás


de ser-me a terra do grão em ti
enterrado. Sem a visão do fruto.

60

Apesar das vagas levantadas


do mar, ao acaso, nenhuma

excede a água em sua bilha.


Apesar do tempo escoado das

ausências, nenhum excede o


instante cochichado ao ouvido.

Apesar dos números, nada excede


a solidão da Árvore que olha.

64

Renuncio à fortuna paterna


dos acasos e deserdada, sem

meios, estanco o pus de toda


a ferida e beijo na decomposição,

o fogo sem chama, a voz sem febre,


da vidência desfalecida de amor.
69

Toda a simetria do pássaro no


ovo; a rugosidade distendida

das asas, no ovo; no edifício


do ovo, nosso vôo reboando.

E mais guarda o ovo, estábulo,


as pastagens que o silvado

descortina. Encolhe os ventos


em sua toca, a retirada de

outra ave que se desfolha.


No alto da Árvore, no cimo

do útero, no casulo do sol,


tépido, a colmo, recôndito.

75

Metade quis ser barca e


navegar na água contida.

Outra quis ser bacia e


acolher a água derramada.

Um lado quis ser cuna e


adormecer quem despertava.

O outro quis ser caixão


e acordar quem se afundara.

A direita quis ser porta


e fechar o que entrava.

A esquerda quis ser janela


e abrir para dentro, tudo
o que fora lhe andava. Não
eram duas faces de moeda

circular que nunca se vêem


por unidas ao contrário.

Eram duas medidas, olhares,


que a separação confrontava.

79

Pedi, então, à Árvore


que me antecedesse na

desolação, nesse lugar


inicial do término dos

dias e lá estivesse,
festiva em suas frutas,

por antecipação à minha


espera. E a ela tomando o

dito ao pé da letra,
sem deslocar-me o corpo,

intensificou o brilho e
substitui-me na tardança.

85

Os acasos não viam


o que ela via. Os acasos,
cujas setas a flechavam,

viam-lhe o corpo,
mas não o corpo
que a amparava.

Viam-lhe as mãos
amarradas, mas não
as mãos que a erguiam.
Viam-lhe os pés
subjugados, mas não
as asas que a levavam.

Viam-lhe a boca
estremecida, mas não
a boca que a adoçava.

Viam-lhe os olhos
vendados, mas não
os olhos que, depostos,

a chamavam e a dor
esposada era-lhe a paixão
de já estar e ir-se,

em Vidência esvaindo,
invadindo a Vida.
Os Cantares da Semente
(1996)
Canto primeiro
A semente em mim

Tudo o que planto


é metade de tudo
o que sou plantada.

O que planto é um
por um: o que sou
plantada é sem conta.

O que planto é semente


comum, em tempo comum,
de acordo com o zênite

do sol, distribuído
em valas e freguesia.
E o que sou plantada

é semeadura especial,
com uma luz fixa e
um barco móvel, real.

O que planto, água


contida; o que sou
plantada é sem lacre,

chuvas, rios, pranto.


O que planto, vejo e reclino,
o que sou plantada me vê

e apura. O que planto,


disperso e colho. O que sou,
plantada, me reúne e cura.

16

Renuncio a tua boca,


para não abdicar da tua sede.
Renuncio a teus olhos,
para não aplacar a tua luz.

Renuncio a que não estejas


neste quarto, à soleira

do imprevisto, a não queimar


tua presença viva no mundo.

24

O perceber que não morrera,


foi-me o primeiro estremecimento
da semente em seu ventre
de chuvas e luz reclusa.

E na decisão de alimentar-me
do não morrer, germinou
esse minúsculo embrião
de eu não ter raízes.

Um pasmo de luz difusa.


Ainda não terei, amor,
descido enquanto não
subir onde desces.

37

A dispersão é o exílio.

A dispersão do corpo
na alma.

A dispersão do sangue
no corpo.

A dispersão das sementes


nos olhos.

A dispersão de teus olhos


quando estás em meus braços.
48
Amar-te tão devagar, amar-te
quietude plena, lenta paixão,
prece ausente de palavras.
Amar-te pausado na epiderme

entre o largo e o andante,


como uma flecha à velocidade
da luz, com o sangue no rigor
da semente, amar-te. Sorvo.

49

Ao desposado do meu corpo,


que me levou, com sua boca,
à semente de todo o fruto,

ao miolo da luz,
à vertente das águas

não lhe serei fiel


até que a morte nos separe.

Ser-lhe-ei fiel até


que a eternidade nos junte.
Canto segundo
A semente palavra

Na semente há muitos e diversos.


Um que lavra e outro semeia.
Um desce e outro caminha.

Um sopra e outro sedenta.


Um ceifa e outro esfarinha.
Tantos que incendeiam e bem

poucos, como eu, simples catador


de lenha. Empilhador de versos
para a semente atear chamas.

Nem aos principados


e potestades foi dado
contemplar a semente
em seu esconderijo
palavra, aberto aos
pastores da noite alta.

11

A semente pode comparar-se


a todas as coisas
menos a outra semente
que traz lume adverso.

A semente pode incluir


os demais seres,
menos o ser dela, submerso.
A semente pode expressar-se

por todas as palavras,


menos pela palavra semente
que essa descerá, verso a verso,
à sepultura do escrevente.

21

A semente era mais real


do que a boca.

Essa em que a fome


persiste após saciada.

Todo domador de cavalos


é um sendeiro indomado.

Todo amestrador de pássaros


é um rouxinol solto.

Todo libertador
é uma semente cativa.

34

Em algum lugar,
tu escreves
e a árvore emerge.

Em algum lugar,
tu cantas
e a árvore singra.

Em algum lugar,
tu amas
e a árvore arrulha.

Em algum lugar,
o semeador escuta a semente
e a árvore pousa.
Canto terceiro
Mãe obscuridade

Mãe Obscuridade, a vida é breve


demais para o assalto, curta
para o escândalo. Apascenta-me

minuto a minuto e ao me desatares


das sucessivas mortes, deixa ainda
na pedra a minha forma, na pedra,

que os olhos amorosos abrem.


Dessedenta-me a face na frondosa
noite e onde eu cair, escava,

até surtir água desconcertada.


Emigra-me naquilo que fico
e aquieta-me no arrebatado.
Canto quarto
A semente em ti

Nenhuma luz, ave, habita


a semente imóvel, em solidão,

mas a semente habita


todas as aves e as move

e as propaga, levíssimas,
que acendidas, deixam-se

pesar e soterradas,
deixam-se ver e tocar.

E apagadas, morridas,
deixam-te luzir e voar.

10

A semente ingressou
na contingência, sôfrega
do teu rosto. Deixa

a incerteza expressar-lhe
asilo. Não interrompas
o orvalho que pousa.

Deixa-te calar a palavra.

15

Se desnudares por inteiro


o rosto, assustar-me-ei

a que estarás pretendendo


interromper nossa intimidade.
A estarmos um com outro,
a face sempre será um mistério
e guardará o seu segredo.

24

Um dia, de súbito,
uma velha camisa
deixada sobre a cadeira;

um dia, de súbito,
a porta estava aberta
desde a véspera;

um dia, de súbito,
ao coração a semente
desce inóspita.

Mas a tristeza,
só a alegria é muito
mãe para carregá-la.
Canto quinto
A semente em nós

Aprende com a semente:


as alturas, contra a esperança,
são afundamento incessante;

a voz, contra a esperança,


um silêncio onde irrompe.
Os mortos não se retiram

na semente. Nós os perdemos


de vista. A semente se retira.
Nós lhe somos a espiga.

Ainda não é pátria nem fé


enquanto não tiveres teus
próprios mortos.

Ainda não é pátria nem esperança,


enquanto não escavares do chão
os seus restos.

Ainda não é pátria nem piedade


mútua, enquanto não depositares
no vazio da morte, o corpo
da semente amortalhada, viva.
Canto sexto
O semeador e a semente

17

Quando o semeador
ergue o braço,
de costas ao astro

nascente, com o grão


a ser disperso, há
três sóis que gravitam.

Há três vórtices,
incandescentes.
Como se dentro

de uma árvore,
num único movimento,
à guisa de fruto,

a pomba e a águia.
Um só panal de mel
nas trevas vistoriadas.

Uma comoção: a luz.

24

Pouco fruto é o que provamos,


sendo intenso o que nos tenta
e com nossa vida se alimenta.

Escassa madureza a inteira;


antes te convém alguns verdes
para a boca dar centelha.

E o fruto do fruto, quando o pastor


deixa-se conduzir pela ovelha.
Caderno das Águas
(1998)
O Sonhador

Caminha o sonhador com o sonho


em frente, guiado e guiante

e por serem constantes, recíprocos,


com sonhar e responder, chegam

a emparelhar os passos e as mãos


darem-se. Se o sonho esmorece,

também aquele nessa trilha já


definha; se o sonho tomba, ali

o sonhador entrega-lhe a vida.


Casos há, porém, que o sonhador

continua com tamanho intento


que o sonho lhe adere, arrastado

ao corpo. E ara e revolve a terra.

O Primeiro Verso

O meu primeiro verso o fiz


a minha mãe quando lhe
sensibilizei o ventre. E ela,

chorando, sentou-se à beira


da calçada, por ser mulher
madura e escassa de tempo

para parir-me. Eu nunca a


surpreendi debruçada sobre
um livro. Ela era, em fainas

de sol e desatado riso, o


Livro. E essa dificuldade
que lhe tenho congênita

em ler poesia escrita,


como os córregos que
não cabem num balde.

O Alimento

Vem da infância, não vir a provar


o pomo caído entre ervas. Na proa
dos verdes, a boca verá o de melhor

ponto. Vem da infância o alimento


sem estocagem. Um figo, da planta
para o cesto, do cesto para a mesa,

é de escasso desejo. Trigueiro entre


folhas, um repente. Vem da infância
a árvore além das cercas, a árvore

não plantada. O silvestre lenho.


A que o pássaro deixou cair no grão
do vôo. A árvore do avaro durante

a sesta. Vem da infância não salivar


perante um prato cheio. Entornar
o recipiente e guardar no coronário

engenho, as frutas ainda madurando.


E saber qual delas a consagrada:
ao texto, tintura e mistura ao sangue.
A Biblioteca

Em minha primeira escola,


havia uma biblioteca
que, sem advertir,

abria janelas aos altos


morros. Nenhum livro,
tácito, dizia-me mais

do que essas janelas.


Nenhum livro, pálido,
punha-me a verdura

dos altos morros.


Nenhum livro válido,
nem o do paraíso,

fazia-me estar
ainda na sala, após
a telepatia úmida

de uma amora, luzente


de um pardal, cativa
de um veio sem remos

ou de um cavalo em
veredas, sem ninguém
ao lobo, embrenhados,

indefesos, nos altos


morros, além da página,
dos currículos e da

íngreme tarefa de
uma leitura silenciosa.
Desde aí necessitei

ser expulsa. Desde


aí essa letra que
destoa e abre asas
em toda fresta de livro.
Desde aí essa tendência
irreparável de escrever

a palavra com grafia


esdrúxula. De ouvi-Ia
com inflexão errada,

de pronunciá-la com
a gíria da pedra na
água e propor sua

claridade com o escuro


das ramadas umas
contra as outras,

a esfolar-me os joelhos
nas rampas e rampas
dos altos morros.

O Poeta Esqueceu-se de Anotar

Um verso não anotado


é um cardume de peixes
solerte às redes e continua

a reproduzir-se no caderno
das águas espelhadas.
Um verso não escrito

é um verso solto, imenso,


uma ave não detida
no cerco pouco do papel

nem saciada com o alpiste


escasso de tua boca.
São plumas que sobem

acima da sonolência,
deixando-te nostálgico
e desperto. Uma ave não
ferida na tinta da palavra
e que ter agradece,
levantando-te ao improvável.

A Cadeira de Balanço

Quando Elisa senta para amamentar


os filhos, o rosto lavado de suor,

a cadeira de balanço amansa as aves


todas que acorrem e bicam o espaldar

entre duas rodas de moinho e bicam


de amoras a alfombra e bicam as

colmeias dos cabelos puxados para trás


e bicam os róseos mamilos empanados

de leite e bicam o fio dos novelos


e carretéis desenrolando-se e caem

entontecidas, contra a vidraça


do gomo de luzes de suas pálpebras.

O Circo

As crianças resguardam favos


de abelha e sonhos atrás da orelha.
As preces milagreiam os jogos.

Cedo, vindo a febre, a constância


do faz-de-conta entorna o real,
transparece a cortina. Eu queria

ser trapezista, vestida de lantejoulas


e vidrilhos. Ave-Maria do equilíbrio.
Cresci; estou no circo. Estou sempre
à beira do salto, sem redes. Ao redor
tudo aquecendo-nos com seu toldo.
O assombro assoprado de cerejas, plana.

O cesto de cacos, retalhos e bobinas


esvazia-se. Tudo na dobra da fronha,
em dobro nas linhas da mão escorregadia.

O voador, trêmulo, aprisionado no minuto


para o gozo de soltá-lo. Tudo escorrendo
pelas faces agora, no trapézio da escuta.

A uma Amiga que Cedo Partiu

Põe teu braço em volta a meu pescoço.


Desço-te do madeiro. Não mais te ouço.
Sobre os joelhos lavo teu corpo combalido.
Retiro-lhe a venda e os laços. Enxugo-lhe

o suor, o latejo das veias nos ouvidos.


O latejo do silêncio nos pulsos. Assopro
o coágulo do coração: as flores caem antes
dos frutos. Envolvo-te em pano macio:

estão vazios os viveiros. Perfumo-te


com erva cidreira: o ramo reverdeceu
entre as mãos. Caminho e te embalo.
Chegaste antes e eu não sei onde

vincarão as rugas a ti assinaladas;


a que lei, com quem, nascerão teus
cabelos brancos? De que ventre
terno principiará a criança que seria

tua mãe? A que lábios entreabertos


o vento carregou teu último alento?
Os minutos estão em fuga, as uvas
estão pisadas. E se conhece no peso

das azeitonas, a oliveira de mais azeite.


Contigo ao colo, caminho. Adivinho
o berço de tuas cantigas. Ao peito
sobe-me o leite com que te alimento.

Um Só Rosto

Eu não quero uma salvação


pessoal. Ou arrombo os céus
com meu bando desvalido
ou serei esse extravio de asas.

Eu não quero uma imortalidade


pessoal. Ou levanto do sepulcro
com a romaria ingente ou
serei esse banimento informe.

Eu não quero uma permuta


pessoal. Ou somos todos
um só rosto ou queimem-se
comigo as inúteis páginas.

A Enxada

Eu amo carpir da morte,


a vida. Na vida, carpir
os abismos da morte; na

morte, as planícies da
vida. Na vida, carpir
o imenso ingressado no

corpo; na morte, o corpo


joeirado na vastidão.
Eu amo carpir teu verdor

das cinzas, o teu sufrágio


das águas. O teu hálito
carpir do peito foragido.
O Sonho e as Viagens

Há os que viajam locomovendo-se


exaustivamente e arrastando pesadas
malas e mapas, com bilhetes e tíquetes.

Arrastando a vistoria do passaporte.


Para eu viajar necessito ficar em mim.
Entrar no miocárdio, sem bagagem,

sem extravio e baldeações. É o ponto


das coordenadas com as estrelas,
a medula das visões, o moinho d’água

do olfato, antes de desalterar-me


em rios e alísios. Antes do rosto
desfolhar-se. Para eu viajar além

das paisagens pálidas dos locais


turísticos, além da rosa dos ventos
murchada pelos cruzamentos aéreos,

além dos pacotes do fastio, necessito


descer ao íntimo e escavá-lo anterior
a meu surgir, a tocar a cálida esfera,

com o estilo da nuvem que me gerou.

O Quarto do Amor

Desde quando amamos


neste quarto, as paredes

e tudo que de sólido o cercavam,


se desfizeram. Desde quando

amamos neste quarto,


nenhum adereço ficou

fixo ou atado, as letras


estranharam-se. Desde quando

amamos neste quarto,


com os remos perdidos

à correnteza de um quarto,
ei-lo aberto ao universo.

Ei-lo, girando, girante,


alto, centeio de mundo

num verso, com a luz


dos corpos consentidos.

Cardado em Flor

O lugar mais sagrado não é


onde nasceste. Esquecendo-o,
as parreiras sopesam. Vê bem
onde morres. Deixa-o cardado

em flor. Deixa com o melhor


de ti, o lugar a seres chamado.
Eu agradeço a todos os que
de uma forma ou outra, bem

ou mal, dialogaram com minha


morte, em resguardo, enquanto
eu madurava e nascia de parto

natural, rompendo-me as águas


do paraíso e cortando de vez meu
cordão umbilical com as estrelas.
A Luz Acesa

Se eu morrer e sair
deixarei a porta destrancada.
Se eu morrer e sair,

deixar-me-ei
solta em páginas
soltas. Se eu morrer e

sair, deixarei a chaleira


fumegando a espera
e a videira cortinando

as janelas. Se eu morrer
e entrar, deixarei a luz acesa
de um livro apagado.
A Migalha e a Fome
(2000)
Canto I
A Lavoura da Fome

A boca ainda não emudeceu


até as brasas para falar.
Os olhos ainda não cegaram

até as cinzas para enxergar.


Nem o fogo consumiu a pele
para que, calcinada, voasse.

Mas escuto, escuto, escuto


com o casulo de seda da surdez,
a leitura ao reverso, da morada

na árvore adormentada,
a ferrugem balsâmica
da faca no fruto esquecida.

Ao entrares em minha escuta,


cuida que ela é viva. E indelével.

se não fora o olor do trigo ceifado.


O olor dos seios apojados

à menstruação dos ciclos.


Para ouvir a lamúria dos

frutos maduros vergando-me


a árvore ou do alimento fumegando

a argila, o corpo precisa livrar-se


dos embutidos livros.

Esvaziar-se das páginas e pétalas.


E chegar analfabeto à morte

antes da mesa póstuma.


Rural. ao arado dos apetecidos olhos.
13

Uma fome que não se veste


de outras fomes, uma sombra
de outras sombras, lacunosa,
que brilha de tão escura.

Não a invadam, não a saqueiem


em seus muros de néctar.
Não silenciem seus olhos.
fora das órbitas de açúcar.

Uma fome nunca escrita


em laudas, nem sequer proferida
ao ouvido. Nem sequer gemido.
Uma fome fora da fome.

Não de carências que essas


se bastam. Ou de cegueiras
que se tateiam. Uma fome
em saciedade de estrelas.

O vazio sideral do estômago


na vacuidade dos signos.
A acuidade cetim do vazio
no arco sobre as cordas.

18

Esbarrei na invisibilidade da
Árvore. E os frutos despencaram

pesados, comestíveis sonhos,


sem origem. Esbarro agora

na visibilidade néon da fome.


Fantasmagórica, pretendo

comer-te, encarnação do verbo,


com meus lábios de névoa.

Eu que dispensei o pão


e os olhos, agora comungo
a escassez. Morrer é dar-se
de alimento. Esgotada a provisão

das bibliotecas e celeiros,


engolida a parda página

dos exauridos proventos,


o fogo alimenta-se da árvore.

25

As árvores ainda não despertaram


e eu como-Ihes os frutos. As árvores
feneceram e eu como-Ihes os frutos.

Tudo o que colherás ou colhestes,


tenho-o na garganta. A estéril me gera.
Alimento-me da ausência das plantas.

Sou a pedra expulsa do ventre da terra.


Uma pedra no descampado, mesa, altar,
entre folhas e urzes. A densidade

que o profundo não mais suportou


e expôs. Um delírio em repouso,
marmóreo, era toda uma história

interior e, de repente, sobejou


do escuro. Fome não escolhida,
acolhe-me a predestinação das raízes

pondo escrita a perder de vista.


E arranca com os lábios as ervas
do transcendente, ruminando-o.

29

Quando lavo o arroz


para o cozimento, dá-me
muita pena dos grãos
que são retidos na peneira.
Prenso-os com os dedos
úmidos e devolvo-os à fervura.
Dá-me lástima dos grãos
que escorrem ao sumidouro,

que se desviam de serem,


da floração, o alimento.
Neles percebo-me ser
mais o que perdi-me,

o que escorri no ralo


de águas da escuta, do que
retive-me na cozedura.
Valha-me, pois, diverso

verbo para suprir-te a fome!


Canto II
A Página Branca e a Migalha

Dentro do mármore,
o volume do dorso.

Dentro da cor,
o volume dos girassóis.

Dentro da agonia,
o volume do arfante.

Dentro da fome,
o poema encorpando.

O volume da tapera,
a página branca e a migalha.

Uma página em branco


nada mais é do que a pele
que necessita ser tocada
para que algo, ou alguém,

desperte. Tanto pode ser


a escama de um peixe
puxando dos rios a inclinação
ao mar ou a penugem de uma

nuca reclinada ao travesseiro,


tépida, como a cútis do pêssego
com o caroço, ou palavra,

incluso. E a mais áspera e dura


epiderme do verbo, leve e sutil,
sem declaros, declarando-te do imenso.

6
O contraponto da página
em branco não é o poema
como o contra ponto da fome
não é o alimento, mas a distância

a percorrer, sem distanciar-se.


A página não garante o poema.
O lugar da pacificação. O lugar
central onde se empilham

as lenhas para o cozimento.


A clareira com murtas em torno.
A nudez com pupilas dilatadas.
Uma caligrafia brusca e o longo

e lento trajeto da migalha guia


com a resistência do extravio.
O hálito mais alimenta o fogo,
além da moldura e a labareda

de várias tintas em torneadura


ao corpo, envoltório da fome
no vazio sacral do estômago.
E se for o poema na página

cunhado, isso não garante a vida.


Tudo é desmemória. Nenhum
resíduo de ar para outro alento.
O poema te exclui das linhas,

de seu covo de fenos e versos.


O crucifixo ao inverso da luz,
com ambos os pés para cima,
no tablado do livro redigido.

Uma página, após escrita,


não é uma soma de palavras
e engasgos, como uma fisionomia

não é uma soma de traços


e lacunas de um esvaziamento
a que possas ver e plenificar.

Uma página branca, após


escrita, é o recipiente escuro
da claridade, uma noite

límpida de nimbos, quando


se condensa numa migalha
e entra em tua boca à espreita.

Primeiro te nutre antes que


a rascunhes. E à medida
que a vestes, aviva-se o tecido

de lembranças e olvidas,
a ser parceira em intimidades.
No início tu a queres, depois

é ela que te busca involuntário


e desnecessária, te contempla.
Só então, a imprimes contra

o peito. Recíproca tatuagem.

15

Antes de escrever a página,


deves decifrar-lhe a transparência.
E deixar que ela te ajude, em sua

textura lívida, a soletrar os astros


embutidos. A clivagem das naus
ao farol da fome. O terrível não

é a página final, sem testamento.


O outro lado do mar apócrifo,
sem bússola. Mas a página inicial

com seu volume de águas represadas.


A inadiável decisão de submergir.
E ao mar físico. opor-se o oceano

interior. Ao perder de vista de


uns olhos marejados, opor-se
a profundidade de um ir a pique.
A página inicial leva-te dentro
da semente. Ela te vincula, acre,
à germinação do vazio. Só depois,

o relâmpago te coloca à superfície.

19

Só a página te dará a saber


que estás despido. Tão penúria
que começarás a revesti-Ia.

Só a página te fará perceber


que estás distante. Tão lonjura
que começarás a visitá-Ia.

E quanto mais te familiarizares


com a página, mais ela te será
um amor escuso, com cadeados

entre as vielas tortas e sua paz


secreta. Com cancelas entre
a querência e seu pampa aberto.

Ela recôndita e real; tu amador,


viajante incerto, trôpego de
propósitos, chegando a parte alguma.

27

Uma migalha não arranca


a fome, mas a preserva
de todo o mal. Uma só
migalha não destapa o sol,

mas o infunde na inquietude,


fagulha tangível chamuscando
os dedos da escrita usurária.
A página arma e a migalha

desarma. A página é a trama


e a migalha, o descampado.
A página é a fatura do real
e a migalha, poesia e sonho.

A página, tu lês e esqueces;


na migalha, és lido e lembrado.
A página prova a si mesma
em tua boca; na migalha, a vida

te prova e se ondula em flor.


Na página, tu escreves e com
carimbo assinas; na migalha,
és escrito, sem mendigar autoria.

30

Que dias difíceis, de escrita


desconexa, esses em que estou
morrendo, sem doença expressa,
sem diminuição, sem sofrença

localizada. em que toda minha


natureza escapa da pedra para
a fisionomia que se quer fixar
em movimento eterno, além

dos jardins que circundam a


profundeza de uma migalha.
E me conforta da impaciência
constante do retorno a casa.

E da constância andarilha,
mais um passo, mais uma árvore,
um rosto, próximos aos ossos.
E o ser interior consente ficar

de fora, de sobejo às mutações,


agasalhado na mendicância.
E a surpresa do ir-me chegando.
Transeunte da eterna narrativa.

35

A fome escrita não é a fome


sem palavras. A fome escrita
necessita da boca discursiva
e saciada de papéis e estilo.

A fome sem palavras necessita


de séculos sem bocas, caniços
em um lago inexistente de água.
A fome, manuscrita ou impressa.

mingua e morde do escrevente


a língua. E sendo literária, tergiversa
o vazio e o cheio do prato,
a cárie ou a obturação do poema

no limite do ventre e do sonho.


A fome literária é vária sem
o substrato da mesa posta,
ao contrário da fome gregária

ajuntando as páginas ao caldo


fervente e do bolo insípido
de letras e papel jornal, engole
o sucedâneo da fruta sem

o sabor, sem os sucos do rosto.


A fome fidedigna jamais leria
o livro da fome escriturada
com coelhos sortidos da manga

ou de uma orelha. Ela o devora.

Canto III
A Colheita do Faminto

A fome não suporta fraudes.


Exclui de si os demais apetites.
Mas não afasta o não-faminto
do faminto que o saliva. Não

afasta o escasso do acúmulo


que o esgarça. Nem sequer
demove o farto do famélico
que o fareja. Juntos atravessam

a ponte dos ais à glória da fome


no aguilhão do umbigo,
agora cajado e depois, cetro.
O faminto atinge o meio-dia

da fome, o meio-fio do nome,


tornando-se ele próprio o pão.
A fome atinge o clímax,
o estuário das águas, em ser

o faminto nela enterrado,


com os guizos e as guirlandas.
A fome não é o texto de cor,
mas o leitor enevoando-se.

10

O lugar do estrito corpo, faminto,


não é a quietação, mas as ondas
oceânicas. Não preenche vazios.
Não entra na herança dos filhos

ou na contabilidade da escrita
alheia. Mergulha, separando.
A pátria longínqua do estrangeiro,
próximo. A fatia do doce opróbrio.

O estranho ao desejo plausível.


A fissura, intervalo entre os rostos.
Porém, o corpo faminto é o ímã
de todo o fruto. É o ímã do sonho.

Em sua órbita gravitam as coisas


imprestáveis e os elementos
levedam encrespados. Uma só
alma faminta gera o corpo do verbo.
13

Eu, a mais faminta, sou o real e tu,


opulência, o embotamento. Eu,
o fruto da luz e tu, o liquidificador

do texto. Eu, perceptível na lupa


de longo alcance, o movimento
estelar e tu, a inércia, amontoada

sobre si mesma. Puxo-te o peso


com minha gravidade. Não hesites
em dar-me o desperdício do perfume.

Cada um tem a dor que merece.


Eu sempre a tenho em gestação.
E a tudo empurro com a barriga.

Empurro-me, esquálida, molar.


Quase não uso a cabeça ou as mãos.
Tudo o que sou gravita em torno

ao concebido. Enxergo e escrevo


com as entranhas. Eu? Ainda não
nasci sobre a página de tangerinas.

21

A fome, como a poesia,


tem três servas: a cega
que a guia, a paralítica

que anda e a ceifadeira


que a colhe do vazio.
Às três pede a graça do

deslugar, o ponto débil


da germinação, uma
invasão ao contrário,

como um firmamento
voando no interior
de andorinhas azuis.

Ou uma fonte, um poço,


indo beber no que tem
sede. E no banquete,

todos entrarão, menos


a fome e as três servas.
E na escritura, todos

serão nominados, menos


a fome. E na vertigem
todos caem, tontos, menos

a fome, trapezista sem redes.

28

Não era a voragem. Não era


a brusquidão. Era um homem
franzino à beira da calçada,
dobrado a um pedaço de pão,

dormido de várias vésperas,


extinto de sabor, em suas mãos
eucarísticas. A posse às avessas.
Todo ele compungido,

convergido e parcimonioso,
ao alimento seco, analfabeto,
original e último, sem cópias.
Nada antes nem depois,

com a gênese e o apocalipse


em refração ao corpo que não
se exercia e nunca fora senão
daquele pão, a boca orante.

Um homem ilhado à lida


de si mesmo. Único acesso
e tudo o mais vagas roçantes.
E no raso, ergueu-se a rocha

do altar e a sagração da vide.


Canto IV
Ode de Amor e Fome

Sonata para piano en dó menor

Nunca me armazeno em demasia.


Como querer que teus olhos
me conheçam e a boca me degustes,

se ainda não assomei de minhas


raízes ao estrangeiro fruto?
Somos a demora entre o amargor

e a prova, uma fome entrelinhas.


E o canto da roca tece-me a nudez
onde os fios de tua precisão

junta-me os pontos de cruz.


Respirar-te é comer à beira
do infinito. Faço a costura,

desfiando-me. Como trabalhar


o poema, se ele continua vertendo?
Como estancar a ferida se ela

permanece purgando? Como


cerzir a distância com o texto
enrugando-se? E da carne

arrancar-te se não te amei de todo?

10

Com o passar dos anos,


minha alma não suporta
grande quantidade de alimento.
Tudo tem de ser moderado,

em pequenas doses, esfarelado,


bem amassado com o garfo.
Uma certa migalha basta-me
por dias e dias, e de água,

o orvalho da cerração entre


nossos corpos. O mais dentro
concebe uma porta abrindo-se
a um quintal nativo adentrado

num poço, onde a sofreguidão


repousa. Saborear o mínimo
é o banquete da fome quase
ilesa, sem acepipes e tira-gostos.

Banho-me com ervas, soltando


os cabelos úmidos de vespas.
Visto-me da seda ainda não
desenrolada dos casulos.

Acendo-me as lamparinas
dos pirilampos nos brejos
para a estupefação, as honras,
do frugal deleitando-se comigo.

21

Quem recolherá o que deixei


de escrever sobre a página?
E secará a lástima não evaporada
dos olhos semi-abertos do abandono?

Quem recolherá entre a grama,


o excesso da doçura, aliviado
sem mãos. do lenho copioso?
E levantará a poesia não separada

de um corpo vencido, mas dela


não arredado nem pela morte?
Quem recolherá a antecipação
do gesto esculpindo-me os traços

como um sopro pondo estrias


à escaiola da fome sobre o rosto?
E provará o sal que ficou sem
o saboreante? Engolindo a luz
que emudeceu os olhos, quem
sorverá o ar remoto que aqueço
pássara, além do vôo? Quem,
amado, me acolherá, amante ágrafa?

25

Elias, alcança-me o quinto


cálice. Os anteriores goles
eram esponja salobra ao desterro

da árvore desprovida de rimas


e colmeias. Gotas do eterno
em desalento e longas barbas

no azeite. Eram passagem e cal.


O quinto cálice convoca suaves
lábios de brisa e aventa verde

a tenda entre os meus braços


amadurecendo a vinha içada
do útero extinguindo-se.

Alcança-me o quinto cálice


e aleitarei ao peito a mãe comum,
desenrolando do avental sobre

as colinas de mel de seus joelhos,


as rolinhas da apresentação
no templo do pão e do convívio.

33

Os famintos de amor
são distribuídos, cristos
bizantinos, em parcelas
de signos e cura.
Os santos pela fome
não querem ir aos céus.
São arrebatados
com extrema violência
e arranhões de luz.
Os bem-amados da fome
não pertencem
à etérea espessura.
São o território
ingente do sublime,
o vaso honorífico
de cascas e zumbidos.
Por isso, Teresinha,
desfolhando rosas,
em agonia murmura:
eu descerei, eu descerei.
A força de não ter força
(2003)
Livro I
Do amado e do não amado

Amor, essa força de não


ter força; essa paz não

dando a paz; esse rosto


incandescente, nunca

lido, que se sobrepõe


aos demais e reluta

quando todos fenecem


e mais se aviva, encoberto.

Amor que ao cobrir-me,


descobria-me e depois,
deixava-me desnuda
aos rigores e desterro;

amor que me nascei


para tão curta vida
e agora quer-me só
em tão largo tempo;

que misturou ao meu


seu sangue e levantou
sem pronunciar-me até
as árvores da solidão;

eis além dos troncos


e folhas, ausente o rastro
e a volta, voltada a mim,
amor na escassez vestida.

O amor não é o pão


que nos alimenta.
Não é a fonte que
nos sacia. Sustenta-nos

do amor, a fome e
o refrigério nos vem
de sua sede, onde
submergimos a que

nasça água esperta.


É possível, então,
atravessar o tempo
na barca do corpo.

O escuro do corpo
dando ao claro, outro
corpo. É possível
atravessar a luz

na nave da alma.
A aurora da alma
alertando à noite outro
fogo. A passagem

do corpo pela alma


dessangra o tempo.
O ingresso da alma
em corpo o abastece.

Amor que tenho não o terei,


se do amor não me ausentar

para ir-lhe os passos apagando.


A chegar a leveza da luz,
preciso do meu inteiro peso.
E a encher os veios da água,

ser-lhe o monjolo e ser-lhe


a fonte nos covos da noite.

Lapido pedra a pedra da


transparência e reúno todas

as forças quando, ao final,


digo-lhe: amor, sou frágil.
Amigo não amado, não sabido,
nunca encontrado, nem sepulto,

quando eu soube que morreste


por mim, comecei a entender a

minha morte e os perecíveis dias.


E tu a redigir-me o abrir dos olhos.

Gosto de ficar nas entrelinhas,


como laranjas que se juntaram
uma a uma rente às cercas.

Nem tudo será transcrito. Algo


tem de ficar intocado. O mosto
do que provas. A palavra contém

 que sobe. O símbolo aprisiona


o rastro. O que afunda não pode
ser consumido. Nem raspado.

Amor, essa antiga e súbita


decisão de plantar uma muda
de jasmim e ciosamente trazê-la

à casa, atravessando ruas e


janelas entre passantes e
intentos, abraçada ao verde

pote, esse casulo de aromas,


sulcando-lhe a fundura junto
ao quarto do adormecer, ao

levante do sol e firmar-lhe


a terra em torno ao caule,
adubando-o e regando a

espera entre folhas mortas


dando lugar às novidades,
com inúmeras primaveras
sem movimento, do tamanho
ao ponto, até vê-lo pesar sob
o presságio dos botões, nada

impede ao fim que um certo


jasmineiro em flor te surpreenda
como o mais puro dos milagres.

Na casa da infância não havia


cortinas, mesmo assim o vento
empurrava-lhes o tule antes

de secar-me a boca. O vento


formigado de prenúncios e
cheiros. Lembrei-me de tuas

mãos tocando-me. Foi em


outra casa? Em outro instante?
Não me percebo antes delas.

Aguardo-as, inclinando-me
a que me sintam, com o peso
de uma cabeça dormente

no regaço. Um peso, um estorvo


desbotado que persiste no
sonho acometido de lucidez.

O primeiro amor não é


a primeira vez. O primeiro
amor é quando sucumbida
reinas com alma e corpo

conjurados e ressurgidos
que o primeiro amor não
é a primeira vez do beijo
que te reporta ao selo

de anteriores lábios desde


onde ficaste adormecida
a seres por irremediável
primeira vez, despertada.
Quando te fechava
em meus braços e
te inebriava a boca,
não eras meu. Ficaste

irremediavelmente
meu, quando te perdi
e consumi tua perda,
querendo-te perder.

És minha perdição possuída.

A tua palavra que foi dispersa,


a recolho e embrulho em meu ser.

Sou o teu livro inédito e tu, meus


escritos
póstumos. Ao escrever em tua pele,

as letras movem-se ao bico da cotovia.


De todas as versões sobre mim,

a única autêntica és tu. Meu corpo


foi corpo diante de tua necessidade

e a alma estremeceu a teu ajuste.


Nessa perseguição, o tempo não

corre e as águas fendem-se


para que passemos a pé enxuto.

Peregrinei no exterior de mim.


Alardeei no convexo de mim.

Retiro-me ao poço onde afundo


léguas até tornar-me longínqua

que apenas uma membrana


separa-me de respirar perto.
Eu queria morrer para salvar
 lugar do amor e o amado

salvou-me do amor. Eu queria


anoitecer para preservar a luz

e a luz arrebatou-me da claridade.


Livro II
A vertigem sem abismo

Amor que me sabe


sem eu sabê-lo.
Amor que me suscita

no que vê sem que eu


prove o visto. Amor
que dentro sou,

sem existir fora.


E me carrega sendo
dele os passos,

o caminho e a chegada,
no comover-me entre
as coisas que crepita.

O amor não me separa


do amor. Pode separar-se
de si em mim, mas não

me separa de mim em si.


Nem que me turve com
sua doçura ou me adoeça

de sua beleza e me ofusque


com rigor, encharcando-me
de seus olhos, o amor

não me separa do amor.

O amor me desapruma.
E eu caio do inatingível
ao nada da precisão.

O amor me lavra e apaga


da autoria, o nome e a inscrição.
Ao desejo, sou transeunte.
De passagem na roupa.
De passagem na cama.
De passagem na página.

De passagem os olhos
e a boca que ele apura.
E esse estar não estando

e o meu ficar, tendo ido.

O fruto do amor é gerar


quem ama. Fora do amor
não há lugar nem tempo.
A vertigem sem abismo.

O amor em si mesmo
é o continente corpóreo
de minha luz vertida.
Não temo pela água nem

pela sede temo de não tê-lo.


Não temo de não ser
nele contida. Unicamente
temo que me seja esvaída

essa indigência em tê-lo.


Não quero em mim sua
plenitude. Ponho no final,
o começo e a vê-lo, anoiteço.

Se te é pouco o meu viver,


dou-te também o não-viver.
O não-colhido do semeado.
O não-saboreado do colhido.
O sabor pleno do arredado.

Se te é pouco o meu morrer,


dou-te também que não morro.
O não-término da vida breve.
A longa vida da não-vida.
O alçado das descidas. O atar
do desatar-se, que o não-viver
lateja nas veias mais vívido
e o ainda não-morrer bombeia
o fluxo para a boca com o olvido
do rosto, no gosto em fuga.

Tenho dois grandes amores:


aquele que amo e aquele que

não amo. Um sustenta-se da


existência do outro. O amado

tem zelos daquele que não


amo, em guarda, à espreita.

E o não amado dá guarida


à intensidade do outro em mim.

E me alivia do tumulto do vinho


nas vides, com olhos de musgo.

Quando escrevo,
não sou um, mas dois.
O que dita e o que redige.

Quando amo,
não sou dois, mas três.
Duas presenças
e uma ausência.

Quando morro,
com os idos e vindos
do instante alvejado,
tríade transbordante,

sou tão só, um.


Elegias à vastidão de um epílogo

Quem ainda me chamará


mulher? Quem
ainda me aquietará,

carne de sua carne?


E será ao nominar-me
mulher, palavra em minhas

entranhas? Quem
eu deixarei viúvo
se não me encontrar,

se não me cobrir?
Quem abrirá os olhos,
as páginas, as mãos,

para tocar-me e suportar


o repartir do pão
e o mover dos remos?
As Sombras da Vinha
(2005)
1

O poeta fecha o ciclo,


deixando o poema inconcluso,
a linha rompida pelas vinhas.
O poema, de um só fôlego
e o vinhador de tantos
sufrágios e sufocações.
Acendia as uvas apenas
com o abrir das pálpebras.
Qualquer cisco e pavio luzia
em sua matéria ardente.
E com a boca umedecida,
vinho, na levedura do lixo,
levantou o pão dos anjos.

A troca de alianças
não se deu ao se darem
mutuamente os corpos,
mas com a permuta
das sombras e a virada
do incêndio em frescor
de uvas nunca pisadas.
O corpo pede água
e queima o aplacador.
A sombra pede fogo
e aplaca o abrasador.

Por que é tão


escura a luz da luz?
Por que só aclara
posterior ao desate?
Envolta em negros
lençóis da semente,
a matéria da palavra
também é luz da luz,
húmus tenebroso que envia.

11

Amar é de alto risco.


Não é a estrela distante,
mas a sua precipitação.
Sem asas, na infinitude.
Sem olhos, na intensidade.
Sem barca, em mar revolto.
Com o êxtase gerando
a profecia rente ao tumulto
de sílabas. Não mais vir
à tona do entranhamento,
tal o vinho que a si corporifica
a cota do pranto dos sonhos.

14

Fazer recuar a morte


não é vencê-la, mas avivá-la
em sua espreita. E dar-lhe
pastoral a fiação do pano
que a trégua garantiu
com a colheita da madureza
de sabê-la leal em ervas
ao pretérito encontro marítimo
de areias malvas. Fazer
recuar a morte é contê-la
na apuração de sombras da vinha.

19

Quero estar rente a tudo,


roçando as vísceras,
cheirando os acúmulos.
Quero apresentar-me
com a cara e as mãos
de quem acabou de fuçar
as hortas. Em desalinho,
em farpas, em suor misturado
aos sucos, com manchas
de frutas que não alvejam.
Os cabelos emaranhados
de folhas e presságios.
As sardas da longa
exposição à inclemência.
Quero ser, da poesia,
o bicho mais bravio.

26

Tantas vezes, incauta,


adormeci sob os parreirais
na mútua transfusão
dos sonhos. Mal sabíamos,
nas tardes mornas, da igual
destinação de meu corpo
e a alma das uvas,
a nos verter em vidros
e livros, armazenando-nos
o sabor além do compasso
da carne, na consumação
do vinho. Mal sabíamos
minha textura efêmera
e as breves uvas que tua boca
nos alcançaria. Mal
sabíamos do vigor acendido
com nossa comum destilação.
E tu vens e te incorporas
com uma lágrima apenas.

28

Depois da labuta cotidiana,


abro o livro das estações
e entre duas páginas brancas
dorme a caneta como enxada
aguardando a propiciação
após as chuvas, a pedir-me
o suor de arar vazios. Ou
uma tesoura para podar
os excessos da concentração.
35

O sumo de toda a lida


é o resumo da vertigem
no cálice. O espesso conteúdo
no continente transparente.
E o resumo de toda a vida
é o sumo da vindima
não colhida das horas,
não vertida do planger
das folhas crestadas, rubras.
O gosto além da sofreguidão.
Algo não debulhado,
não engarrafado. Nunca engolido.

41

Sobre a estopa crua


presa à cinta do vinhateiro,
no ritual do desprendimento
à maceração dos sumos,
aliviados de sua borra,
na estampa que o sacrifício
imprime, não há uma sombra,
mas um rosto; não há uma inércia,
mas um cordeiro a seus campos.

45

Eu não sou o erguido,


mas o madeiro e o tormento.
Eu não sou o descido,
mas a mortalha e o desfazimento.
Eu não sou a eclosão,
mas, da luz, alva paciência.
O que enlaço desfeita,
abro pelo que me falta
ao desejante vinhador
de meu infinito escorregar.
58

A sombra é o verso
da claridade. A maneira
de poetar, ocultando-se
em ramas. Um ventar-se
em arvoredo. E o soslaio,
o deslocamento de hálito,
uma tez, rasga a fresta
e o gemido das vinhas
rompe a resistência do texto.

64

O que escapa ao pensamento


refratário é substância da fome.
A obscuridade cozinha os alimentos.
A sombra da nuvem nos olhos,
a sombra da umbrela nos ombros,
a sombra do tecido colado
à transpiração do dorso. A sombra
da junção das pedras na aba
do silêncio. A sombra do som
na palavra voada. E alçar a xícara
do caldo quente aos lábios,
a sombra do sol em eclipse
na garganta, com a sombra
rendada do xale da avó
que aproveitou a barca
de meu nascimento para partir,
pagando a metade da passagem.

67

Só desejas o que tens


íntimo no gosto. E o procuras
porque o tens sinete lacrado.
E o declaras porque o tens
secreto falante. E sais constante
de ti errante, porque o tens
vinhador buscado, arrastado
a mundos e transmundos,
só ele tenha a ti por achado.

68

No espaço da folha em branco,


não quero que pouse a ave
inadvertida do sonho.
Quero que ali recline a cabeça
do sonhador. No regaço da alvura,
não quero a evasão, mas o singrar
do navegante. Na imensidão
não escrita das uvas, não quero
luz desmedida, mas a caligrafia
rente do sol capturado nas vinhas.

76

É da liturgia do sol
intercalar-se de vinhas.
E dar-me uma trégua
ao visto, com crepúsculos
e paredões. A demasia
da luz tem misericórdia
do texto impronunciado.
O esvair do vinhateiro
em meus pulsos. E sabê-lo
no recesso da vide parindo
e saboreá-la na tez vestida.
Pleno de sua sombra cobrindo-me.

82

Nossa inserção na vide


é onde somos podados.
O alijamento é a adequação
dos sonhos na prole da letra.
Em mim, sem mim, perpassa
a seiva da chama acendida
nos descampados. Em mim,
sem mim, somos dois textos
da voz única, audível. Nossa
inserção na vide nos arranca
da eternidade. E seu verbo
busca-nos as entranhas
para conceber-se carne de
párias finitudes. Nossa inserção
na vide é a foz além das cicatrizes.

86

Entrar em tua videira,


em teu em-ser das coisas
domésticas e o cultivo,
era entrar na fruta.
Riachos de sua textura
visitada e visitante.
Tudo paragem sem declaros.
Ao derredor, aviavam
as chuvas com a designação
dos olhos. Era entrar
em teu livro. Um sólido,
um confim de olvido e grãos.
A deslembrança saboreável.

92

Deixo sair-me, areia ínfera,


o hóspede que me contém.
E o universo insuspeitado
transborda, casa e centeio,
com o soluçante rosto a rosto
do veio rompido. Ser eu mesma
é permitir o desenlace.
A embarcação do amor
em altas vagas e eu ao rés
do limite, firme, de pé,
frente ao mar do mar
de um parreiral maduro.

100
Dentro do coração
há outro coração.
Os gráficos e cardiogramas
só diagnosticam a sístole
e a diástole do primeiro.
Esse não detectado
é o único fatal.
Tanto para o morrer
se o outro continua
a bater em ritmo diverso,
como para o viver
se o outro sucumbe
no mesmo hálito
de paixão. Dentro
da mão há outra mão.
Essa que é distribuição
enquanto a outra
contabiliza. Essa
que afaga sendo
a outra usura e unha.
Essa que escreve
sem autografar, baldo
amor, o que a outra
edita, na inércia,
com direitos de autor.
Dentro da luz
há outra luz
que não se apaga
quando a ele eletricidade
é cortada, quando
o sol transmonta,
quando os olhos gelam,
quando se desliga
a memórias das palavras
e não há, do calor,
nenhum rascunho.
A luz da escura vinha.
O Herói Desvalido
(2006)
Canto 1:
O Cavalo e os Lugares

A esperança é um livro
invisível que toma a letras
à medida que é lido
com os olhos da apetência.

É um peixe transparente
que nos escapa das mãos
de tão liso de escamas
e linhas submersas à visão.

Muitas vezes, ocorre-nos


o fastio, o cansaço de ir
até a última página
úmida por não a prever.

E somos molestados
a redigi-lo, pois não é bom
que se fique a sós com o rosto
secreto, na tarefa diuturna

de fecundar as entranhas
do vazio. Em quando a termo,
sofrer-lhe as dores da ascensão
no face a face com o desejo.

O corpo não tem estabelecimento.


É somente viagem das raízes
às ramas. Viagem das ramas

aos frutos. Viagem dos tombados


canteiros à boca que navega.
E não sendo fixo, indo em dois
na lavoura, um será arrebatado;
um vive e outro falece em ondas.
Hoje levantas do leito do amor,

e amanhã, do leito da morte,


no mesmo puxar. Na estiva verde,
o corpo dos lugares é árvore.

E a árvore tem compaixão do inválido.

10

Ao desvalido não lhe apruma


deslocar o corpo. Cansá-lo
de vários desembarques. Servil
transeunte das imagens prenhes.

Bagageiro dos reflexos duplos.


Quer ficar em corpo. Restar
feno sobre feno. Ser adubo
e raiz. E os ossos no mercúrio

da terra, as cordas vocais no estalo


dos gomos, o coração na ânfora
de anis despertam a emigração
da videira. A lenta marcha do sol

no rubi encravado, na dura chama


do sarmento. Com a salivação
dos afogados sonhos, a exalação
do vinho, o mensageiro do entrante.

14

Amigo tangedor das neblinas,


quantas ressurreições pode
o corpo suportar? Como distingui-lo
primordial ou já usufruindo

o aroma do extremo sopro?


Em sua eira de alentada carne,
o que lavra entre o vagido
da aurora e o suspirar derradeiro?
Da coesa noz esvaziada, oca,
abrem-se as cisternas. E o lugar
da descida novamente entulha-se
de páginas, apenas uma cicatriz.

Do nicho esvaziado, parte


a calhandra alertada. Um rio,
uma lágrima, uma saliva,
esvaziados na dupla torrente.

Uma madureza esvaziada


de pétalas. Um esvaziado
do tremor da culminância.
Que fazer do coração desvalido

que desiste de refazer a pele?


A cortina do sacrifício esvaziada
do mártir. Um vazio encorpado,
de bom teor, bebido até a borra.

15

Ao descer ao raso do interno


poço, percebeu que palpitava
e deixou subir as águas
a transbordarem da pele.

Ao desfalecer, limo, no fundo


da escuridão, percebeu
que cintilava e deixou-se
varar as solidões e silêncios,

alertando dos mortos, as pálpebras,


rosas esvaziadas do perfume.
Só ressuscita quem acompanhou
o próprio enterro antes das exéquias.

Quem é todo poros e junção


presente. Quem não visualiza
o amanhã e nada sabe de eternidades.
Pregado na tábua da brevidade.

18
O meu lugar é onde te esvazias.
Onde te ausentas, entro.
Onde te aquietas, canto.
Onde és campo aberto,
sou terra proibida, inculta.
A cada dia de tua colheita,
sou meio século de aguardo.
A cada progresso, a cada
avanço, marginalizo-me
em bueiros, baldios, fugas
d’água. A fulguração
do relâmpago nos fende.
Canto 2:
Vulnerável é o sítio

Vulnerável é o sítio da alegria.


Há uma dor quente que apazigua
e conforta. Limpa e amamenta
a cria. Em contraponto, a dor fria,

lâmina sem bainha, sem a carne,


em seu vestido metálico, eriçado,
não lavra a palavra nem o pranto.
Consumado o fio da fina chapa,

deixa o desvalido ao relento.


Vulnerável é o suporte de estar
no mundo. Tê-lo encravado
no peito é uma luz refletida

que busca de onde se derrama.


O tempo, enuviamento, segue-lhe
o fluxo, o caminho empedrado
de crânios. Só os animais alertados

percebem-lhe o disparo e erguem


a cabeça no pasto, com o enrugamento
da pele em torno ao papel rasgado.
A camisa endurecida do sangue esfriado.

Tudo o que a vida escreve,


o herói desvalido reescreve,
pondo tinta sobre tinta, extrato
sobre extrato. Não escolhendo

ser herói, mas desvalido,


nada lhe é imune. Se gordo
de valor, apenas a si sustentaria.
Desvalido, a todos vale e suscita,

trinitário: fome, boca e pão.


O herói invicto em si fecha o ciclo,
os gomos contraídos no grão.
O herói desvalido aviva-se

perpetuamente em indigência
e a cada dia, a cada fresta,
perene estertor, vem descido,
vem puxado, sugado em seringas,

das ramas. O herói destemido


tem sela no destemor. O desvalido,
gole a gole do medo e o bolor
da paciência sempre de véspera

não apura galope e vai a pé ante


pé, rente a sua parca sombra,
do desgarrar-se da pedra que rola
e dentro das entranhas, afunda.

Como o declive enxuga a água


para a leitura e o pano enxuga
o sangue para a figura, o desvalido
enxuga as feições que as cunhas

fixaram no madeiro em seu


cardume, nas redes lindeiras.
O herói invicto entra no estandarte,
entra nos espelhos, na alegoria,
entra na fotossíntese e reclames.
O desvalido lacra a visão e apura
o corpo. O invicto é a celada;
o sem valor, o rosto. Aquele

liga; esse desliga. Aquele tece;


esse desfia-se. Aquele, imortal;
esse, agônica eternidade. Sua
economia épica é o irreconhecível;

sua estratégia, o recuo, o recuo.


5

A legalidade do delito sem vestígios,


sem testemunha ou prova circunstancial,
sem a mancha no papel de embrulho,
lhe causa inapetência visceral. O delito

do estômago oco, da boca seca de urna


côdea de pátria. Ele, a proa de uma
migalha.
Rasgam-se toalhas, várias, e cortinas.
E rasgada a pele da vontade, é todo

paixão, asco e santidade. O disforme


é o sacrário da substância. O sol
lateja desalterado. Duc in altum.
A pirâmide inverte-se. Sem o gorjal

da espera, a invalidez é a ponta


de jaspe, o gume do aroma,
o astrolábio da água e o focinho
do cavalo de coalizão com o infinito.

Pode o invicto, entronado,


vir a esquecer de que é um
indigente sob o cetro e a toga.
Mas o indigente, desvalido,

não esquece de sua realeza


cerzida em trapos. Pode
o belo olvidar o fenecimento,
mas a finitude não olvida

a beleza em cinzas. Pode


o vivente obscurecer da morte
a passagem, sendo a morte
o lume de sua escassa vida.

A indigência pressupõe severa


vigilância no sair. Ao inverso
da morada, não tem paredes
e gavetas. É um contínuo esvair.

Antes que a casa afunde


na memória, antes que a pele
afunde nas exéquias, antes
que o amor afunde na paixão,
entra e recolhe o mais valioso:
o inútil. A inaptidão gera
o lugar e o corpo advém.
Ali apascenta as ovelhas.
Ali se compraz de ser exposto.
E desenrola o livro. O sítio
é o suporte da agonia, o madeiro.
A inaptidão abre-lhe os braços.

12

O herói desvalido no descuido


da forma toma corpo. À beira
das hipóteses e projetos, pêndulo,
das divisas e fronteiras, pomo,

um pé dentro e outro destapado


de pátria e cobertor térmico.
E não equivale vivê-la no aconchego
dos braços, sempre outra rima.

E não equivale desnudá-lo


em chumaços de crina, irrefreável.
E não equivale fundi-lo escudo
da vulnerabilidade que nada

sabe de si e triunfa. O desvalido


não é o derramado, mas o contido
em chamas. E não equivale montar
um cavalo apodrecido no caule.
19

Este é o sinal:

nunca acabar
de à porta bater.

Nunca acabar
de a porta arrombar.

Nunca acabar
de ser a porta.

Canto 3:
O Caimento dos Frutos

Vou dedilhar a última corda


do caimento. A harpa da cascata
tangida pelas cores do arco-íris.
Alivio-me da armadura do mel,

o peso do ritmo na frouxidão


do bico, no cair da noite. Caio
da oxidação da luz. Caio do cair.
Desprendo-me do desprendido.

Resvalo da precipitação da cova,


do abismo, da bolsa e do pregão,
do livro que me cai das mãos.
Caio da minúcia e eternizo

o detalhe. Caio da pertinência


e faço-me adubo. Caio do nível
e enxáguo a semântica. Caio
da infecção e purgo a morada.

Caio da coagulação e alivio


o sangue. Sou a isca do cair.
Esgoto a profundidade, sorvendo
do caimento a música e revoada.

Caio do sal e do açúcar mascavo.


Caio do que resta cair. Caio
do lixo para o prato. A última
corda do cair: dar-me de alimento.

O dançarino do vazio
alinhava o vislumbre
encetado em cada risco,
um toldo recamado

de lantejoulas aliviadas.
O dançarino do vazio
argênteo de escamas
abebera-se da inércia.

Dois terços do triângulo


são caimento e o restante,
tragável, graça e expiação.
O desequilíbrio tonaliza

a imersão da luz no lírio


do pântano. O dançarino
do vazio desova a estranheza
da fruta. A estática vertigem.

12

Vou descer os degraus


do seco e luminoso
e, depois de submergir,
continuar a descer
os degraus do molhado
e os degraus da sombra
para levantar a pedra
do intacto rosto amado
que somente a carícia
esculpe, alisando-o
com a paciência das águas.
Nisso serei demorada
para aquém do barco
e o naufrágio da efêmera
carga de sortilégios.
Demorada em submergir.

13

Sou uma queda nula.


Sem redes de proteção.
O desnível do abismo
no corpo. O desnível

da saliva no disparate.
Uma queda na zombaria,
sem compressas de hortelã,
sem as narinas de lídima

compaixão. As demais
quedas tiraram-me
apenas o fôlego. Essa
queda estatelada,

rompendo a beleza
do ritmo e da epiderme,
respinga o doce sumo
de toda uma vida,

por todos os lados,


borrando a estética
e a escrita. Uma queda
de fruto, macerada,

com a ossatura exposta.

Canto 4:
Um Ramo de Alegria

9
A alegria tem a altura
e a largura de um morrer
de amor sem data. E sete
polegadas de terra à sede.

Sete candelabros à nudez.


Sete livros inacabados
às cinzas. Da necessidade
da alegria em eclodir,

da fratura, gemem trigos


da promissão. Não se suporta
de véspera o contrapeso
de um cesto de madurezas.

A causa desse óbito


permanece em seu âmago
e continua manando,
nutrindo as diversas células

do rosto incauto redigindo


as diversas páginas de um
único livro, espargindo-se
múltiplo, gerador indivisível

de luzes em vários timbres.

12

O desaguar da alegria
é o enchimento da matriz.
O cheio está como um soluço
no miolo da luz liquefeita

e põe temperatura à forma


vazante. Sua contextura
abrevia-lhe o contorno
da leitura do rosto reverso.

As mãos vazias da escrita


entornada cevam a morada
do pão. Repõem o hálito
ao elemento aprendiz,
encorpando-lhe o fogo
sob a frondosa ausência.
O vazio, visitado pela alegria,
deixa o verbo vigorar em fruto.

15

Um ramo de alegria nada


é sem a vida donde mana,
mas que videira dá frutos
sem os desvalidos ramos?

Um ramo de alegria fura


o cerco, pondo-se sem esteio,
lança tentáculos e ganchos,
em toda fresta e desvios.

Minguando-lhe o espaço
e a mobília, mais arremata
o toldo e a envergadura.
E mais agarra no arcabouço

do ar, na floração aérea,


sem cotovelo, sem parapeito,
para compor-se em parreiral.
E quando podado no subir

e espraiar, concentrando-se,
esmera em mais frutificar.
Se assim faz um ramo operário,
atenta melhor um alegro,

sem dispêndio, apenas por alegrar.


Só um ramo solto de alegria,
mesmo na dor advindo, mesmo
no corte sem receio, mesmo

a esmo, tempera o fruto,


pondo-o maduro sem demasia
e desprendido donde veio.
Pois um ramo de alegria

nunca completa em linha


reta, mas valsando, em redondel,
ou rendando o fastio ou pondo
letra no vazio, engendrando

a flor que o poema vinha.

Bibliografia:

CARPI, Maria. Nos gerais da dor. Porto Alegre: Movimento, 1990.

______. Desiderium desideravi. Porto Alegre: Movimento, 1991.

______.Vidência e acaso. Porto Alegre: Movimento, 1992.

______. Pequena antologia. Porto Alegre: Petit Poá, 1992.

______.Os cantares da semente. Porto Alegre: Movimento, 1996.

______. Caderno das águas. Porto Alegre: WS Editor, 1998.

______. A migalha e a fome. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

______. A força de não ter força. São Paulo: Escrituras, 2003.

______. As sombras da vinha. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

______. O herói desvalido. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.


UMA LEITURA DE A FORÇA DE NÃO TER FORÇA1

“Tenemos, en cambio, el barroco, constante del


espíritu, que se caracteriza por el horror al
vacío, a la superficie desnuda, a la armonía
lineal-geométrica, [...]. Es decir, es un arte en
movimiento, un arte de pulsión, una arte que va
de un centro hacia fuera y va rompiendo, en
cierto modo, sus propios márgenes”.

(Alejo Carpentier – Razón de ser)

A força de não ter força (2003) configura-se, como as obras anteriores, em torno a
um núcleo central. O fio condutor dos versos é o amor, que ultrapassa limites
convencionais de tempo e de espaço, disseminando a junção de contrários:
sagrado/profano, sonho/realidade, separação/encontro. Dessa forma, o conteúdo imagístico
textual é resultado de um contraste de antíteses semânticas que se coadunam de maneira
relevante em toda a escritura.
O livro possui três secções: “Do amado e do não amado”, “A vertigem sem abismo”
e “Elegias à vastidão de um epílogo”. A primeira foi escrita na década de 80 e, somente em
1996, Carpi agrega aos escritos o segundo segmento. Por conseguinte, a última subdivisão
foi agregada às outras partes com a virada do milênio, em janeiro de 2001. Nesse sentido, A
força de não ter força leva 23 anos para ser concluída e publicada. E, mesmo com tantos
anos separando um segmento do outro, as partes possuem um fio condutor intrínseco
dinamizando o universo textual, que é a manifestação do jogo de contrários, da dualidade,
com o predomínio de figuras como metáforas, sinestesias, hipérbatos, aliterações, antíteses,
descritivismos e rememorações dissonantes.

Do amor

Abre-se o primeiro poema do corpus do livro:

Amor, essa força de não


ter força; essa paz não

dando a paz; esse rosto


incandescente, nunca

1
Capítulo extraído da dissertação de mestrado A Força da Poesia: uma leitura de Maria Carpi, de Valéria
Ferreira de Oliveira, mestre em História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande.
lido, que se sobrepõe
aos demais e reluta

quando todos fenecem


e mais se aviva, encoberto.
(CARPI, 2003, p. 11)

Dividido em quatro dísticos e oito versos brancos, o poema apresenta em sua


abertura o “Amor”, palavra significativa para a compreensão global da obra. Através dela é
que ocorre o desdobramento do poema, pois as atribuições que virão após o termo
apresentam-se como formas díspares de definição do amor, motivo de canto do eu-lírico.
“Essa força de não ter força” é a primeira definição proposta pelo sujeito poético e
alude explicitamente ao nome da obra em questão. Assim, a explicação acolhe um
significado dual, ou seja, a natureza controversa de ter e não ter força. Contudo, os
elementos dispersos no poema não têm como intuito a anulação de sintagmas, mas a
interação dos mesmos, para formar uma rede de sentidos a partir da interação de idéias
antagônicas.
Então, a definição ao mesmo tempo em que afirma, nega o motivo de canto do eu-
lírico e adentra mais e mais em elucubrações díspares, de grande amplitude significativa. O
rosto, metonímia utilizada como representação da estrutura física do ser humano é a única
parte corporal que se mostra, reluta, inflama e crepita, enquanto os demais (pessoas)
sucumbem-se aos poucos. O eu versus o mundo também é um processo ilustrativo da
poesia. O eu-lírico parte de uma percepção individual e comparatista em relação à
alteridade e encontra no individual a força motriz que o impulsiona e o revigora.
Em seu livro Barroco: do quadrado à elipse (2000), Affonso Romano de Sant’Anna
vale-se de fugas e contrapontos para falar da temática central da obra, que é a metamorfose
do quadrado renascentista em elipse barroca. O autor tenta compreender o barroco em todas
as suas manifestações: pintura, ciência, religião, música, literatura, filosofia, guerra,
urbanismo. Dos palácios e monumentos de Roma chega a Minas Gerais, traduzindo uma
visão global e enriquecedora do estilo, que perdura até os tempos de hoje. Nas palavras de
Sant’Anna:

A elipse é barrocamente uma concha. E a concha está na origem


etimológica da palavra barroco, pois é de uma pérola deformada, feia,
irregular, extraída do interior da concha que viria a origem da palavra
barroco, termo que, espiralando semanticamente seu significado,
chegaria às artes e à cultura em geral. Mas há algo intrigante e
aparentemente conflitante entre o sentido geométrico e o sentido
retórico da elipse. Na geometria, a elipse é o excesso de círculos
espiralados e rampantes, que voltam reincidentemente sobre si
mesmos. Na retórica, a elipse é falta, carência e ocultamento. Elipse:
dupla inscrição: excesso e falta. Repetição e diferença. Antíteses.
(SANT’ANNA, 2000, p. 23)

Assim que um tema é lançado, logo surge outro contraposto no poema carpiano, daí
a sedução por paradoxos, repetições e tensões extremas, elementos que estão no cerne do
barroquismo literário. O eu-lírico, portanto, valoriza os extremos, que o levam, muitas
vezes, à perda do sentido de “realidade”, pois o sujeito plenamente apaixonado está em
constante conflito. O eu infere, no poema, que o amor é e não é: força, paz, chama, o amor,
certamente, não é nem um e nem outro, ele é a junção, é o todo dos elementos antitéticos
dispostos no canto.
Então, fulcro das tematizações de um universo pulsante, em chamas, o amor, cuja
desordem de sintagmas a ele atribuída retém o processo cabal das contradições existenciais,
configura-se no motivo de canto do sujeito poético. Assim, através da manifestação do
contraste de idéias e definições, percebo a enfática contribuição dos advérbios ao
desenvolvimento dos versos. O “não” e o “nunca” reforçam a natureza dual da definição do
amor. O “quando” opera como elemento comparativo, o eu versus o outro, e o “mais”
intensifica o avivamento amoroso, todavia encoberto.
Contudo, a vitalidade do sujeito enunciativo está no apercebido ou ainda no
ocultado, pois a chama do amor torna-se mais intensa quanto menos visível. Os versos da
oitava estrofe confirmam o caráter opositivo entre os verbos avivar/encobrir, que acolhem o
fluxo paradoxal, oscilando entre o mostrar-se e o esconder-se. Entretanto, mesmo as
expressões inserindo o contraponto, não são de maneira alguma excludentes, ou seja, uma
completa a outra de forma mútua, pois o jogo de contrários acentua a dependência dos
elementos dispostos no poema. Enfim, à medida que menos se mostra, o rosto aviva-se
mais.
Assim, o amor logra comportar a oposição de pensamentos. A natureza controversa de sua
definição une faces distintas, ou seja, ao mesmo tempo em que os vocábulos se repelem,
atraem-se no corpo discursivo. O amor denota sentimentos inconciliáveis, ou ainda as
contradições presentes na alma humana.
Por conseguinte é válido ressaltar que a lírica carpiana incorpora tanto imagens
pretéritas como se lança a visões futuras. O universo imaginário da poeta caracteriza-se
pela abordagem contrastiva de elementos: sonho/real, eu/outro, separação/encontro.
Contudo o jogo antitético é fonte de equilíbrio e cria o mundo poético. É através dele que as
imagens se formam e ganham amplitude significativa.
Em Carpi a dimensão poética assume contornos universais. O eu-lírico divaga entre
o presente e o passado e, assim, joga com temporalidades distintas, caminhando em direção
ao infinito. Sua linguagem é polifônica, um labirinto de confluências tanto de tempo,
quanto de espaço, em que prolifera a vertigem. A poeta, na encruzilhada de tempos, plasma
em seus versos as reminiscências, como no poema a seguir:

Na casa da infância não havia


cortinas, mesmo assim o vento
empurrava-lhes o tule antes

de secar-me a boca. O vento


formigado de prenúncios e
cheiros. Lembrei-me de tuas

mãos tocando-me. Foi em


outra casa? Em outro instante?
Não me percebo antes delas.
Aguardo-as, inclinando-me
a que me sintam, com o peso
de uma cabeça dormente

no regaço. Um peso, um estorvo


desbotado que persiste no
sonho acometido de lucidez.
(Idem. p. 40)

O poema estrutura-se a partir de cinco tercetos e quinze versos livres. O tom


coloquial e ao mesmo tempo burilado concede a elocução uma cadência sonora própria. A
presença de vogais nasalizadas, ou seja, de sons fechados |a|, |e| e |i| em palavras como:
vento, antes, instante, sintam, dormente, entre outras, no conjunto textual, marcam o drama
existencial do eu-lírico, que busca transcender a outro tempo.
A reiteração do fonema |t| aparece em todo o corpo da poesia, representando a
variação temporal. A aliteração do |t| aproxima-se da movimentação dos ponteiros de um
relógio, que marcam, sobretudo, o passar das horas, o fluxo contínuo da vida. Assim, até o
terceiro verso os verbos no pretérito demarcam o contexto, corroborando as reminiscências.
Logo após há uma quebra e a ação verbal volta-se ao presente “Não me percebo antes
delas”.
O verbo aguardar, igualmente, implica a atualidade dos fatos, sobretudo em
uma ação contínua, que pode processar-se durante um período indeterminado. O eu insiste
em esperar pelo encontro com o outro. Pode-se verificar que as mãos são responsáveis pela
sedução do eu, que se sente inebriado e envolvido pelo toque. Elas podem ser vistas como
símbolo de força, carinho e aconchego.
Nesse sentido, é através do passado que o eu-lírico vivencia e presentifica suas
inquietudes. O instante fugaz é apreendido pela recordação do toque de mãos e daí advém
os questionamentos que perpassam a esfera textual. O sujeito enunciador só se reconhece a
partir do encontro com outra parte corpórea que não é a sua. As mãos acometem a
lembrança, preenchem o espaço pretérito e redimensionam os momentos por vir. Octavio
Paz, ao referir-se ao instante, afirma que:

En cada instante quiere realizarse como totalidad y cada una de sus


horas es monumento de una eternidad momentánea. Para escapar de
su condición temporal no tiene más remedio que hundirse más
plenamente en el tiempo. La única manera de vencerlo es fundirse
con él. No alcanza la vida eterna, pero crea un instante único e
irrepetible y así da origen a la historia. (PAZ, 1986, p. 191)

A idéia de instante, e não de um estado de longa duração, surge de uma determinada


disposição anímica do sujeito poético. A poesia é a expressão de um instante fugaz, que
somente é possível de ser registrado através da palavra. Com isso, o leitor, entra no clima
do poema e reedita a mesma disposição interior do eu, já que é “un instante henchido de
toda su particularidad irreductible y es perpetuamente susceptible de repetirse en otro
instante, de re-engendrarse e iluminar con su luz nuevos instantes, nuevas experiencias”.
(Idem. p. 187) Em virtude dessa reedição, o poema é sempre algo presente e isso o faz
escapar do transitório, do contingente, transcender o tempo e o lugar em que foi escrito.
Então, os questionamentos da poesia carpiana perpassam o literário “Foi em/outra
casa? Em outro instante?”. As inquietações trazem à tona a descoberta da condição do eu-
lírico, ou seja, a de não pertença ao mundo antes de ser tocado. Por um momento o sujeito
poético apreende o passado “Lembrei-me de tuas/ mãos tocando-me”, que acaba se
revelando como um processo de autoconhecimento, mas de duplo sentido, ou seja, ao
mesmo tempo em que há o devaneio, o sonho, a rememoração, o sujeito é acometido pela
lucidez.
Em suma, nos versos finais desvela-se a antítese, isto é, o jogo sonho/realidade. No
momento da vertigem tem-se a oportunidade de escolha: afastar-se do devaneio ou
entregar-se ao êxtase inumano, porém a decisão do eulírico une os dois elementos, o onírico
e o real.
As duas estrofes finais não respondem as inquirições, contudo revelam a natureza
ambígua do pensamento lírico. Sonho e lucidez convivem em um mesmo patamar e
convergem à espera. Assim, o passado redireciona o presente e, apesar dos instantes
memorialísticos serem fugazes, os sentimentos são duradouros, interferindo nas reações
futuras. Como pode ser constatado, as lembranças transcendem o mero registro factual, isto
é, marca o presente e o futuro para sempre.
O poema a seguir também problematiza o aspecto temporal, porém concede-lhe
outros contornos, que não o das recordações:

A tua palavra que foi dispersa,


a recolho e embrulho em meu ser.

Sou o teu livro inédito e tu, meus


escritos
póstumos. Ao escrever em tua pele,

as letras movem-se ao bico da cotovia.


De todas as versões sobre mim,

a única autêntica és tu. Meu corpo


foi corpo diante de tua necessidade

e a alma estremeceu a teu ajuste.


Nessa perseguição, o tempo não

corre e as águas fendem-se


para que passemos a pé enxuto.
(CARPI, 2003, p. 47)

Poema marcado pela forte presença de pronomes possessivos: “tua, teu, meu(s)”,
disseminados ao longo do corpo discursivo, que implicam não a posse do sujeito
enunciador, mas sua possessão pelo ente de adoração e veemência. Também nos versos os
pronomes pessoais do caso reto “eu e tu” interferem visceralmente na trama textual,
evidenciando ambos um contraste de desejos e submissões.
O verbo “ser” também tributa para a revelação dos anseios poéticos. As flexões
verbais “sou/ és” ratificam que a primeira pessoa do singular no discurso é o
prolongamento do tu, é o rosto submisso que encontra na alteridade as mais diferentes
formas de perpetuar-se. Nesse sentido, o eu possui várias faces, fragmenta-se em distintos
“eus”, contudo suas máscaras brotam da necessidade de querer ajustar-se aos propósitos do
amado “De todas as versões sobre mim, / a
única autêntica és tu”.
É possível dizer ainda que a estruturação das orações tem a segunda pessoa do
singular como sendo causa oracional e a primeira como conseqüência dos próprios atos, já
que a persona poética molda-se a partir do outro, condicionando suas atitudes e afirmações.
O tempo também sofre alterações impostas pelo sujeito lírico ou ainda, serve como
objeto de manipulação. Dessa forma, há por parte da poeta a intenção de reter o fluxo
contínuo da vida. Há então, por isso, a negação do fluir temporal “Nessa perseguição, o
tempo não/ corre”.
Negar a condição inexorável humana fornece ao eu um local de proteção inóspito,
que corresponde à necessidade de perpetuação do encontro. Buscar outro lugar que esteja
fora dos limites convencionais exprime por um lado estar longe do mundo e um encontrar-
se com o ser que ama, já que o contexto dos versos implica o desejo irrefutável de doação,
somente corporificado quando o outro se realiza em sua plenitude.
Em síntese, os três poemas transcritos anteriormente pertencem à primeira
subdivisão do livro A força de não ter força. A parte “Do amado e do não amado”
aracteriza-se por dar vazão intensamente ao jogo de contrários quando tenta definir o amor
em sua amplitude e complexidade semânticas. Por vezes, também, aparecem as recordações
da infância, a busca pelo passado, a descrição do primeiro amor, que não necessariamente
significa ser a primeira vez que se ama. Em suma, o eu-lírico dissemina seu canto
polarizando sentimentos destinados ao amado e ao não amado, pois este ensina a morrer e
aquele destila o aroma da vida.

Da vertigem

A voz carpiana em ação dissemina nos versos o caráter sensitivo, o som, os acentos,
a luz e a verticalidade:

Nós sempre amamos na penumbra.


Antes da aurora abrir, antes da noite
cobrir. O sol a pino incluso nas veias

que latejam a claridade como rios.


O dia para nós é desenlace; o acalanto
da noite, desenredo. Antecipamos

as estrelas, antecipamos o frêmito


morno das sementes. O fermentar
do maduro no corpo da nudez
claro escura, os vieses da seda
na aspereza, inteirados do nosso
vir a desfalecer da visão recíproca.
(Idem. p. 69)

No poema, junto da expressão de amor à natureza e da acentuada vocação de terra,


presente em imagens vegetais, a poeta mostra um intenso contraste entre
sombra e luz, noite e dia, buscando explicar a ocorrência do amor entre os amantes, ou
ainda, a maneira como nós amamos.
O eu-lírico, então, manifesta seus acometimentos através do pronome “nós”, voz
que redimensiona o processo de canto, pois o eu representa a fala do todo e não da parte.
Então, o sujeito da enunciação através do individual expressa as emoções coletivas,
complexas e antagônicas.
A poeta é a voz de todos e a sua própria voz. O ser ao mesmo tempo é uno e dual,
representa o todo, porém é um só. O sujeito é múltiplas vozes em consonância, movimento,
tensão, por conseqüência, o amor transfigura sentimentos cambiantes, ímpares, um
constante ir e vir no duelo incessante de seus paradoxos.
A construção do discurso amoroso tem como premissa as fases distintas do tempo.
Primeiramente, existe a descrição da aurora, minutos antes do amanhecer e significa o
despertar da paixão. Depois vem o dia, que nasce com sol, latejando, queimando a claridade
e já não se pode mais escapar ao amor. Logo, os amantes antecipam as estrelas, à noite, pois
ela é aconchego, desfecho, encontro, sublimação.
Cada acepção conota o amor em seus diferentes estágios. Por fim, os desalinhos e as
incompletudes dão vitalidade à vida, mesclando o claro e o escuro, o macio e o áspero, o
desfalecer em meio ao turbilhão de sentimentos divergentes, recíprocos e avassaladores.
Na poesia de Maria Carpi triunfa a espontaneidade, através da inserção do coloquial
e do familiar, que dão ao texto uma grande amplitude comunicativa. Ao mesmo tempo em
que evidencia o espontâneo nos versos, trabalha com a autoreflexão, todavia, com o
questionamento individual/coletivo e o jogo com aspectos temporais da condição humana,
elemento que comporta e a consciência da finitude das coisas e o temor, como se pode
apreciar neste poema:

O fruto do amor é gerar


quem ama. Fora do amor
não há lugar nem tempo.
A vertigem sem abismo.

O amor em si mesmo
é o continente corpóreo
de minha luz vertida.
Não temo pela água nem

pela sede temo não tê-lo.


Não temo de não ser
nele contida. Unicamente
temo que me seja esvaída
essa indigência em tê-lo.
Não quero em mim sua
plenitude. Ponho no final,
o começo e a vê-lo anoiteço.
(Idem. p. 81)

Musicalidade e ritmo são elementos que funcionam em consonância no discurso carpiano,


sobretudo compartilham a dimensão metafórica e o toque formal, o desvelamento desse
discurso. Observo então, nos quartetos, que a poeta percorre
o caminho da música, manipula os sons através da reiteração fonética |m|, |n|, repetições
que destacam em toda a extensão textual o vocábulo “amor”, que parece repetir-se
constantemente, vivo, intenso, pulsante. Então, a aliteração entre os fonemas |m| e |n|, cria
uma cadência sonora significativa para a compreensão global da escritura, já que o amor se
propaga como foco expressivo enunciador.
Logo após ressaltar que “O fruto do amor é gerar/ quem ama”, o eu-lírico adverte
que fora do amor não existe lugar, nem tempo mas sim uma linha tênue, dissonante, entre
ter vertigem e não ter abismo. “A vertigem sem abismo” adquire dimensão maior no
tocante à pluralidade semântica, pois caracteriza o ato amoroso como um sentimento
complexo, por vezes antagônico, que ultrapassa o particular e atinge o universal. Nesse
sentido, o amor na poesia é visto como forma de experiência, observação, conhecimento de
si e do mundo.
O sujeito poético, contudo, não deseja a plenitude amorosa, porém a eternidade do
sentimento. Por isso, existe o temor do desgaste corporal, do físico, da matéria. A
grandiosidade do medo encontra-se na transitoriedade da vida, no inexorável e tênue
exercício de viver. O eu não teme a sede nem a água e muito menos o amor desmedido,
imensurável; o medo, certamente, está no transitório, na existência que se esvai aos poucos,
incessantemente, sem trégua e encaminha-se à morte.
Para alargar os dias existe a manipulação da sucessão temporal, ou seja, há inversão
da ordem cronológica dos acontecimentos. A tensão subjacente a partir do contraste entre o
mortal e a busca pela imortalidade, leva o sujeito enunciador a inverter os sintagmas e
colocar no final o começo das coisas “Ponho no final,/ o começo”. O eterno retorno é marca
dessa poesia, pois as forças corrosivas do tempo provocam o desgaste, entretanto o ser roga
o eterno para que a condição amorosa lhe seja perpétua.
Nos últimos versos, a partir da imagem construída “a vê-lo anoiteço” pode-se
apreciar que o eu utiliza uma forma verbal distinta, anoitecer, dificilmente ou quase nunca
conjugada em primeira pessoa do presente para evidenciar através da comparação com a
noite seu setimento de mundo. É preciso assinalar que o eu só anoitece em si mesmo
quando retém a figura do ser amado, pois a imagem do outro se propaga como alento em
meio à angústia da consciência de passagem do tempo.
Então, o eu-lírico diante da passagem implacável do tempo, utiliza a antítese fim e
começo para constituir um novo caminho que não àquele preso ao efêmero. A imagem
poética compõe a inversão do processo cronológico e ressalta através do paradoxo
subentendido: morte (fim) e vida (começo) a ruptura com o desfecho adjacente, ou seja, a
busca pela contenção temporal.
Ao discorrer sobre as modalidades do imaginário propostas por Jean Burgos, Ana
Maria Lisboa de Mello explica que as leituras possíveis do texto decorrem das estruturas do
imaginário do leitor, o qual seleciona e dá existência à pluralidade interpretativa do
discurso. Entretanto, a leitura não é indeterminada, ou seja, existem esquemas que guiam o
processo textual e o leitor é o responsável por atualizar o potencial do texto. Dessa forma,
as linhas de força oportunizam respostas às indagações humanas sobre o sentido do estar-
no-mundo e a temporalidade. Sendo assim, as formulações são ilimitadas; contudo Burgos
delineia três posturas em relação à passagem tempo: a de revolta, a de negação e a de
aceitação.
Essa tríade, portanto, irá evidenciar três modalidades de estruturação dinâmica do
imaginário, que são: a de conquista ou regime antitético, a de regime eufêmico ou de
negação do tempo e a de progressão ou regime dialético. Nesse sentido o texto carpiano
sintoniza-se com a primeira modalidade em questão e, de acordo com Ana Maria Lisboa de
Mello,

A conquista responde ao sentimento de revolta diante do trânsito do


tempo e da degradação que engendra. Essa revolta é a manifestação
de uma tendência orgânica que refuta a finitude, neutralizando a
angústia gerada por ela. (MELLO, 2002, p. 100)

Assim, a escrita de revolta busca deter o fluir temporal e o discurso do eulírico intui
a postura de dominação do tempo. O eu burla as dinâmicas começo e fim, colocando em
relevo apenas a primeira. Recomeçar propicia o despertar de um novo amanhã, o renovar
do amor e da própria existência.
Carpi joga com os tempos presente, passado e futuro, colocando-os em intensa
conexão. A subversão temporal invade a poesia carpiana constantemente. A sucessão dos
acontecimentos parece suceder fora dos limites temporais:

Ocorre que eu já bebera


da água quando afundei
nos vãos para encontrá-la.

Ocorre que eu provara da


fruta quando a traduzi dos
olhos, a sorver-lhe a delonga.

E antes de varar os montes


para ver-te em mim vertido,
me houvera adormecido contigo.
(CARPI, 2003, p. 97)

O paralelismo aparece de forma contundente nos dois primeiros versos, tanto na


estruturação frasal como nos modos verbais utilizados pelo eu-lírico para expressar suas
ações e sentimentos. O termo “Ocorre que eu” rege as sentenças e manifesta a revelação
factual, em que a primeira pessoa do singular aparece como agente e sujeito dos próprios
acometimentos.
Primeiramente, água é utilizada como lenitivo para aplacar a voraz sede de amor do
eu. Dessa forma, a ação praticada ocorre antes do ato de transpassar o limite corpo-água,
pois o verbo “bebera”, no pretérito mais-que-perfeito, submete o entrecho ao contato com o
passado antes do próprio passado, pois afundar é uma ação posterior ao beber. Cortando
visceralmente o pretérito através dele mesmo, a poeta manipula os mecanismos da sucessão
temporal, que se esvaem para dar forma ao cenário, impregnado de imagens escorregadias.
Dessa forma, fica o leitor obrigado a decifrar as elucubrações, se o mesmo quiser fazer
parte desse mundo, que delineia os sonhos e marca profundamente a vida.
Essas imagens impregnadas de sensações que permeiam o texto marcam
intensamente o fazer artístico, pois a dimensão literária sugere a vida, desperta um novo
mundo dentro de cada um de nós, sendo essa nova instância imagética produto de uma
disposição anímica, de um estado momentâneo e fugaz, reeditada quando o leitor estabelece
uma interação em profundidade com a escrita.
Do mesmo modo, se sucedem os versos do segundo terceto, inebriados agora pelo
provar da fruta. Contudo, a prova do fruto ocorre antes do mesmo receber o olhar de seu
admirador. Certamente a observação deveria perenizar a idéia de contato com o objeto
(fruta), pois seria o olhar o responsável pelo acometimento da aspiração em relação ao que
se deseja. Porém, a idéia primordial, a visualização do objeto de desejo é refutada, já que o
eu-poético ignora a sentença de olhar o objeto que aspira para depois saboreá-lo.
A lírica carpiana tanto incorpora imagens pretéritas como se lança a visões futuras.
O universo imaginário caracteriza-se pela abordagem contrastiva de elementos:
sonho/realidade, eu/outro, separação/encontro. Contudo o jogo antitético é fonte de
equilíbrio e cria o mundo poético. É através do paradoxo que as imagens se formam,
ganham amplitude significativa, estando sempre no centro dos versos a alegria. Nesse
sentido, a imaginação forma imagens que ultrapassam o real e a poesia é o vetor que suscita
tais imagens:

A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar


imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que
ultrapassam a realidade. É uma faculdade de sobrehumanidade. Um
homem é um homem na proporção em que é um super-homem.
Deve-se definir um homem pelo conjunto das tendências que o
impelem a ultrapassar a humana condição. [...] A imaginação inventa
mais que coisas e dramas; inventa vida nova, inventa mente nova;
abre olhos que têm novos tipos de visão. (BACHELARD, 1997, p.
17-18)

Portanto, o poema potencializa as imagens e é através da palavra poética que o ser


humano dá vazão ao tênue, ao fugaz. A imaginação ultrapassa o real-empírico e forma
visões imprevisíveis. A manipulação temporal, presente na poesia de Carpi, dinamiza
mundos e dá sentido à existência e, nessa direção, os devaneios surgem como possibilidade
de revelar o mundo e o ser humano.
Assim, o universo poético de Carpi é prenhe de possibilidades, pois incorpora o
contraditório, o tempo em mutação, o impasse do ser em relação ao objeto desejado. Em
seu discurso o poder da imaginação rompe os limites convencionais de tempo e espaço. A
antítese, a disjunção, o paradoxo, constituem o cerne da lírica carpiana, repleta de imagens
dissonantes, unidas pela semântica dos contrários.
É possível visualizar-se ainda, no sexto verso, um processo de inversão sintática,
que além de enfatizar o verbo no infinitivo ocorrer, coloca-o como foco da expressão e não
o sujeito eu como princípio ordenador, a fim de formar uma unidade de sentido com o
restante dos elementos, que encerram a idéia de tempo passado.
Logo a seguir, o advérbio de tempo antes, nos três versos finais, desempenha a
mesma função de ocorrer, verbo que corporifica, nos outros dois tercetos anteriores, a idéia
de passado e, por conseguinte, torna a ação de adormecer anterior à tentativa de ultrapassar
os montes. Assim, a posse do amado concretizase antes do eu ultrapassar os montes, pois a
busca incessante pelo outro evidencia que, mesmo antes do encontro, o sujeito enunciador
já havia transposto os montes para adormecer ao lado do amado.
Versos essencialmente centrados no outro, desencadeando um conjunto de ações,
que propagam um mundo paralelo, porque constroem planos além do concebível aos olhos
humanos, porém não aos olhos de quem ama. O poema perfaz um jogo temporal intenso,
deslocando a visão futura ao passado, o presente antes do passado, o passado futuro anterior
do mesmo. Com isso, passado, presente e futuro mesclam-se sem denotarem momentos
conflitantes, enfim, juntam-se para dar vazão à experiência onírica, de devaneio, criada pelo
sujeito discursivo, que está disposto a reordenar o tempo para partir ao encontro do amado.
“A vertigem sem abismo”, segundo canto de A força de não ter força desdobra-se a
partir de um jogo intenso de temporalidades. Passado, presente e futuro se entrecruzam,
misturam-se, através de um intenso jogo do ir e vir de tempos distintos. O eu-lírico em seus
escritos aponta a fugacidade do tempo, a brevidade da vida. Contudo, não aceita a
passagem temporal de forma pacífica, corporificando o desejo da inversão cronológica dos
instantes “Ponho no final,/ o começo e a vê-lo anoiteço.” e, conseqüentemente, sua
anulação. Sant’Anna, acerca do sentido especial do tempo barroco, declara:

Enquanto a estética renascentista é mais uma estética de espaço, do


aqui e do agora, e as linhas tendem geométrica e terrenamente para o
infinito atrás dos pontos de fuga, a estética barroca é mais temporal e
ocupa-se elipticamente da eternidade. (SANT’ANNA, 2000. p. 137)

A temática do tempo é elemento motriz da poesia carpiana e representa, sobretudo,


o desejo do infinito e do eterno, que se materializa em inversões e anulações temporais,
pois o que se espera é a duração contínua dos sonhos e paixões, posto que é o amor o fio
condutor da obra A força de não ter força.

Da vastidão

Os caminhos trilhados pela poeta percorrem fugas e contrapontos, através de um


jogo de dúvidas e incertezas bem próprias do estilo barroco, como se pode apreciar no
poema a seguir:

Quem sofrerá a leveza


de meu sangue nas
artérias do vento,

com focinho de barca?


Quem eu absolverei
da expulsão do éden

com meu jardins


e córregos? Quem
olhando-me, surpreenderá

sua solidão em mim


banhar-se, mais tarde
na epiderme, mais

tarde no enredo?
Quem, esse alguém,
me chamará mulher,

clareando os sentidos
e antecipando a si mesmo
a pronúncia das ondas,

na coincidência da luz
e das sementes e tomará
corpo, dando-me corpo?
(CARPI, 2003, p.104)

Essas perguntas insistentes pairam em todo o processo textual. Em busca por


repostas, o eu-lírico passa a inquirir sobre sua vida, seu amado e o que lhe espera
futuramente. O amor, por sua natureza complexa e antagônica, desperta incertezas e
aflições em relação ao futuro, por isso as indagações do sujeito poético persistem.
Noto, igualmente, que os verbos no futuro do presente do indicativo “sofrerá,
absolverei, surpreenderá, chamará, tomará” são dinamizadores do universo textual, já que
reforçam as indagações, à medida que o sujeito é sucumbido pela ânsia infindável de
perguntas e contradições.
Dessa forma, o eu presentifica os anseios que lhe importam. Acima de tudo constrói
imagens desestabilizadoras, que unem elementos insociáveis “artérias do vento”, “focinhos
de barca”. Assim se pode dizer que o último canto, “Elegias a vastidão de um epílogo” é
prenhe de associações insólitas. São representações decorrentes de uma disposição anímica
envolta em indagações, muitas vezes, incompreensíveis, ou ainda, as inquirições revelam
imagens dissonantes, as quais não traduzem uma explicação da lógica formal.
Através de um jogo de associações, o discurso problematiza a solidão, o amor e o
embate entre os pólos conhecido e desconhecido. Nos dois versos finais o sujeito poético
implora para esse alguém tomar forma, corpo, pois somente o amado/desconhecido poderá
compor sua vida e alargar sua história.
As inquirições, feitas pelo eu, contribuem a sua própria descrição:

Quem, ninguém,
reunindo partícula
a partícula, da poesia

que sou, dispersa


e avulsa, em todos
os poros e pigmentos,

em declives e cacimbas,
nas juntas e artelhos,
me inscreverá mulher

e iniciará da vida
a litania, pertencendo-me
com o carmesim

dessa aurora, dessa


posse despossuída, a romper
as ânforas da escrita?
(Idem. p. 106)

Os versos trazem as repercussões da fragmentação interior do eu. Assim, o poema


abre espaços para o sujeito lírico dispersar suas angústias e paradoxos. Pode-se ainda dizer
que o descentramento do eu acontece à medida que sua vida sofre a interferência do outro
e, dessa forma, o universo multifacetado, caracterizador da cultura da alta modernidade,
ganha forma. Do contraponto fundado na antítese e no paradoxo.
Assim, cada pergunta leva a outra mais intrigante e o pronome interrogativo
“Quem” é o mantenedor da aura de mistério, angústia e fascinação identitária. É através da
reiteração do “Quem” que os poemas se desdobram em um processo notável de antíteses,
hipérboles e ambigüidades.
“Peregrinei no exterior de mim./ Alardeei no convexo de mim.” (Idem. p. 57)
também são versos que disseminam uma existência fragmentada, desagregada e
contraditória, pois o olhar sobre uma face convexa reflete a luz e diverge os raios em várias
direções. Sem ter um ponto fixo que una todos os raios, o convexo distorce a imagem, para
corporificar a multiplicidade do ser. Assim, a face convexa estabelece a diversidade, a
fragmentação, a perda de unidade do sujeito e do mundo.
Os questionamentos, mais do que as frases intercessoras ou suplicantes, são matéria
fundamental para o eu-lírico falar do mundo e de si mesmo. A poeta vale-se da imagem “da
poesia/ que sou,” para negar a natureza humana finita. A poesia, por ser eterna, paira acima
do contingente, escapa ao passageiro. Por isso, ser poesia é perpetuar-se continuamente, é
ultrapassar épocas, gerações, é driblar a própria morte. A poeta sendo poesia reclama para si
o eterno.
Assim, o canto final não delineia respostas e abre-se a um manancial de
questionamentos, que convergem para um único vocábulo, “Quem”, que articula todos os
poemas da última divisão. Cabe, então, ao leitor reflexionar tanto sobre a temática amorosa,
que perpassa todo o processo textual da obra A força de não ter força, quanto sobre a
poesia, pois ao penetrar no reino das palavras, a poeta descobre-se sendo poesia e sem
respostas definitivas:
Ao me chamar mulher,
quem ainda gerará
o abismo e ao propor-lhe

o sintagma “minha”
quem será vertigem
e a precipitação ao alto

silêncio? Um filme
para trás, um retrós,
com o cabelo preso

à nuca e o suor, o suor


de um réquiem sem agonia
das árvores, fecundando

o ar e o fogo de esferas
vagantes. Ao me chamar
mulher, casulo desfeito

contra os muros de pedra


e as vinhas, alertando
pombas e caracóis

no pasto e o sangramento
das ovelhas na roca
da fiação do verso,

quem, pastor de minhas


sombras reunidas,
quem, orvalho de meus

balidos, quem a igualar


a respiração e sustos,
favorecido pela fome,

garantirá mulher
a meus sucessivos
nascimentos e sendo-lhe

entrelaçada, abrirá
a cancela do arvoredo,
desviando-me dos véus

da literatura para a lavra


e o néctar das aves de sua
ossatura encarnando-me,
com a dolência dos sonhos?
(Idem. p. 107-8)

No último poema do canto “Elegias à vastidão de um epílogo”, o foco da


enunciação recai sobre “Ao me chamar mulher,” organização que evidencia uma mudança
de nível sintático e semântico preponderante, pois o eu-lírico coloca-se como centro da rede
discursiva e, por conseguinte, ordenador dos anseios, que não mais surgem em função do
outro “Quem”, mas do sujeito poético.
As interrogações e os verbos no futuro guiam a reflexão sobre amor contraditório e
sem respostas definitivas. O eu interliga seus anseios à natureza e propõe a vertigem e a
precipitação ao amado, mesmo que o tempo sublime-se em um porvir inalcançável e
distante. O “minha” entre aspas, também chama atenção pela posse despossuída do outro,
pois o sujeito poético tem o sonho, o abismo, a paixão incontrolável, o jorro intermitente do
desejo e da espera.
Preso ao presente, o eu não sabe o que lhe espera futuramente, entretanto seus
sentimentos se consolidam na esperança de um amor puro e pleno, por isso a imagem
“pastor de minhas sombras reunidas”. O amado garantirá liberdade, renascimento,
sustentação e poesia. O sonho é construído pelas intercessões e o futuro nada mais é do que
uma aspiração.
Dessa forma, as perguntas são anseios e constatações do eu-lírico em relação a si e
ao mundo, como também são questionamentos tributados a uma estratégia textual. “Elegias
à vastidão de um epílogo”, canto final, termina de forma interrogativa, sem idéias
conclusivas deixando o texto em aberto, no terreno da dubitação.
Essa abertura produz um espaço singular, onde autor e leitor são coparticipantes do
processo discursivo. A obra A força de não ter força, no último canto, abre-se ao
dialogismo fecundo, proliferante. A elocução rejeita o dado concluso, a manifestação
unívoca, pois se tratando, sobretudo, do amor, como eixo temático, a pertinência da dúvida
e dos contrários, nada mais é do que a manifestação contrastiva, por vezes antagônica, do
sentimento amoroso. Então, por se tratar de uma obra com características peculiares e
tributárias do barroco, busco em A obra aberta2, de Umberto Eco, um possível caminho
analítico para refletir sobre o texto lírico em questão e, em especial, o último canto,

2
No livro Obra Aberta, de Umberto Eco, o autor inicialmente aborda que seu objeto de pesquisa sintetiza-se
em um estudo já visto pelas estéticas contemporâneas, que é o da obra de arte como uma “mensagem
fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que convivem em um
só significante.”. Dessa forma, a ambigüidade caracteriza toda a obra de arte, sendo que tal condição, nas
poéticas contemporâneas, torna-se uma finalidade explícita.
A ambigüidade é um valor, e os artistas contemporâneos voltam-se aos “ideais de informalidade, desordem,
causalidade, indeterminação dos resultados,”. Neste sentido, tem-se como premissa os momentos em que a
arte contemporânea se vê em meio à desordem, não àquela cega, sem possibilidade ordenadora e, sim, a
desordem fecunda, evidenciada pela cultura moderna. Igualmente defende que o espírito do ensaio não a
divisão das obras de artes em abertas e fechadas, pois a ambigüidade, acredita, é uma característica de
qualquer obra e tempo. A noção de obra aberta é um modelo hipotético, construído de análises concretas,
úteis para indicar uma direção das artes contemporâneas.
Eco, também pensa a obra aberta como um modelo, que pressupõe a individuação de diversas operações em
uma forma comum, elaborando-se um modelo para indicar algo em comum a diversos fenômenos.
Assim, a hipótese de um modelo constante, observada a relação produção-obra-fruição em casos diferentes,
as obras apresentam similaridades estruturais. Contudo, a estrutura de uma obra aberta não é isolada e nem
é a descrição de um grupo de obras. Porém, é um grupo de obras que possuem uma relação fruitiva com
seus receptores. Sendo assim, o modelo é teórico e independe das obras definidas como abertas.
“Elegias a vastidão de um epílogo”. Ressalto ainda que a obra não reflete uma abertura
somente em seu final, mas em toda sua estrutura. Sobre essa evidente ligação da obra A
força de não ter força com a corrente literária barroca, deixo o texto de Eco falar:

Num rápido escorço histórico encontramos um aspecto evidente de


“abertura” (na moderna acepção do termo) na “forma aberta”
barroca. Nesta, nega-se justamente a definitude estática e inequívoca
da forma clássica renascentista, do espaço desenvolvido em torno a
um eixo central, delimitado por linhas simétricas e ângulos fechados,
convergentes para o centro, de modo a sugerir mais uma idéia de
“essencial” do que de movimento. A forma barroca, pelo contrário, é
dinâmica, tende a
uma indeterminação de efeito (em seu jogo de cheios e vazios, de luz
e sombra, com suas curvas, suas quebras, os ângulos nas inclinações
mais diversas) e sugere uma progressiva dilatação do espaço; a
procura do movimento e da ilusão faz com que as massas plásticas
barrocas nunca permitam uma visão privilegiada, frontal, definida,
mas induzam o observador a deslocar-se continuamente para ver a
obra sob aspectos sempre novos, como se ela estivesse em contínua
mutação. (ECO, 2005, p. 44)

Assim, fica pertinente falar em abertura quando se tem uma pluralidade de


indagações e uma releitura moderna da arte literária barroca e, nesse sentido, a última parte
reforça e contribui de maneira expressiva a um caudal de interpretações. Entretanto, os
limites dessa abertura, coincidem com os limites do próprio texto:

O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra a acabar: não sabe


exatamente de que maneira a obra poderá ser levada a termo, mas
sabe que a obra levada a termo será, sempre e apesar de tudo, a sua
obra, não outra, e que ao terminar o diálogo interpretativo ter-se-á
concretizado uma forma que é a sua forma, ainda que organizada por
outra de um modo que não podia prever completamente: pois ele,
substancialmente, havia proposto algumas possibilidades já
racionalmente organizadas, orientadas e dotadas de exigências
orgânicas de desenvolvimento. (Idem. p. 62)

Os textos são reinventados à medida que o leitor continuamente entra em contato


com o universo da palavra, daí as interpretações. Cada fruidor traz consigo uma bagagem
cultural, gostos, tendências que lhe são próprias e, sendo assim, o texto sofre contínuas
influências, múltiplas ressonâncias, sem jamais deixar de ser ele próprio 3. Então, é possível
dizer que “Elegias à vastidão de um epílogo” possibilita a fruição, a constante reconstrução

3
Vale a pena ressaltar que Eco defende que “abertura” não significa absolutamente “indefinição” da
comunicação, “infinitas” possibilidades da forma, liberdade da fruição; há somente um feixe de resultados
fruitivos regidamente prefixados e condicionados, de maneira que a reação interpretativa
do leitor não escape jamais ao controle do autor. (2005, p. 43)
do texto e o diálogo com a alteridade. O amor, por ser elemento fundante da obra A força
de não ter força, materializa os contrários, abarca o intemporal e abre-se, por sua vez, aos
questionamentos.
O amor é inquiridor e instigante, gera a dúvida e incita a busca por respostas. O
poema é em si a afirmação dos desejos do eu-lírico em relação ao amado/desconhecido e à
negação das respostas advindas de um caudal de interrogações concatenadas a um futuro
incerto, porém almejado. A dúvida conduz à afirmação e à negação, ou ainda, à tensão entre
os contrários. Não obstante, o paradoxo é o próprio amor, em sua ascensão e queda, silêncio
e precipitação, realidade e sonho.
Poesia de Maria Carpi bebe o século num sorvo só4

José Nêumanne Pinto

Nos 143 poemas sem título reunidos no volume A Migalha e a Fome, a poetisa
gaúcha mergulha profundamente no tema da fome, abordando-o não apenas do ponto de
vista social, mas também individual, e não apenas material, mas também espiritual.
A fome é um problema social crônico. A solidariedade para com os famintos já
produziu desde obras-primas da literatura, como o clássico A Fome, do Prêmio Nobel
dinamarquês Knut Hamsun, até nosso descarnado e vigoroso Vidas Secas, de Graciliano
Ramos, um dos pontos altos da ficção brasileira do século 20. Ou foi estudada como um
fenômeno à parte por um sociólogo que foi moda no Brasil há uns 40 anos, o nordestino
Josué de Castro. Mas também continua servindo de motivo para a mais torpe exploração
política e demagógica de políticos sem escrúpulos, como comprova a recente criação do
Fundo Nacional de Combate à Pobreza, a ser preenchido por recursos captados com o
aumento da alíquota da CPMF de 0,30% para 0,38%.
A poetisa gaúcha Maria Carpi (Guaporé, 1939) dedicou ao tema 143 poemas sem
título, numerados e divididos em quatro partes, reunidos no volume A Migalha e a Fome .
Só que ela fugiu do facilitário do tema e mergulhou profundamente em suas dificuldades,
abordando-o não apenas do ponto de vista social, mas também individual, e não apenas
material, mas espiritualmente. Em seu percurso, ela chega até a página em branco, metáfora
da fome, e à palavra criadora, imagem impressa da migalha que a sacia. Cumpre a tarefa
com brilho peculiar, não apenas pela profundidade com que aborda o contexto, mas
também pelo brilho que adiciona ao texto.
A voz poética de Maria Carpi não foi domada em escolas nem se amarra a estilos:
não é moderna nem arcaica, não é da vanguarda nem do retrocesso. Apenas é. Conseguiu
escapar da monocultura do rigor cabralino que assola a poesia brasileira nos últimos
tempos, mercê
da dimensão da obra do grande pernambucano, sem, todavia, se deixar desencaminhar pela
sedução do pitoresco. ??Sua poesia é tensa, mas calma. Não se impõe, mas também não se
omite: participa, mas preserva. Sua palavra tem música, mas não se submete à melodia nem
se deixa levar apenas pelo ritmo. Para começo de conversa, ela não parte daquela adoração
onanista da palavra como fim, da palavra pela palavra, mas parte do real como algo
palpável.
Dois notáveis achados metafóricos demonstram essa sua ligação com o real - mais
do que o real, o rotineiro, o cotidiano -, que não quer dizer necessariamente prosaico. No
poema nº 24 da primeira parte (A Lavoura da Fome), pode ser encontrada esta preciosidade:
"E debruçar-me à janela das coisas, / deixando o chapéu de palha seca / num prego
dependurado, feito sol." O achado dessa metáfora está no acréscimo de elementos abstratos
e inusitados à mera descrição de uma rotina morta: as coisas à janela em que a autora se
debruça, a secura da palha do chapéu (não me lembro de jamais haver lido em nenhum
texto a lembrança da secura da palha de que se faz o chapéu) e, finalmente, a metáfora final
do poema "feito sol". Essa comparação absurda - do chapéu dependurado num prego com o
sol, boiando no céu - contém uma carga de imaginação e de beleza que, à sua simples

4
In: O Estado de São Paulo. Caderno 2. 18 de março de 2001.
leitura, sustenta o poema inteiro, que, aliás, nada tem de realista, mas pode até, sem exagero
nenhum, ser definido como surrealista (com imagens como "resmas de borboletas à boca
molhada").
Logo adiante, Maria Carpi usa o recurso que pode ser dito como oposto a esse,
partindo de um elemento abstrato, mais do que abstrato onírico, para desaguar numa cena
de cotidiano
doméstico. No meio do poema 27 da primeira parte, ela escreve: "E o encadeamento dos
sonhos / como uma réstia de cebolas / sobre o fogão que ficou aceso." Talvez seja útil
acrescentar que, muito ao contrário do poema citado anteriormente, este último é nostálgico
- o fogo é um elemento a mais na reconstrução da lembrança de uma casa de infância, ao
mesmo tempo real e mítica.
Não está explícito no poema citado, mas decerto essa "casa de infância" dispunha de
oratório. A poesia de Maria Carpi não é, de fato, mística, mas é lavrada inteira num ritmo
de reza, de ladainha, sem perder nunca um certo sotaque bíblico. "Valha-me, pois, diverso /
verbo para suprir-te a fome", canta no poema 29 da primeira parte. "Dá-me o quinhão do
imensurável", ora, no último verso da primeira estrofe do poema 39 da quarta e última parte
do
livro (Ode de Amor e Fome - Sonata para Piano em Dó Menor). Essa voz contrita é, como
convém, humilde: "Não valho o pasto que rumino" (30 da primeira). É difícil aqui resistir à
tentação de encontrar, não influência, mas, digamos, um certo parentesco com outra alta
voz da poesia feminina brasileira, a da mineira Adélia Prado. Mas tudo o que em Adélia é
explícito em Maria chega de forma sub-reptícia sem arroubos de fé nem confissões de amor
místico. O que em Adélia é êxtase em Maria é lógico: "O ungido da fome não tem talheres /
nem rompante de apetite. Não..." (32 da primeira). O que em Adélia é eucarístico em Maria
é cáustico: "E quem a breve existência / visitou sem fome, nunca mais será saciado" (3 da
segunda parte, A Página Branca e a Migalha). A certeza da redenção, que mobiliza Adélia,
não comove Maria, que escreveu: "Tudo é para ser perdido" (9 da quarta).
No miolo de A Migalha e a Fome há toda uma digressão, interessantíssima, aliás,
sobre o processo de criação. Trata-se de uma digressão metafórica, pois aí não se trata da
fome de alimentos, mas de palavras. ??A autora expõe ao leitor seu processo criativo,
exibindo com ele a criação poética alheia e geral. O desafio da página em branco é seu tema
favorito: "Uma página em branco / nada mais é do que a pele / que necessita ser tocada /
para que algo, ou alguém, / desperte..." (4 da segunda); "A página não garante o poema" (6
da segunda); "A página mais bela é o enlace / do precário com o insondável. / A desmedida
no fragmento, / A pátria, no exílio..." (16 da segunda); "A página é a fatura do real / e a
migalha, poesia e sonho" (27 da segunda).
Maria Carpi não é de ficar carpindo, submissa ao impulso natural da caridade diante
do faminto. "A comiseração", ela escreveu no poema 8 da terceira parte (A Colheita do
Faminto), "não é fome, / mas o preposto do fastio."

Pois "A penúria distribui-se / no que a abundância lhe retém".

Mais do que um tom musical, a definição do dó menor para sonata de piano que
serve de subtítulo à quarta parte de seu poema-livro é um juízo de valor sobre a piedade.
Não se trata de uma questão de mauvaise conscience, mas de consciência propriamente
dita, ou seja, da pressão exercida pelo faminto sobre o saciado. "Disse-me o faminto:
sempre / retornarei a puxar-te pelo casaco"- assim ela dá início ao poema 12 da terceira
parte, encerrado aliás de forma magistral: "Sempre o dente a menos na serra / que corta o
tronco.

Sempre o outro / e, no outro, o múltiplo, a epidemia."

A poesia de Maria é como aquele verso que abre o primeiro poema da última parte
de seu livro novo: "Uma lentidão de séculos / a um único sorvo, sem vagas." E mais ainda,
como diz no 28 da quarta parte: "Essa desobediência interferente, / sem ordem natural com
as coisas." Parece-me que, diante disso, tudo que já foi escrito por ela será ocioso e inútil
acrescentar palavras que não cabem, uma vez que as citadas se bastam.
Ressurreições5

Paulo Bentancur

"Quantas ressurreições pode o corpo suportar?", pergunta o poema 14 do "Canto 1",


de O Herói Desvalido. Sorte de quem terá tantas, apressa-se o leitor mais distraído em
observar para si mesmo. No entanto... Morrer estando tão vivo em si, mesmo de morte, não
pede continuação. E ela, porém, vem. No desvalimento, a força não desaparece, não. Pode-
se abdicar dela, mas ela está ali, sombra e sobras, e com elas é capaz de construir o novo
erguimento.
Maria Carpi tem essa marca de suave agilidade em sua poesia, esse poder de trilhar
a via-crúcis sem afogar seu poema em sangue e, antes, dar-lhe água, achar a fonte que o
ajuda (ao poema) a continuar exangue, mas vivo, ainda que lancinante na sua lucidez de
tanta perda e, na perda, tanto achamento.
O Herói Desvalido é, em termos, um paradoxo. O heroísmo exige reconhecimento e,
com ele, valorização. Carpi cavouca na odisséia interna do afeto, essa amarga odisséia sem
retorno, e em tal viagem feita de contemplação rara, constatação iluminada pela impotência
na ameaça da morte, chega à margem: único lugar habitável. A margem que nos põe à
deriva, mas não nos derruba. Margem estreita por natureza, mas ampla pela generosidade
do perder-se no que se sente.
O poeta é mais que a possível consciência de seu tempo; é o desenho contínuo do
esvair-se e da comunhão com o sangue perdido e, porque comungado, recuperado. As
chagas chegam para ornar o que brilho fácil algum ornaria com tamanha grandeza.

A morte que salva

Maria Carpi tem, por trás de seus versos extremamente depurados, um deslizar de
ave noturna que, tudo sabendo do fim que a acolheu, arremete rumo ao recomeço contido
nesse mesmo fim. Como num eterno retorno. Como no tempo futuro contido no tempo
passado de Eliot. Ou alimentando-se da forma como em um reduto inexpugnável do si-
mesmo. "Na forma eu encontro a mim mesmo", escreveu Bakhtin. E, ainda na linha
bakthiniana, da não-coincidência, incompatibilidade e inconclusividade.
O poeta aqui reconhece no herói o anti-heroísmo, ou, mais aproximadamente, o
processo natural de desheroicização. O potencialmente eleito - no caso, eleita - entrega-se,
na perda da eleição, eleição não tornada evento, no reconhecimento não recolhido (porque
não encontrado), a uma essência que se redesenha contra toda aquela espécie de ausência
que seria revide. Presentificada no abandono do outro, pedra sem o polimento da carícia,
"corpo no sudário do formol".
Maria Carpi reúne, em quatro séries de poemas numerados: primeiro, o cenário da
desvalia, uma espécie de precipício sutil onde a queda se faz horizontal porque a dor já
5
In: CARPI, Maria. O herói desvalido. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
brota de sua própria resistência (o cavalo como parceiro de uma jornada em que o épico
dignifica o drama); segundo, o lugar onde habita o ser, além de pano de fundo, é
"vulnerabilidade" a marcar as fronteiras da alegria num sítio em que há duas dores, uma
delas quente, que "(...) apazigua / e conforta. Limpa e amamenta / a cria. Em contraponto, a
dor fria".
Na terceira série, a queda é destacada em sua vertigem, ainda que vertigem verbal
seja o sumo de uma poética dilacerada e, ao mesmo tempo, o rigoroso equilíbrio da
versificação de Carpi, equilíbrio que impede qualquer vertigem previsível, amparando a
queda não só cantada como a própria queda da vida, que o poetamulher converte em solo
num constante movimento, em condição (des)humana de nem poder testemunhar uma
lâmpada acesa, "sobra vital, inevitável perda". Intitulada "O Caimento dos Frutos", esta
parte, a penúltima, surpreende com o admirável lembrar de que é preciso cair amando, que
sem amor não há queda. E, se há amor, mesmo caindo não se chamará tombo, mas
descensão de um manto. A descida da poeta - na maciça maioria a de seus pares,
autocondenados ao inferno - termina com o delicado sussurro de quem colhe assim que
mão e rosto beijem a terra. E a beijam, aliás.
Cai e, sem contar e cantar feridas, semeia o terreno árido que não a sustenta.
Território que ela alimenta com a seiva de sua derrota nunca deflagradora do fim. Desta
forma, a aridez se esvai e é tudo sumo, presença, mesmo na ausência do desejado. A
desvalia subverte seu esvaziamento, tornando-o, antes que seja menos, mais, o surgimento
do inefável hálito da coragem sem a bazófia dos que destroem.
Que coração grande, que coração! Coração a enlouquecer toda uma anatomia,
conforme Maiakóvski falando de si. Maria Carpi, entretanto, tomada da desvalia do mundo
(nunca desencantado pelo óbvio, embora inevitável ressentimento, mas reencantado pela
"dura matéria que poreja"), parte para o gesto mais extremo e mais inesperado: "retirar todo
o suporte, / inclusive a sombra do corpo/ Inclusive a água dos olhos".
Corça, a poeta antecipa, com sua carne, a flecha invasora e fere o objeto de seu
martírio com a dádiva de sua alma física. Resto de si, procura subsistir, "apesar da alma, da
resistência da alma". Isso é que é despir-se, isto é descobrir a grande arte, acessível a alguns
artistas, mas a raríssimos humanos: admitir ver em torno, "caindo os excessos, / / a demasia
da matéria, todo / íntimo, sem hostilidade, / já não a casca do sonho".
Salva do engano do grito imediato, cegante, a poeta agarra-se (e nem se agarra, no
fundo) aos "soçobros que ainda / / escorregam das páginas. (...) / (...) o murmúrio / /
fosfórico. Isso que resta / e que nunca será palavra". Daí seu poema ser sintaticamente
recolhido, vocabularmente de uma doçura seca, sem desvios, seu ritmo atrelar-se a um
sopro mínimo de respiração retomada após o golpe que ele não anuncia, não canta, não
reclama.
A ferida, embora mortal, não mata. Os frutos vão caindo. Mas a poeira, destinada ao
paladar dos filhos da queda, tem fome e cresce no tempo. O herói desvalido declara, sem
orgulho, mas nenhuma autocomiseração:
"Caio do cair".
Que amor é esse?

Que amor é esse que se compraz em, ao tocar, fazê-lo em queda, caindo como quem
mergulha e, nele nos perdendo, dele nos perdemos? "Para bem / cair no amor é preciso
recusar / as asas. E deixar a cicatriz voar”.
Beira a ironia semelhante resistência, coração de tantos recursos: "cair em virtudes /
é mais terrível / do que subir em vícios". "Ninguém se compadece" em "hóstias do cair", se
essa queda é a funda arremetida até o lugar em que raros freqüentam, sequer suspeitam
existir. Região de afeto em plenitude onde não há preços, não há disputas mesquinhamente
reprisadas na rotina das relações, muito menos ásperos trocos contra o desamor surdo ao
amor que entoa seu hino sem alarde.
Que amor é esse? É o amor, o único. Daí poucos o conhecerem e tanto ele surgir
como tema, em todas as formas de arte, e há milênios. Só se fala do que não se conhece. O
desejo pelo amor é tanto, que se impõe como desejo e esmaga o amor possível, já que amor
não pede pressa nem preço, só o zelo de reconhecê-lo na sua secreta morada.
Maria Carpi mora aí. Sempre morou, pelo jeito, e nos revela, sem a falácia do gozo
fácil nem o rancor da amargura do desencontro, cada recanto dessas câmaras remotas e de
luz limpa, mas quase imperceptível. Câmaras onde "faltam-me versos para morrer" e, se a
poeta "exala a última poesia", declara-o como uma forma inadiável de avisar que a verdade
chega a ser um extravio. Mas não pode ser desprezada.
O que a quarta e derradeira série do livro confirma, superando a tortura comum de
tantos personagens desafortunados ante esse sentimento permanente e mortal (igualmente
vivificante) com a incomum ternura e a mais incomum força moral e lírica de um ser que.
diz: "Eu, mácula, em teu magnificat." O amor supera os amantes, mas não supera a
sensibilidade de Maria Carpi, poeta capaz, de mãos dadas com o gênero que elegeu, de
refundar o mundo e, desta forma, içar à luz o que os homens jogam à sombra, refazer o
valioso percurso do maior dos tesouros: o ser condenado à desvalia e, ainda assim, capaz de
torná-la ferramenta, moeda, remédio, poesia, beleza - resposta a derrubar os que, caindo,
derrubaram o que estava destinado ao vôo.

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