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Maria Elisa Carpi (Guaporé, 1939) é considerada uma das figuras mais
representativas da poesia feminina brasileira. Aos dezenove anos de idade, ingressa na
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e forma-se advogada
no ano de 1963. No ano seguinte, casa-se com Luis Carlos Versoni Nejar, com quem teve
quatro filhos: Carla, Rodrigo, Fabrício e Miguel. Além disso, ingressou, em 1978, através
de concurso público, na Defensoria Pública do estado dó Rio Grande do Sul, optando pela
área dos direitos da infância. Quatro anos depois, passa a dar aulas na Faculdade de Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e participa nos movimentos que
promulgaram a criação do Conselho Estadual de Direitos (CEDICA) e dos Conselhos
Tutelares. Ainda em 1982 ingressa no Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul,
participando como conselheira do CEDICA, por duas gestões; da primeira, representa a
Defensoria Pública e, da segunda, a OAB/RS.
Em 1990, a vida literária de Maria Carpi tem início: Nos gerais da dor, o primeiro
esboço da complexidade expressiva e cosmovisiva de suas produções poéticas. Depois
disso, a poeta publicou mais oito livros. Também participou da Coleção Petit Poa
(Secretaria Municipal de Cultura de POA, 1992), com o livro Pequena Antologia.
Maria Carpi é uma poeta de reflexão existencial e faz uma poesia baseada em temas
líricos como a dor, o acaso, o amor e a morte. Os seus versos são construídos a partir do uso
de imagens dissonantes, de metáforas e, principalmente, de paradoxos; nessa perspectiva,
seus textos buscam a significação profunda das palavras, revelando a natureza íntima do ser
humano.
O reconhecimento da crítica veio através dos diversos prêmios recebidos pela poeta.
Entre eles, figuram a Menção Honrosa no Casa de las Américas/1999, em Cuba, pelo As
Sombras da Vinha; o Revelação da Associação Paulista dos Críticos de Arte/1990, pelo
Nos Gerais da Dor; o Erico Veríssimo/1991, por Desiderium Desideravi; o Açorianos em
1997, na categoria Poesia, pela obra Os Cantares da Semente, e em 2004 por A força de
não ter força. Além desses, foi três vezes premiada pela Associação Gaúcha dos Escritores,
Livro do Ano, categoria Poesia, com: A Força de Não Ter Força/2004, As Sombras da
Vinha/2006 e O Herói Desvalido/2007. Essa última obra obteve no ano anterior, 2006, a
premiação Livro do Ano - categoria Poesia - pela Rede Pampa, Nacional e Sul.
Nos gerais da dor (1990), Desiderium Desideravi (1991), Vidência e Acaso (1992),
Pequena antologia (1992), Os cantares da semente (1996), Caderno das águas (1998), A
migalha e a fome (2000), A força de não ter força (2003), As sombras da vinha (2005), O
herói desvalido (2006).
Obras Poéticas
Nos gerais da dor
(1990)
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A dor protegeu
o meu corpo,
dentro do mar,
o mar profundo,
dentro dos céus,
o paraíso vertido.
E o meu parentesco
com as árvores
vem do alimento
armazenando na
câmara escura,
a luz que o depura.
O corpo padece-nos
na cápsula da Dor,
quanto mais Corpo.
Que eu não abra um
marisco, sem abrir
o mar. Que eu não
capte um inseto, sem
captar o vento. Que
que não aIcancé tua
boca, tangível, sem
arrojar-me contigo,
dorido, ao inacessível.
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Se eu encontrar dentro
da terra, o seu fogo,
dentro da rocha, se eu
encontrar dentro da água,
o seu fogo, dentro do gelo,
se eu encontrar o fogo em
seu fogo, poderá o cordeiro
alimentar-se junto ao lobo
e o bem-nascido de mim estar
entre víboras, nem que antes
tenha de suportar a privação
do fogo, no fogo, a Dor
sem dor do fogo em cinzas.
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Quando a sede
for mais além
da palavra sede,
mais além daquele
que tem sede, as
lágrimas irrompem
vindas de toda
a parte do corpo,
de todo vestígio
ele corpo, cavando
sua última e íntima
reserva de água
e assim descem
dos olhos à boca
aberta à convulsão,
dessendentando-a
no próprio pranto.
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No centro da casa,
uma vertente.
No centro do movimento,
o Avental de minha mãe.
As toalhas não sabiam
secar-me.
Ali comprimia o rosto
molhado de frutas.
Ali acalmava as mãos
interrompidas de voar.
Ali as lágrimas
e toda a trégua.
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Desiderium Desideravi
(1991)
Primeiro Canto
ÁRVORE
à desconhecida Árvore.
de teus rios.
as ondas extravasariam;
os astros sairiam de sua
órbita e as frutas todas
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Se houver um sol
intenso arrodeado
de sol, é porque
estou, do Amor,
à sombra. Se houver
silêncio e somente
silêncio do sol e
da água silenciados,
é porque – Amor e eu –
somos boca a boca.
Terceiro Canto
FRUTA
ninguém encarcera do
Amor, a degustação.
Quarto Canto
FOGO
as sementes. Quando
te ergueste, semente,
corpo a corpo, eram
um só Fogo e em Um,
múltiplos e nominados.
Quinto Canto
LUZ
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às outras, em rochedo,
recentes e borbulham
como o cimo do mar,
ao vento, entre os
cílios alongados. Se
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despreendimento é o único
elo. Deixar o rio seguir
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Deixa-as, passantes,
em seu fulguramento.
Dentro da cava do Desejo,
serás fortalecido de silêncio,
como grãos, sem celeridade.
Vidência e Acaso
(1992)
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ao primitivo luxuriante
e os seres me cercavam
soltos, ao acaso. À
medida em que aprendi
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O acaso cobria as
asas, mas as asas
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Vou guardar
um pouco de acaso
para avançar
nas areias
escaldantes
da Vidência.
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Ir de escuro em escuro,
a saber que estes olhos
carnais, ao término,
contemplarão o Insuportável,
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na vidência encontrarás
tua parte rejeitada, de
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Os acasos fizeram-me
isolada, fragmentada,
dispersa. Na vidência,
o mínimo casa comigo
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dias e lá estivesse,
festiva em suas frutas,
dito ao pé da letra,
sem deslocar-me o corpo,
intensificou o brilho e
substitui-me na tardança.
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viam-lhe o corpo,
mas não o corpo
que a amparava.
Viam-lhe as mãos
amarradas, mas não
as mãos que a erguiam.
Viam-lhe os pés
subjugados, mas não
as asas que a levavam.
Viam-lhe a boca
estremecida, mas não
a boca que a adoçava.
Viam-lhe os olhos
vendados, mas não
os olhos que, depostos,
a chamavam e a dor
esposada era-lhe a paixão
de já estar e ir-se,
em Vidência esvaindo,
invadindo a Vida.
Os Cantares da Semente
(1996)
Canto primeiro
A semente em mim
O que planto é um
por um: o que sou
plantada é sem conta.
do sol, distribuído
em valas e freguesia.
E o que sou plantada
é semeadura especial,
com uma luz fixa e
um barco móvel, real.
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E na decisão de alimentar-me
do não morrer, germinou
esse minúsculo embrião
de eu não ter raízes.
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A dispersão é o exílio.
A dispersão do corpo
na alma.
A dispersão do sangue
no corpo.
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ao miolo da luz,
à vertente das águas
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Todo libertador
é uma semente cativa.
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Em algum lugar,
tu escreves
e a árvore emerge.
Em algum lugar,
tu cantas
e a árvore singra.
Em algum lugar,
tu amas
e a árvore arrulha.
Em algum lugar,
o semeador escuta a semente
e a árvore pousa.
Canto terceiro
Mãe obscuridade
e as propaga, levíssimas,
que acendidas, deixam-se
pesar e soterradas,
deixam-se ver e tocar.
E apagadas, morridas,
deixam-te luzir e voar.
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A semente ingressou
na contingência, sôfrega
do teu rosto. Deixa
a incerteza expressar-lhe
asilo. Não interrompas
o orvalho que pousa.
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Um dia, de súbito,
uma velha camisa
deixada sobre a cadeira;
um dia, de súbito,
a porta estava aberta
desde a véspera;
um dia, de súbito,
ao coração a semente
desce inóspita.
Mas a tristeza,
só a alegria é muito
mãe para carregá-la.
Canto quinto
A semente em nós
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Quando o semeador
ergue o braço,
de costas ao astro
Há três vórtices,
incandescentes.
Como se dentro
de uma árvore,
num único movimento,
à guisa de fruto,
a pomba e a águia.
Um só panal de mel
nas trevas vistoriadas.
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O Primeiro Verso
O Alimento
fazia-me estar
ainda na sala, após
a telepatia úmida
ou de um cavalo em
veredas, sem ninguém
ao lobo, embrenhados,
íngreme tarefa de
uma leitura silenciosa.
Desde aí necessitei
de pronunciá-la com
a gíria da pedra na
água e propor sua
a esfolar-me os joelhos
nas rampas e rampas
dos altos morros.
a reproduzir-se no caderno
das águas espelhadas.
Um verso não escrito
acima da sonolência,
deixando-te nostálgico
e desperto. Uma ave não
ferida na tinta da palavra
e que ter agradece,
levantando-te ao improvável.
A Cadeira de Balanço
O Circo
Um Só Rosto
A Enxada
morte, as planícies da
vida. Na vida, carpir
o imenso ingressado no
O Quarto do Amor
à correnteza de um quarto,
ei-lo aberto ao universo.
Cardado em Flor
Se eu morrer e sair
deixarei a porta destrancada.
Se eu morrer e sair,
deixar-me-ei
solta em páginas
soltas. Se eu morrer e
as janelas. Se eu morrer
e entrar, deixarei a luz acesa
de um livro apagado.
A Migalha e a Fome
(2000)
Canto I
A Lavoura da Fome
na árvore adormentada,
a ferrugem balsâmica
da faca no fruto esquecida.
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Esbarrei na invisibilidade da
Árvore. E os frutos despencaram
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Dentro do mármore,
o volume do dorso.
Dentro da cor,
o volume dos girassóis.
Dentro da agonia,
o volume do arfante.
Dentro da fome,
o poema encorpando.
O volume da tapera,
a página branca e a migalha.
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O contraponto da página
em branco não é o poema
como o contra ponto da fome
não é o alimento, mas a distância
de lembranças e olvidas,
a ser parceira em intimidades.
No início tu a queres, depois
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E da constância andarilha,
mais um passo, mais uma árvore,
um rosto, próximos aos ossos.
E o ser interior consente ficar
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Canto III
A Colheita do Faminto
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ou na contabilidade da escrita
alheia. Mergulha, separando.
A pátria longínqua do estrangeiro,
próximo. A fatia do doce opróbrio.
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como um firmamento
voando no interior
de andorinhas azuis.
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convergido e parcimonioso,
ao alimento seco, analfabeto,
original e último, sem cópias.
Nada antes nem depois,
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Acendo-me as lamparinas
dos pirilampos nos brejos
para a estupefação, as honras,
do frugal deleitando-se comigo.
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Os famintos de amor
são distribuídos, cristos
bizantinos, em parcelas
de signos e cura.
Os santos pela fome
não querem ir aos céus.
São arrebatados
com extrema violência
e arranhões de luz.
Os bem-amados da fome
não pertencem
à etérea espessura.
São o território
ingente do sublime,
o vaso honorífico
de cascas e zumbidos.
Por isso, Teresinha,
desfolhando rosas,
em agonia murmura:
eu descerei, eu descerei.
A força de não ter força
(2003)
Livro I
Do amado e do não amado
do amor, a fome e
o refrigério nos vem
de sua sede, onde
submergimos a que
O escuro do corpo
dando ao claro, outro
corpo. É possível
atravessar a luz
na nave da alma.
A aurora da alma
alertando à noite outro
fogo. A passagem
Aguardo-as, inclinando-me
a que me sintam, com o peso
de uma cabeça dormente
conjurados e ressurgidos
que o primeiro amor não
é a primeira vez do beijo
que te reporta ao selo
irremediavelmente
meu, quando te perdi
e consumi tua perda,
querendo-te perder.
o caminho e a chegada,
no comover-me entre
as coisas que crepita.
O amor me desapruma.
E eu caio do inatingível
ao nada da precisão.
De passagem os olhos
e a boca que ele apura.
E esse estar não estando
O amor em si mesmo
é o continente corpóreo
de minha luz vertida.
Não temo pela água nem
Quando escrevo,
não sou um, mas dois.
O que dita e o que redige.
Quando amo,
não sou dois, mas três.
Duas presenças
e uma ausência.
Quando morro,
com os idos e vindos
do instante alvejado,
tríade transbordante,
entranhas? Quem
eu deixarei viúvo
se não me encontrar,
se não me cobrir?
Quem abrirá os olhos,
as páginas, as mãos,
A troca de alianças
não se deu ao se darem
mutuamente os corpos,
mas com a permuta
das sombras e a virada
do incêndio em frescor
de uvas nunca pisadas.
O corpo pede água
e queima o aplacador.
A sombra pede fogo
e aplaca o abrasador.
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A sombra é o verso
da claridade. A maneira
de poetar, ocultando-se
em ramas. Um ventar-se
em arvoredo. E o soslaio,
o deslocamento de hálito,
uma tez, rasga a fresta
e o gemido das vinhas
rompe a resistência do texto.
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É da liturgia do sol
intercalar-se de vinhas.
E dar-me uma trégua
ao visto, com crepúsculos
e paredões. A demasia
da luz tem misericórdia
do texto impronunciado.
O esvair do vinhateiro
em meus pulsos. E sabê-lo
no recesso da vide parindo
e saboreá-la na tez vestida.
Pleno de sua sombra cobrindo-me.
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Dentro do coração
há outro coração.
Os gráficos e cardiogramas
só diagnosticam a sístole
e a diástole do primeiro.
Esse não detectado
é o único fatal.
Tanto para o morrer
se o outro continua
a bater em ritmo diverso,
como para o viver
se o outro sucumbe
no mesmo hálito
de paixão. Dentro
da mão há outra mão.
Essa que é distribuição
enquanto a outra
contabiliza. Essa
que afaga sendo
a outra usura e unha.
Essa que escreve
sem autografar, baldo
amor, o que a outra
edita, na inércia,
com direitos de autor.
Dentro da luz
há outra luz
que não se apaga
quando a ele eletricidade
é cortada, quando
o sol transmonta,
quando os olhos gelam,
quando se desliga
a memórias das palavras
e não há, do calor,
nenhum rascunho.
A luz da escura vinha.
O Herói Desvalido
(2006)
Canto 1:
O Cavalo e os Lugares
A esperança é um livro
invisível que toma a letras
à medida que é lido
com os olhos da apetência.
É um peixe transparente
que nos escapa das mãos
de tão liso de escamas
e linhas submersas à visão.
E somos molestados
a redigi-lo, pois não é bom
que se fique a sós com o rosto
secreto, na tarefa diuturna
de fecundar as entranhas
do vazio. Em quando a termo,
sofrer-lhe as dores da ascensão
no face a face com o desejo.
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O meu lugar é onde te esvazias.
Onde te ausentas, entro.
Onde te aquietas, canto.
Onde és campo aberto,
sou terra proibida, inculta.
A cada dia de tua colheita,
sou meio século de aguardo.
A cada progresso, a cada
avanço, marginalizo-me
em bueiros, baldios, fugas
d’água. A fulguração
do relâmpago nos fende.
Canto 2:
Vulnerável é o sítio
perpetuamente em indigência
e a cada dia, a cada fresta,
perene estertor, vem descido,
vem puxado, sugado em seringas,
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Este é o sinal:
nunca acabar
de à porta bater.
Nunca acabar
de a porta arrombar.
Nunca acabar
de ser a porta.
Canto 3:
O Caimento dos Frutos
O dançarino do vazio
alinhava o vislumbre
encetado em cada risco,
um toldo recamado
de lantejoulas aliviadas.
O dançarino do vazio
argênteo de escamas
abebera-se da inércia.
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da saliva no disparate.
Uma queda na zombaria,
sem compressas de hortelã,
sem as narinas de lídima
compaixão. As demais
quedas tiraram-me
apenas o fôlego. Essa
queda estatelada,
rompendo a beleza
do ritmo e da epiderme,
respinga o doce sumo
de toda uma vida,
Canto 4:
Um Ramo de Alegria
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A alegria tem a altura
e a largura de um morrer
de amor sem data. E sete
polegadas de terra à sede.
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O desaguar da alegria
é o enchimento da matriz.
O cheio está como um soluço
no miolo da luz liquefeita
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Minguando-lhe o espaço
e a mobília, mais arremata
o toldo e a envergadura.
E mais agarra no arcabouço
e espraiar, concentrando-se,
esmera em mais frutificar.
Se assim faz um ramo operário,
atenta melhor um alegro,
Bibliografia:
A força de não ter força (2003) configura-se, como as obras anteriores, em torno a
um núcleo central. O fio condutor dos versos é o amor, que ultrapassa limites
convencionais de tempo e de espaço, disseminando a junção de contrários:
sagrado/profano, sonho/realidade, separação/encontro. Dessa forma, o conteúdo imagístico
textual é resultado de um contraste de antíteses semânticas que se coadunam de maneira
relevante em toda a escritura.
O livro possui três secções: “Do amado e do não amado”, “A vertigem sem abismo”
e “Elegias à vastidão de um epílogo”. A primeira foi escrita na década de 80 e, somente em
1996, Carpi agrega aos escritos o segundo segmento. Por conseguinte, a última subdivisão
foi agregada às outras partes com a virada do milênio, em janeiro de 2001. Nesse sentido, A
força de não ter força leva 23 anos para ser concluída e publicada. E, mesmo com tantos
anos separando um segmento do outro, as partes possuem um fio condutor intrínseco
dinamizando o universo textual, que é a manifestação do jogo de contrários, da dualidade,
com o predomínio de figuras como metáforas, sinestesias, hipérbatos, aliterações, antíteses,
descritivismos e rememorações dissonantes.
Do amor
1
Capítulo extraído da dissertação de mestrado A Força da Poesia: uma leitura de Maria Carpi, de Valéria
Ferreira de Oliveira, mestre em História da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande.
lido, que se sobrepõe
aos demais e reluta
Assim que um tema é lançado, logo surge outro contraposto no poema carpiano, daí
a sedução por paradoxos, repetições e tensões extremas, elementos que estão no cerne do
barroquismo literário. O eu-lírico, portanto, valoriza os extremos, que o levam, muitas
vezes, à perda do sentido de “realidade”, pois o sujeito plenamente apaixonado está em
constante conflito. O eu infere, no poema, que o amor é e não é: força, paz, chama, o amor,
certamente, não é nem um e nem outro, ele é a junção, é o todo dos elementos antitéticos
dispostos no canto.
Então, fulcro das tematizações de um universo pulsante, em chamas, o amor, cuja
desordem de sintagmas a ele atribuída retém o processo cabal das contradições existenciais,
configura-se no motivo de canto do sujeito poético. Assim, através da manifestação do
contraste de idéias e definições, percebo a enfática contribuição dos advérbios ao
desenvolvimento dos versos. O “não” e o “nunca” reforçam a natureza dual da definição do
amor. O “quando” opera como elemento comparativo, o eu versus o outro, e o “mais”
intensifica o avivamento amoroso, todavia encoberto.
Contudo, a vitalidade do sujeito enunciativo está no apercebido ou ainda no
ocultado, pois a chama do amor torna-se mais intensa quanto menos visível. Os versos da
oitava estrofe confirmam o caráter opositivo entre os verbos avivar/encobrir, que acolhem o
fluxo paradoxal, oscilando entre o mostrar-se e o esconder-se. Entretanto, mesmo as
expressões inserindo o contraponto, não são de maneira alguma excludentes, ou seja, uma
completa a outra de forma mútua, pois o jogo de contrários acentua a dependência dos
elementos dispostos no poema. Enfim, à medida que menos se mostra, o rosto aviva-se
mais.
Assim, o amor logra comportar a oposição de pensamentos. A natureza controversa de sua
definição une faces distintas, ou seja, ao mesmo tempo em que os vocábulos se repelem,
atraem-se no corpo discursivo. O amor denota sentimentos inconciliáveis, ou ainda as
contradições presentes na alma humana.
Por conseguinte é válido ressaltar que a lírica carpiana incorpora tanto imagens
pretéritas como se lança a visões futuras. O universo imaginário da poeta caracteriza-se
pela abordagem contrastiva de elementos: sonho/real, eu/outro, separação/encontro.
Contudo o jogo antitético é fonte de equilíbrio e cria o mundo poético. É através dele que as
imagens se formam e ganham amplitude significativa.
Em Carpi a dimensão poética assume contornos universais. O eu-lírico divaga entre
o presente e o passado e, assim, joga com temporalidades distintas, caminhando em direção
ao infinito. Sua linguagem é polifônica, um labirinto de confluências tanto de tempo,
quanto de espaço, em que prolifera a vertigem. A poeta, na encruzilhada de tempos, plasma
em seus versos as reminiscências, como no poema a seguir:
Poema marcado pela forte presença de pronomes possessivos: “tua, teu, meu(s)”,
disseminados ao longo do corpo discursivo, que implicam não a posse do sujeito
enunciador, mas sua possessão pelo ente de adoração e veemência. Também nos versos os
pronomes pessoais do caso reto “eu e tu” interferem visceralmente na trama textual,
evidenciando ambos um contraste de desejos e submissões.
O verbo “ser” também tributa para a revelação dos anseios poéticos. As flexões
verbais “sou/ és” ratificam que a primeira pessoa do singular no discurso é o
prolongamento do tu, é o rosto submisso que encontra na alteridade as mais diferentes
formas de perpetuar-se. Nesse sentido, o eu possui várias faces, fragmenta-se em distintos
“eus”, contudo suas máscaras brotam da necessidade de querer ajustar-se aos propósitos do
amado “De todas as versões sobre mim, / a
única autêntica és tu”.
É possível dizer ainda que a estruturação das orações tem a segunda pessoa do
singular como sendo causa oracional e a primeira como conseqüência dos próprios atos, já
que a persona poética molda-se a partir do outro, condicionando suas atitudes e afirmações.
O tempo também sofre alterações impostas pelo sujeito lírico ou ainda, serve como
objeto de manipulação. Dessa forma, há por parte da poeta a intenção de reter o fluxo
contínuo da vida. Há então, por isso, a negação do fluir temporal “Nessa perseguição, o
tempo não/ corre”.
Negar a condição inexorável humana fornece ao eu um local de proteção inóspito,
que corresponde à necessidade de perpetuação do encontro. Buscar outro lugar que esteja
fora dos limites convencionais exprime por um lado estar longe do mundo e um encontrar-
se com o ser que ama, já que o contexto dos versos implica o desejo irrefutável de doação,
somente corporificado quando o outro se realiza em sua plenitude.
Em síntese, os três poemas transcritos anteriormente pertencem à primeira
subdivisão do livro A força de não ter força. A parte “Do amado e do não amado”
aracteriza-se por dar vazão intensamente ao jogo de contrários quando tenta definir o amor
em sua amplitude e complexidade semânticas. Por vezes, também, aparecem as recordações
da infância, a busca pelo passado, a descrição do primeiro amor, que não necessariamente
significa ser a primeira vez que se ama. Em suma, o eu-lírico dissemina seu canto
polarizando sentimentos destinados ao amado e ao não amado, pois este ensina a morrer e
aquele destila o aroma da vida.
Da vertigem
A voz carpiana em ação dissemina nos versos o caráter sensitivo, o som, os acentos,
a luz e a verticalidade:
O amor em si mesmo
é o continente corpóreo
de minha luz vertida.
Não temo pela água nem
Assim, a escrita de revolta busca deter o fluir temporal e o discurso do eulírico intui
a postura de dominação do tempo. O eu burla as dinâmicas começo e fim, colocando em
relevo apenas a primeira. Recomeçar propicia o despertar de um novo amanhã, o renovar
do amor e da própria existência.
Carpi joga com os tempos presente, passado e futuro, colocando-os em intensa
conexão. A subversão temporal invade a poesia carpiana constantemente. A sucessão dos
acontecimentos parece suceder fora dos limites temporais:
Da vastidão
tarde no enredo?
Quem, esse alguém,
me chamará mulher,
clareando os sentidos
e antecipando a si mesmo
a pronúncia das ondas,
na coincidência da luz
e das sementes e tomará
corpo, dando-me corpo?
(CARPI, 2003, p.104)
Quem, ninguém,
reunindo partícula
a partícula, da poesia
em declives e cacimbas,
nas juntas e artelhos,
me inscreverá mulher
e iniciará da vida
a litania, pertencendo-me
com o carmesim
o sintagma “minha”
quem será vertigem
e a precipitação ao alto
silêncio? Um filme
para trás, um retrós,
com o cabelo preso
o ar e o fogo de esferas
vagantes. Ao me chamar
mulher, casulo desfeito
no pasto e o sangramento
das ovelhas na roca
da fiação do verso,
garantirá mulher
a meus sucessivos
nascimentos e sendo-lhe
entrelaçada, abrirá
a cancela do arvoredo,
desviando-me dos véus
2
No livro Obra Aberta, de Umberto Eco, o autor inicialmente aborda que seu objeto de pesquisa sintetiza-se
em um estudo já visto pelas estéticas contemporâneas, que é o da obra de arte como uma “mensagem
fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que convivem em um
só significante.”. Dessa forma, a ambigüidade caracteriza toda a obra de arte, sendo que tal condição, nas
poéticas contemporâneas, torna-se uma finalidade explícita.
A ambigüidade é um valor, e os artistas contemporâneos voltam-se aos “ideais de informalidade, desordem,
causalidade, indeterminação dos resultados,”. Neste sentido, tem-se como premissa os momentos em que a
arte contemporânea se vê em meio à desordem, não àquela cega, sem possibilidade ordenadora e, sim, a
desordem fecunda, evidenciada pela cultura moderna. Igualmente defende que o espírito do ensaio não a
divisão das obras de artes em abertas e fechadas, pois a ambigüidade, acredita, é uma característica de
qualquer obra e tempo. A noção de obra aberta é um modelo hipotético, construído de análises concretas,
úteis para indicar uma direção das artes contemporâneas.
Eco, também pensa a obra aberta como um modelo, que pressupõe a individuação de diversas operações em
uma forma comum, elaborando-se um modelo para indicar algo em comum a diversos fenômenos.
Assim, a hipótese de um modelo constante, observada a relação produção-obra-fruição em casos diferentes,
as obras apresentam similaridades estruturais. Contudo, a estrutura de uma obra aberta não é isolada e nem
é a descrição de um grupo de obras. Porém, é um grupo de obras que possuem uma relação fruitiva com
seus receptores. Sendo assim, o modelo é teórico e independe das obras definidas como abertas.
“Elegias a vastidão de um epílogo”. Ressalto ainda que a obra não reflete uma abertura
somente em seu final, mas em toda sua estrutura. Sobre essa evidente ligação da obra A
força de não ter força com a corrente literária barroca, deixo o texto de Eco falar:
3
Vale a pena ressaltar que Eco defende que “abertura” não significa absolutamente “indefinição” da
comunicação, “infinitas” possibilidades da forma, liberdade da fruição; há somente um feixe de resultados
fruitivos regidamente prefixados e condicionados, de maneira que a reação interpretativa
do leitor não escape jamais ao controle do autor. (2005, p. 43)
do texto e o diálogo com a alteridade. O amor, por ser elemento fundante da obra A força
de não ter força, materializa os contrários, abarca o intemporal e abre-se, por sua vez, aos
questionamentos.
O amor é inquiridor e instigante, gera a dúvida e incita a busca por respostas. O
poema é em si a afirmação dos desejos do eu-lírico em relação ao amado/desconhecido e à
negação das respostas advindas de um caudal de interrogações concatenadas a um futuro
incerto, porém almejado. A dúvida conduz à afirmação e à negação, ou ainda, à tensão entre
os contrários. Não obstante, o paradoxo é o próprio amor, em sua ascensão e queda, silêncio
e precipitação, realidade e sonho.
Poesia de Maria Carpi bebe o século num sorvo só4
Nos 143 poemas sem título reunidos no volume A Migalha e a Fome, a poetisa
gaúcha mergulha profundamente no tema da fome, abordando-o não apenas do ponto de
vista social, mas também individual, e não apenas material, mas também espiritual.
A fome é um problema social crônico. A solidariedade para com os famintos já
produziu desde obras-primas da literatura, como o clássico A Fome, do Prêmio Nobel
dinamarquês Knut Hamsun, até nosso descarnado e vigoroso Vidas Secas, de Graciliano
Ramos, um dos pontos altos da ficção brasileira do século 20. Ou foi estudada como um
fenômeno à parte por um sociólogo que foi moda no Brasil há uns 40 anos, o nordestino
Josué de Castro. Mas também continua servindo de motivo para a mais torpe exploração
política e demagógica de políticos sem escrúpulos, como comprova a recente criação do
Fundo Nacional de Combate à Pobreza, a ser preenchido por recursos captados com o
aumento da alíquota da CPMF de 0,30% para 0,38%.
A poetisa gaúcha Maria Carpi (Guaporé, 1939) dedicou ao tema 143 poemas sem
título, numerados e divididos em quatro partes, reunidos no volume A Migalha e a Fome .
Só que ela fugiu do facilitário do tema e mergulhou profundamente em suas dificuldades,
abordando-o não apenas do ponto de vista social, mas também individual, e não apenas
material, mas espiritualmente. Em seu percurso, ela chega até a página em branco, metáfora
da fome, e à palavra criadora, imagem impressa da migalha que a sacia. Cumpre a tarefa
com brilho peculiar, não apenas pela profundidade com que aborda o contexto, mas
também pelo brilho que adiciona ao texto.
A voz poética de Maria Carpi não foi domada em escolas nem se amarra a estilos:
não é moderna nem arcaica, não é da vanguarda nem do retrocesso. Apenas é. Conseguiu
escapar da monocultura do rigor cabralino que assola a poesia brasileira nos últimos
tempos, mercê
da dimensão da obra do grande pernambucano, sem, todavia, se deixar desencaminhar pela
sedução do pitoresco. ??Sua poesia é tensa, mas calma. Não se impõe, mas também não se
omite: participa, mas preserva. Sua palavra tem música, mas não se submete à melodia nem
se deixa levar apenas pelo ritmo. Para começo de conversa, ela não parte daquela adoração
onanista da palavra como fim, da palavra pela palavra, mas parte do real como algo
palpável.
Dois notáveis achados metafóricos demonstram essa sua ligação com o real - mais
do que o real, o rotineiro, o cotidiano -, que não quer dizer necessariamente prosaico. No
poema nº 24 da primeira parte (A Lavoura da Fome), pode ser encontrada esta preciosidade:
"E debruçar-me à janela das coisas, / deixando o chapéu de palha seca / num prego
dependurado, feito sol." O achado dessa metáfora está no acréscimo de elementos abstratos
e inusitados à mera descrição de uma rotina morta: as coisas à janela em que a autora se
debruça, a secura da palha do chapéu (não me lembro de jamais haver lido em nenhum
texto a lembrança da secura da palha de que se faz o chapéu) e, finalmente, a metáfora final
do poema "feito sol". Essa comparação absurda - do chapéu dependurado num prego com o
sol, boiando no céu - contém uma carga de imaginação e de beleza que, à sua simples
4
In: O Estado de São Paulo. Caderno 2. 18 de março de 2001.
leitura, sustenta o poema inteiro, que, aliás, nada tem de realista, mas pode até, sem exagero
nenhum, ser definido como surrealista (com imagens como "resmas de borboletas à boca
molhada").
Logo adiante, Maria Carpi usa o recurso que pode ser dito como oposto a esse,
partindo de um elemento abstrato, mais do que abstrato onírico, para desaguar numa cena
de cotidiano
doméstico. No meio do poema 27 da primeira parte, ela escreve: "E o encadeamento dos
sonhos / como uma réstia de cebolas / sobre o fogão que ficou aceso." Talvez seja útil
acrescentar que, muito ao contrário do poema citado anteriormente, este último é nostálgico
- o fogo é um elemento a mais na reconstrução da lembrança de uma casa de infância, ao
mesmo tempo real e mítica.
Não está explícito no poema citado, mas decerto essa "casa de infância" dispunha de
oratório. A poesia de Maria Carpi não é, de fato, mística, mas é lavrada inteira num ritmo
de reza, de ladainha, sem perder nunca um certo sotaque bíblico. "Valha-me, pois, diverso /
verbo para suprir-te a fome", canta no poema 29 da primeira parte. "Dá-me o quinhão do
imensurável", ora, no último verso da primeira estrofe do poema 39 da quarta e última parte
do
livro (Ode de Amor e Fome - Sonata para Piano em Dó Menor). Essa voz contrita é, como
convém, humilde: "Não valho o pasto que rumino" (30 da primeira). É difícil aqui resistir à
tentação de encontrar, não influência, mas, digamos, um certo parentesco com outra alta
voz da poesia feminina brasileira, a da mineira Adélia Prado. Mas tudo o que em Adélia é
explícito em Maria chega de forma sub-reptícia sem arroubos de fé nem confissões de amor
místico. O que em Adélia é êxtase em Maria é lógico: "O ungido da fome não tem talheres /
nem rompante de apetite. Não..." (32 da primeira). O que em Adélia é eucarístico em Maria
é cáustico: "E quem a breve existência / visitou sem fome, nunca mais será saciado" (3 da
segunda parte, A Página Branca e a Migalha). A certeza da redenção, que mobiliza Adélia,
não comove Maria, que escreveu: "Tudo é para ser perdido" (9 da quarta).
No miolo de A Migalha e a Fome há toda uma digressão, interessantíssima, aliás,
sobre o processo de criação. Trata-se de uma digressão metafórica, pois aí não se trata da
fome de alimentos, mas de palavras. ??A autora expõe ao leitor seu processo criativo,
exibindo com ele a criação poética alheia e geral. O desafio da página em branco é seu tema
favorito: "Uma página em branco / nada mais é do que a pele / que necessita ser tocada /
para que algo, ou alguém, / desperte..." (4 da segunda); "A página não garante o poema" (6
da segunda); "A página mais bela é o enlace / do precário com o insondável. / A desmedida
no fragmento, / A pátria, no exílio..." (16 da segunda); "A página é a fatura do real / e a
migalha, poesia e sonho" (27 da segunda).
Maria Carpi não é de ficar carpindo, submissa ao impulso natural da caridade diante
do faminto. "A comiseração", ela escreveu no poema 8 da terceira parte (A Colheita do
Faminto), "não é fome, / mas o preposto do fastio."
Mais do que um tom musical, a definição do dó menor para sonata de piano que
serve de subtítulo à quarta parte de seu poema-livro é um juízo de valor sobre a piedade.
Não se trata de uma questão de mauvaise conscience, mas de consciência propriamente
dita, ou seja, da pressão exercida pelo faminto sobre o saciado. "Disse-me o faminto:
sempre / retornarei a puxar-te pelo casaco"- assim ela dá início ao poema 12 da terceira
parte, encerrado aliás de forma magistral: "Sempre o dente a menos na serra / que corta o
tronco.
A poesia de Maria é como aquele verso que abre o primeiro poema da última parte
de seu livro novo: "Uma lentidão de séculos / a um único sorvo, sem vagas." E mais ainda,
como diz no 28 da quarta parte: "Essa desobediência interferente, / sem ordem natural com
as coisas." Parece-me que, diante disso, tudo que já foi escrito por ela será ocioso e inútil
acrescentar palavras que não cabem, uma vez que as citadas se bastam.
Ressurreições5
Paulo Bentancur
Maria Carpi tem, por trás de seus versos extremamente depurados, um deslizar de
ave noturna que, tudo sabendo do fim que a acolheu, arremete rumo ao recomeço contido
nesse mesmo fim. Como num eterno retorno. Como no tempo futuro contido no tempo
passado de Eliot. Ou alimentando-se da forma como em um reduto inexpugnável do si-
mesmo. "Na forma eu encontro a mim mesmo", escreveu Bakhtin. E, ainda na linha
bakthiniana, da não-coincidência, incompatibilidade e inconclusividade.
O poeta aqui reconhece no herói o anti-heroísmo, ou, mais aproximadamente, o
processo natural de desheroicização. O potencialmente eleito - no caso, eleita - entrega-se,
na perda da eleição, eleição não tornada evento, no reconhecimento não recolhido (porque
não encontrado), a uma essência que se redesenha contra toda aquela espécie de ausência
que seria revide. Presentificada no abandono do outro, pedra sem o polimento da carícia,
"corpo no sudário do formol".
Maria Carpi reúne, em quatro séries de poemas numerados: primeiro, o cenário da
desvalia, uma espécie de precipício sutil onde a queda se faz horizontal porque a dor já
5
In: CARPI, Maria. O herói desvalido. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
brota de sua própria resistência (o cavalo como parceiro de uma jornada em que o épico
dignifica o drama); segundo, o lugar onde habita o ser, além de pano de fundo, é
"vulnerabilidade" a marcar as fronteiras da alegria num sítio em que há duas dores, uma
delas quente, que "(...) apazigua / e conforta. Limpa e amamenta / a cria. Em contraponto, a
dor fria".
Na terceira série, a queda é destacada em sua vertigem, ainda que vertigem verbal
seja o sumo de uma poética dilacerada e, ao mesmo tempo, o rigoroso equilíbrio da
versificação de Carpi, equilíbrio que impede qualquer vertigem previsível, amparando a
queda não só cantada como a própria queda da vida, que o poetamulher converte em solo
num constante movimento, em condição (des)humana de nem poder testemunhar uma
lâmpada acesa, "sobra vital, inevitável perda". Intitulada "O Caimento dos Frutos", esta
parte, a penúltima, surpreende com o admirável lembrar de que é preciso cair amando, que
sem amor não há queda. E, se há amor, mesmo caindo não se chamará tombo, mas
descensão de um manto. A descida da poeta - na maciça maioria a de seus pares,
autocondenados ao inferno - termina com o delicado sussurro de quem colhe assim que
mão e rosto beijem a terra. E a beijam, aliás.
Cai e, sem contar e cantar feridas, semeia o terreno árido que não a sustenta.
Território que ela alimenta com a seiva de sua derrota nunca deflagradora do fim. Desta
forma, a aridez se esvai e é tudo sumo, presença, mesmo na ausência do desejado. A
desvalia subverte seu esvaziamento, tornando-o, antes que seja menos, mais, o surgimento
do inefável hálito da coragem sem a bazófia dos que destroem.
Que coração grande, que coração! Coração a enlouquecer toda uma anatomia,
conforme Maiakóvski falando de si. Maria Carpi, entretanto, tomada da desvalia do mundo
(nunca desencantado pelo óbvio, embora inevitável ressentimento, mas reencantado pela
"dura matéria que poreja"), parte para o gesto mais extremo e mais inesperado: "retirar todo
o suporte, / inclusive a sombra do corpo/ Inclusive a água dos olhos".
Corça, a poeta antecipa, com sua carne, a flecha invasora e fere o objeto de seu
martírio com a dádiva de sua alma física. Resto de si, procura subsistir, "apesar da alma, da
resistência da alma". Isso é que é despir-se, isto é descobrir a grande arte, acessível a alguns
artistas, mas a raríssimos humanos: admitir ver em torno, "caindo os excessos, / / a demasia
da matéria, todo / íntimo, sem hostilidade, / já não a casca do sonho".
Salva do engano do grito imediato, cegante, a poeta agarra-se (e nem se agarra, no
fundo) aos "soçobros que ainda / / escorregam das páginas. (...) / (...) o murmúrio / /
fosfórico. Isso que resta / e que nunca será palavra". Daí seu poema ser sintaticamente
recolhido, vocabularmente de uma doçura seca, sem desvios, seu ritmo atrelar-se a um
sopro mínimo de respiração retomada após o golpe que ele não anuncia, não canta, não
reclama.
A ferida, embora mortal, não mata. Os frutos vão caindo. Mas a poeira, destinada ao
paladar dos filhos da queda, tem fome e cresce no tempo. O herói desvalido declara, sem
orgulho, mas nenhuma autocomiseração:
"Caio do cair".
Que amor é esse?
Que amor é esse que se compraz em, ao tocar, fazê-lo em queda, caindo como quem
mergulha e, nele nos perdendo, dele nos perdemos? "Para bem / cair no amor é preciso
recusar / as asas. E deixar a cicatriz voar”.
Beira a ironia semelhante resistência, coração de tantos recursos: "cair em virtudes /
é mais terrível / do que subir em vícios". "Ninguém se compadece" em "hóstias do cair", se
essa queda é a funda arremetida até o lugar em que raros freqüentam, sequer suspeitam
existir. Região de afeto em plenitude onde não há preços, não há disputas mesquinhamente
reprisadas na rotina das relações, muito menos ásperos trocos contra o desamor surdo ao
amor que entoa seu hino sem alarde.
Que amor é esse? É o amor, o único. Daí poucos o conhecerem e tanto ele surgir
como tema, em todas as formas de arte, e há milênios. Só se fala do que não se conhece. O
desejo pelo amor é tanto, que se impõe como desejo e esmaga o amor possível, já que amor
não pede pressa nem preço, só o zelo de reconhecê-lo na sua secreta morada.
Maria Carpi mora aí. Sempre morou, pelo jeito, e nos revela, sem a falácia do gozo
fácil nem o rancor da amargura do desencontro, cada recanto dessas câmaras remotas e de
luz limpa, mas quase imperceptível. Câmaras onde "faltam-me versos para morrer" e, se a
poeta "exala a última poesia", declara-o como uma forma inadiável de avisar que a verdade
chega a ser um extravio. Mas não pode ser desprezada.
O que a quarta e derradeira série do livro confirma, superando a tortura comum de
tantos personagens desafortunados ante esse sentimento permanente e mortal (igualmente
vivificante) com a incomum ternura e a mais incomum força moral e lírica de um ser que.
diz: "Eu, mácula, em teu magnificat." O amor supera os amantes, mas não supera a
sensibilidade de Maria Carpi, poeta capaz, de mãos dadas com o gênero que elegeu, de
refundar o mundo e, desta forma, içar à luz o que os homens jogam à sombra, refazer o
valioso percurso do maior dos tesouros: o ser condenado à desvalia e, ainda assim, capaz de
torná-la ferramenta, moeda, remédio, poesia, beleza - resposta a derrubar os que, caindo,
derrubaram o que estava destinado ao vôo.