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Conferência apresentada no IFCH, UNICAMP, a convite do CPA, em 05/06/98. Gostaria de
agradecer aos professores que, além de propiciarem-me várias leituras de seus artigos (publi-
cados ou inéditos), proporcionando-me, em muitos momentos, a oportunidade de discussão,
influenciaram assim, direta e indiretamente, as reflexões aqui desenvolvidas: Ana Teresa Mar-
ques Gonçalves, Andrea Lúcia Dorini de Oliveira, Carlos Augusto Ribeiro Machado, Cláudio
Aquati, Fábio Faversani, Gilvan Ventura da Silva, José Miguel Arias Neto, Luciane Munhoz de
Omona, Luiz Otávio Magalhães, Marcos Breno Torri, Margarida Maria de Carvalho, Marisa
Correa Silva, Nelson Schapochnik, Norberto Guarinello, Pedro Paulo Abreu Funari, Regina
Maria da Cunha Bustamante, Renata Lopes Biazotto Venturini, Renata Senna Garraffoni, Sônia
Regina Rebel de Araújo. A responsabilidade pelas idéias limita-se a seu autor.
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Professor de História Antiga. Departamento de História – Universidade Estadual de Londrina
– UEL – Londrina – PR – 86.051-970 – E-mail: crgclau@npd.uel.br
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O debate com outros pesquisadores iniciou-se em 1996 na UNESP de Franca/ SP, na XI
Semana de História, onde tive a oportunidade de confrontar minhas idéias com as dos profes-
sores Norberto Luiz Guarinello (USP) e Fábio Faversani (UFOP) em uma comunicação coorde-
nada (“Um debate Brasileiro sobre o Satyricon”), e, posteriormente, com os professores Pedro
Paulo Abreu Funari (UNICAMP) e Norberto Luiz Guarinello em uma mesa-redonda no XIX
Simpósio Nacional de História “História e Cidadania” realizado na UFMG em 1997, intitulada:
O Texto
“Os caminhos, problemas e desafios do ensino e pesquisa em História Antiga no Brasil”, cujos
textos foram publicados parcialmente no Boletim do CPA, ano II, n. 3, janeiro/junho de 1997.
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Utilizarei a versão portuguesa, à qual o público teve acesso (Veyne, 1993).
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Encontrada no Brasil, geralmente, em sua tradução espanhola: ROSTOVTZEFF, M. História
Social y Económica del Imperio Romano. Madrid: Espasa-Calpe, 1937, Tomos I e II.
obrigação, entre outras, de usar o “nome” do patrão para que este não se
extinguisse. Ao contrário de nossa sociedade, onde pensaríamos “sangue”
a Antigüidade pensaria “nome”.
De acordo com Veyne, quando o patrão morria e não deixava herdei-
ros, herdava o liberto. Além disso, muitos senhores libertavam seus escra-
vos após a morte e lhes legavam certos bens como prova de amor e de
amor à ostentação. A liberdade dada ao escravo, em vida, geralmente se
dava por distinção e méritos de trabalho, e a forma do reembolso se dava
pela cobrança de certas funções econômicas. O Alto-Império seria o mo-
mento das chamadas “libertações em massa”, que tinham conseqüências
éticas, mas não econômicas. Neste caso, os libertos deixariam a família do
senhor e entrariam para a familia libertinorum, onde passariam a dever
certas obrigações, garantidas por lei, ao antigo senhor ou aos seus descen-
dentes. É nesta situação que os libertos adquiriam um novo estatuto entre
os escravos: funções de comando entre os próprios escravos; ou seja, as-
cendiam dentro da “carreira”.
Seria este, portanto, o estrato social amante dos negócios, que teria
sido qualificado justa e injustamente, por Rostovtzeff, como “burguesia em
ascensão”. Esta seria a “lenda” criada pelo Satyricon.
Trimalquião não seria um liberto, mas um libertinus, ou seja, um li-
berto sem senhor, um liberto independente. Nesta sociedade, permeada de
valores, concepções, modos de vida e hierarquias estáticas, a promoção
não seria democrática. O liberto independente não poderia bater às portas
da boa sociedade, visto existirem vias específicas de mobilidade controla-
das pelos laços de dependência e clientela. Falar, então, em ascensão de
libertos como se fossem uma “burguesia” seria uma falácia, pois a liberdade
não significaria absolutamente nada já que, de forma geral, os libertos não
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A chamada Cena Trimalchionis.
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Note-se o vocabulário “orgânico”, com claras analogias ao organismo e seu funcionamento
biológico, como se a Sociedade fosse um “ser vivo”.
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No De Oficiis 1.150-1. Interpretação compartilhada, inclusive, por Moses Finley (Finley, 1986:
53 e sgs)
Seria, assim, que Trimalquião passaria a não ter profissão, pois não
ter ofício seria viver nobremente – e a própria nobreza seria o objetivo final
da vida humana. Até mesmo o censo seria baseado na riqueza fundiária: a
usura não tinha nada de desonroso e o comércio desclassificaria. Portanto,
este liberto “suscita magicamente” uma condição que não é real: está preso
a sua condição de nascimento e, por este motivo, não faria parte da “boa
sociedade dos homens livres”.
Assim, pode-se adotar o gênero de vida de uma classe sem perten-
cer a ela, até mesmo sem pretensão alguma: isso era apenas uma questão
de dinheiro. Contudo, o que separaria Trimalquião da boa sociedade não
seria o dinheiro, nem sua vulgaridade, mas seu estatuto: não era um cida-
dão, e isto o separava da nobreza municipal e eqüestre. Ele não chegou a
lugar algum e muito menos possuía filhos que, algum dia, pudessem che-
gar. Teria sido um Princeps Libertinorum, ou seja, o primeiro entre os liber-
tos. Imitava os ricos da época, mas também adquiriu os gostos de sua pró-
pria categoria como, por exemplo, os jogos de circo. Seus valores (mérito
pessoal, dinheiro, riqueza, lucro, etc.), definiriam suas relações com as
classes inferiores e trairiam sua inferioridade, pois proclamavam seu desti-
no de sorte: o “berço”, o nascimento, não contava.
Petrônio teria captado a situação sócio-psicológica, demonstrando o
medo do desprezo e a interiorização do juízo dos outros. Assim, estes li-
bertos cairiam em desgraça, pois se julgariam a partir dos princípios sociais
dos homens livres. Segundo o autor, longe de provocar rebeldia ou uma
“luta de classes” (coisa impensável na época), a consciência de inferiorida-
de por parte dos dos libertos, supõem sua aceitação da ordem existente:
humilhados não se rebelam, mas se conformam. Não se sentiriam privados
e nem frustrados, pois a frustração é um sentimento típico dos que se con-
A Análise
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Abordagem que retoma vários argumentos de Veyne, pode ser encontrada em Andreau (An-
dreau, 1992)
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Os historiadores da “Escola Metódica” (Reis, 1995).
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Veja-se Funari : “Documentos: análise tradicional e hermenêutica contemporânea” (Funari,
1995: 14-22).
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Veja-se Cândido et alii ( Cândido, 1987).
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Uma análise comparativa possível é aquela que estuda as inscrições de época romana (Qui-
roga, 1991; D’Arms, 1981) ou com relevos funerários (Gonçalves, 1996). Assim, torna-se tam-
bém possível verificar a verossimilhança da obra com um suposto real.
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Cf. Keith Hopkins (Hopkins, 1965 e 1993).
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Um outro recorte está relacionado com a tomada do termo “cicaro” (“menino querido”) por
“puer delicatus” (“menino gostoso, delicado”). Veja-se Veyne, p. 17: “É o que faz pelo seu puer
delicatus um dos libertos do Satyricon...” (cf. ERNOUT, Alfred. Pétrone. Le Satiricon. Paris: Les
Belles Lettres, 1962, XLVI, 3 , (“Et iam tibi discipulus crescit cicaro meus”).
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Autores como Nicholas Horsfall discordam radicalmente da abordagem que visa reforçar os
ideais das elites romanas, ideais reforçados em quase toda a literatura sobre o Satyricon. De
acordo com Funari (Funari, 1998), Horsfall, “denuncia o “coro uníssono de desprezo” pela cultu-
ra popular romana (pp. 33-34). Segundo o modelo dominante, a grande maioria, vítima das
necessidades econômicas, da prepotência aristocrática e da instrumentalização política, estaria
condenada ao analfabetismo e à ignorância, depauperada intelectual e culturalmente. Horsfall
discorda radicalmente deste esquema e prefere propor um modelo bipolar (pace Ginsburg): “há
bons motivos para aceitar a existência de uma outra cultura ‘paralela’, popular, também essa
rica e vigorosa, à sua maneira, fundada não sobre os textos literários, mas sobre a música, as
canções, o teatro, a memória, os jogos” (p.34). Ainda contra a corrente, característica, aliás,
marcante do livro, o autor não concorda com a interpretação canônica (e.g. Walsh), segundo a
qual Petrônio, no Satyricon, apresenta os libertos como dignos de desprezo, mas, ao contrário,
os libertos aparentam amar seu modo de falar, assim como demonstram usar com entusiasmo
e com criatividade sua língua. Não se consideravam ignorantes, no plano lingüístico, mas cria-
tivos (p.38)”.
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Andrea Carandini já apontava algumas contradições nas abordagens de Veyne: “Non è quin-
di facile inquadrare Veyne in modo preciso nella storia del suo tempo. Nelle grandi linee – sen-
za scendere nella tipologia di diversi gruppi intellettuale – mi sembra ch’egli sai uno dei risusci-
tatori del soggettivismo neopositivista di R. Aron (...) – ma i precedenti risalgno a Weber, Ri-
ckert e Dilthey (...). Per altro verso il nostro Autore, che si definisce antistrutturalista, há una
visione dualistica della realtà non lontana da quella di Lévi-Strauss: da una parte l’essenziale,
l’ordine, il necessario, lo strutturale (la scienza di Veyne); dall’altra il superficiale, il disordine,
l’acidentale, l’eventuale (la storia di Veyne)” (Carandini,1979: 351). Além destes problemas, de
seu “conservadorismo” e “bizantinismo”, “Alla visione limitata della storia di Veyne non poteva
non seguire una idea limitata della figura dello storico (...). Lo storico neutrale di Veyne non
deve distinguere figure e movimenti che abbiano reppresentato validamente una situazione
reale da figure e movimenti che abbiano espresso la realtà com coscienza deformata. Nel rac-
conto di un itinerario, che è la storia, tutte le tappe sarebbero uguali ”. (idem, 352)
reflexo de uma “verdade” social que existe “desde sempre”. Assim, não
existe luta de interesses, nem de classes, nem de categorias sociais, nem
de ordens18. Existe ordem19! Esta seria a única utopia possível entre a imi-
tação e a compulsão20. É por este motivo que este “embrião de classe soci-
al”, que teria aspectos do capitalismo comercial, atinge apenas uma peque-
na fase de, mais ou menos, uns 300 anos dentro do império: ressalte-se,
metade da História do Brasil!
Neste sentido, é impossível existir qualquer “classe”21, visto que para
Paul Veyne não existe “consciência de classe”22, revolucionária, não existe
utopia imaginável além daquela proporcionada pelas regras ditadas pelas
elites aristocráticas23. Os libertos são seres “sem memória”, iguais a nós.
Existe o simulacro, a imitação, a imagem; não existe um processo históri-
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Contra esta interpretação, veja-se Hopkins (Hopkins, 1965) e Weawer (Weawer, 1967).
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Atualmente alguns historiadores propõe a utilização do termo “desordem” para explicar a
mobilidade social que possuiu como efeito o antagonismo entre as classes sociais romanas
(Mouritsen, 1996).
20
Cláudio Aquati considera que “ o fato de Trimalquião e outros libertos revelarem seu passado
de escravo não seja escolha sua, mas um hábito, uma compulsão que não conseguem escon-
der ou de que não se podem livrar, ou melhor, é uma atitude da qual eles nem se dão conta,
pois do contrário seguramente fariam questão de negar para assim agir de outra forma, segun-
do sugere sua psicologia mostrada (ou recriada) por Petrônio” (Aquati, 1997:211 – nota n. 291).
Todavia, o autor não se arrisca a “estender para os libertos de maneira geral o retrato criado
por Petrônio” (Idem, Ibidem).
21
Mario Mazza propõe uma outra forma de se entender o conceito de classe social, a partir do
redimensionamento de elementos teóricos marxistas (Mazza, 1978).
22
Quanto a utilização mecânica do conceito de classe social, veja-se Annequin (Annequin,
1978).
23
Weawer demonstra que os critérios de competência profissional exigidos aos libertos na
administração do Império é a causa de um constante conflito entre libertos e aristocracia: “The
secret of administrations’s success is revealead as a kind of class struggle: the true Roman
equestrians against the upstart oriental freedmen, with virtue and superior breeding, but not
necessarily superior intellect or education, inevitably winning the day” (Weawer, idem, p. 18).
Neste sentido, Carandini já apontava que a interpretação de Veyne torna os valores da classe
dominante, o bem comum de toda a sociedade: “Per altro verso, il dotto non ha alcuna missio-
ne da svolgere: deve pertanto guardarsi dal conservare i valori di una civiltà trasformandoli da
monopolio delle classi dominanti in bene comune di tutta una società”. (Carandini,1979:352).
co24, visto não existir sujeitos históricos. A sociedade é perpassada por mi-
cropoderes25 os quais criam múltiplos espaços demarcados: são os espa-
ços, de acordo com Marilena Chauí, “incopossíveis” (Chauí,1992: 31-32).
Estes espaços “colidem, se excluem e, no entanto, coexistem”.
O texto de Veyne, e aqui podemos considerar também aquele exis-
tente na História da Vida Privada26, nos coloca espaços existindo simulta-
neamente, sem nenhuma comunicação possível além daquela estabelecida
pela lei. A única relação possível, com estes vários espaços, é a de espec-
tador. “Cada espaço com sua lógica própria”. Entretanto, na falta da exis-
tência de um referencial comum que consiga dar lógica e sentido à aborda-
gem, utiliza-se de referenciais pessoais: como diria Hobsbawm (1998:211),
“Há somente uma voz e uma concepção: a do autor”. Os libertos são, as-
sim, um dos elementos dessa “pós-modernidade romana”, “vivendo no tem-
po do Espírito Santo: tudo é imaterial... tudo flui... nada bate em nada...
voa... voa... imaterialmente, como se fosse o espírito que paira sobre as
águas” (Chauí, idem, p. 32). A História não é, nesse sentido, uma “resposta
(elaborada evidentemente por meio dos documentos) a uma pergunta que
se faz ao passado” (Marrou,s/d:53), ela é a tentativa de descrição da factici-
dade do fato, criado pela ficção e, sendo assim, não se pode “evitar a (...)
acusação de ‘positivismo’” (Hobsbawm, idem:210).
Não é por acaso que o texto de Veyne, na História da Vida Privada,
retome a análise do Vida de Trimalquião: a coleção dirige-se ao consumo
24
Crítica que já era dirigida, também, por Mario Mazza, à obra de Moses Finley (Mazza,
1978:506).
25
Talvez, uma versão melhor elaborada deste conceitual, sejam as chamadas “relações diretas
de poder” de Fábio Faversani em sua dissertação de Mestrado, inspirada na Escola de Cam-
bridge (Faversani, 1995). Veja-se, também, a crítica elaborada por Faversani à Paul Veyne:
págs. 158-163.
26
VEYNE, Paul. (org.) História da Vida Privada 1. Do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
27
Portanto, “esperteza, trabalho, mérito pessoal, crédito e desejo de lucro e de enriquecimen-
to”, na análise de Veyne, perdem sua dimensão de “significados culturais” que poderiam de-
terminar uma classe social (Mazza, 1978), para se tornarem determinantes de um “vício social”,
contraposto à “virtude” das elites Antigas e dos intelectuais contemporâneos.
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Veja-se o emprego do termo aplicado à sociedade etrusca em Guarinello (Guarinello,
1986/87:49-62).
29
Alguns preferem designá-la “pseudo história” (Calhoun, 1993).
Referências Bibliográficas
30
Não se trata aqui da crítica moral, inútil e cristã, à sociedade de consumo: isto é uma cons-
tatação. Como já havia ressaltado Jean Baudrillard: “O discurso negativo constitui a residência
secundária do intelectual. Assim como a sociedade da Idade Média se equilibrava em Deus e
no Diabo, assim a nossa se baseia no consumo E (sic!) na sua denúncia” (Baudrillard,
1995:210).
31
Debate sobre o livro “O Eldorado”, em 01 de abril de 1998. Apresentação, p. 07 (manuscrito
inédito).