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11/10/2019 Em Elvas, o Chega “recolheu o ódio da população” contra os ciganos e ganhou votos | Reportagem | PÚBLICO

REPORTAGEM

Em Elvas, o Chega
“recolheu o ódio da
população” contra os
ciganos e ganhou votos
Dados da PSP de Elvas mostram que não há mais
ciganos a cometer crimes do que não-ciganos.
Mas na cidade onde vivem centenas de ciganos os
preconceitos estão bem vivos. Uma das suas
freguesias teve a maior taxa de votantes no Chega
acima dos 100 votos e muitos explicam-nos com a
ciganofobia. Ele “recolhe o ódio da população”
para captar votos, diz um mediador cigano. Há
quem tema que o Chega vá agora para Elvas
“provocar ciganos para legitimar” o seu discurso.
Joana Gorjão Henriques (texto) e Francisco Romão Pereira (fotos) • 10 de Outubro de 2019,
22:35

CONTEÚDO EXCLUSIVO

 
No domingo, Almerindo Prudêncio
estava numa mesa de voto na Escola
Básica de Santa Luzia, centro de
Elvas. Achava que o Chega ia ter

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apenas “uma meia dúzia de votos”.


Mas, afinal, foram mais. “Não se
estava à espera de nada disto”,
afirma o também mediador cigano
naquela escola.

A sua freguesia — Assunção, Ajuda,


Salvador e Santo Ildefonso, que fica
no centro de Elvas — registou a
maior taxa de votação no Chega
entre as que tiveram acima de 100
votos. Em 8368 eleitores, aquele
partido de extrema-direita tornou-se
a quinta força política, à frente do
PCP e do PAN: 167 votos, ou seja,
4,49%.

Olhando para trás, isto não espanta


assim tanto Almerindo Prudêncio,
44 anos.“Encontraram no Chega a
maneira de expressar a
discriminação. Há um preconceito e
uma ideia de que somos todos iguais
e que não há nada de bom entre os
ciganos. É nisso que o sr. Ventura
pega e faz a sua campanha: recolhe o
ódio da população, faz uma
manobra e solta aquelas
baboseiras.”

Estamos no Bairro de São Pedro,


onde vivem famílias ciganas e não-
ciganas, e onde reside Almerindo
Prudêncio. Prédios brancos baixos,
estradas largas, ambiente tranquilo.
“Afinal o que é um cigano?”,
questiona. “Se o dicionário diz que
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são ladrões, trapeceiros, então há


muitos mais que nós. Ele [André
Ventura] transfere todo o mal da
sociedade para os ciganos e capta os
votos de pessoas inconscientes”.

Sobre os ciganos André Ventura


repetiu várias vezes que viviam à
custa de subsídios e que são
favorecidos em relação a outros
cidadãos, nomeadamente na
habitação. Entrando no Bairro das
Pias, às portas de Elvas,
favorecimento é tudo o que não
existe. A água canalizada não corre
nas torneiras, as casas são em
estrutura pré-fabricada, o lixo no
descampado não é retirado, não há
transportes públicos à excepção da
carrinha da escola. Ali vivem cerca
de 40 famílias há mais de uma
década. Há bidões de água
espalhados nos terraços, e crianças a
tomar banho cá fora, de balde. Por
dentro, algumas casas parecem ter
sido pintadas de fresco,
contrastando com o exterior; outras
têm rachas e bolor.

Segundo o Instituto de Habitação e


Reabilitação Urbana, em 2015, 45%
de todos os alojamentos não
clássicos eram habitados por
famílias ciganas, 32% das famílias
ciganas residiam em alojamentos
não clássicos e 46% em habitação
social.
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Almerindo Prudêncio explica aos


moradores o motivo da reportagem:
perceber por que razão tanta gente
na freguesia votou no partido de
extrema-direita. A maioria absteve-
se. Porquê? “Nunca fazem nada pela
gente”, diz David Carmo, 38 anos.

Almerindo Prudêncio contextualiza:


“Grande parte das comunidades
ciganas não se sentem
representadas, estão completamente
despolitizadas. Houve políticas
[dirigidas aos ciganos] sobre as
quais não lhes perguntaram nada:
dá nisto. E depois as pessoas estão
resignadas, não é só aqui. Aqui há
segregação mas não é caso único. Se
estes senhores puserem um
currículo numa proposta de

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emprego, sabendo que as pessoas


são do Bairro das Pias, vai para
trás.”

A jovem Sheila Cardoso quer falar.


“Há muito racismo, aqui há poucos
a tratarem bem os ciganos.” E
comenta: “Eles desistiram da gente.
Dão-nos patadas”.

Cátia Carmo, 29 anos, não-cigana


casada com um cigano que tem
família no bairro, chega à rua de
carro. Atrás está o filho. As famílias
aceitaram-se bem, conta. Ela
costuma comentar nas publicações
das redes sociais para defender
ciganos: “Na nossa etnia tanto há
bons como maus, como na deles.
Não acho justo. Não são só os
ciganos que recebem o RSI. Revolto-
me muito.”

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Os números oficiais dizem que os


ciganos em Portugal correspondem
a 0,4% da população. Em 2015 havia
cerca de 530 ciganos registados
oficialmente no concelho de Elvas,
segundo o Observatório das
Comunidades Ciganas, mas a
população pode crescer em
determinadas alturas até aos mil.

Dados da actual Estratégia Nacional


para a Integração das Comunidades
Ciganas (ENICC) dizem que 97%
dos ciganos, em 2011, estavam
abaixo do limiar da pobreza. Mas é
falsa a ideia de que sobrevivem à
conta de prestações sociais, revela o
primeiro grande estudo nacional de
2015 sobre esta comunidade, feito
pela investigadora Manuela Mendes:
“uma percentagem grande
trabalha”, só que muitas vezes não
se trata de trabalho no mercado
formal, com um contrato ou um
salário. Metade dos ciganos recebe o
Rendimento Social de Inserção
(RSI), o que representa apenas entre
3 a 6% do bolo do RSI distribuído a
nível nacional, segundo dados do
Instituto de Segurança Social
compilados em relatórios.

Uma cidade conservadora 

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Falando com a população a


impressão é de que não era preciso
André Ventura ir espalhar xenofobia
em Elvas contra os ciganos para que
existisse. Não houve autocolantes,
nem brindes, nem candidatos do
Chega a circular entre os habitantes.
Pelo menos ninguém se lembra de
os ver. Mas André Ventura é adepto
ferrenho do Benfica, comenta na
CMTV (faltou a um debate das
europeias por causa de futebol) e
tem uma coluna no jornal mais
popular do país, o Correio da
Manhã.

Poucos sabem o que defende o seu


partido além do ataque aos ciganos.
Propostas? Eliminar o cargo de
primeiro-ministro, castração
química de pedófilos, reduzir o
número de deputados para uma
centena, prisão perpétua, taxa única
de IRS e extinção do Ministério da
Educação.

À mesa de um restaurante no centro


está o comunista António Avis
Afonso, a almoçar com o irmão.
“Elvas foi uma cidade de
agricultores, latifundiários. Havia
relação com a extrema-direita, com
PIDE. Aqui não é PS, nem PSD, é
uma questão familiar”, diz. Numa
reportagem da RTP acusou-se a
Câmara de Elvas de ter excluído
uma jovem deficiente de 25 anos,
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com o 12.º ano, de um concurso,


para colocar a familiar da ex-
secretária do presidente da Câmara.

Foi o PS, porém, quem voltou a


vencer as eleições na cidade de Elvas
e naquela freguesia onde estamos:
num universo em que quase 56%
das pessoas não foram votar, ficou
com 39% dos votos; o PSD teve
24,7%. O BE ficou à frente do Chega
com quase 9% e o CDS também,
com 7,66%.

Electricista, António Afonso acha


que quem votou na extrema-direita
foi o eleitorado do PSD. Sobre o
sentimento anticiganos na cidade
diz: “Não sou racista. Mas eles não
se dão com a gente, não se
integram.” Discorre frases que
associam os ciganos ao crime e à
desordem. Contrapomos com o que
alguns ciganos disseram. Não
concorda. Se um candidato do PCP
dissesse o que André Ventura diz
sobre os ciganos, votaria nele?
- perguntámos. Responde: “Esse
candidato acabava, não votava”.

Um jovem passa pela mesa, levanta-


se, atira: “Devia era entrevistar as
pessoas novas”. Votou no Chega? -
perguntámos. Levanta o dedo como
quem diz que sim e desaparece.

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A tarde está quente e não há muita


gente na rua, tirando alguns turistas
espanhóis. Jacinto César, 69 anos,
ex-professor e vice-presidente da
Aiar - Associação de
Desenvolvimento pela Cultura,
surpreendeu-se com os resultados
da extrema-direita, nomeadamente
no distrito de Portalegre, ao qual
Elvas pertence, e onde teve 1407
votos, ou seja, 2,73%.

André Ventura vem do PSD de


Loures, mas acabou por ser afastado
pelo seu partido e pelo CDS com
quem estava coligado. Depois de
várias irregularidades com o
processo — com assinaturas de
menores e militares — em 2018
conseguiu que o Tribunal
Constitucional aprovasse a
constituição do Chega. O Chega
criou a coligação Basta nas
europeias, usando como “barrigas
de aluguer” o Partido Pró-Vida e o
Partido Popular Monárquico.
Jacinto César é, aliás, um dos
fundadores do partido Pró-Vida. Diz
não ter votado no Chega, votou em
branco.

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Jacinto César fundou o Pró-Vida

“Estou convencido que é uma


questão racista”, afirma sobre a
motivação do eleitorado. “É que os
problemas com os ciganos são quase
diários”, diz. Perguntámos quais.
“Os assaltos, a maneira de estar
deles que não se querem integrar.”

Crime não é problema


exclusivo de ciganos, diz
PSP
Uns metros à frente está a esquadra
da PSP. É lá que trabalha o
comandante de divisão de Elvas, Rui
Massaneiro. O registo de crimes
contradiz o preconceito. “Os
números não indicam que exista
maior número de crimes cometidos
pela comunidade cigana do que pela
restante população. O crime não é
um problema exclusivo da
comunidade cigana”, afirma.

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Quanto a boatos sobre aumento do


crime em Elvas diz: “Até há redução
da taxa de criminalidade dos crimes
contra o património.”

Rui Salabarda, coordenador do


gabinete de mediação intercultural
em Elvas, dirigente da associação
Sílaba Dinâmica e candidato do
Bloco de Esquerda, reconhece que
foram “as acusações
discriminatórias contra os ciganos e
o mediatismo que lançaram André
Ventura”. Em Elvas, nota sim que
há, mesmo inconscientemente, um
discurso discriminatório: “Quando
um cigano faz alguma coisa têm
tendência a dizer ‘os ciganos”.
Quando há um roubo têm tendência
a dizer que é um cigano”. O seu
trabalho é desmistificar e
desconstruir isso. Mas mesmo ele foi
surpreendido com o resultado:
“Algumas pessoas quiseram mostrar
revolta por se estar a pôr o foco na
integração de minorias étnicas. Não
percebem o que é equidade.
Entendem que é um favorecimento”.
Outra “parte” desse eleitorado terá
sido mobilizado pelo discurso contra
a corrupção. E outra respondeu ao
discurso sobre reivindicação de
direitos das forças de segurança
(dois dirigentes sindicais da PSP
fizeram parte da lista do Basta às
europeias). “Tenho receio que o

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Chega venha a Elvas provocar os


ciganos para legitimar o seu
discurso.”

Para a directora da Escola


Secundária D. Sancho II, Fátima
Pinto, 54 anos, os motivos da adesão
nada têm a ver com os ciganos:
“Sempre coabitámos com eles”, diz.
Lembra que Elvas é “zona de
grandes latifundiários e
conservadorismo”. Afirma que quem
votou Chega “não votou por repulsa,
mas mais por ideais, há uma grande
fatia monárquica”.

Fátima Pinto, directora da Escola Secundária em Elvas

Já José Laço, presidente da Junta de


Freguesia pelo PS, não notou sequer
a presença do partido durante a
campanha. Não descarta a xenofobia
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como motor. “A integração dos


ciganos vai estando mais próxima.
Ainda está a meio a evolução de só
quererem ter direitos e não querem
obrigações”, afirma, referindo-se à
questão dos subsídios. Em que
diferem estas opiniões das de André
Ventura? “Não empurramos [os
ciganos], mas fazemos uma
aproximação”, considera.

Aos 60 anos, com uma tatuagem no


pulso, Preciosa Brito não tem pudor
em afirmar que votou no Chega, mas
noutra freguesia. Está num café
perto do Clube de Ténis e ouve-nos
abordar um grupo de mulheres que
não quer falar. Ela quer.
Benfiquista, acompanhava André
Ventura na CMTV. É viúva,
doméstica, não costumava votar, e
desta vez até influenciou algumas
pessoas. Subscreve as ideias do líder
de extrema-direita sobre os ciganos:
“A voz dele vai representar quem
tem ideias como ele: não dar
subsídios às pessoas que nunca
trabalharam, a pena de morte, a
castração química dos pedófilos.”

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Preciosa Brito votou no Chega

Numa grande esplanada onde se


juntam pequenos grupos, Luís
Aparício e os amigos bebem cerveja.
Ele acabou o curso de produção
musical, está desempregado.
Participou nas mesas de voto no
domingo. “Acho que é aquele medo
imposto à sociedade para que
tenham o preconceito. É um
discurso que incentiva ao ódio”, diz.
Não descarta como factor de
mobilização do eleitorado ele
aparecer na CMTV e ser benfiquista.
“Sabe que os temas que levanta são
polémicos. E o que ele quer é
polémica para ficar na boca do
povo.”

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Luís Aparício, segundo à direita, esteve na mesa de voto no domingo

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