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18/06/2019 Educação, Arte e Política à sombra de Paulo Freire, Cayo Honorato — Fórum Permanente

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Educação, Arte e Política à sombra de Paulo Freire, Cayo Honorato


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Por Cayo Honorato

Relato sobre a Mesa 2 do Seminário Internacional sobre Educação, Arte e Política, da 29a Bienal de São Paulo, realizada no dia 21/08/2010, das 10h às 13h, no auditório do MAC-Ibirapuera.

A segunda mesa do Seminário sobre Educação, Arte e Política, em consonância com a plataforma discursiva elaborada para a 29a edição da Bienal, teve como propósito discutir a dimensão
política das relações entre arte e educação. Para tanto, as diferentes experiências trazidas pelos convidados foram vincadas por sua referência mais ou menos direta ao legado de Paulo
Freire, a quem o Projeto Educativo parece tributar seu compromisso com uma “educação dialógica”. São elas, resumidamente, como o principal de cada apresentação: alguns encontros de
Luiza Erundina com Paulo Freire, desde quando, antes de conhecê-lo pessoalmente, trabalhou na formação dos Círculos de Cultura no interior da Paraíba, até quando na sua gestão como
prefeita de São Paulo o teve como secretário de Educação; a criação em 1992 da Fundação Casa Grande na cidade de Nova Olinda, no Ceará, por Francisco Alemberg; e a Escuela
Panamericana del Desasosiego, projeto artístico-educacional de Pablo Helguera, itinerante por diversas cidades, do Alasca à Terra do Fogo, de maio a setembro de 2006. Assim, de maneira
geral, põe-se em questão o modo como, nessas experiências, “revisitar o grande legado desse educador brasileiro” atualiza (ou não) aquela dimensão.

Destaco a seguir alguns pontos de cada apresentação, refraseando algumas de suas passagens, acrescentando-lhes alguns comentários e referências. Por sua maior convergência das
questões dispostas pela mesa, e por haver sido anunciado como o curador pedagógico da próxima Bienal do Mercosul, a apresentação de Helguera mereceu uma atenção mais demorada de
minha parte.

1.

Para uma compreensão do legado político e educacional de Paulo Freire, o relato de Luiza Erundina constitui uma peça importante para o que ela mesma julga necessário: situá-lo histórica e
socialmente. Assim, lembra que, nos anos anteriores ao Golpe de 1964, vivia-se no nordeste e no país um momento de grande mobilização social e participação política. Era o momento de
João Goulart na presidência da República, Celso Furtado na SUDENE, Miguel Arraes no governo de Pernambuco e Paulo Freire no trabalho de conscientização e alfabetização dos
trabalhadores rurais. Na mesma época, quando ainda estudante no interior da Paraíba, Erundina atuou na formação dos Círculos de Cultura (que Freire havia criado no governo de Arraes),

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trabalhando então com os remanescentes da Liga dos Camponeses, um movimento expressivo de luta pela reforma agrária, cujas lideranças foram exterminadas pelo Governo Militar. Depois
disso, tanto Freire quanto Arraes são perseguidos por “subversão da ordem”, tendo que se exilar após um período presos, enquanto Erundina vem pra São Paulo, onde passa a viver na
“semi-clandestinidade”, trabalhando como assistente social no serviço público.

Para Erundina, o método de Freire conscientiza e mobiliza, torna o sujeito militante, capaz de ler as injustiças de uma realidade por ele vivida e de se organizar coletivamente para mudá-la,
sendo por isso um processo político e revolucionário. Conforme sua leitura da Pedagogia do Oprimido, trata-se de levar os oprimidos a se autolibertar em um processo dialógico (o que
significa que ninguém se liberta sozinho, nem uns são libertos por outros), portanto, em uma relação entre sujeitos que se autonomizam acumulando força política, ou melhor, que definem
uma política como ação de sujeitos conscientes e livres, identificados porém com uma mesma vontade de realização (qual seja: a inserção crítica na realidade opressora em vista de sua
transformação). Paulo Freire de fato atribui aos oprimidos a “grande tarefa humanista e histórica” de libertar-se a si e aos opressores da alienação social, já que uma mobilização semelhante
por parte dos opressores só poderia redundar em “falsa caridade”. Assim, devem os educadores lutar com os oprimidos, pela recuperação da humanidade que nos foi roubada a todos, mas
só os oprimidos podem dar a essa luta sua finalidade. Em última instância, é preciso ressaltar, a eficácia dessa pedagogia se verifica na exigência radical da transformação objetiva da
realidade opressora, sem o que a afirmação da liberdade redunda em farsa.

O trabalho da conscientização, por parte dos educadores, deve portanto lidar com o paradoxo de empreender-se na direção do que não pode antecipar, sob o risco de se reduzir à “instrução
do povo”, ao mesmo tempo em que lhe compete convencer as massas de que elas devem lutar pela libertação. Assim, tem como fundamento a tarefa da “recuperação da humanidade”, da
superação da contradição entre opressores e oprimidos, para que todos assumam sua “vocação ontológica de ser mais”. Antes porém de ser pedagogia dos homens, determina a quem deve
se dirigir em primeira instância: os “esfarrapados do mundo”, os “demitidos da vida”, os “condenados da terra”, os “castrados no seu poder de transformar a realidade”. O esquema é
certamente tributário de categorias expostas por Lukács em seu estudo sobre a dialética marxista, tais como: consciência de classe, totalidade social e possibilidade objetiva. Nele, o filósofo
defende uma superioridade do proletariado (oprimidos) em relação à burguesia (opressores) que “(...) reside exclusivamente no fato de [ele] ser capaz de considerar a sociedade a partir do
seu centro, como um todo coerente e, por isso, agir de maneira centralizada, modificando a realidade; no fato de, para sua consciência de classe, teoria e práxis coincidirem e também, por
conseguinte, de poder lançar conscientemente sua própria ação na balança do desenvolvimento social como fator decisivo”. Por ser uma classe de transição, a pequena burguesia
(educadores), enquanto não se vê implicada na oposição entre aquelas duas classes, busca “(...) não os meios de suprimir os dois extremos, capital e salário, mas de atenuar sua oposição e
transformá-la em harmonia”. Nesse caso, suas finalidades assumem cada vez mais formas puramente “ideológicas”.

Oportunamente, seria preciso discutir a prescrição pós-moderna de que a luta de classes, na qual o método de Paulo Freire tem um fundamento, não seria mais vigente. Porém, diante de
exigências tão claras, quanto à tarefa da “construção de sujeitos políticos”, é sem dúvida insuficiente a proposta de simplesmente se “revisitar seu legado”. Para preservá-lo de uma
mistificação homenageadora, é preciso minimamente discutir quais são atualmente os sujeitos das lutas sociais, e por que construí-los é o principal da tarefa político-educacional.
Especialmente porque, em nome do radicalismo de Freire, talvez seja preciso não mais ser freiriano. Algumas linhas metodológicas podem ser aqui evocadas. Quando pretende reafirmar um
política da Verdade (frequentemente desacreditada como “totalitária”), propondo um retorno a Lênin, em vez de Marx, Slavoj Zizek argumenta que “É somente possível restabelecer o impulso
original da teoria a partir dessa [da de Lênin] posição externa; (...) implantando-a em outro momento histórico (...). Em segundo lugar, é somente através desse violento deslocamento que a
teoria ‘original’ pode ser posta pra trabalhar, correspondendo a seu potencial de intervenção política. (...) O retorno a Lênin (...) não tem como objetivo reativar nostalgicamente os ‘bons
velhos tempos revolucionários’, nem ajustar o velho programa às ‘novas condições’ de modo oportunista e pragmático, mas repetir, nas atuais condições globais, o gesto leninista de iniciar
um projeto que pudesse implodir a totalidade da ordem global do mundo capitalista-liberal, e mais, (...) do ponto de vista da sua verdade reprimida”. Mas, enfim, o que imagina “a dimensão
política das relações entre arte e educação” proposta por esta Bienal?

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Embora menos ambiciosa, uma lição pode ser sublinhada, no que Erundina chamou de “semi-clandestinidade”. Quando chegou a São Paulo, ironicamente, ela assumiu a coordenação de um
dos núcleos do MOBRAL, o programa de alfabetização da Ditadura Militar, tendo por isso que aprender a “conviver com contradições”. A vontade de superá-las fez com que buscasse formar
os monitores desse programa, para o trabalho com moradores das favelas e da periferia, no método freiriano, através de apostilas produzidas de forma independente, estudando livros
contrabandeados que haviam sido publicados em espanhol. Quando ao final do debate, a pedido de Paulo Portella, Erundina nos pergunta pelo impacto da revolução tecnológica dos meios
de comunicação nos processos educacionais, provavelmente ainda se lembrava dos projetores de slides que teve de enterrar na Paraíba, quando fugiu com medo de ser incriminada pela
Ditadura. Certamente as “armas” da conscientização não se limitam a esses meios, mas se por um lado aquela “revolução” facilitaria agora esse trabalho, na medida em que a produção e
veiculação de informações parecem bem menos controláveis (basta que se veja a enorme quantidade disponível de vídeos “censurados” em plataformas como YouTube), por outro ela não
explica, para ficarmos com os exemplos de Erundina, o desinteresse pela política por parte das novas gerações, nem a dificuldade para se implementar o que, com ela, torna-se tecnicamente
viável: uma democracia participativa direta, como condição para o “pleno exercício da cidadania”.

Nos termos que nos foram legados por Freire, as atuais condições históricas não mais parecem nos permitir que se deduza a mobilização da conscientização. É talvez o próprio trabalho da
conscientização o que deva ser hoje reformulado, na medida em que se encontra largamente assimilado pela própria lógica do consumo, como forma de “falsa caridade” ou de “consumo-
consciente”, servindo ele mesmo à regeneração do capitalismo, na forma de “capitalismo cultural”. Prova disso é a declaração do presidente da Bienal em 12 de julho, significativa dessas
coalizões: “Atuando como instrumento de educação e inserção social e servindo de alavanca para estimular a produção e o consumo de bens culturais, a Bienal é um importante catalisador
da economia criativa e símbolo da modernidade (...)”. Erundina lamenta que Freire não seja reconhecido no país, do mesmo modo que internacionalmente, como o pedagogo mais importante
do século XX. Certamente, isso não se deve ao simples fato de que os brasileiros desmerecem suas “pratas da casa”. Para explicá-lo, sugere o despojamento de Freire em relação às
formalidades da academia e às pretensões dos chamados homens da ciência. Mas é a forma do poder característica do opressor, como aparato burocrático repressivo estatal, o que não mais
parece vigente.

Em todo caso, de volta ao contexto da mesa, podemos perguntar: Se como educadores ou artistas somos agentes políticos, do que consideramos necessário que os “setores populares”
deveriam se libertar? Quem seriam os oprimidos e opressores do mundo da arte? Em que medida a Bienal contempla a “cultura popular”, necessária segundo Freire a uma ação política? Em
que medida o compromisso do Projeto Educativo com uma “educação dialógica” considera a luta de classes ou as lutas sociais?

2.

Parece-me difícil aqui repor o que melhor seria ouvido à sombra de uma mangueira. Alemberg conta suas histórias com um humor e simpatia que desconcertam qualquer eloquência, no que
certamente haveria uma “política”. Por isso, serei mais sucinto ao comentar sua apresentação. Falo com a sorte de tê-lo ouvido pela terceira vez nos últimos dois anos, apresentando a
Fundação Casa Grande, em situações semelhantes à deste Seminário. Para além da paisagem, do vocabulário, dos costumes, de que ele nos aproxima, das diversas atividades
desenvolvidas pela Fundação, e de toda a riqueza histórico-cultural que é objeto do Memorial do Homem Kariri, com seu acervo mitológico e arqueológico, o que mais me chama a atenção
pode ser resumido em uma frase sua: “os meninos tomaram de conta da casa”.

Essa imagem de uma cidade improvável, na qual são os adultos que, inversamente, dependem das crianças, tem seu fascínio. Com 5 mil habitantes, Nova Olinda tem a Fundação como sua
principal atração, que recebe, segundo Alemberg, 35 mil turistas anualmente. O projeto foi premiado pelo UNICEF, pelo Ministério da Cultura, entre outras entidades regionais e internacionais.
Mais do que isso, é como se a Fundação levasse a termo alguma lição de Paulo Freire, tal como podemos parafraseá-la: a de que é preciso acreditar que o outro da relação pedagógica, a
criança no caso, é capaz de pensar, de querer e de saber certo; de que a criança portanto não deve ser infantilizada, e responsabilidades lhe podem ser atribuídas.

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Em conversa com Foucault, Deleuze afirma que “As crianças sofrem uma infantilização que não é a delas”. Que a Fundação tenha desde o começo sido administrada por elas, em nada
porém nos remete a uma subversão do poder dos adultos. De qualquer forma, é a representação das crianças pelos adultos o que ela desconcerta. Uma quantidade de experiências
semelhantes pode ser consultada na história das chamadas “escolas democráticas”. Por outro lado, faz falta que Alemberg em geral não detalhe o papel dos adultos no acompanhamento das
crianças; também mais do que um caso de sucesso merecido, faz falta que não nos apresente questões para uma discussão comum.

3.

Crianças, moradoras de uma favela próxima à praça da prefeitura de Assunção, no Paraguai, desmontam a estrutura da Escuela para reaproveitá-la. (imagem extraída do site
www.panamericanismo.org)

Pablo Helguera, antes de nos apresentar seu projeto ou mesmo para contextualizá-lo, retoma o que Jorge Larrosa havia trazido na noite anterior, quanto ao “dispositivo Jacotot”, a ideia
contida n’O mestre ignorante [1987] de Jacques Rancière de que, em suma, a igualdade não é um objetivo do processo educacional, mas um ponto de partida a ser nele verificado. Helguera
pergunta se tal ideia já não estava contida no método de Paulo Freire, desde a Pedagogia do Oprimido [1970], de modo porém mais útil, uma vez que mais atento às condições sociais exatas
de cada agente desse processo. É importante para Helguera considerar como Freire as diferenças, para além daquela igualdade fundamental, entre os saberes do professor e os saberes dos
alunos, bem como a responsabilidade do professor nesse processo de propor uma estrutura ao diálogo. A comparação merece oportunamente ser discutida, levando-se em conta a
recorrência desses autores – Rancière em primeiro lugar, Freire e Ivan Illich em menor extensão, porém em muito maior que Alain Badiou ou Henry Giroux, por exemplo – nos recentes
debates sobre o que foi chamado de “virada educacional” das práticas artísticas e curatoriais.

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No caso da educação nos museus e demais espaços de arte, Helguera se mostra preocupado com a “maldição” muito difundida no século XX, de filiação “hermenêutica”, que concede ao
público interpretar o que quiser das obras de arte. O problema dessa e de outras correntes metodológicas, ele afirma, está na sua dificuldade em diferenciar uma obra de arte de um objeto
qualquer, bem como em comunicar o contexto histórico ou eventualmente político de algumas obras, sobretudo no caso das obras de arte contemporânea. Logo, o desafio para o mediador,
neste momento, é saber como propor e usar uma plataforma de diálogo não hierárquica, sem pressupor que todos saibam a mesma coisa, sem tampouco simplesmente declarar sua
ignorância. Qualquer neutralidade por parte dele, conforme a leitura que Helguera faz de Freire, resultaria em uma camuflagem do opressor, favorável à manutenção da dominação.
Impossível portanto não ser político. Manifesto de diversas formas desde os anos 1960, esse tema deve contudo ser resolvido com os termos e circunstâncias do presente.

Mas, em vez de mostrar como se deve interpretar uma obra, Helguera se refere à posição mais ou menos passiva da educação durante muito tempo nos museus, para então questioná-la,
propondo-nos pensar a educação como um território expandido, como um processo integrado às práticas artísticas, e que as torna ilimitadas aos museus e demais espaços de exposição. Ele
defende que é a força da pedagogia o que pode hoje produzir experiências mais significativas, embora também redundar em um mero espetáculo.

Revisando minimamente as sucessivas desconstruções empreendidas pela história da arte dos últimos 60 anos, das quais os artistas de sua geração teriam herdado uma espécie de terreno
baldio, Helguera afirma que tanto a crítica institucional (em trabalhos como Museum Highlights [1989] de Andrea Fraser) quanto a estética relacional (em trabalhos como Untitled [Pad See-
ew] [1990-2002] de Rirkrit Tiravanija) lhe pareciam referências inspiradoras, mas também problemáticas. A primeira não assumia que todos somos parte da instituição, enquanto a segunda
carecia de “substância” para transformar a arte.

No caso dos trabalhos socialmente orientados ou pretensamente políticos da última década (como The state itself becomes a super whatnot [2008] de Liam Gillick), um problema na sua
opinião é a dependência que eles têm de uma narrativa canônica do século XX, que os faz circular somente entre iniciados, se não os torna neutros no sentido aludido por Freire. Para ele,
um exemplo de práticas que buscam ativar, com a participação dos espectadores, outros eventos e pensamentos também construtivos, embora de maneira eventualmente romântica, é o
Machine Project de Los Angeles.

Mas haveria um clichê niilista, segundo o qual a arte deve ser feita de perguntas e não de respostas, o que faz da intenção construtiva uma tarefa ingrata. Helguera pretende levar esse clichê
às últimas consequências, perguntando a quem fazemos essas perguntas, ou por que não nos imaginamos capazes de dar respostas, sem o que lhe parece difícil empreender uma
regeneração do sentido da arte na sociedade. Além disso, pergunta qual a contribuição de se criar partidos políticos como performance artística, por exemplo, entre outras propostas que
misturam arte e ativismo, em vez de se fazer política diretamente. Em todo caso, em vez de retomar a arte como assunto da arte, ele defende que a arte deva buscar seu conteúdo em outras
disciplinas, desde que se produza com isso uma revitalização recíproca.

A mencionada “virada educacional” faz parte desse momento. Porém, o fenômeno tem para Helguera certas ironias e desafios, por sua relação com o espetáculo político, quando adotada
pelo discurso curatorial internacional. Para o público das exposições, nem sempre está claro, por exemplo, se a documentação da suposta transformação de uma comunidade mediatizada
pelo artista se refere a algo efetivo ou a uma fábula; se a autoria disso foi compartilhada com essa comunidade e de que modo. É nesse ponto, ele afirma, que a pedagogia de Paulo Freire
colide com os mecanismos hierárquicos do mundo da arte, para os quais a experiência da arte somente é acessível aos iniciados nesse mundo.

A par dessa realidade, segundo Helguera, o projeto da Escuela Panamericana del Desasosiego é estabelecer um diálogo entre pessoas e comunidades artísticas e culturais e pessoas em
geral das Américas, questionando noções de panamericanismo e nacionalidade, bem como o papel da arte na configuração de uma esfera pública. De fato, do seu ponto de vista, o projeto
consistiu em comparar tradições políticas e intelectuais das Américas do Norte e do Sul, jogando um pouco com as aspirações de Simón Bolívar, José Martí ou Thomas Jefferson, entre
outros, de que as Américas um dia formassem um único país ou região cultural. Para materializar o diálogo, ele construiu uma “escola” que pudesse se deslocar fisicamente, permitindo-lhe
alguma autonomia em um espaço próprio de discussão. Também foi importante viajar por terra, pela Rodovia Panamericana, em um itinerário definido pelos anfitriões dispostos a receber o

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projeto. Em cada lugar, um assunto de relevância local e panamericana era escolhido pela comunidade para ser discutido livremente em uma mesa redonda. Em seguida, realizava-se uma
oficina, na qual os participantes elaboravam uma declaração, com o auxílio de um mediador, articulando os problemas por eles vividos e indicando os passos a serem seguidos.

Os resultados, que Helguera chama de “declarações panamericanas”, eram lidos como se em atos cívicos e depois distribuídos aos demais colaboradores do projeto nos outros países. Em
resumo, essa era a estrutura do diálogo. O projeto, como ele ressalva, não obteve sucesso em todos os lugares, levantando muitas controvérsias quanto ao significado de ser ou não
americano, mas continua como discussão ligada ao que foi documentado. Para terminar, Helguera sublinhou que somos agora artistas e educadores em busca de conteúdos para uma nova
identidade da arte. A educação, nesse sentido, seria um agente catalisador para se repensar o significado da prática artística. Para que possa realmente se integrar à sociedade, a arte
precisa se desfazer da sua condição simuladora de outras disciplinas. Não queremos, disse ele, fazer educação como performance, mas que a performance incorpore a educação, de modo
que a arte possa de fato participar das esferas sociais e políticas.

4.

Discussão entre artistas, professores e estudantes, em uma sala da prefeitura municipal, para a redação da Declaração de Assunção, no Paraguai. (imagem extraída do site
www.panamericanismo.org)

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O mais ingrato de projetos como o da Escuela Panamericana del Desasosiego – embora parte de seu mérito possa residir no fato mesmo de evidenciá-lo – está em que sua “intenção
construtiva” parece desenhar seu próprio fechamento, na medida em que se poderia apresentar-lhe as mesmas objeções levantadas por Helguera em relação ao “clichê niilista”,
especialmente, dos trabalhos “pretensamente políticos” da última década.

Assim, poderíamos lhe perguntar: Como o projeto se posiciona diferentemente da crítica institucional (que não se assume como parte da instituição), ao mesmo tempo em que se pretende
uma prática ilimitada à instituição, situada em um “território expandido”? Como ele ao mesmo tempo faz e não faz parte do mundo da arte? Diferentemente do hedonismo da estética
relacional, com que “substância” ele pretende transformar a arte? De que modo ele se torna independente da narrativa canônica do século XX, dispondo uma plataforma pretensamente não
hierárquica de diálogo? Tendo seu itinerário sido definido principalmente pelas instituições que se dispõem a recebê-lo (universidades, museus, centros culturais, galerias, espaços
governamentais; embora a Escuela tenha sido eventualmente montada em praças, por exemplo, como em Calgary, Puebla, Tegucigalpa ou Assunção), como ele é capaz de envolver o
público de não iniciados? Qual é seu “conteúdo” para além de “gerar conexões entre diferentes regiões das Américas” ou de permitir o intercâmbio de declarações, sobretudo, entre artistas e
outros agentes culturais? Para que não somente faça perguntas, qual é sua hipótese em relação ao panamericanismo? Antes, qual é sua intenção: problematizar ou reconstruir essa noção?
De que maneira ele se previne de ser tomado como simples performance? De que maneira ele se afirma como arte? Por que, em vez de projeto artístico, ele não se propõe como um trabalho
de formação política? Que uso ele faz do método de Paulo Freire que não mais menciona uma perspectiva revolucionária?

Certamente, não seria possível fazer essas perguntas sem o projeto, nem cogitar respostas que desconsiderassem suas “situações concretas”. Vendo parte dos registros postados no blog, é
possível imaginar o artista parodiando um político em campanha eleitoral ou cerimônias de posse, encimado em tribunas, com seus correligionários, saudando a execução de um hino ou
posando para fotos oficiais. Os temas abordados pela Escuela são, contudo, igualmente mais variados e específicos: inserção da arte na sociedade, identidade política, representatividade
cultural, desobediência civil, simpatia social, história das cidades, gastronomia, imigração, burocracia, intempéries, etc. Do mesmo modo são os meios para abordá-los: sessões de vídeos,
debates mais ou menos teóricos, conversas informais, notas biográficas, diário de viagem. Além disso, como se o atravessando, um propósito etnográfico do projeto aparece nas entrevistas
que pontuam o início e o final da expedição, com falantes de línguas nativas em extinção. Dentre as maneiras pelas quais se poderia descrevê-lo, uma das declarações é particularmente
significativa de sua filiação largamente romântica. Elaborada por apenas uma pessoa, ela é também um momento em que o projeto se torna seu próprio tema: “Hoje todos somos
panamericanos. (...) em homenagem aos idealistas e heróis trágicos das grandes ideias e causas perdidas, em honra da esperança diante do impossível e do otimismo diante da adversidade,
(...) esta velha caminhonete do Alasca (...) levará consigo a vozes que aqui foram recolhidas, como cápsula de memória, como monumento, móvel, imperfeito e fracassado, mas monumento
enfim, de nossas maiores aspirações e de nosso mais profundo desassossego”.

Analogamente à intenção de promover vínculos culturais entre diferentes regiões das Américas, a Escuela pretende elaborar combinações entre performance artística e educação, imprevistas
porém tanto pelas academias quanto pelo mundo da arte. Entretanto, a vigência de sua exemplaridade, quanto à proposição de uma “nova identidade da arte”, parece limitada pela
materialização do “sonho bolivariano” nos desassossegos e conformismos quase sempre locais ou mesmo idiossincráticos das declarações, que não raro expõem seu déficit de
representatividade, como restrita às vozes dos que a redigiram. Significativa dessas contradições é a passagem de Helguera pela cidade de sua família no interior do México, cuja arquitetura
colonial foi preservada por seu isolamento e tradicionalismo, e que ele ironicamente prefere seja mantida dessa forma.

De todo modo, o projeto levanta uma história em alguns pontos notadamente comum a muitos dos diversos lugares por onde passou: formação mestiça da população, colonização cultural,
mártires declarados inconfidentes, golpes militares...

Paulo Freire. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 58.

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Paulo Freire. Pedagogia do oprimido, p. 61.

Paulo Freire. Pedagogia do oprimido, pp. 30-32, 38.

Georg Lukács. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 172.

Marx apud Georg Lukács. História e consciência de classe, p. 157.

Cf. a propósito: Ernesto Laclau. Debates y combates. Buenos Aires: FCE, 2008.

Slavoj Zizek. On belief. London, New York: Routledge, 2001, pp. 02-04. [tradução minha]

Cf. a propósito: Slavoj Zizek. First as tragedy, then as farce. London, New York: Verso, 2009, p. 53.

Paulo Freire. Pedagogia do oprimido, p. 51.

Deleuze. Os intelectuais e o poder. In: Michel Foucault. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, p. 72.

Cf. a propósito: Helena Singer. República de crianças: sobre experiências escolares de resistência. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010.

A propósito de uma comparação entre as concepções Freire e Rancière (Jacotot), cf.: Jacques Rancière. Atualidade de O mestre ignorante. In: Revista Educação e Sociedade. Campinas, SP,
vl. 24, n. 82, abril de 2003, pp. 185-202.

Cf. O’NEILL, Paul & WILSON, Mick (eds.). Curating and the educational turn. Amsterdam: Open Editions, 2010, pp. 20-21.

Declaração Panamericana de Jose Luis Paredes, o “Pacho”, na Casa do Lago do Bosque de Chapultepec, em 09/07/2006. Disponível em:
<http://www.panamericanismo.org/updates_esp.php?start=40>, acesso em 24/08/2010.

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