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Latour, que sustenta: “Essa Ciência com C maiúsculo não é uma descrição do que os cientistas
fazem. Para usar um velho termo, é uma ideologia que nunca teve qualquer outro uso na mão
do epistemólogo, senão o de oferecer um substituto para a discussão pública. Ela sempre foi
uma arma política para abolir as coações da política. Desde o princípio, como vimos no diálogo
[o autor remete aos diálogos descritos por Platão entre Górgia e Sócrates], ela foi
confeccionada para esta finalidade única e nunca deixou, no passar dos tempos, de ser usada
desta maneira.” (LATOUR, 2017, p. 306, grifo nosso); e em 2) Isabelle Stengers, que critica
duramente aquela ciência tolerada pelo empresariado e que ela postula com uma pergunta:
“Que Ciência é essa que intervém aqui como terceiro ladrão, árbitro tolerado pelo Empresário
que diz respeito a seu direito de inovar, da mesma forma que reconhece (forçosamente) o
direito do Estado de proibir? Utilizei letra maiúscula para distingui-la das práticas científicas”
(STENGERS, 2015, p. 60).
Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o
fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos.
Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de
morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o
queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé,
como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos
conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um
homem previamente executado. (MONTAIGNE, 1972, p. 107)
2 A relação metonímica com o termo fisiologia tem a ver com a ideia posta em Anti-Édipo (2011)
3 Marco Antonio Valentin tem uma proposição, ao mesmo tempo, muito clara e muito
provocativa sobre o que ele compreende como “sobrenatureza”, à qual nos filiamos
integralmente. Diz ele: “ (...) pensar a sobrenatureza da catástrofe implica concebê-la como
resultado de uma ‘guerra [ontológica] de mundos’ (Latour, 2002; Almeida, 2013; De la Cadena,
2015), na qual humanos e não-humanos, vivos e não-vivos, espíritos e máquinas, indígenas e
alienígenas, se imaginam e contraimaginam uns aos outros, segundo metafísicas heterogêneas
e incomensuráveis, como que em mútua projeção espectral. Se a divisão entre natureza e
cultura é a base do cosmopolitismo moderno, a sobrenatureza consiste na forma mesma da
agência político-cósmica.” (VALENTIM, 2018, p. 24).
4 “Mas ‘tabu’ é igualmente tudo, tanto as pessoas como os lugares, objetos e estados
passageiros, que são depositários ou fonte dessa misteriosa característica. Também se chama
tabu a proibição que deriva dessa característica; é denominado tabu, enfim, conforme seu
sentido literal, algo simultaneamente sagrado, acima do habitual, e perigoso, impuro,
inquietante.” (FREUD, 2012, p. 48).
5 Alexandre Nodari postula a ideia de desenvolvimento de forma muito breve e precisa em seu
artigo Antropofagia. Único sistema capaz de resistir quando acabar no mundo a tinta de
escrever (2017): “Talvez possamos descrever o projeto motor da modernidade, o des-
envolvimento, como o rompimento dessa tessitura que co-relaciona os seres e as coisas, essa
teia vital invisível que se forma entre os seres – o inter-esse. Nesse sentido, a modernidade não
seria só um processo de desencantamento do mundo, como o formulou Max Weber, mas
também um processo de des-interessamento do homem em relação ao mundo. O mundo se
Com a ciência, já não se trata da prova como êxito, como o que constitui
acontecimento. A prova é o que devemos ter o direito de exigir quando surge
uma questão, uma objeção, uma proposição incômoda. O primeiro papel do
refrão “não está provado” é fazer calar, separar o que será considerado
torna um objeto externo e disponível, matéria morta separada do homem, que, por sua vez, é
convertido em um sujeito autônomo e individual. Entre eles, parece não haver mais um laço,
uma relação, mas apenas domínio, sujeição, propriedade. Fechado em si mesmo, o
autossuficiente sujeito humano, o homo autotelus, acredita dispor das coisas do mundo,
inclusive outros humanos, como se fossem seus objetos, como se seu agir sobre o mundo não
implicasse em uma reação” (NODARI, 2017, p. 2).
6 Sobre a Revolução 4.0 é importante levar em conta o livro de Klauss Schwab, que organizou
uma série de textos que balizaram as discussões do Fórum de Davos, em 2016. A referência
completa pode ser lida na Bibliografia.
7 Este texto guarda uma ambiguidade que nos parece importante descrever, sobretudo para
dar vistas às nossas contradições, no mais das vezes inescapáveis. Ao mesmo tempo que produz
tensionamentos e críticas às formas hegemônicas de vida, irriga o moinho produtivista dos
órgãos de fomento e atende aos clamores dos Programas de Pós-Graduação, quem sem esse
tipo de produção arrisca-se a perder os parcos recursos públicos à pesquisa científica no Brasil,
cada vez mais ameaçada por uma política de austeridade feroz. O paradoxo incontornável, no
entanto, é que a possibilidade de se colocar em causa o desenvolvimentismo estatal, que trucida
as populações marginalizadas às quais, muitas vezes, só encontram guarida nas disputas
políticas do campo acadêmico, é, justamente, por meio de um certo tipo de produção científica
sensível a tais causas. O capitalismo é o contrário da Antropofagia, é um moinho satânico, como
descreveu Polanyi (2000), que fagocita todas as dimensões da vida. Evidentemente este texto,
como suas potencialidades e limitações, não se reduz à dimensão da financeirização da vida,
mas é parte dela.
8 O sacrifício, bem entendido, não possui nenhuma dimensão religiosa. Trata-se de colocar o
Esta, entre outras, é a razão pela qual pegamos a ciência moderna pela
mão e a levamos, a contragosto, é verdade, ao altar da devoração. A teimosia
metodológica da ciência em sua forma hegemônica se preocupa em distinguir
o que é de caráter objetivo do subjetivo – é muito comum usar os eufemismos
pesquisa quanti e pesquisa quali para classificar uma investigação –, o que
denota, claramente, sua origem moderna. Em A esperança de Pandora (2017),
Bruno Latour faz apropriações sobre a ciência que são bastante explicativas em
relação ao que estamos discutindo. Ele faz uma divisão em três tendências:
Ciência Nº 1, Ciência Nº 2 e, em uma nota de rodapé, Ciência Nº 3 (2017, p.
306-307). Explicaremos primeiro as ímpares. Nesse sentido, a Ciência Nº 1 tem
a ver com uma dimensão política das análises qualitativas, às vezes mobilizadas
pelos pesquisadores em um sentido de autoridade. Em resumo, refere-se à
Ciência com “c” maiúsculo, cuja definição apresentamos no primeiro parágrafo
deste ensaio. Contudo, cabe acrescentar:
Tendo sido projetada como arma, essa concepção da Ciência, aquela a que
Weinberg tanto se apega, não é utilizável nem para “tornar a humanidade
menos irracional” nem para tornar as ciências melhores. Tem apenas um uso:
“Você, mantenha a boca fechada” – com o “você” designando, curiosamente,
outros cientistas envolvidos em controvérsias tanto quanto as pessoas em
geral. (LATOUR, 2017, p. 306).
10 Há quatro garantias que formam aquilo que Latour chama de Constituição moderna:
“Primeira garantia: ainda que sejamos nós que construímos a natureza, ela funciona como se
nós não a construíssemos. Segunda garantia: ainda que não sejamos nós que construímos a
sociedade, ela funciona como se nós a construíssemos. Terceira garantia: a natureza e a
sociedade devem permanecer absolutamente distintas; o trabalho de purificação deve
permanecer absolutamente distinto do trabalho de mediação.” (LATOUR, 2013, p. 37). Mais
adiante o autor apresenta a quarta garantia, Deus suprimido: “Ninguém é realmente moderno
se não aceitar afastar Deus tanto do jogo das leis da natureza quando das leis da República.
Deus tornou-se o Deus suprimido da metafísica, tão diferente do Deus pré-moderno dos
cristãos quanto a natureza construída em laboratório o é da antiga physis ou quanto a sociedade
o é do velho coletivo antropológico todo povoado por não-humanos.” (LATOUR, 2013, p. 38).
Agora é uma assimetria entre pessoas que detêm crenças mais ou menos
distorcidas sobre alguma coisa e pessoas que conhecem a verdade sobre a
matéria (ou logo conhecerão). Faz-se uma divisão entre os que têm acesso à
natureza dos fenômenos e aqueles que, por não terem aprendido o suficiente,
têm acesso apenas a visões distorcidas desse fenômeno. (LATOUR, 2011, p.
284).
|Antropofagia epistêmica
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Um dos textos introdutórios sobre esse tema, traduzido para vários idiomas, inclusive ao português, é
o de Walter Mignolo, professor da Duke University, nos Estados Unidos (sic), intitulado: Desobediência
epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. A referência completa está na
Bibliografia.
(...) durante os dois primeiros bilhões de anos a vida não passou do estágio
dos micróbios. Esses dois domínios da vida são arqueias e bactérias –
superficialmente, coisas similares, ambas entidades unicelulares e mais ou
menos do mesmo tamanho. (...) O grande salto adiante ocorreu com a
chegada de vida complexa. Esse ramo da árvore, o terceiro domínio, é o dos
chamados eucariotos, e inclui tudo que não está nos dois primeiros, inclusive
você e eu, levedura e cobras, algas e fungos, flores, árvores, nabos. Em algum
ponto, talvez cerca de 2 bilhões de anos atrás, a vida complexa emergiu
quando uma junção extremamente improvável ocorreu: uma arqueia engoliu
uma bactéria. Em vez da morte de uma e de outra, o resultado foi o benefício
mútuo. O consumido deixou de ser uma entidade viva livre e ficou
permanentemente anexado às entranhas do que cresceria para se tornar o
terceiro domínio da vida, aquele em que você está. (RUTHERFORD, 2014, p.
52-53)
|Picadinho metodológico
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Reconhecemos como verdadeiros, problemas de pesquisa cuja questão de fundo articule uma questão
qualitativa. Valemo-nos da proposição de Deleuze, por ser clara e objetiva, para explicitar nosso ponto:
“Em resumo, toda vez que se pensa em termos de mais ou de menos, já foram negligenciadas diferenças
de natureza entre as duas ordens ou entre os seres, entre os existentes. Por aí se vê como o primeiro tipo
de falsos problemas repousa em última instância sobre o segundo: a ideia geral de ordem como misto
mal analisado, etc. E o engano mais geral do pensamento, o engano comum à ciência e à metafísica,
talvez seja conceber tudo em termos de mais e de menos, e de ver apenas diferenças de grau ou diferenças
de intensidade ali onde, mais profundamente, há diferenças de natureza”. (DELEUZE, 2012, p. 15).
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo / Gilles Deleuze; tradução de Luiz. B. L. Orlandi. São Paulo:
Editora 34, 2012.
LOTMAN, Iuri. Semiosfera I. Semiótica de la cultura y del texto. Madrid: Fronesis Cátedra
Y Universitat de Valência, 1996.
RUFFINELLI, Jorge; ROCHA, João Cezar de Castro [orgs.]. Antropofagia hoje? Oswald de
Andrade em cena. São Paulo, Civilização Brasileira, 2011.
TROPICALIA ou Panis et Circencis. Intérpretes: Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil,
Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé. 1968. (38 min.).
STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Rio de Janeiro: Oficina Indústria Gráfica, 1930.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial / Klaus Schwab; tradução Daniel Moreira
Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
______. A revolução faz o bom tempo. Realização de Joaquim Castro e Luiz Giban. Rio
de Janeiro: Os Mil Nomes de Gaia, 2015. (50 min.), Digital, son., color. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=CjbU1jO6rmE&feature=youtu.be&t>. Acesso em: 17
maio 2018.