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Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA)

Member of the International Association for Analytical Psychology (IAAP)


Junguiana
REVISTA LATINO-AMERICANA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICOLOGIA ANALÍTICA
Volume 35-1/2017

Editoral A revista Junguiana tem por objetivo publicar trabalhos originais


Vera Lúcia Viveiros Sá – editora-geral que contribuam para o conhecimento da psicologia analítica e
Fani Goldenstein Kaufman – editora assistente ciências afins. Publica artigos de revisão, ensaios, relatos de
Maria Zelia Alvarenga – editora de resenhas pesquisas, comunicações, entrevistas, resenhas. Os interessados
em colaborar devem seguir as normas de publicação especificadas
Conselho Editorial no final da revista.
Fani Goldenstein Kaufman A Junguiana também está aberta a comentários sobre algum
Fernanda Gonçalves Moreira artigo publicado, bastando para isso enviar o texto para o e-mail
Marcia Moura Coelho artigojunguiana@sbpa.org.br.
Marfiza Reis
Maria Zélia Alvarenga
Rodney Taboada
Vera Lúcia Viveiros Sá SOCIEDADE BRASILEIRA
Victor Roberto Da Cruz Palomo DE PSICOLOGIA ANALÍTICA

Conselho Editorial Internacional


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de Analistas Junguianos Luis Fernando Nieri de Toledo Soares – Diretor Administrativo/Tesoureiro
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Luis Sanz – Asociación Venezolana de Psicología Ana Célia Rodrigues de Souza – Diretora de Biblioteca
Analítica Regina dos Santos Vicente – Diretora da Clínica
Mariana Arancibia – Grupo de Estudios C. G. Jung Ana Maria Cordeiro – Diretora de Comunicação/Divulgação
de Chile
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del Ecuador Maddi Damião Júnior – Presidente
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Universidade de São Paulo, SP

Preparação, revisão de texto e produção gráfica Indexação


Atual Design Index Psi Periódicos: www.bvs-psi.org.br
Base de dados Lilacs/Bireme – Literatura Latino-
Capa: Ana Gabriela Barth -Americana e do Caribe da Saúde, da Organização
Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização
São Paulo, 2017 Mundial da Saúde (OMS). www.bireme.br

Junguiana: Revista da Sociedade Brasileira


de Psicologia Analítica – n.1 (1983)
São Paulo: Sociedade, 1983 -
semestral
ISSN 0103-0825
1.Psicologia – periódicos
CDD 150

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1o sem.2017
Junguiana
v.35-1, p.3

Editorial

Esta é a Junguiana 35/1, revista com 35 anos


de história, citada como referência em artigos, dis-
sertações, teses e livros. Simultaneamente, é a
segunda edição eletrônica da Junguiana, uma re-
cém-chegada à cibercultura. Por um lado, o conhe-
cimento conquistado; por outro, a inexperiência
dos iniciantes. O mundo virtual apresenta novos
códigos culturais e também atualiza temas arquetípicos da cultura humana ancestral. Estamos atua-
lizando os “softwares puer e senex”: imagens arquetípicas fundamentais para o crescimento.

Neste volume, voltamos a publicar os textos completos em português, com resumos em português,
inglês e espanhol. Essa mudança teve por finalidade diminuir o custo de produção da Junguiana,
devido aos “desafios econômicos financeiros enfrentados pelas instituições publicadoras e de fi-
1
nanciamento de nossas revistas”.

Iniciamos este volume com o texto “Ecologia da alma: a natureza na obra científica de Carl Gustav
Jung”, uma pesquisa que buscou “apontar a relevância da natureza para a formulação da psicologia
analítica”. “Prevenção começa em casa: contribuições da neurociência” aborda a “importância do
processo de tomada de decisão nas dependências”. “Imagem corporal e gravidez” traz ao foco al-
guns dos paradoxos desse aspecto da gestação. “O fim da análise” reflete sobre “questões relaciona-
das ao término da análise de forma geral”. “Vilão ou herói? Uma meditação sobre a representação do
negro em dois contos folclóricos brasileiros” examina dois contos folclóricos brasileiros do século XIX.
“Elaboração das vivências psíquicas: o papel da literatura” tem “como objetivo explorar como a lite-
ratura pode auxiliar na elaboração de vivências psíquicas”. “‘Casa tomada’ – leitura de um conto de
Julio Cortázar” sugere “pontes para a interlocução entre psicologia analítica e literatura”. Finalizamos
com a resenha “Calatonia – o toque sutil na psicoterapia”, uma delicada homenagem à professora
Rosa Maria Farah, falecida em 27 de dezembro de 2016.

Boa leitura!
1
http://www.resourcenter.net/images/SSP/Files/2017/Regionals/SSPBrazil2017Agenda.pdf

Vera Lúcia Viveiros Sá


Editora-geral
junho de 2017

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Sumário
Contents

5 Ecologia da alma: a natureza na


Ecology of the soul: the nature in the obra científica de Carl Gustav Jung
scientific work of Carl Gustav Jung
Alisson José Oliveira Duarte

21 Prevenção começa em casa:


Prevention starts at home: contribuições da neurociência
neuroscience contributions
Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira

33 Imagem corporal e gravidez


Body image and pregnancy Bárbara Gabriel Capecce Petribú e
Martin Antonio Borges Alvarez Mateos

41 O fim da análise
The end of the analysis Maria Carolina Barrieu e Silvana Parisi

49 Vilão ou herói? Uma meditação sobre a representação


Villain or hero? A meditation on the representation do negro em dois contos folclóricos brasileiros
of the Negro in two Brazilian folk tales Marco Heleno Barreto

61 Elaboração das vivências psíquicas:


Psychic experiences’ elaboration: o papel da literatura
the role of literature
Isabela Paixão Rodrigues e
Fernanda Gonçalves Moreira

71 “Casa tomada” – leitura de um


“Casa tomada” – a short story conto de Julio Cortázar
by Julio Cortázar
Victor Palomo

80 Resenha
Book review Calatonia – o toque sutil na psicoterapia
Calatonia: the subtle
Sylvia Mello Silva Baptista
touch in psychotherapy

82
Guidelines for publishing Normas para publicação

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Ecologia da alma: a natureza na


obra científica de Carl Gustav Jung

Alisson José Oliveira Duarte*

Resumo
Ao estudar a obra de Carl Gustav Jung, bem Palavras-chave
como seu percurso biográfico, é notável a qual- Ecologia humana,
quer pesquisador que a natureza representou C. G. Jung,
natureza.
inspiração no processo de constituição de sua
cosmovisão científica e pessoal. Nesse sentido,
buscou-se, com esta pesquisa, apontar a rele-
vância da natureza para a formulação da psico-
logia analítica, resgatando, nas obras completas
do autor (34 volumes) citações em que o termo
“natureza” foi utilizado para sustentar conceitos
de sua teoria. Os achados (137 parágrafos) apon-
tam que o autor concebia o funcionamento psí-
quico de maneira análoga ao funcionamento dos
sistemas naturais. „

* Psicólogo, especialista em psicanálise clínica e mestre em educa-


ção pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM, Uberaba
(Minas Gerais).
E-mail: <alisson-duarte@hotmail.com>.

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da Sociedade
da Sociedade
Brasileira
Brasileira
de Psicologia
de Psicologia
Analítica,
Analítica, 2016 „ 5
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Ecologia da alma: a natureza na obra científica de Carl Gustav Jung

1. Introdução uma combinação única” de seus elementos uni-


O estudo da obra de Carl Gustav Jung nos versais (JUNG, 2011, v. 7/2, par. 267).
permite observar a peculiaridade de um autor que É importante lembrar que a trajetória científi-
utilizou, em sua teoria, inúmeras observações da ca de Jung foi fortemente marcada pelo roman-
natureza para fundamentar tendências do psi- tismo de Goethe e sua profunda contemplação
quismo humano. Diversas passagens de seus es- do meio natural. Para Goethe, nenhum cientista
critos teóricos e biográficos revelam o caráter pode alcançar as verdades da natureza desinte-
“ecológico” de sua obra. Jung mantinha profun- grando-se dela, aplicando abstrações frias para
do respeito pela natureza e conexão com ela e compreendê-la ou registrando o mundo exterior
falou intensamente, em sua obra, sobre a neces- de maneira mecanicista (TARNAS, 2000).
sidade do homem de se reencontrar com a origi- Para Pinheiro (1997), a psicologia deve parti-
nalidade primária de seu próprio ser: cipar das discussões e lançar propostas para a
crise ambiental. Isso porque, segundo ele, não
[...] a pura natureza está dentro de vós. E se existem problemas isoladamente ambientais,
conhecerdes a pura natureza, que é vosso ver- mas humano-ambientais. Nesse sentido, esta
dadeiro ser, liberto de todo egoísmo perverso, pesquisa também procura fomentar a busca por
então conhecereis a Deus; pois a divindade está respostas de como a psicologia analítica pode
oculta dentro da pura natureza, tal como a noz contribuir para o entendimento da ecologia na
no envoltório da casca. (JUNG, 2011, v. 16/2, interioridade do homem, promovendo sua reco-
par. 508). nexão com o meio e um profundo sentimento de
ética e integração com a vida.
De acordo com o autor, “não devemos suge- A crise ambiental reflete o estado da psique
rir à natureza o que fazer, se quisermos obser- humana. Tudo o que pertence à realidade exter-
var seu comportamento espontâneo” (JUNG, na ocupa em nós um lugar interno: o sol, a lua, a
2011, v. 7/2, p. 10). Ele defendia a livre expres- água, as plantas, os animais, tudo vive em nós,
são do psiquismo e o rompimento com tudo na forma de arquétipos que povoam nosso mun-
aquilo que condiciona e aliena o comportamen- do intrapsíquico por meio de imagens, símbo-
to natural. Em outra passagem, afirmou que “a los e valores.
vida natural é o solo em que se nutre a alma” Em uma entrevista realizada por McGuire e
(JUNG, 2011, v. 8/2, par. 800). E sobre o incons- Hull (1997, p. 189), Jung descreveu a ligação en-
ciente, declarou: “o inconsciente é natureza que tre o homem e o meio ambiente a partir dos se-
nunca se engana: só nós nos enganamos” (JUNG, guintes termos:
2011, v. 5, par. 95).
Por meio da natureza, Jung fundamentou o Todos nós precisamos de alimento para a psi-
caráter individual e coletivo da mente humana. que, é impossível encontrar esse alimento nas
Para ele, o homem, em sua jornada de autoco- habitações urbanas, sem uma única mancha
nhecimento, se torna completo na medida em de verde ou árvore em flor; necessitamos de
que consegue manter o equilíbrio entre nature- um relacionamento com a natureza; precisamos
za coletiva e natureza individual, ou seja, “a sin- projetar-nos nas coisas que nos cercam; o meu
gularidade de um indivíduo não deve ser com- eu não está confinado no corpo; estende-se a
preendida como uma estranheza de sua subs- todas as coisas que fiz e a todas as coisas à
tância ou de suas componentes, mas sim como minha volta, sem estas coisas não seria eu

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mesmo, não seria um ser humano. Tudo que me sistema natural. “Se tivermos a natureza como
rodeia é parte de mim. guia, nunca trilharemos caminhos errados” (JUNG,
2011, v. 10/3, par. 34). A esse respeito, o autor
A cisão vivida por nós pode ser atestada ob- introduziu em sua teoria o conceito de persona,
servando-se a maneira pela qual separamos o que definia como um princípio de adaptação que
espaço interno do espaço externo. O mundo pró- tem por objetivo ocultar a verdadeira natureza
prio é o que importa: corpo, casa e família. As do indivíduo – uma espécie de máscara, funda-
ruas, avenidas, rios, praias, animais e plantas mental para a adaptação social, bem como para
são vivenciados como se não fossem da nossa a constituição do processo cultural.
alçada, como se ninguém fosse por eles respon-
sável e como se não fossem extensão de nós Como é sabido o processo cultural consiste na
mesmos. repressão progressiva do que há de animal no
De acordo com Jung (2011, v. 8/2, par. 702), homem: é um processo de domesticação que
“a melhor maneira de compreender o inconscien- não pode ser levado a efeito sem que se insurja
te é considerá-lo como um órgão natural dotado a natureza animal sedenta de liberdade. (JUNG,
de uma energia criadora específica”. Diferente de 2011, v. 7/1, par. 17).
Sigmund Freud, Jung não admitia o inconsciente
apenas como um reservatório de conteúdos re- De acordo com Jung, a neurose surge com o
primidos pela moralidade social. Pelo contrá- processo de domesticação social. Para ele, “o
rio, ressaltava a capacidade dinâmica do incons- neurótico é apenas um caso específico de pes-
ciente de criar conteúdos e o concebia como soa humana tentando conciliar dentro de si na-
base natural de todos os conteúdos arcaicos da tureza e cultura” (JUNG, 2011, v. 7/1, par. 16). No
humanidade (sentimentos, instintos, imagens entanto, o autor reconhecia a necessidade do
e mitos). homem de viver em sociedade; não prezava o
Para ele, “a natureza reflete tudo que existe isolamento social nem a completa massificação,
em nosso inconsciente” (JUNG, 2011, v. 5, par. sugerindo que o processo de individuação ou de
170), como se o funcionamento do sistema psí- realização da totalidade do ser acontecesse como
quico humano fosse diretamente equivalente ou consequência do equilíbrio entre seus aspectos
idêntico ao funcionamento ecológico (dinâmico, naturais e sociais. Ou seja, procura-se, e com cer-
potencial, sistêmico, homeostático, criador e teza sempre se há de procurar, o caminho do meio,
destruidor). um ponto em que os opostos se unam.
Em uma de suas passagens mais significa-
tivas, o autor chegou a afirmar que sua obra (a É certo que a psicanálise pode tornar conscien-
psicologia analítica) visa, acima de tudo, “rom- te os instintos animais do homem, mas não,
per com as muralhas que nos separam da natu- como alguns interpretam, para deixá-los entre-
reza que há em nós” (JUNG, 2011, v. 8/2, par. 739). gues a uma liberdade sem freio e sim para inte-
O autor afirmou, ao longo de toda a sua pesqui- grá-los num todo harmonioso. (JUNG, 2011, v. 7/1,
sa científica, a necessidade do homem de se par. 28).
realizar, assim como uma semente se realiza tor-
nando-se árvore. A esse processo, que consiste Em diversas passagens de sua obra, ressal-
no ato de tornar-se si mesmo, ele deu o nome tou que o mal é parte da natureza humana e que,
de individuação. portanto, não se pode anulá-lo: ele sempre irá
Para Jung, o psiquismo segue um curso na- ressurgir como parte integrante da personalida-
tural e, se esse fluxo é inibido, o sistema psíqui- de. O autor advertia que a única saída para esse
co entra em desequilíbrio, como qualquer outro sentimento é a integração do mal nos processos

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da personalidade, por meio do autoconhecimen- Para Jung, as neuroses têm o propósito de


to. Isso não sugere nem incentiva a identificação levar o indivíduo a sua natureza real: isto é, “só
com essa tendência, o que seria inadequado e aquilo que somos realmente tem o poder de nos
envolveria o indivíduo em crueldade e em um com- curar” (JUNG, 2011, v. 7/2, par. 258). Nesse sen-
portamento antissocial. tido, a psicoterapia não era vista apenas como
A imagem do mal é figurada no psiquismo um processo de eliminação de sintomas, mas
humano por meio do arquétipo que Jung chamou sim um direcionamento do paciente a uma reno-
de sombra. Esse arquétipo aponta para a neces- vação de atitude frente à própria vida.
sidade, como requisito fundamental no processo
de individuação, de se integrar a personalidade. O paciente deve ser capaz, não só de reconhecer
a causa e a origem de sua neurose, mas também
As pessoas quando educadas para enxergar cla- de enxergar a meta a ser atingida. A parte doente
ramente o lado sombrio de sua própria natureza não pode ser simplesmente eliminada, como se
aprendem ao mesmo tempo a compreender e fosse um corpo estranho, sem risco de destruir
amar seus semelhantes. Pois somos facilmen- ao mesmo tempo algo de especial que deveria
te levados a transferir para nossos semelhantes continuar vivo. Nossa tarefa não é destruir, mas
a falta de respeito e violência que praticamos cercar de cuidados e alimentar o broto que quer
contra nossa própria natureza. (JUNG, 2011, v. crescer até tornar-se finalmente capaz de desen-
7/1, par. 28). volver o seu papel dentro da totalidade da alma.
(JUNG, 2011, v. 16/2, par. 293).
No livro A prática da psicoterapia, Jung res-
saltou que um bom psicoterapeuta deve desen- De acordo com o autor, o psicoterapeuta, du-
volver a habilidade de reconhecer as pistas da rante o atendimento de seu paciente, deve estar
natureza interior de seus pacientes, como um atento às imagens que surgem espontaneamen-
guia no processo de realização da totalidade do te por meio da arte e, sobretudo, dos sonhos, que,
ser. Acerca do comportamento ético do psicote- para ele, representam uma manifestação da mais
rapeuta diante de seu cliente, afirmava: pura natureza humana. Aliás, os sonhos são, em
sua concepção, “uma tentativa de trazer de vol-
No desenvolvimento psicológico é importante ta nossa mente original” (JUNG, 2011, v. 18/1,
que o psicoterapeuta deixe imperar a natureza e par. 591).
que evite na medida do possível influenciar o Ao longo da obra de Jung (2011), é possível
paciente com seus próprios pressupostos filo- identificar, ainda, inúmeras passagens alegóri-
sóficos. (JUNG, 2011, v. 16/1, par. 42). cas nas quais o autor comparava os fenômenos
naturais aos processos inconscientes e matura-
Embora Jung concebesse que o funcionamen- cionais dos seres humanos.
to e as bases arquetípicas do psiquismo fossem Mediante as inúmeras passagens que reve-
as mesmas para todos os indivíduos, considera- lam o caráter ecológico da obra de Jung, bem
va de fundamental importância que as pessoas como sua relevância para a constituição da psi-
fossem, durante a psicoterapia, reconhecidas den- cologia moderna, consideramos importante uma
tro de sua singularidade potencial para a reali- releitura de sua teoria, tomando como ponto de
zação e diferenciação do ser. Nesse sentido, o partida o valor e a função da natureza para a cons-
comportamento de neutralidade do psicotera- tituição de seu trabalho científico.
peuta, prezado pelo autor, visava acima de tudo Afinal, somos parte da natureza e guardamos
preservar, ou não deturpar, os germes da origi- os traços arquetípicos de nossa ancestralidade.
nalidade de seus pacientes. O abandono de nossas raízes naturais significa

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uma cisão de nós mesmos e talvez essa disso- Foi por meio desse sentimento de “paren-
ciação, do homem com o meio e com sua própria tesco com todas as coisas” que Jung identificou
natureza, esteja à frente dos principais problemas na natureza fundamentos lógicos para explicar
ecológicos da atualidade. os fenômenos da psique humana e, consequen-
temente, de sua própria natureza interior.
2. Resultados e discussão dos dados Com o propósito de analisar esses fundamen-
Antes de apresentar os resultados desta pes- tos ecológicos largamente utilizados por Jung
quisa, acerca da função da natureza na teoria (2011) em sua obra científica, buscamos localizar
analítica de C. G. Jung, é importante vislumbrar nos Índices Gerais de sua Obra Completa, dividi-
minimamente a história de vida desse autor e da e organizada em parágrafos rigorosamente
os fatos que influenciaram a formulação de sua enumerados, as principais passagens em que o
teoria psicoecológica. De acordo com Von Franz autor revelou o caráter ecológico de sua teoria.
(1992), fiel colaboradora do autor, o interesse Lembramos que, devido às inúmeras citações, este
de Jung pela natureza iniciou-se logo em sua pri- trabalho oferecerá somente uma amostra limita-
meira infância, influenciado pelas tendências da do conjunto de citações que evidenciam o teor
pagãs de sua mãe. ecosófico do pensamento junguiano.
Por meio dos quadros subsequentes, apre-
A natureza foi sua maior paixão, e Jung, tal como sentamos os conceitos da teoria analítica mais
sua mãe, sentiu-se, desde o começo da juven- citados e fundamentados pelo autor, por meio de
tude, parcialmente enraizado num profundo e referências e alusões ecológicas.
invisível solo, em alguma coisa vinculada aos
animais, às árvores, às montanhas, às campi-
nas e à água corrente. Esse amor opôs à tradi- CONCEITO
ção cristã do mundo do seu pai. (VON FRANZ, Dinâmica psíquica
1992, p. 29).
CITAÇÕES
Jung, durante toda a sua vida, amou a natu- Nossa psique é uma parte da natureza e seu
reza em suas mais diversas manifestações. Ja- mistério é igualmente insondável. Não pode-
mais se cansou da beleza dos lagos, dos ani- mos definir “natureza” e “psique”, podemos
mais, montanhas e florestas. A natureza foi de apenas constatar o que atualmente entende-
substancial importância no processo de cons- mos por elas. (JUNG, 2011, v. 18/1, par. 439).
tituição de sua personalidade, de suas concep-
ções científicas e de sua maneira de ver a vida A psique não é um fenômeno da vontade,
como um todo, havendo tocantes alusões acer- mas natureza que se deixa modificar com
ca da natureza espalhadas em suas obras (VON arte, ciência e paciência em alguns pontos,
FRANZ, 1992). Já ancião, falando das limitações mas não se deixa transformar num artifício,
da idade, declarou: sem profundo dano ao ser humano. O ho-
mem pode transformar-se num animal doen-
Mesmo assim há muita coisa que me preenche: te, mas não em um ser ideal imaginado.
plantas, animais, nuvens, o dia e a noite, e o (JUNG, 2011, v. 10/3, par. 831).
eterno que há no homem. Quanto mais acentua
a incerteza em relação a mim mesmo, mais au- A natureza é um contínuo, e muito provavel-
menta meu sentimento de parentesco com todas mente a nossa psique também o é. (JUNG,
as coisas. (JUNG, 1987, p. 310). 2011, v. 18/1, par. 181).

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Jung sugeria que o funcionamento psíquico é morais. Carrega em si o potencial criador e des-
instintivamente equivalente ao funcionamento truidor, o bem e o mal, e, sendo pura natureza,
dos sistemas naturais. E, como qualquer outro jamais fantasia seus receios e anseios (ao con-
sistema natural, o psiquismo é natureza que não trário da concepção freudiana, que via no incons-
se deixa deturpar sem que isso resulte em adoe- ciente uma tendência defensiva à negação dos
cimento psíquico. conteúdos geradores de ansiedade).
O autor salientava que sua psicologia concebe
o homem tanto em seu estado natural como em
seu estado modificado pela cultura, advertindo que CONCEITO
o homem deve ser interpretado e compreendido Arquétipos
levando-se em consideração a sua totalidade.
CITAÇÕES
O arquétipo é natureza pura, não deturpada
CONCEITO e é a natureza que faz com que o homem pro-
Inconsciente coletivo nuncie palavras e execute ações de cujo sen-
tido ele não tem consciência, e tanto não tem,
CITAÇÕES que ele já nem pensa mais nelas. (JUNG,
O inconsciente coletivo tem correspondên- 2011, v. 8/2, par. 412).
cia com nosso meio ambiente natural, e no
qual se encontra projetado constantemen- Quer o homem compreenda ou não o mundo
te. (JUNG, 2011, v. 10/4, par. 667). dos arquétipos, deverá permanecer conscien-
te do mesmo, pois nele o homem ainda é
O fundo da psique é natureza e natureza é natureza e está conectado com suas raízes.
vida criadora. É verdade que a própria natu- (JUNG, 2011, v. 9/1, par. 174).
reza derruba o que construiu, mas vai recons-
truir de novo. (JUNG, 2011, v. 10/3, par. 187). Os arquétipos são de certa forma os funda-
mentos da psique consciente ocultos na pro-
Nosso real conhecimento do inconsciente fundidade ou, usando outra comparação
mostra que ele é um fenômeno natural, e que, com suas raízes afundadas não só na terra,
tanto quanto a própria natureza, é no mínimo em sentido estrito, mas no mundo em geral.
neutro. Ele abrange todos os aspectos da na- [...] Propriamente falando, são a parte etonica
tureza humana: luz e escuridão, beleza e da psique, se assim podemos falar, aquela
feiura, bem e mal, o profundo e o superficial. parte através da qual a psique está vincula-
(JUNG, 2011, v. 18/1, par. 607). da à natureza. (JUNG, 2011, v. 10/3, par. 53).

Para Jung, o inconsciente coletivo é uma es- Os arquétipos, para Jung, tratam de conteúdos
trutura psíquica que já vem com a criança desde psíquicos arcaicos herdados filogeneticamente de
o seu nascimento, repleta de conteúdos arcai- nossos ancestrais; são reflexo das mesmas ex-
cos, próprios da natureza humana; em outros periências, inúmeras vezes repetidas e vivenciadas
termos, é um órgão natural sujeito às mesmas por nossos antepassados desde as primeiras eras
leis que regem o meio ambiente e no qual se da evolução genética da espécie humana. Por essa
encontra constantemente projetado. razão, o arquétipo é equivalente ao instinto e re-
O inconsciente, assim como a própria nature- flete em todos os sentidos os padrões de compor-
za, é um sistema neutro e destituído de valores tamento da natureza humana.

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O autor deixava claro que, no mundo dos ar- A neurose não é, para ele, somente um con-
quétipos, o homem ainda se encontra conectado junto de sintomas (negativos) que deve ser sim-
com sua natureza profunda. E, assim como a na- plesmente eliminado, mas um mecanismo que
tureza é arcaica e ao mesmo tempo criadora, Jung visa, acima de tudo, levar o indivíduo ao seu
ressalta que os arquétipos não são apenas es- processo de individuação e autoconhecimento.
truturas ultrapassadas, mas fonte de energia cria- Aliás, a neurose é, para ele, uma tentativa de au-
dora na arte, na ciência e nas melhores ideias de tocura da natureza.
nosso tempo – e que são também responsáveis
pelas bases da psique consciente.
CONCEITO
Opostos
CONCEITO
Neurose CITAÇÕES
A própria natureza procura o antagônico e
CITAÇÕES dele tira a harmonia e não do idêntico. (JUNG,
O excesso de animalidade deforma o homem 2011, v. 6, par. 443).
cultural; o excesso de cultura cria animais
doentes. (JUNG, 2011, v. 7/1, par. 32). O problema dos opostos como princípio ine-
rente à natureza humana constitui uma eta-
Quando o homem perde algumas de suas pa a mais no desenvolvimento do nosso pro-
funções naturais, isto é, quando esta se vê cesso de autoconhecimento. (JUNG, 2011,
excluída de sua atividade consciente e in- v. 7/1, par. 88).
tencional, ocorre um distúrbio geral, neuro-
tização. (JUNG, 2011, v. 10/1, par. 544). A ciência termina nas fronteiras da lógica, o
que não ocorre com a natureza, que flores-
O significado de uma neurose é impulsionar ce onde teoria alguma jamais penetrou. A
o indivíduo para a personalidade total, o que venerabilis natura (venerável natureza) não
inclui o reconhecimento e responsabilida- para no antagonismo, mas serve-se do mes-
de pela totalidade do ser, pelos bons e maus mo para formar um novo nascimento. (JUNG,
aspectos, pelas funções inferiores. (JUNG, 2011, v. 16/2, par. 524).
2011, v. 18/1, par. 367).

Para Jung, a neurose advém do conflito entre Para o autor, a resolução do conflito entre
natureza e cultura – o sistema psíquico entra em opostos (forças, valores e sentimentos antagô-
um estado de adoecimento quando o indivíduo nicos) é requisito fundamental no processo de
nega, reprime ou desconhece aspectos de sua realização da totalidade do ser. O autor obser-
própria natureza. Ele descrevia o indivíduo neuró- vou esse conflito, que ele também chamou de
tico como unilateral, demonstrando que, quando enantiodromia, nos fenômenos e processos na-
enfatizamos demasiadamente um lado de nossa turais. Salientava que, assim como ocorre na
personalidade em detrimento do outro, instala-se natureza, a psique humana tende naturalmente
o conflito. Assim, como todo sistema natural de- a buscar uma terceira saída aceitável, quando
pende de sua totalidade para funcionar perfeita- duas forças opostas chocam-se entre si.
mente, o autor considerava a neurose uma disso-
ciação que impede a perfeita dinâmica psíquica.

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Ele acreditava que o homem moderno, para


CONCEITO o seu próprio bem, deve manter-se conectado
Instinto às suas bases instintivas e às suas raízes natu-
rais, a fim de integrá-las em um todo harmonio-
CITAÇÕES so. Essa seria uma atitude de autoconhecimento
Quanto mais civilizado, mais consciente e
e de (auto)respeito perante a complexidade do
complicado for o homem, tanto menos ele
ser, que não é somente cultural, mas também
será capaz de obedecer aos instintos. As
natural.
complicadas situações de sua vida e as in-
fluências do meio ambiente se fazem sentir
de maneira tão forte, que abafam a débil voz CONCEITO
da natureza. (JUNG, 2011, v. 9/2, par. 40). Persona

A separação de sua natureza instintiva leva CITAÇÕES


o homem civilizado ao conflito inevitável A persona é um complicado sistema de rela-
entre consciência e inconsciente, entre espí- ção entre a consciência individual e a socie-
rito e natureza, fé e saber, ou seja, a cisão de dade; é uma espécie de máscara destinada,
sua própria natureza que, num dado momen- por um lado, a produzir um determinado efei-
to, torna-se patológica, uma vez que a cons- to sobre os outros e por outro lado a ocultar
ciência não é mais capaz de negligenciar ou a verdadeira natureza do indivíduo. (JUNG,
reprimir a natureza instintiva. (JUNG, 2011, 2011, v. 7/2, par. 305).
v. 10/1, par. 558).

Quando o instinto animal é varrido do cons-


Jung concebia a persona como uma função
ciente por meio da repressão, pode aconte-
natural, destinada à adaptação social do indiví-
cer que irrompa espontaneamente com toda
duo, e responsável pelo processo de alienação
força, de forma desordenada e incontrolável.
cultural. Seu símbolo é a máscara e, etimologi-
(JUNG, 2011, v. 10/3, par. 31).
camente, está ligada ao termo “personagem”. Por
meio da persona, os seres humanos desempe-
nham funções e papéis sociais em seus grupos.
Jung declarou diversas vezes, em sua obra, o Mas, de acordo com o autor, ao mesmo tempo
quanto os instintos humanos vêm sendo afeta- em que a persona oferece o suporte fundamental
dos pelo processo cultural. No entanto, convém para o homem viver em sociedade, igualmente
destacar que ele não era contrário à formação das representa um obstáculo em seu processo de to-
sociedades e reconhecia sua inegável importân- talização do ser ou de sua verdadeira identida-
cia para a vida coletiva da humanidade. Suas con- de. Afinal, a persona tende a ocultar a real nature-
siderações tão somente denunciavam os prejuí- za do indivíduo para que ele seja aceito no meio
zos trazidos pelo processo cultural quando esse em que se inter-relaciona.
pretende reprimir completamente a base instinti-
va da humanidade. Para o autor, não há repres-
CONCEITO
são dos instintos sem graves consequências, tan-
Individuação
to para o indivíduo (que se torna infeliz e neuró-
tico) como para a própria sociedade (que pode
CITAÇÕES
sofrer, nos momentos mais inesperados, a ação
O sentido e a meta do processo de indivi-
desordenada e violenta de indivíduos e massas).

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duação são a realização da personalidade CONCEITO


originária, presente no germe embrionário, Sombra
em todos os seus aspectos. É o estabeleci-
mento e o desabrochar da totalidade origi- CITAÇÕES
nária potencial. (JUNG, 2011, v. 7/1, par. 186). A moral ascética do cristianismo quer livrar-
-nos disso [da sombra] e assim nos expõe ao
O processo da individuação natural produz risco de perturbar o mais profundo de nossa
uma consciência do que seja a comunidade natureza animal. (JUNG, 2011, v. 7/1, par. 35).
humana, porque traz justamente à consciên-
cia o inconsciente, que é o que une todos os Se entendermos, então, que o mal habita a
homens e é comum a todos os homens. A natureza humana independente da nossa
individuação é o “tornar-se um” consigo mes- vontade e que ele não pode ser evitado, o
mo, e ao mesmo tempo com a humanidade mal entra na cena psicológica como o lado
toda. (JUNG, 2011, v. 16/1, par. 227). oposto e inevitável do bem. (JUNG, 2011, v.
10/1, par. 573).
Devo lembrar o fato psicológico de que, en-
quanto podemos constatar, a individuação De qualquer forma não faremos justiça nem
é um fenômeno natural [...]. Ela não é uma à nossa natureza em geral, nem à nossa na-
invenção do homem, mas é a própria nature- tureza humana se negarmos a imensidade
za que produz sua imagem arquetípica. do mal e do sofrimento, desviando nossos
(JUNG, 2011, v. 18/2, par. 1641). olhares do aspecto cruel da criação. O mal
deveria ser reconhecido como tal e não ser
atribuído à pecabilidade do homem. (JUNG,
2011, v. 18/2, par. 1654).

O autor concebia que todos os seres da na- Jung apontava a sombra e o mal como uma
tureza, independente de espécie, buscam a rea- função natural da psique humana. E, como toda
lização de seu potencial no meio em que vivem. função natural, Jung considerava salutar que a som-
Assim como a semente almeja tornar-se árvore bra fosse integrada à consciência e não elimina-
e, assim como o dia se totaliza com a noite, o da ou reprimida pela força da moralidade social.
homem busca a sua própria realização. Para atin- Negar a sombra é como negar uma parte vital
gir essa meta, Jung ressaltava que o indivíduo da personalidade. Essa atitude seria, ao ver de
deve conciliar natureza e cultura, integrar a som- Jung, um desrespeito diante da totalidade do ser.
bra à personalidade consciente do eu e desfazer A natureza só pode ser entendida em sua com-
todos os pares de opostos vigentes em sua vida plexidade e a partir do que realmente é. Nesse
psíquica. sentido, o autor destacava que a conscientização
O autor, no entanto, advertia que individuação da sombra é fundamental para que o indivíduo
não deve ser confundida com individualismo. deixe de projetar em seus semelhantes a anti-
Para ele, o individualista nega suas origens e patia e a falta de respeito que tem para consigo
suas raízes e vive em um mundo ilusório, no qual mesmo.
se acredita independente de seu próximo – fato No processo de individuação, a integração da
patológico, que ignora o verdadeiro sentido do sombra aos processos da consciência é, de acor-
processo de individuação. do com o autor, uma necessidade primordial.

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Em outros termos, a aceitação da sombra con-


siste na aceitação incondicional da própria na- CONCEITO
tureza, independentemente de suas flores ou de Religião
seus espinhos.
CITAÇÃO
O homem não consegue extirpar de todo
CONCEITO suas convicções religiosas, porque a ativi-
Sonhos dade religiosa repousa numa tendência ins-
tintiva e pertence às funções específicas do
CITAÇÕES homem. É possível retirar-lhe os deuses, mas
Muitas vezes, a natureza é obscura, sem somente para lhe oferecer outros. (JUNG,
transparência, mas ela não usa de artima- 2011, v. 10/1, par. 544).
nhas, como o homem. Por isso devemos acre-
ditar que o sonho é exatamente o que deve
Jung via a espiritualidade/religiosidade como
ser, nem mais, nem menos. (JUNG, 2011, v.
uma tendência natural e instintiva do homem, não
7/1, par. 162).
sendo possível anulá-la (como, por exemplo, pelo
ateísmo), por se tratar de uma função psicológica
Os sonhos são imparciais, não sujeitos ao
filogeneticamente herdada da humanidade. Para
arbítrio da consciência, produtos espontâ-
ele, não é possível tirar os deuses dos homens,
neos da psique inconsciente. São pura na-
mas apenas substituí-los por meio de outros, aos
tureza e, portanto, de uma verdade genuína
quais o indivíduo possa transferir a mesma quan-
e natural; são mais próprios do que qual-
tidade de fé; por exemplo, à ciência.
quer outra coisa. (JUNG, 2011, v. 10/3, par. 317).

O sonho é, portanto, um produto natural e CONCEITO


altamente objetivo da psique, do qual pode- A prática da psicoterapia
mos esperar indicações ou pelo menos pis-
tas de certas tendências básicas do processo CITAÇÃO
psíquico. (JUNG, 2011, v. 7/2, par. 210). A tarefa mais nobre da psicoterapia no pre-
sente momento é continuar firmemente a
serviço do desenvolvimento do indivíduo.
Jung era imperativo ao se referir aos sonhos Procedendo desta forma, o nosso esforço
como uma função natural da psique humana. De estará acompanhando a tendência da natu-
acordo com ele, a razão dos sonhos seria uma reza, isto é, estaremos fazendo com que de-
tentativa de trazer de volta à consciência nossa sabroche em cada indivíduo a vida na maior
mente original. plenitude possível, pois o sentido da vida
Diferente de Freud, Jung concebia os sonhos só se cumpre no indivíduo, não no pássaro
dentro de um fundo espontâneo e natural, en- empoleirado dentro de uma gaiola dourada.
quanto Freud os concebia cheios de nuanças, (JUNG, 2011, v. 16/1, par. 229).
máscaras e mecanismos de defesa. Jung chegou
a afirmar que os sonhos são o hálito da nature- Em psicoterapia, considero até aconselhável
za e que sua linguagem rica em símbolos arque- que o médico não tenha objetivos demasia-
típicos carrega a verdade sobre a natureza dos do precisos, pois dificilmente ele vai saber
indivíduos. mais do que a própria natureza ou a vontade
de viver do paciente. As grandes decisões da

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vida humana estão, em regra, muito mais su- de outono da vida não é mero palavrório sen-
jeitas aos instintos e a outros misteriosos timental, mas expressão de verdades psico-
fatores inconscientes do que à vontade cons- lógicas. (JUNG, 2011, v. 8/2, par. 780).
ciente, ao bom-senso, por mais bem-inten-
cionados que sejam. (JUNG, 2011, v. 16/1, Árvore nenhuma cresce em direção ao céu,
par. 81). se suas raízes também não se estenderem
até o inferno. (JUNG, 2011, v. 9/2, par. 78).
Com um resultado terapêutico satisfatório,
provavelmente pode dar-se o caso por en- Por mais que joguemos fora a natureza por
cerrado. Se assim não for, a terapia não terá meio da força, ela sempre retorna. (JUNG,
outro recurso a não ser orientar-se pelos da- 2011, v. 10/1, par. 514).
dos irracionais do doente. Neste caso, a na-
tureza nos servirá de guia e a função do mé- Falta contato com natureza que cresce, vive e
dico será muito mais desenvolver os germes respira. A pessoa sabe o que é um coelho ou
criativos existentes dentro do paciente do que uma vaca através de livros ilustrados, enci-
propriamente tratá-lo. (JUNG, 2011, v. 16/1, clopédias ou televisão. E pensa que conhe-
par. 82). ce realmente, mas fica admirada quando
mais tarde descobre que o estábulo fede,
pois isso não estava na enciclopédia. (JUNG,
Jung considerava a psicoterapia um espaço
2011, v. 10/3, par. 882).
em que o psicoterapeuta deve utilizar-se da ex-
pressão espontânea da natureza de seu pacien-
te como guia de seu processo de individuação.
Para ele, cada indivíduo cresce e se desenvolve A obra de Jung (2011) está repleta de alusões
ao seu tempo e à sua maneira. Em se tratando e alegorias acerca da natureza. O autor conse-
de prática psicoterapêutica, prezava o compor- guia, com muita poética, traçar paralelos entre a
tamento ético e a postura de neutralidade como natureza e os processos psicológicos dos seres
meio de garantir que a originalidade do paciente humanos. Para o autor, assim como existia uma
não seja afetada ou deturpada pela natureza do ecologia exterior, havia também uma ecologia
psicólogo. Caso contrário, a meta da individuação interior. Ele entendia a natureza como a única
perderia o seu sentido e, alegoricamente, o psi- fonte de manifestação da verdade, ou a mais pró-
coterapeuta ocasionaria uma espécie de agres- xima da realidade.
são à natureza de seu paciente. Muito antes dos atuais enfrentamentos eco-
lógicos, Jung já falava sobre a necessidade de o
homem se reconectar com a natureza, criticando
CONCEITO insistentemente a atitude de desconexão entre
Alusões diversas o homem e seu meio.
Sua concepção era de que nada no mundo
CITAÇÃO estava separado da natureza e que tudo se espe-
A alma do mundo é uma força natural, res- lhava e refletia no funcionamento natural. Assim
ponsável por todos os fenômenos da vida e como observava a primavera no meio externo,
da psique. (JUNG, 2011, v. 8/2, par. 393). observava a infância no homem; assim como
admirava o outono, admirava os processos psi-
Há alguma coisa semelhante ao sol dentro cológicos da meia-idade, como fenômenos dire-
de nós, e falar em manhã de primavera, tarde tamente análogos. Em tais comparações, ele não

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via somente um ato romântico, mas alusões de tureza”, entre as quais se destacam 137 parágra-
profunda verdade empírica. fos nos quais o autor utiliza o termo “natureza” e
De modo geral, ao longo dos 34 volumes que suas variações para ilustrar, justificar e fundamen-
compõem a obra completa de C. G. Jung, é possí- tar diversos conceitos de sua teoria, assim como
vel encontrar centenas de citações da palavra “na- podemos constatar no quadro a seguir.

Obras analisadas Parágrafo(s) Citações por obra

I – Estudos psiquiátricos
II – Estudos experimentais
III – Psicogênese das doenças mentais 584 1
IV – Freud e a psicanálise
V – Símbolos da transformação 95; 107-114; 170 (no rodapé 84) 3
VI – Tipos psicológicos 132; 790 2
VII/1 – Psicologia do inconsciente 16; 17; 28; 29-30; 32; 35; 34; 41; 50; 16
88; 93; 96; 114; 146-149; 162; 186
VII/2 – O eu e o inconsciente 305; página 10 2
VIII/2 – A natureza da psique 339; 392-393; 412; 702; 739; 10
750-751; 780; 787; 795; 800
VIII/3 – Sincronicidade
IX/1 – Os arquétipos e o inconsciente 172; 174; 195; 234; 289; 714 6
coletivo
IX/2 – Aion: Estudos sobre o 40; 78; 220; 244 4
simbolismo do si-mesmo
X/1 – Presente e futuro 514; 544; 547-548; 560; 562; 6
572-573
X/2 – Aspectos do drama 431 1
contemporâneo
X/3 – Civilização em transição 24; 31; 32; 34; 44; 53; 134; 187; 210; 13
317; 361; 831; 882
X/4 – Um mito moderno sobre 616; 667; 673 3
coisas vistas no céu
XI/1 – Psicologia e religião 105; 130 2
XI/2 – Interpretação psicológica 261 1
do dogma da trindade
XI/3 – O símbolo da transformação
na missa

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Obras analisadas Parágrafo(s) Citações por obra


XI/4 – Resposta a Jó
XI/5 – Psicologia e religião oriental 867-868; 895; 941 3
XI/6 – Escritos diversos
XII – Psicologia e alquimia 40; 214; 331 3
XIII – Estudos alquímicos 119; 130-131; 148; 184; 196; 198; 8
229; 267
XIV/1 – Mysterium coniunctionis 83; 101; 127 3
XIV/2 – Mysterium coniunctionis 6 (no rodapé 21); 58; 65; 158; 358; 7
365; 402
XV – O espírito na arte e na ciência 41; 120 2
XVI/1 – A prática da psicoterapia 42; 81-82; 130; 227 4
XVI/2 – Ab-reação, análise dos sonhos 293; 344-345; 412; 469; 508; 524 6
e transferência
XVII – O desenvolvimento da 160; 289; 290; 292-293; 320; 7
personalidade 335; 338

XVIII/1 – A vida simbólica 38; 178; 181; 367; 368; 375; 439; 473; 15
474; 585-586; 591; 598; 602-603;
607; 742

XVIII/2 – A vida simbólica 1198; 1360; 1365; 1366-1367; 1368; 9


1488; 1586; 1641; 1654

Os achados evidenciam o caráter ecológico em profunda interação com seu meio e que bus-
da obra de C. G. Jung, que, na atualidade, pode ca realizar sua totalidade, como todo sistema
ser de grande utilidade, não somente para o avan- natural.
ço da ciência psicológica, mas também com os Sua obra reflete o pensamento de um homem
atuais enfrentamentos ecológicos. Afinal, por que esteve profundamente ligado aos mistérios
meio da psicologia profunda de Jung, percebe-se da vida, da natureza e da psique como um todo.
que a realidade interna dos seres humanos está Muitas vezes incompreendido e tachado de mís-
estreitamente fundamentada sobre as bases e tico e romântico, Jung tem um trabalho científico
leis que regem a realidade cíclica da natureza e que revela, pelo contrário, grande sensibilidade
ligada a elas. para captar, muito antes dos atuais enfrenta-
mentos ecológicos, um pensamento de integra-
3. Considerações finais ção entre o homem e a natureza. A essência des-
Jung enfatizou intensamente, em sua obra, se pensamento é o que atualmente se preza nos
a desconexão do homem com a natureza e, con- modernos movimentos ecológicos que ainda ali-
sequentemente, consigo mesmo. Já no sécu- mentam a utopia de um mundo povoado por
lo passado, tratou o homem como um sistema humanos capazes de respeitar o meio natural, à

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medida que reconhecem a profundidade de sua dúvida, foi um exímio ecologista da interioridade
própria natureza. humana, buscando desvelar as obscuridades da
A natureza é como um espelho no qual nos psique e defendendo, do início ao fim de sua
vemos: somos um pouco da abelha, do cão, do vida, o livre desabrochar das potencialidades do
macaco, da árvore, da víbora e da ameba; somos homem, motivando-o a trilhar os caminhos do
um pouco de todos os seres e todos os seres processo de individuação e da totalidade do ser,
são um pouco de nós. Conectar-se a ela e à es- sem, no entanto, distanciar-se de suas origens
sência de todos os seres é também uma forma coletivas.
de nos integrar com nossa própria totalidade. A obra científica de Jung configura, pelo que
Cuidar da natureza e contemplá-la não são so- pudemos ver ao longo deste trabalho, uma es-
mente atos românticos, mas uma forma de nos pécie de ecologia humana, em que o autor colo-
cuidar, de nos contemplar e de reconhecer os ca os seres humanos como parte integrante de
nossos próprios mistérios. A crítica de Jung era seu meio natural, não como o animal-humano
exatamente em torno da atitude de desconexão dominante da natureza, mas como apenas mais
do homem, iniciada desde os primórdios do cris- um ser reinado por forças inconscientes mais
tianismo. Já em seu tempo, percebia que faltava fortes do que ele mesmo.
contato direto das pessoas com a natureza. Por motivos razoáveis, sugerimos que o au-
A profunda conexão de Jung com a natureza tor seja reconhecido como o pioneiro da eco-
e o modo com que tratava a psicologia nos le- psicologia, ecologia humana e, até mesmo, como
vam à reflexão de seu objetivo maior, que era um dos primeiros pensadores ecosóficos da
formar não apenas psicoterapeutas ou conhe- modernidade. „
cedores técnicos da mente humana, mas eco-
logistas da alma. Ele mesmo, sem qualquer Recebido em: 6/3/2017 Revisão: 24/5/2017

Abstract

Ecology of the soul: the nature in the scientific work of Carl Gustav Jung
To study the work and biography of Carl volumes of Jung’s complete work the quotations
Gustav Jung is to realize how inspiring nature was in which the term “nature” is used to support
to the development of his scientific and personal concepts of his theory. The 137 paragraphs that
worldview. Therefore this paper examines the were found demonstrate the author conceived
relevance of nature to the formulation of analyti- psychic functioning was analogous to the func-
cal psychology theories. It searches through 34 tioning of all natural systems. „

Keywords: human ecology, C. G. Jung, nature.

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Resumen

Ecología del alma: la naturaleza en el trabajo científico de Carl Gustav Jung


Al estudiar el trabajo científico de Carl Gustav en las obras completas del autor, que se compone
Jung, así como su ruta biográfica, es perceptible de 34 volúmenes, las citas donde utilizó el término
para cualquier investigador que la naturaleza “naturaleza” para sostener conceptos en su teo-
representó la inspiración en el proceso de cons- ría. Los hallazgos, compuestos por 137 párrafos,
trucción de su cosmovisión científica y personal. muestran que el autor concebía el funcionamiento
Por lo tanto, se buscó, por medio de esta inves- psíquico equivalente al funcionamiento de los
tigación, la relevancia de la naturaleza para la sistemas naturales. „
formulación de la psicología analítica. Se rescató

Palabras clave: ecología humana, C. G Jung, naturaleza.

Referências bibliográficas
JUNG, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. 1. ed. Rio de Janeiro: PINHEIRO, J. Q. Psicologia ambiental: a busca de um ambiente
Nova Fronteira, 1987. melhor. Estudos de Psicologia, Natal, RN, v. 2, n. 2, p. 377-398,
1997.
JUNG, C. G. Obras completas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
TARNAS, R. A epopeia do pensamento ocidental. 3. ed. Rio de
MCGUIRE, W.; HULL, R. F. C. C. G. Jung: entrevistas e encontros..
Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
1. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
VON FRANZ, M.-L. C. G. Jung: seu mito em nossa época. 2. ed.
São Paulo: Cultrix, 1992.

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Prevenção começa em casa:


contribuições da neurociência

Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira*

Resumo
O aumento do uso de drogas e de outros com- sintomas ou resiliência, dependendo da intensi- Palavras-chave
portamentos que também provocam dependên- dade do agente estressor, da maturidade do siste- Dependências,
cia é evidente no mundo contemporâneo, assim ma nervoso e da relação entre criança e cuidador, prevenção,
desenvolvimento,
como a dificuldade no tratamento das depen- quer sejam eles pais, parentes, professores, ami-
arquétipo,
dências. Os achados da neurociência podem gos, analistas, enfim, pessoas com as quais seja
epigenética.
contribuir, dando subsídios para a prevenção possível estabelecer uma relação significativa. „
dessa patologia. O presente trabalho aborda a
importância do processo de tomada de decisão
nas dependências, enfocando o cérebro do ado-
lescente, e enfatiza o papel da intersubjetividade
no desenvolvimento. Estudos recentes que des-
crevem alterações epigenéticas relacionadas a
adversidades sofridas na vida precoce são apre-
sentados, assim como dados que mostram que
algumas alterações podem ser revertidas por
meio da qualidade do vínculo com o cuidador.
A prevenção é discutida como ação que começa
com a humanização dos arquétipos da grande
mãe e do pai, e continua vida afora, uma vez que
as adversidades podem contribuir para gerar

* Doutora em psicologia experimental pelo Instituto de Psicologia


da USP; analista membro da Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica; colaboradora do Projeto Quixote.
E-mail: <mpm_fto@uol.com.br>

RevistaRevista
da Sociedade
da Sociedade
Brasileira
Brasileira
de Psicologia
de Psicologia
Analítica,
Analítica, 2016 „ 21
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Prevenção começa em casa: contribuições da neurociência

Nas últimas décadas, o consumo de drogas segurança e bem-estar para os filhos, acabam
vem se ampliando, assim como suas conse- pouco disponíveis, não privilegiando tempo e es-
quências. Passou a ser corriqueiro o relato de paço para a convivência e a intimidade. Além da
crianças e adolescentes que consomem álcool televisão, cada vez mais jogos eletrônicos são uti-
e começam a usar drogas cada vez mais cedo. lizados para entretê-los. Computadores, tablets
Novas drogas vêm sendo sintetizadas e seu uso, e celulares passaram a fazer parte do cotidiano,
disseminado, principalmente entre jovens que permitindo passatempo e até contato com outras
frequentam “baladas” (SANUDO; ANDREONI; pessoas, via tecnologia. Entretanto, o contato
SANCHEZ, 2015). Além do ecstasy (MDMA) e da humano é fundamental para o desenvolvimento.
cannabis sintética, há outras substâncias, como É na convivência que se humanizam os arquéti-
catinonas sintéticas (Flakka, Vanilla Sky) e fene- pos e a falta dessa convivência traz consequên-
tilaminas (N-Bome), cujos efeitos ainda não são cias. Depressão, ansiedade e dependências são
bem conhecidos pela comunidade médica e que transtornos prevalentes nos dias de hoje. Qual
podem ser adquiridas até pela internet. Meca- a influência dessa forma de viver atual dos pais
nismos neurobiológicos envolvidos nas depen- nos filhos? Quanto isso contribuiu para aumen-
dências vêm sendo elucidados com cada vez tar transtornos psiquiátricos na infância e na ado-
mais detalhes. Teorias comportamentais, cogni- lescência (mais especificamente, uso de álcool e
tivas e psicodinâmicas foram elaboradas e gru- de outras drogas)? O presente trabalho pretende
pos de autoajuda, como Alcoólicos Anônimos relacionar novos achados da neurociência a pre-
(AA) e Narcóticos Anônimos (NA), proliferaram. No venção, visando estimular resiliência e diminuir o
entanto, o tratamento de dependentes continua risco de psicopatologia, com ênfase principalmen-
pouco efetivo e campanhas de prevenção tam- te em dependências.
pouco mostraram resultados consistentes.
O estilo de vida da época pós-moderna agra- Neurobiologia da dependência
va esse quadro, incentivando não só o consumo Os estudos recentes ajudaram a compreender
de drogas, mas comportamentos que proporcio- melhor o mecanismo da dependência e por que é
nam sensação de prazer ou alívio, nem que seja tão difícil tratá-la. Quando há uso recorrente de
por algum período. Em tempos de Facebook, drogas psicotrópicas, um estímulo muito mais
Instagram etc., imagens de felicidade e sucesso potente do que o natural trapaceia o sistema ce-
imperam, assim como a necessidade de estar rebral de recompensa. Como afirma Damasio
conectado. A sensação de urgência e de cobrança (2003), os estados de alegria traduzem coorde-
atinge a todos e o imediatismo se impõe. Trocam- nação fisiológica ótima e um fluxo desimpedido
-se mensagens cada vez mais curtas e esperam-se das operações da vida. No entanto, os “mapas
respostas instantâneas (OLIVEIRA, 2013). Como neurais” que sinalizam a alegria podem ser falsi-
bem descreve Bauman (1998), na sociedade pós- ficados pelas drogas e não refletir o estado atual
-moderna, tudo é fluido, em movimento, e não há do organismo. Drogas procuradas para propor-
tempo de espera. Nesse ritmo, falta disponibilida- cionar bem-estar, com o uso repetido, induzem à
de interna para o encontro, para estar junto e ex- depressão. As marcas de consumo intenso des-
perimentar cumplicidade e solidariedade. sas substâncias ficam no corpo e o uso repeti-
Observam-se casais ansiosos por formar fa- do provoca neuroadaptações de longo prazo
mílias bem-sucedidas. Eficientes, frequentemen- (NESTOR; MALENKA, 2004).
te muito preocupados em garantir estabilidade, O processo de tomada de decisão tem papel

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central nas dependências, uma vez que o que ca- accumbens é mais ativado). A interação entre o
racteriza esse transtorno é o fato de o indivíduo córtex pré-frontal e as estruturas subcorticais
optar por um comportamento que provoca sen- muda durante o desenvolvimento. Com a idade,
sação de prazer imediato, em vez de resistir e de- aumenta a força de conexão e, em consequência,
cidir-se por uma recompensa futura. É importan- a capacidade de autocontrole (CASEY; JONES;
te lembrar que tomamos decisões o tempo todo, SOMERVILLE, 2011). Dessa maneira, adolescen-
geralmente de maneira inconsciente e automáti- tes tendem a ser mais impulsivos devido à fase
ca, entretanto, em alguns casos, é importante ter de desenvolvimento em que se encontram. Além
consciência da escolha e de suas implicações. disso, existem diferenças individuais em resistir
Assim, escolher pode ser tarefa difícil, uma vez ao impulso ou à gratificação imediata, observa-
que, ao se fazer uma opção, é necessário renun- dos na infância (MISCHEL; SHODA; RODRIGUEZ,
ciar as outras. Jung (1989) já falava da importân- 1989), que persistem na adolescência e na vida
cia do sacrifício no processo de individuação. Na adulta (EIGSTI; ZAYAS; MISCHEL et al., 2006).
tomada de decisão, pode haver conflito entre Estudos com imagem mostram que adolescen-
córtex pré-frontal (função executiva que avalia) e tes são mais sensíveis do que crianças e adul-
sistema límbico (que sinaliza a sensação de pra- tos a ameaças, no entanto isso não se traduz
zer). Dependência está justamente relacionada em seu comportamento, favorecendo que se ex-
à dificuldade de resistir a impulso associado à re- ponham mais a riscos (CASEY et al., 2011).
compensa imediata, apesar das consequências As pesquisas que estudam o funcionamento
negativas (PALMINI, 2007; VERDEJO-GARCIA; cerebral mostram que adolescentes podem fa-
BECHARA, 2009). zer escolhas sensatas, mas tendem a decidir mal
sob impacto de emoção (CASEY; CAUDLE, 2013).
Adolescência e o cérebro do adolescente E, nessa fase da vida, o que não falta são emo-
Nos adolescentes, esse aspecto tem importân- ções! Escolha e sacrifício exigem um sistema ma-
cia particular. Nessa fase da vida, há a constelação duro, capaz de reconhecer o que é melhor para
do arquétipo do herói, que favorece a passagem si, optando por ações que favoreçam o desen-
da infância para a vida adulta. A adolescência é volvimento. É necessário um diálogo equilibra-
caracterizada pela busca do inédito, pela experi- do entre eros e logos. Ou se sacrifica um polo a
mentação de novas sensações e por rupturas com favor do outro ou se suporta a tensão para trans-
padrões familiares. Em muitas culturas, essa pas- cender opostos e encontrar o novo. Os adoles-
sagem é marcada por rituais em que morte e centes se encontram frente a muitos dilemas e
renascimento ocorrem de maneira simbólica. No nem sempre têm condições de fazer um sacrifí-
entanto, na sociedade atual, muitas vezes o ritual cio ou suportar tensão por muito tempo. Tendo
não ocorre. É frequente a dificuldade em resistir a em vista a prevenção, objeto do presente artigo,
impulsos, sendo comuns comportamentos de ris- além da consciência desse fato para poder au-
co. É alta a incidência de acidentes graves, brigas xiliá-los nessa tarefa quando possível, é impor-
e uso de drogas que envolvem jovens, havendo tante explicitar aspectos que podem contribuir
atuação concreta e não apenas simbólica. para formar adolescentes capazes de escolhas
O córtex pré-frontal, responsável pelo controle mais sensatas e de identificar o que pode preju-
e eficiência cognitiva, ainda está em formação dicar esse processo.
durante a adolescência. As estruturas subcorticais
(que incluem o sistema límbico), responsáveis Desenvolvimento
pela saliência do estímulo, são mais sensíveis Os estudos recentes sobre desenvolvimento
nessa época da vida, sendo maior a suscepti- cerebral reforçam a tese de que prevenção co-
bilidade a estímulos emocionais (o nucleus meça em casa. A importância da constelação do

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arquétipo da grande mãe no cuidado, do arqué- primária. Observa-se uma coordenação mútua en-
tipo do pai na discriminação e do arquétipo do tre mãe e bebê, uma harmonização afetiva e uma
herói favorecendo transformação parece ter um cronometragem coordenada pela dupla. A inter-
correlato neurobiológico. O desenvolvimento do subjetividade secundária se verifica antes da ca-
cérebro se inicia na gestação e continua até a pacidade verbal ou simbólica, uma vez que, aos
idade adulta. Os achados da epigenética expli- 9 meses, bebês são capazes de ler a intenção
citam como cada um vai se desenvolver à sua do outro. Aos 12 meses, observa-se a importân-
maneira, uma vez que os genes se expressam cia da referência social: o estado afetivo mostra-
respondendo ao ambiente. do no outro é relevante para como a criança vai
Normalmente o arquétipo da grande mãe se se sentir. Aos 18 meses, a criança torna-se ver-
constela na gravidez. Mulheres eficientes e prag- bal, aprimorando sua forma de comunicação.
máticas muitas vezes se surpreendem valorizan- Novas formas de intersubjetividade são rapida-
do coisas que jamais lhes interessaram. O ritmo mente acrescentadas e, aos 5 anos, as crianças
diminui, sentem sono, ficam mais sensíveis. já adquiriram a “teoria da mente”, ou seja, a ca-
Conforme a gestação evolui, o ritmo da futura pacidade mais formal de representar estados
mãe muda. Volta-se para cuidar da casa, prepa- mentais de outras pessoas (STERN, 2004).
rar o canto para o bebê, enfim, mudanças no or- Assim, segundo Stern (2004), nossa vida men-
ganismo são acompanhadas por mudanças no tal é co-criada. O diálogo criativo contínuo com
psiquismo e se traduzem na maneira de viver. outras mentes é a matriz de subjetividade, en-
Quando o bebê nasce, o arquétipo da grande mãe volve a interpenetração mútua de mentes, haven-
reina e, conforme ele vai crescendo, o arquétipo do leitura do conteúdo da mente do outro. A iden-
do pai, introduzindo a lei, se faz cada vez mais tificação dos neurônios-espelho (RIZZOLATTI;
presente. Os arquétipos vão sendo humanizados, ARBIB, 1998) permitiu compreender como se dá
possibilitando a estruturação da personalidade e o processo de empatia e de estabelecimento de
o desenvolvimento de um narcisismo saudável contato intersubjetivo. O repertório de expres-
(GALIÁS, 2003). sões faciais e vocais, a linguagem de maneira
A importância da relação mãe-bebê é bem des- geral, não verbal e verbal, é muito eficiente em
crita pela literatura. Stern (2000) descreve o de- termos intersubjetivos. O olhar do outro ajuda a
senvolvimento e as fases de aquisição do Self e, fixar nossa autoposição relativa e a encontrar nos-
na revisão do seu célebre livro O mundo in- so senso de Self verdadeiro (STERN, 2004).
terpessoal do bebê, ressalta a importância de Esse processo explicita a importância da qua-
intersubjetividade desde o início da vida, mostran- lidade de relação para o desenvolvimento saudá-
do a relevância dos modos de estar com o outro vel da criança. O desenvolvimento emocional,
(que originalmente denominava RIG – represen- cognitivo e social vai se dando ao longo do tem-
tações de interações que foram generalizadas). po. A criança vai aprendendo a expressar seus
Esse autor afirma que intersubjetividade passou desejos e a controlar impulsos. Estudos mostram
a ser conceito central, outrora ocupado pelo in- que as crianças aprendem a não ser agressivas
trapsíquico. Ele descreve como, a cada fase do (TREMBLAY, 2010), ressaltando a importância da
desenvolvimento, a matriz intersubjetiva é mais presença do cuidador nesse sentido. Em condi-
rica e profunda, e relata que pesquisadores des- ções normais, a criança cresce e se desenvolve e,
crevem intersubjetividade já em crianças em ida- não havendo maiores intercorrências, passa pela
de pré-verbal e pré-simbólica. Bebês nascem com adolescência e chega saudável à vida adulta.
mentes afinadas com outras mentes; assim, po- Entretanto, nesse ritmo alucinado dos dias
de-se falar de psicologia de mentes mutuamen- atuais, muitos bebês não têm oportunidade de
te sensíveis, o que permite a intersubjetividade viver esse processo de desenvolvimento com

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relativa tranquilidade. Ansiedade, estresse, sin- Pesquisas realizadas no Canadá, a partir de uma
tomas depressivos, enfim, o estado emocional da grande tempestade em Quebec ocorrida em
mãe/do cuidador vai interferir na relação, uma vez 1998, que provocou graves danos na cidade e
que o bebê já capta a falta de disponibilidade afetou a população de forma severa, trazem con-
interna de quem cuida dele e reage a ela. Crian- tribuições interessantes nesse sentido. Cento e
ças agressivas, impulsivas e deprimidas, que apre- setenta e seis mulheres grávidas na época da
sentam sintomas desde pequenas, muitas vezes tempestade foram avaliadas e acompanhadas
já carregam uma história prévia. prospectivamente junto com seus filhos. Verifi-
cou-se que o comportamento ansioso, depres-
Contribuição da epigenética sivo e agressivo dos filhos estava relacionado
A epigenética trata da inter-relação dinâmica à vivência de estresse subjetivo da mãe na épo-
entre genes e experiência. Além das dificuldades ca da tempestade. Dessas, 36 mulheres permiti-
na relação mãe-bebê, foi observado que estímu- ram a coleta de sangue dos filhos para análise.
los ambientais podem provocar alterações na Observou-se que houve metilação em todos os
expressão de alguns genes, como as provocadas casos, permitindo concluir que metilação estava
por um processo chamado metilação (mudança relacionada ao estresse objetivo e que mudanças
na síntese de proteínas – a sequência do DNA na metilação permaneceram ao longo do tempo
não muda, mas o gene pode ser ativado ou si- em avaliações sucessivas, quando os filhos esta-
lenciado a partir de certas condições ambien- vam com 8 anos e, posteriormente, com 13 anos
tais). Algumas dessas alterações permanecem (CAO-LEI; MASSART; SUDERMAN et al., 2014).
como uma assinatura biológica, uma cicatriz, que Há estudos com animais que mostram os efei-
perdura ao longo da vida e pode ser transmitida tos da separação precoce da mãe e ilustram conse-
a gerações seguintes, e outras parecem ser re- quências epigenéticas da interação mãe-criança
versíveis. Essa expressão genética alterada pode (DETTMER; SUOMI, 2014). Ratos separados da mãe
ocorrer em múltiplos tecidos, incluindo o cére- ao nascer apresentavam, já aos 14 dias de vida,
bro, trazendo consequências para o funcionamen- metilação diferente do grupo controle. O impor-
to e a conectividade de circuitos neurais (MONK; tante a ser ressaltado é que experiências pós-na-
SPICER; CHAMPAGNE, 2012). tais podem moderar o efeito de vivências pré-
Consequências epigenéticas da interação -natais (MONK et al., 2012). Meaney e Sztf (2005)
mãe-criança vêm sendo estudadas (MONK et al., descrevem estudo com ratos que apresentavam
2012). Observou-se que vivências traumáticas ou comportamento ansioso comparado a ratos nor-
de estresse excessivo durante a gravidez podem mais. Esses autores verificaram que as fêmeas
provocar na futura mãe uma série de reações no normais lambiam com grande frequência seus
organismo que, via placenta, podem ser trans- filhotes, o que favorece o desenvolvimento sau-
mitidas ao bebê. A vulnerabilidade ao estresse dável, ao passo que as fêmeas ansiosas lam-
estabelecida no útero, como resposta ao estres- biam pouco seus filhotes e estes, ao crescerem,
se, depressão ou ansiedade pré-natal da mãe, entre outras consequências, tornaram-se ratos
pode levar a maior risco de psicopatologia. Por ansiosos. Em estudo posterior, os filhotes de fê-
exemplo, estudos realizados na Holanda com meas ansiosas foram trocados pelos filhotes de
mulheres que passaram fome devido à guerra fêmeas normais e vice-versa. O resultado foi sur-
mostraram associação entre características da preendente: verificou-se que, ao trocar as mães
vida das mulheres grávidas e desenvolvimentos estressadas por mães lambedoras normais, filho-
de saúde mental e cognitivos de seus filhos: tes, aos crescerem, tornaram-se adultos normais;
fome e estresse tiveram efeito neurotóxico no cé- e os que foram cuidados pelas mães ansiosas
rebro em desenvolvimento (MONK et al., 2012). tornaram-se ansiosos. Foi o comportamento da

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mãe que fez a diferença! Dessa maneira, se o ciclo de mães que não passaram por essas situações
não for interrompido, mãe ansiosa gera filhote adversas. Bebês/crianças que passaram por si-
ansioso, que, sendo fêmea, vai ser mãe ansiosa tuação de estresse intenso, negligência ou abuso
de filhote ansioso etc. (físico, sexual e/ou emocional) podem desenvol-
Pesquisas recentes com macacos apresentam ver alterações epigenéticas. Como o desenvolvi-
resultados na mesma direção. Sabe-se que a falta mento neural continua até os 20 anos e diferen-
de relação de apego seguro nos primeiros anos tes regiões do cérebro amadurecem em épocas
traz consequências para a saúde física e mental, distintas, há relação entre o momento e a intensi-
com efeitos que variam de acordo com o gênero dade da vivência de situação adversa (estresse) e
(CONTI; HANSMAN; HECKMAN et al., 2012). O gru- possível consequência, como patologias e trans-
po de pesquisa liderado por Suomi tem trazido tornos do desenvolvimento (LUPIEN; MCEWEN;
contribuições importantes para a compreensão de GUNNAR; HEIM, 2009). O resultado da exposição
fenômenos como ansiedade, alcoolismo, com- ao estresse depende da intensidade do estresse
portamento impulsivo, agressivo e antissocial e do estado de maturação da região do cérebro.
(DETTMER; SUOMI, 2014). Os pesquisadores des- Os circuitos se adaptam bem ou mal ao ambien-
crevem o comportamento de filhotes de maca- te adverso, como negligência socioemocional,
cos separados da mãe ao nascerem e as dife- abuso e experiências traumáticas. Isso pode re-
renças observadas quando esses filhotes foram sultar em sistemas neuronais disfuncionais, que
comparados aos que foram criados com a mãe. podem desencadear transtorno mental ou pro-
Filhotes separados precocemente apresentavam vocar respostas adaptativas e resiliência para si-
padrão de comportamento mais explosivo, al- tuações de estresse no futuro (BOCK; RETHER;
guns com déficits, e, aos 2 anos de idade, essas GROGER et al., 2014).
diferenças eram maiores. Observou-se menos Adversidades na vida precoce podem promo-
serotonina em diferentes áreas do cérebro e al- ver cicatrizes em áreas pré-frontais e límbicas,
gumas diferenças estruturais. Com relação ao regiões essenciais para o controle de emoções,
genoma, também foram notadas alterações. Al- aprendizagem, memória e tomada de decisão. O
guns genes eram mais ativados e outros menos estresse prejudica a regulação entre córtex pré-
(PROVENÇAL; SUDERMAN; GUILLEMIN et al., -frontal e sistema límbico, delicada no adolescen-
2012). Em estudo em que filhotes foram criados te, ainda em processo de formação. O que difere
somente com seus pares, ao ser introduzido um uso, abuso e dependência é justamente essa ca-
adulto no grupo, quando tinham entre 6 e 7 me- pacidade de conter impulso e avaliar a situação
ses, mudanças importantes foram observadas. para tomar a melhor decisão. Yan e cols. (2013)
As brigas entre os filhotes cessaram. As altera- afirmam que disfunções no córtex pré-frontal
ções não ocorreram apenas com relação ao com- relacionadas a avaliação, regulação emocional e
portamento, mas também no índice de cortisol, tomada de decisões precedem o abuso de dro-
na expressão dos genes e na metilação. Houve gas. A presença de fatores genéticos (sistema do-
alteração na expressão de alguns genes e a dife- paminérgico e serotonérgico) e ambientais, como
rença que havia entre esse grupo e o grupo de negligência, abuso (físico, sexual e/ou emocional)
controle desapareceu. Os pesquisadores cha- e estresse, contribuiriam para alguns indivíduos
mam atenção para o fato de que a intervenção serem mais propensos a ter problemas com uso
mudou a metilação um ano depois. Padrões fo- de drogas do que outros.
ram reversíveis! Assim, se nos adolescentes é natural maior
Assim, bebês filhos de mães que passaram impulsividade e exposição a risco, quando há
por vivências traumáticas ou depressão podem adversidades na vida precoce, os riscos de
nascer com alterações, se comparados a bebês consequências negativas ou de presença de

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psicopatologia são ainda maiores. Esses fato- diversas, enquanto outros tentam aplacá-la por
res devem ser ressaltados quando se pensa em meio do prazer imediato proporcionado pelo uso
prevenção, principalmente para interromper a ca- de substâncias ou pela prática de outros com-
deia epigenética. portamentos que proporcionam essa sensação.
Nem sempre acreditam que vale a pena lutar pelo
Prevenção de dependências que querem. O objetivo é logo banalizado ou é
A prevenção de dependências se dá em ações uma meta idealizada e inatingível. Há adolescen-
que propiciem a formação de indivíduos que atra- tes que não encontram motivos pelos quais fa-
vessem as diferentes etapas da vida e suas ad- zer sacrifícios. Ou então, que não sabem que é
versidades podendo fazer escolhas sensatas, necessário fazer sacrifícios, pois têm tudo à mão,
que tenham maior capacidade de resistir à grati- ou, ainda, que acreditam nas imagens de suces-
ficação imediata. Para tanto, esses indivíduos so fácil que consomem nas mais diversas mídias.
têm que conseguir parar e pensar para escolher; Portanto, é importante resgatar a jornada do he-
querer se cuidar; ter por que esperar por recom- rói, que tem que enfrentar batalhas e acender o
pensa futura. A presença de projetos, sonhos e prazer em conquistar desafios. O arquétipo do
esperança favorece a capacidade de suportar herói deve entrar em cena, auxiliando a enfrentar
frustração e persistir (OLIVEIRA, 2005). Isso se adversidades sem sucumbir; a criar estratégias e
constrói na relação com o outro, após terem hu- propiciar um diálogo equilibrado entre eros e
manizado os arquétipos da grande mãe e do pai, logos para transcender os polos opostos, encon-
tendo estruturado bem os papéis matriarcal e trar alternativas, inaugurar o novo. A presença do
patriarcal, sendo capazes de serem bons “pais” adulto – estimulando esse processo, testemu-
e “mães” de si mesmos (GALIAS, 2003). nhando, compartilhando sua própria experiência,
Bebês, quando pequenos, precisam de con- reconhecendo a dificuldade do adolescente e con-
tingência perfeita e, conforme crescem, é impor- ferindo sentido – contribui para que ele persista
tante a contingência imperfeita. Em boa medida, no seu caminho de individuação.
estresse pode provocar respostas adaptativas e
resiliência para situações de estresse no futuro. Considerações finais
Trata-se de um processo contínuo de autonomia Adolescentes são mais vulneráveis a abuso
progressiva em que a presença do outro é fun- e dependência devido à própria fase de desen-
damental. Adolescentes precisam testar seus li- volvimento em que se encontram. Adversidades
mites, se diferenciar de seus pais e encontrar sua sofridas durante a gestação e/ou primeira infân-
identidade. Para tanto, é necessária a presença cia podem deixar marcas e prejudicar os siste-
de pessoas significativas nessa fase conflituosa, mas envolvidos no processo de tomada de deci-
acolhendo e dando parâmetros, permitindo cres- são, sensíveis nessa época da vida. A consciên-
cimento e desenvolvimento. No entanto, frequen- cia de que adversidades provocam mudanças na
temente, pais e educadores não estão disponí- expressão de determinados genes – que, por sua
veis ou, então, não sentem segurança para im- vez, produzem alterações de comportamento ou
por limites aos adolescentes. Faltam figuras que até quadros psiquiátricos que podem ser trans-
inspirem respeito ou, pelo contrário, que supor- mitidos de uma geração a outra – realça a ne-
tem os questionamentos dessa fase e ajudem a cessidade de intervenções que possam tratar,
conferir significado às experiências. Nesse mun- reverter ou, pelo menos, minimizar esses danos.
do em permanente transição, os valores andam Epigenética e individuação, os genes se expres-
confusos, faltam referências e muitos adolescen- sam respondendo ao ambiente e cada um vai se
tes sentem-se perdidos. Alguns tentam expres- desenvolver de maneira singular. Saber que o vín-
sar sua angústia por meio de atuações as mais culo tem papel fundamental nesse processo faz

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toda a diferença. Intersubjetividade e comunica- o desenvolvimento da singularidade de cada in-


ção não verbal acontecem o tempo todo. Ter isso divíduo, que contribuem para a individuação.
em mente é importante para fazer bom uso des- Vivemos em um país marcado pela violência,
sa habilidade e estimular momentos de atenção desigualdade, pobreza, má condição de educação.
ao outro. Resgatar o papel fundamental de en- Um cenário em que é comum gravidez precoce,
contros significativos é imprescindível para fa- negligência, abuso de álcool e outras drogas,
zer frente à tendência atual de cuidado tercei- enfim, uma série de fatores que contribuem pa-
rizado e comunicação por texto e imagem, via ra manter o ciclo de violência e patologia. Esses
tecnologia. estudos ressaltam a necessidade de se investir
Exclusão gera exclusão, indiferença gera in- em cuidados básicos para interromper esse ci-
diferença, violência gera violência. Assim, é ne- clo. Campanhas de prevenção de gravidez na
cessário romper esse padrão. Atenção pode ge- adolescência, acompanhamento pré-natal, orien-
rar atenção. Humanizar o arquétipo da grande tação para amamentação e garantia de um am-
mãe para o cuidado e o arquétipo do pai para a biente com condições para pais poderem cuidar
discriminação é fundamental, e isso se dá por de seus filhos são fundamentais. Preparar edu-
meio de investimento nos vínculos. É muito va- cadores para terem a noção de que a qualidade
lorizada e divulgada a importância de oferecer do vínculo vai imprimir uma marca que pode
estímulos adequados às crianças e oportunida- mudar o curso da história da criança passa a ser
des de aprendizagem, mas o aspecto básico do imprescindível. Resgatar o valor da participação
contato, do encontro e da qualidade do vínculo na vida familiar durante todo o percurso, desde
vem sendo negligenciado. a gestação até a adolescência, ressaltando a im-
A vida é feita de encontros. Encontros trans- portância da presença, do modo de estar com o
formam! Esses estudos chamam atenção tam- outro, não só corpo presente e cabeça distante,
bém para a importância do trabalho do analista. como o uso de celulares denuncia, parece tarefa
Análise é encontro por excelência; encontro em óbvia, mas não é.
local e horário determinado, em vaso fechado É importante ressaltar que qualquer atividade
que possibilita uma intimidade singular. Falar de pode ser pretexto para promover essa oportuni-
si para um desconhecido, o sujeito suposto sa- dade de encontro significativo, que ajuda a cons-
ber, como definido por Lacan, que ocupa um lu- tituir um sujeito com identidade própria. Portan-
gar, mas que pode exercer diferentes funções de to, prevenção começa em casa e continua vida
acordo com o caso e com o momento. Pode ser afora, uma vez que pode ser realizada por todos,
a mãe suficientemente boa, o pai que discrimina, pois se trata de humanizar os arquétipos por meio
o irmão que compartilha. Encontros que ajudam de vivências significativas, que não se restringem
a instaurar a capacidade de pensar e a traduzir o a de pais e filhos, analistas e analisandos. Todo
que não pode ser dito, que conferem significa- encontro pode ter papel decisivo! „
do à experiência e ajudam o indivíduo a encon-
trar sentido na vida. Encontros que favorecem Recebido em: 16/12/2016 Revisão: 26/5/2017

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Abstract

Prevention starts at home: contributions from neuroscience


The increase of drug abuse and of other be- some alterations can be reverted by the quality
haviors that can lead to addiction are evident of the bond with the caregiver. Prevention is dis-
in contemporary world, as well as the difficul- cussed as an action that begins at home with
ties related to addiction treatment. Neuro- the humanization of the great mother and the
science data can contribute to the prevention father archetypes and continues throughout life,
of this pathology. The present paper shows the once adversities can contribute to generate
importance of the decision-making process in symptoms or resilience, depending on the stress
addiction, focusing in the adolescent brain and intensity, the maturity level of the nervous sys-
emphasizing the role of intersubjectivity in the tem and the relationship between the child and
development. Recent studies describing epige- the caregiver, being them parents, educators,
netic alterations related to early life adversities friends, analysts or whoever the child can estab-
are presented, including data revealing that lish a significant relationship with. „

Keywords: addiction, prevention, development, archetype, epigenetic.

Resumen

La prevención comienza en casa: aportaciones de la neurociencia


El aumento del uso de drogas y otras conduc- datos que revelan que algunas alteraciones
tas que causan dependencia es evidente en el pueden ser revertidas por la calidad de vínculo con
mundo contemporáneo, así como las dificultades el cuidador. La prevención se discute como una
relacionadas con el tratamiento de las adicciones. acción que comienza en casa con la humanización
Los datos de la neurociencia pueden contribuir a de los arquetipos de la gran madre y del padre, y
dar subsidios para prevenir esta patología. El pre- continúa a lo largo de la vida, ya que las adver-
sente trabajo muestra la importancia del proceso sidades pueden contribuir a generar síntomas o
de toma de decisiones en adicción, se centra en resiliencia, dependiendo de la intensidad del
el cerebro de los adolescentes y enfatiza el papel estresor, la madurez del sistema nervioso y la
de la intersubjetividad en el desarrollo. Se pre- relación entre el niño y su cuidador, sean padres,
sentan estudios recientes que describen alteracio- educadores, amigos, analistas o cualquier otra
nes epigenéticas relacionadas con las adversi- persona con la que el niño pueda establecer una
dades sufridas en la vida temprana y se incluyen relación significativa. „

Palabras clave: adicción, prevención, desarrollo, arquetipo, epigenética.

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Imagem corporal e gravidez

Bárbara Gabriel Capecce Petribú*


Martin Antonio Borges Alvarez Mateos**

Resumo
Este artigo visa refletir sobre as mudanças da Palavras-chave
imagem corporal na mulher durante a gravidez, Gravidez,
colocando em foco alguns dos paradoxos desse imagem corporal,
feminino.
aspecto da gestação.
A gravidez é um dos grandes momentos de
transformação na vida de uma mulher. Essa rea-
lidade profundamente mobilizadora traz em si
uma contradição tamanha: o corpo da gestante,
ao passo que se torna o receptáculo de uma nova
vida, sofre transformações marcantes.
As mudanças na imagem corporal envolvidas
nesse processo são intensas para qualquer mu-
lher, mas podem ser extremamente perturbado-
* Psicóloga graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, ras para aquelas que possuem feridas narcísicas
psicóloga colaboradora do Programa de Atenção aos Transtornos
Alimentares – Proata/Unifesp. refletidas na formação de sua imagem corporal;
E-mail: <barbara.capecce@gmail.com> principalmente pelo papel que o corpo ocupa na
** Médico psiquiatra graduado pela Escola Paulista de Medicina/ atualidade.
Universidade Federal de São Paulo – EPM/Unifesp, coordenador
do Ambulatório de Psico-Oncologia e Interconsulta Psiquiátrica Com isso, a gestação deixa de se sustentar como
do A. C. Camargo Cancer Center e trainee do curso de formação de
um processo integrativo e se torna um campo de
analistas da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA.
E-mail: <m.alvarezmateos@gmail.com>. oposições simbólicas de natureza conflituosa. „

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da Sociedade
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de Psicologia
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Imagem corporal e gravidez

Introdução Segundo o autor, o aspecto social da imagem


Jung conceitua sua definição de imagem da corporal teria um peso significativo em relação
seguinte maneira: aos nossos comportamentos, pois engloba a
inter-relação entre a imagem corporal do indiví-
Uma entidade psíquica só pode ser um conteú- duo e a compreensão do corpo pela sociedade.
do consciente, isto é, só pode ser representada O corpo é nosso interlocutor nas relações so-
quando é representável, ou seja, precisamente ciais. É por meio dele que comunicamos os mais
quando possui qualidade de imagem. Por isso diversos conteúdos internos ao ambiente. O modo
chamo imagens a todos os conteúdos conscien- como essa comunicação acontece depende dire-
tes porque são reflexos de processos que ocor- tamente, dentre outras coisas, da qualidade do
rem no cérebro. (JUNG, 2013, par. 608). “veículo”, que pode mudar de acordo com a ima-
gem corporal que temos de nós mesmos.
Dessa forma, para Jung, o corpo é essencial Rauter (2013) aponta que o contexto contem-
para o processo de tomada de consciência. Ele é porâneo torna a relação descrita acima ainda mais
portador de imagens profundamente arraigadas complexa, pois, na conjuntura social atual, o cor-
à nossa identidade. É por meio dele que nos re- po passa a ser manipulado como forma de suprir
lacionamos com o mundo desde o primeiro ins- a fragilidade dos vínculos interpessoais, deixan-
tante e por onde recebemos e assimilamos to- do de ser visto como parte integrante do indiví-
dos os estímulos da realidade. duo e passando a ser visto como o indivíduo em
O corpo e a psique são prerrogativas in- si. “O corpo passa a ser um objeto privilegiado de
dissociáveis para o processo de individuação. investimento, porque é nele que a identidade pas-
Eles se relacionam de forma íntima e interde- sa a se dar” (RAUTER, 2013).
pendente na constante revelação de imagens Nesse cenário, a gravidez, que inerentemente
pela e para a consciência. Esse dinamismo, que determina alterações de ordem fisiológica, libi-
possibilita o desenvolvimento e as transforma- dinal e de papéis sociais na mulher, assenta-se
ções das identidades individuais, pode ser mais como uma condição intensamente mobilizadora
ou menos intensificado, a depender das condi- da relação entre corpo e psique, entre indivíduo
ções externas e internas a que estamos sub- e sociedade e entre as imagens corporais expres-
metidos. Nesse sentido, condições que inter- sas ao longo do processo, que podem oscilar
ferem diretamente nas imagens que fazemos do “desde sentimentos de orgulho e fecundidade até
nosso próprio corpo podem ser profundamen- a sensação de deformação e rejeição do corpo”
te mobilizadoras, dado que despertam símbo- (RODRIGUES, 2008).
los relacionados a núcleos centrais de nossa
identidade. Imagem corporal
Paul Schilder, no início do século XX, estu- Paul Schilder foi um dos grandes pensadores
dou intensamente a questão da imagem corpo- sobre imagem corporal e, no seu livro A imagem
ral, procurando integrar seus aspectos psicoló- do corpo: as energias construtivas da psique,
gicos e neurológicos. O autor define a imagem publicado inicialmente em 1950, elenca diversas
do corpo humano como: “[...] a figuração de nos- proposições a respeito da imagem corporal, nas
so corpo formada em nossa mente, ou seja, o quais fica patente a relevância dada pelo autor ao
modo pelo qual o corpo se apresenta para nós” impacto das variáveis sociais na construção da
(SCHILDER, 1999). imagem corporal.

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Ele descreve os fenômenos psicológicos res- 2009; ORTEGA, 2008 apud RAUTER, 2013).
ponsáveis pela diferenciação das imagens cor-
porais individuais e coletivas: Há um jogo entre o homem e seu corpo no du-
plo sentido do termo. Uma versão moderna do
Há um intercâmbio contínuo entre partes de dualismo não opõe mais o corpo ao espírito ou
nossa imagem corporal e das imagens corpo- à alma, porém, mais precisamente, ao próprio
rais dos outros. Há projeção e personificação. sujeito. O corpo não é mais apenas, em nossas
(SCHILDER, 1999). sociedades contemporâneas, a determinação
de uma identidade intangível, a encarnação
Ele assinala, ainda, os processos que levam irredutível do sujeito, o ser-no-mundo, mas uma
à indiscriminação entre essas imagens coletivas construção, uma instância de conexão, um ter-
e pessoais: minal, um objeto transitório e manipulável sus-
cetível de muitos emparelhamentos. (LE BRETON,
Mas, além disto, podemos nos apoderar de toda 2003, p. 27).
a imagem corporal de outra pessoa (identifica-
ção) ou entregar nossa imagem corporal como Compreendendo, então, o corpo como um aces-
um todo. As imagens corporais das outras pes- sório, um fator fronteiriço que difere uma pessoa
soas e suas partes podem ser inteiramente in- da outra, é compreensível que o homem contem-
tegradas à nossa e formar uma unidade, ou po- porâneo atue na realidade de forma dual, disso-
dem ser simplesmente adicionadas à nossa ima- ciado do seu aspecto numinoso, tendo, portanto,
gem corporal, formando uma mera somatória. como foco singular de investimento, o corpo em si
(SCHILDER, 1999, p. 266). (LE BRETON, 2007).
Nessa relação dual e dissociada, indivíduos
Levando-se em conta o momento atual, ca- que são carentes de contato com sua individua-
racterizado por Rauter (2013) e Bauman (1998, lidade buscam como referência a imagem corpo-
2005, 2009) como o tempo da “modernidade lí- ral do outro, prioritariamente nas figuras públi-
quida”, podemos perceber as influências que se cas e midiáticas, das quais pouco se sabe além
dão entre a visão de mundo contemporânea e o da forma física. O que acontece é o que Schilder
psiquismo individual, no que tange a relação dos denomina identificação: esses indivíduos acabam
indivíduos com o corpo. por se apoderar da imagem corporal das figuras
Segundo Rauter, públicas em sua totalidade, tomando-as como um
ideal. Assim, “o eixo do eu é empurrado para fo-
a liquidez que adjetiva esse momento se refere ra” (BIZERRIL, 2011; SIBILIA, 2008 apud RAUTER,
ao caráter fluido, inconstante, mutável dos valo- 2013) e a capacidade de discriminação do indiví-
res, hábitos, sentimentos e tudo que diz respei- duo fica prejudicada.
to à vida, incluindo os vínculos interpessoais. Ao considerarmos particularmente o univer-
(RAUTER, 2013) so feminino em nosso contexto atual, é possí-
vel notar uma relação ainda mais delicada do
Ao participar dessa “liquidez”, que retrata indivíduo com a imagem corporal. O padrão idea-
uma sociedade materialista/individualista extre- lizado de beleza que supervaloriza o corpo -aces-
mamente dual, baseada em valores instáveis, sório (LE BRETON, 2006 apud RAUTER, 2013)
materialistas, de consumo desenfreado e distan- magro, alto e torneado é perseguido insistente-
te da perspectiva simbólica da realidade, o indi- mente por meio de dietas, exercícios físicos exces-
víduo sente a necessidade de buscar algum grau sivos, tratamentos estéticos, plásticas e outras in-
de controle, recorrendo ao corpo (LE BRETON, tervenções no corpo.

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A mulher contemporânea, que se encontra fi- um continuum ao longo de toda a vida, é viven-
xada e imersa nesse complexo, mantém-se numa ciado de forma extremamente condensada du-
luta árdua, contínua e repleta de frustrações, rante a gravidez. Sua intensidade pode, por ve-
apegada compulsivamente à busca de um ideal zes, causar uma permanência nessa dissolução,
que, recorrentemente, nega o corpo real. levando a gestante a condições patológicas
muito variáveis (MERLEAU-PONTY, 2006 apud
Gravidez SCARABEL, 2011).
A gravidez, por sua vez, é um dos grandes ri- Esse movimento entre perspectivas polariza-
tos de passagem passíveis de vivência da mulher. das traz para a gestante a oportunidade de re-
Além do climatério e da adolescência, o período memorar as mais diversas vivências como filha e
de gestação é caracterizado por uma fase de: de ressignificar os símbolos associados ao ma-
triarcal, que emergirão de conteúdos arquetípicos
[...] transição biologicamente determinada, carac- inerentes a esse momento de vida. O vínculo es-
terizada por mudanças complexas, em um esta- tabelecido nos primeiros anos de vida entre a ges-
do temporário de equilíbrio instável, devido às tante e sua mãe, por exemplo, será o ponto de
grandes perspectivas de mudanças envolvidas partida para a relação mãe-bebê que se inicia.
nos aspectos de papel social, necessidades de É comum, no entanto, que essa relação pri-
novas adaptações, reajustamentos interpes- mária possua as mais diversas falhas e, por con-
soais, intrapsíquicos e mudanças de identidade. sequência, a gravidez é, via de regra, potencial-
(MALDONADO, 1997, p. 22-23 apud RODRIGUES, mente palco de reedições dos mais saudáveis
2008, p. 148). aos mais patológicos padrões de maternagem.
Para nos atermos ao tema do artigo, mantere-
Do ponto de vista psicológico, a condição de mos na discussão apenas questões relacionadas
gestante mobiliza os mais diversos campos ar- às mudanças na imagem corporal durante esse
quetípicos na mulher. É possível experimentar processo.
essa realidade a partir do paradigma da busca
por sentir-se completa, da tentativa de cumprir Discussão
uma expectativa social e/ou familiar, do sonho As mudanças corporais e a intensidade da
de vivenciar um amor materno idealizado e in- vivência de estar gerando dentro de si uma nova
condicional, de garantir a manutenção de sua vida são inerentes ao processo de gestação. Por
continuidade na posteridade ou, ainda, da cons- consequência, sentir certo estranhamento em
tatação de uma sina que se impõe à sua condi- relação à imagem corporal nessa fase é perfeita-
ção física de mulher. mente natural.
Ao engravidar, a mulher será convidada a re- Entretanto, com as mudanças culturais deste
ver seus papéis e lugares no mundo. Alguns de- nosso século, que incluem o corpo como centro
les serão descartados, pois perderão a função, da identidade e sua supervalorização (RAUTER,
e outros terão de ser ressignificados. 2013), as fronteiras entre o que seria um estra-
Nessa revisão, um mecanismo contínuo de nhamento natural e algo exacerbado tornam-se
dissolução e coagulação se estabelece, sendo tênues.
a mulher, ao mesmo tempo, a alquimista e o ma- O corpo perde o status de parte integrante do
terial. Em cada dissolução, as mais diversas ser, isto é, deixa de reconhecer o contato com o
facetas da mulher são fragmentadas. Quando instintivo e com a alma para ser apenas um ‘‘cor-
coagulam, por outro lado, surge algo novo, que po-acessório”, direcionando, majoritariamente, a
não é apenas a junção das partes anteriormen- energia psíquica para o que se refere ao concreto.
te separadas. Esse movimento, apesar de ser Dessa forma, tudo aquilo que pertence a uma

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esfera anímica e que não é relacionado ao físico mudanças em si, fervilham também nas mídias
é percebido como aterrorizador. sociais dietas, planos de exercícios, orientações
Marion Woodman conseguiu explicar de for- a serem seguidas pelas gestantes para alcançar
ma belíssima as consequências dessa falta de um padrão corporal socialmente estabelecido
equilíbrio entre corpo e alma: (como, por exemplo, “grávidas saradas” ou “grá-
vidas fitness”) ou, então, uma imposição de que,
Os bons marujos [...] constroem um ego forte o tão logo a mulher dê à luz, já deve recuperar/ob-
suficiente para fluir com o poder do vento e da ter um corpo esbelto.
vaga. E esse ego só pode ser forte o bastante se Mulheres que tiveram lacunas na construção
tiver o apoio da sabedoria do corpo, cujas men- de sua imagem corporal podem se identificar
sagens estão em contato direto com os instin- maciçamente com esses exemplos e persegui-los
tos. Sem essa interação entre espírito e cor- como ideais. Não raro, essas gestantes exigem de
po, o primeiro sempre cairá em armadilhas. No si mesmas um padrão que, para a maioria das
exato momento em que poderia alçar voo, é mulheres, é inatingível e, por vezes, antinatural.
despotencializado pelo medo e pela falta de O foco de suas experiências diárias na dieta,
confiança, pois não pode contar com suas raízes nas medidas e nos exercícios acaba sendo uma
instintivas nem mesmo para sobreviver. Sem forma de se defender dos conteúdos anímicos
essas raízes, o corpo é percebido como inimi- da gravidez. Internamente, o medo do incons-
go. Como um barco sem leme, rodopiando em ciente e da invasão desses conteúdos sustenta
círculos nas garras do pânico, o marinheiro pode essas “defesas psíquicas”, ao passo que, exter-
ser arrastado para o vórtice da paralisia ou do namente, a contemporaneidade e o culto ao cor-
terror. Se, por outro lado, espírito e corpo esti- po reforçam tais mecanismos.
verem em sintonia, cada um complementa o Certamente, são infinitas e singulares as for-
outro com sua forma especial de sabedoria. mas de experimentar a gestação. Do deleite do
(WOODMAN, 2002, p. 12). mais puro amor à ameaça de invasão e perda de
controle, cada mulher explorará esse campo ar-
Na gestação, quando o corpo e o espírito es- quetípico a seu modo. Uma mulher receptiva à
tão em sintonia, o sacrifício da autonomia e do gestação pode acolher e “emprestar” seu conti-
controle do próprio corpo é aceito em nome da nente anímico para o desenvolvimento das po-
vida do filho, que se forma em seu ventre. Para tencialidades arquetípicas do bebê. Uma mãe
isso, é necessário uma conexão com o que há que, no entanto, teve problemas com a huma-
de mais instintivo, o arquétipo materno. Para nização do arquétipo materno em seu desenvol-
mulheres em que essa sintonia não ocorre, de- vimento pode entender esse processo como algo
vido, por exemplo, ao deslocamento do ego para ameaçador, desorganizador ou desajustado.
o “corpo-acessório”, o sacrifício não é vivido Em casos com esse tipo de limitação, nos pa-
como uma escolha; ele é uma invasão voraz, que rece que a consciência da gestante, sem recursos
leva a uma dissolução da imagem corporal como para relacionar-se com o mundo através de dinâ-
até então conhecida e, portanto, com sérios ris- micas de alteridade, assimila a experiência da gra-
cos de uma dissolução maciça do ego até as videz de forma iminentemente persecutória. O
baias da psicose. germinar de um novo Self/ego no seu interior é
As dificuldades em internalizar e incorporar percebido como uma invasão, que concorre com
as mudanças na imagem corporal durante a gra- suas demandas individuais e fomenta defesas
videz são compreensíveis. A barriga cresce, os narcísicas que se explicitam no aumento patente
membros incham, o cabelo, a pele, as unhas, o hu- da preocupação com a imagem corporal e nos
mor, enfim, tudo muda. Se não bastassem essas esforços frenéticos para manter seu corpo dentro

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do padrão desejado por ela e reforçado pela vi- retomada do corpo como parte integrante e in-
são de mundo em que está inserida. dissociável do ser e o fortalecimento egoico para
Em suma, as possíveis feridas narcísicas no o enfrentamento dos sacrifícios necessários neste
desenvolvimento e as expressões arquetípicas ritual de tornar-se mãe, permitindo a experimen-
distorcidas da maternagem impossibilitam cer- tação de uma relação integradora dos símbolos
tas mulheres de se conectarem com preciosos matriarcais e favorecendo, portanto, a relação
materiais inconscientes, símbolos do matriarcal, mãe-bebê que advém desse processo e que será
carregados de potencialidades nutridoras, aco- parcialmente responsável pela construção da
lhedoras e protetivas. imagem corporal de um novo ser. „
O desafio da psicoterapia, a partir do recorte
que aqui é proposto, estaria na possibilidade de Recebido em: 6/3/2017 Revisão: 26/5/2017

Abstract

Body image and pregnancy


This article reflects on the body image changes image associated to pregnancy are intense for
of women during pregnancy focusing on some all women, but they can be extremely disturbing
paradoxes of this aspect of gestation. for those who have narcissistic wounds reflected
Pregnancy is one of the most important trans- in the formation of their body image, mainly by
formational moments in a woman’s life. This the role of the body in the present society.
profoundly mobilizing period brings in itself the In these cases, gestation ceases to be an in-
contradiction of turning the body into a vessel tegrative process and becomes a field of sym-
for a new life and leading it to experience aston- bolic oppositions of a conflicting nature. „
ishing transformations. Changes in the body

Keywords: pregnancy, body image, female.

Resumen

Imagen corporal y embarazo


Este artículo tiene como objetivo reflexionar so- Los cambios en la imagen corporal involucrados
bre los cambios en la imagen corporal en las muje- en este proceso son intensos para cualquier mujer,
res durante el embarazo, y poner de relieve algunas pero puede ser muy perturbador para aquellas con
de las paradojas de este aspecto de la gestación. heridas narcisistas reflejadas en la formación de
El embarazo es uno de los grandes puntos su imagen corporal; especialmente por el papel que
de transformación en la vida de una mujer. Esta el cuerpo ocupa en la actualidad.
realidad profundamente movilizadora trae con- Con ello, el embarazo deja de sostenerse a sí
sigo una contradicción: el cuerpo de la madre, mismo como un proceso integrador y se convierte
mientras se convierte en el receptáculo de una en un carácter simbólico, campo de la oposición
nueva vida, sufre una transformación notable. de confrontación. „

Palabras clave: embarazo, imagen femenina, el cuerpo.

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Junguiana
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O fim da análise*

Maria Carolina Barrieu**


Silvana Parisi***

Resumo
O artigo trata do fim da análise, o que não como analogia para o papel do terapeuta: além Palavras-chave
implica em cura, alta ou individuação, pois esta de curador, cuidador. Por fim, são apresentadas Análise junguiana,
última pode ter continuidade mesmo após o en- reflexões sobre o mistério que envolve os pro- fim da análise,
fracasso,
cerramento das sessões. São discutidos os tér- cessos de vida e morte, e dor e sofrimento que
individuação,
minos abruptos e que podem mobilizar senti- afetam os analistas e constituem desafios em seu
sombra.
mentos de impotência, fracasso e aspectos da processo de individuação, na aprendizagem da
sombra do terapeuta – algumas situações são humildade de conviver com o não saber. „
ilustradas com casos clínicos. O arquétipo da
criança e as análises intermináveis também são
abordados, assim como a operação alquímica
separatio em relação ao fim da análise. As ima-
gens do médico e do enfermeiro são utilizadas

*Material apresentado originalmente em português, com o título


“O fim da análise”, sob a forma de palestra no XXIII Congresso
Nacional da AJB: A Práxis Analítica, um evento da Associação
Junguiana do Brasil, filiada à International Association for Analytical
Psychology, em Ouro Preto (Minas Gerais), 2016.
** Psicoterapeuta junguiana formada pela PUC-SP. Trainee da So-
ciedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA, filiada à Inter-
national Association for Analytical Psychology – IAAP, em Zurique
(Suíça). Aprimorada pela Clínica Psicológica Ana Maria Poppovic –
PUC-SP em psicoterapia de casal e família.
E-mail: <mcbarrieu@gmail.com>.
*** Psicoterapeuta junguiana formada pela PUC-SP. Trainee do Ins-
tituto Junguiano de São Paulo – IJUSP, filiado à Associação Jun-
guiana do Brasil – AJB e à International Association for Analytical
Psychology – IAAP, com sede em Zurique (Suíça). Doutora em
psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. Coordenadora de
curso de expansão no Sedes Sapientiae e professora e supervisora
no curso de pós-graduação latu sensu Psicoterapia Junguiana
da Universidade Paulista – UNIP.
E-mail: <silparisi@gmail.com>.

RevistaRevista
da Sociedade
da Sociedade
Brasileira
Brasileira
de Psicologia
de Psicologia
Analítica,
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O fim da análise
Este artigo é fruto das reflexões que surgiram O processo analítico não é, de fato, indispen-
em um grupo de estudos formado por psicote- sável para que ocorra a individuação. Entretanto,
rapeutas junguianas, que se reúnem há mais de o convite ao exame da vida interior e do mundo
dois anos para a discussão de temas da atualida- das imagens e dos sonhos e o enfrentamento das
de e da prática clínica. Nos encontros, foram le- questões cruciais da existência humana são um
vantadas inúmeras questões que constituem o estímulo para a individuação. Mesmo que se en-
pano de fundo deste artigo. O fim da análise é cerre o encontro com o analista, o processo ini-
um tema pouco discutido entre colegas de pro- ciado pode ter continuidade.
fissão, uma vez que esbarra na sombra do ana- Assim, uma análise pode terminar por con-
lista e pode, em algumas de suas facetas, macular senso entre as duas partes, em que, de forma
a imagem de terapeuta bem-sucedido, bastante harmoniosa, o paciente segue seu processo de
trabalhado e consciente, constelando o outro polo individuação e sai satisfeito com suas conquis-
do binômio sucesso/fracasso. tas e ampliação de consciência. O analista, por
De forma a contextualizar “o fim”, objeto do sua vez, fica realizado com seu trabalho, na certe-
presente artigo, surgem alguns questionamentos, za de que auxiliou o paciente e cumpriu seu pa-
tais como: o fim é quando há cura e acaba o so- pel. Esse é um modelo ideal, mas que nem sem-
frimento? Analistas junguianos podem utilizar o pre ocorre no consultório.
termo alta? Também há motivos concretos ou plausíveis
Muito embora ainda levemos em nossa ba- que ocasionam um término ou interrupção do pro-
gagem o modelo médico, Jung aponta um cami- cesso analítico, tais como: alívio dos sintomas ou
nho que vai além da cura de neuroses, alívio de das queixas que motivaram a busca por análise,
sintomas ou adaptação social ao considerar o mudança de residência (embora, hoje em dia, a
processo de individuação como meta central da internet e o mundo globalizado tenham facilitado
análise. Jung (2000) é bastante claro ao reconhe- esses casos), doenças graves, dificuldades finan-
cer que “a análise não é uma cura que se pratica ceiras ou a transferência/contratransferência eró-
de uma vez para sempre, mas, antes do mais e tica que impede o vínculo profissional.
tão somente, um reajustamento mais ou menos Nem sempre o término da análise se dá de
completo” (par. 142). Além disso, o autor também forma simples ou bem resolvida. E quando traz
afirma ser improvável que uma terapia elimine desconforto para o paciente ou para o terapeuta?
todas as dificuldades, as quais são necessárias, E quando ocorre uma interrupção abrupta por
uma vez que o objetivo da análise não é o estado parte do paciente, sem aviso, sem aparente ex-
de felicidade, mas possibilitar ao paciente “su- plicação? É comum entender essas situações
portar” o sofrimento (JUNG,1981, par. 185). Em seu como resistência do paciente: ele não quer mais
entendimento: investir no processo, ele está fugindo do confron-
to com seu inconsciente ou reagindo de forma
A experiência, porém, mostra que há um núme- “complexada”. E aí o problema fica fora, nele, e
ro relativamente grande de pacientes para os não no terapeuta – lá, e não cá. Mesmo que tudo
quais a conclusão aparente do trabalho junto isso possa ser verdadeiro em relação ao pacien-
ao médico não significa de modo algum o fim te, também representa uma maneira segura de
do processo analítico. Pelo contrário, o confron- proteção do terapeuta contra eventuais sentimen-
to com o inconsciente continua do mesmo modo tos de impotência e fracasso.
que no caso daqueles que não interromperam o Pode-se pensar que a desistência do pacien-
trabalho junto ao médico. (JUNG, 1991, par. 4). te foi por inabilidade do terapeuta, que este não

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trabalhou bem, que algo lhe escapou – ou seja, compreender que esse era seu único caminho
que falhou. Essa visão o aproxima de sua som- de salvação, o que, de certa forma, preencheu o
bra, mas pode também não ser totalmente ver- vazio que ela deixou ao abandonar a análise sem
dadeira, à medida que um complexo provavel- se despedir.
mente foi ativado, intensificando o sentimento de Assim como esse caso deixou claro, algumas
incompetência ou culpa. vezes fica exclusivamente a cargo do terapeuta a
Vale trazer alguns exemplos de casos clíni- elaboração da interrupção ou término da terapia,
cos para ilustrar os questionamentos levantados que funciona como depositário dos conteúdos
a partir da práxis analítica. que o paciente não consegue integrar. No caso
Uma paciente de meia-idade procurou aten- exposto, isso se deu de forma concreta, por meio
dimento psicológico por apresentar sintomas do presente oferecido à terapeuta. Em outras
relacionados a ansiedade e depressão, que sur- situações, pode acontecer de o paciente não rea-
giram após uma situação de violência seguida lizar o pagamento das sessões, deixando uma
de morte no seu contexto familiar. O aconteci- porta entreaberta para que possa manter algum
mento a deixou muito abalada e em situação de tipo de vínculo com o terapeuta.
extrema crise emocional. Seu pai era uma figura Outro caso relevante para ilustrar a presente
conhecida por sua agressividade, principalmen- reflexão foi o de uma jovem imigrante que trou-
te no que diz respeito à educação dos filhos; no xe, como queixa inicial, a sua dificuldade de se
entanto, jamais haviam presenciado tamanha relacionar com as pessoas, tanto em relaciona-
violência na família. Ela estava totalmente des- mentos amorosos como em amizades ou rela-
controlada e desamparada frente a esse trágico ções de trabalho. Apresentava certos episódios
ocorrido, e o vaso terapêutico propiciou a trans- depressivos e foi diagnosticada com doença
ferência da mãe boa que acolheu seu sofrimen- neurológica incapacitante. Na primeira entrevis-
to e iluminou um pouco seu caminho. O proces- ta, contou sobre sua triste história familiar de
so terapêutico durou quase três meses, confi- abandono e negligência por parte da mãe bioló-
gurando-se uma psicoterapia breve com enfoque gica e o desconhecimento do pai. Era uma pes-
no atual momento de crise. Certo dia, a paciente soa globalizada, com carreira internacional. Sem-
resolveu que voltaria a morar perto da família e pre adaptou-se às mais variadas realidades de
se mudaria para sua região de origem, onde tudo todos os continentes nos quais morou. Entre-
aconteceu, e encerrou a terapia sem avisar, ain- tanto, não conseguiu criar raízes em nenhum
da que houvesse um combinado prévio de fazer lugar. Teve um filho, fruto de um relacionamento
uma sessão de finalização, que nunca ocorreu. com um colega de trabalho, com o qual nunca
Antes de partir, presenteou a analista com um se casou, nem sequer morou junto. Conquistou
artigo de decoração que claramente remetia à tudo sozinha e nunca pôde contar com a ajuda
situação vivida. O presente soou um tanto quan- de ninguém, sofrendo de forma totalmente soli-
to fúnebre, o que, a princípio, dificultou o real tária, o que contribuiu para a sua descrença nas
entendimento do significado daquele símbolo. relações humanas. Construiu uma persona dura,
Após o término da análise, concluiu-se que a rígida, muito dominada pelo animus, apática, em
paciente precisava transferir para a terapeuta o certa medida depressiva e totalmente sozinha se
peso da morte e da violência, representado de não fosse pelo filho, sua razão de viver. A cada
forma simbólica pelo presente, a fim de que ela nova mudança, ela recomeçava do zero. Sonha-
pudesse continuar a viver em paz. Nesse caso, a va repetidamente com casas, que construía e
paciente interrompeu abruptamente a análise, depois destruía. A paciente faltava frequente-
sem a abertura de qualquer tipo de devolução mente na terapia e, por vezes, desaparecia por
por parte da analista. No entanto, foi possível um longo período sem dar nenhuma satisfação,

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deixando a analista no limbo. Como consequên- ocorresse de forma mais sutil, propiciando à
cia, demandava uma postura ativa da analista criança um espaço de elaboração desse fim. En-
para trazê-la de volta à análise. Esse movimento tretanto, os pais estavam irredutíveis. No dia da
era correspondido pela paciente, que, então, última sessão, a mãe revelou que o seu filho es-
aparecia para a sessão e agradecia que a tera- tava apreensivo porque achava que nunca mais
peuta não tivesse desistido dela. No entanto, voltaria a ver a terapeuta. Portanto, conclui-se que
logo em seguida tornava a faltar. Diversos tipos os pais adotivos estavam repetindo inconscien-
de contato foram experimentados, com o intuito temente a história de abandono vivida pelo pa-
de garantir a assiduidade e continuidade do pro- ciente em relação aos pais biológicos. Nesse ca-
cesso. Porém, após muitas tentativas, ela parou so, a decisão em relação ao fim da análise foi
de se comunicar e não acertou os valores devi- unilateral, o que gerou uma grande frustração e
dos. Após muitos meses, finalmente quitou a sentimento de falha, impotência e anulação por
dívida, de forma que o único motivo de comuni- parte da terapeuta. Porém, vale lembrar que a re-
cação se extinguiu. Esse caso tratou de um tér- sistência era dos pais e não da criança, que, por
mino não abrupto, porém silencioso. A paciente sinal, estava muito vinculada.
não deixou explícito que gostaria de finalizar a É muito comum na psicoterapia infantil a in-
análise, e quem precisou colocar um fim foi a tervenção dos pais na análise dos filhos, uma vez
terapeuta, já que a paciente dificultou qualquer que têm expectativas diferentes em relação ao pro-
tipo de contato ou proximidade. A paciente não cesso e não o vivenciam diretamente. Tal inter-
conseguiu conversar, refletir, elaborar sobre o venção pode decorrer da melhoria das queixas ou
fim. Em vez disso, sufocou e matou lentamente da dificuldade de enxergar os próprios filhos e
qualquer resquício de vínculo. suas necessidades. De qualquer forma, o tera-
Por fim, cabe descrever um caso de psicote- peuta sente essa ruptura como um aborto, uma
rapia infantil, já que é frequente o término ou vez que seu trabalho é podado e ele dificilmente
interrupção da análise imposto pelos cuidado- poderá fazer algo para mudar essa condição.
res. O paciente era um menino de 6 anos que O espaço analítico é o temenos, o lugar pro-
tinha sido adotado aos 3 anos de idade. Ele fora tegido em que a alma pode se manifestar em to-
acolhido em uma casa lar (abrigo) aos 2 anos de da sua dor e fragilidade, expondo seus medos
idade, após denúncia de abuso sexual pratica- e emoções mais profundas e escuras; onde há
do por membro de sua família biológica. Após a empatia, aceitação e segurança. Sem dúvida, é
adoção, ele mudou-se para outro estado. A quei- um lugar no qual a criança1 – ou, antes, o arqué-
xa dos pais adotivos girava em torno de seu com- tipo da criança – encontra abrigo para sua vulne-
portamento opositor. Ao longo do processo te- rabilidade e é chamada a se manifestar. Hillman
rapêutico, que durou aproximadamente um ano (1981), em seu texto “Abandonando a criança”,
e seis meses, foi visível sua mudança de com- chama atenção para “a fantasia do crescimen-
portamento. A partir desse momento, a propos- to” que está alojada na forma como encaramos
ta da análise passou a ser a de oferecer um es- a psicologia e a psicoterapia. A ideia presente
paço de expressão e elaboração dos traumas em geral é a de que essa criança deve crescer,
provenientes da sua sofrida história durante a uma vez que a meta é o desenvolvimento e o cres-
primeira infância. Os pais adotivos resistiram, ale- cimento da personalidade. Mas, alerta Hillman,
gando que era uma patologização da criança, e ao caminharmos nesse sentido, abandonamos
quiseram interromper o processo. De forma inci- a criança, porque “o arquétipo da criança não
siva, comunicaram que a criança só teria mais uma cresce – permanece sempre como um habitante
sessão. Foram alertados para a necessidade de do país da infância, como um estágio do ser”
haver mais de uma sessão, para que o término (HILLMAN, 1981, p. 45).

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É essa criança que pode aparecer no paciente não contaminá-lo e não se cristalizar, colabora
que chega falando em parar a análise e quer a para que o analista fique mais atento e cuidado-
opinião do analista. Mesmo que esse desejo seja so em relação às saídas dos seus pacientes e ao
legítimo e costume revelar uma atitude de matu- que esses términos lhe refletem e espelham.
ridade no relacionamento, às vezes o paciente É interessante observar as oscilações que afe-
parece um jovem que pede autorização dos pais tam o consultório como um todo. A progressão
para sair de casa. O analista pode agir como um e a regressão da libido se manifestam nas fases
pai superprotetor, identificado contratransfe- em que o consultório fica cheio, há muita pro-
rencialmente com a figura parental, acreditando cura por horários, entrevistas e consultas. E há
que o paciente não está suficientemente ma- momentos em que, em uma ou duas semanas,
duro para sair do ninho. Ainda, pode interpre- vários pacientes decidem parar a terapia por mo-
tar seu desejo como resistência, ou apontar que tivos os mais diversos, para aflição do terapeuta
tal e tal complexos não foram bem trabalhados. iniciante. O que esses movimentos dizem para
Como discriminar se é de fato uma resistência o analista naquele momento?
ou um desejo de poder do analista? Não vamos Há aqueles pacientes que vão e voltam tem-
nos aprofundar aqui, mas vale lembrar como pos depois, em outros momentos da vida, às
Guggenbühl-Craig (2004) nos chama atenção vezes muitos anos depois. Há aqueles que nun-
para vários aspectos da sombra do analista, e ca interrompem a análise. Um exemplo retrata
como podemos atuar a partir da figura do char- esta última situação. Uma mulher está em tera-
latão prendendo o paciente à análise. pia há cerca de 20 anos. Ela teve uma infância
Outra possibilidade é o paciente (a criança) se muito difícil, com uma separação traumática dos
rebelar e sair, virando as costas repentinamente, pais. Sua mãe teve um surto quando a paciente
e o analista, assim como pais de adolescentes, era muito nova. Durante um longo tempo, sonhou
viver o sentimento de perda, o ninho vazio. com animais feridos, machucados ou presos.
Às vezes, é o terapeuta que empurra o pa- Depois, os animais começaram a aparecer em
ciente para fora ou indica a ele um colega, pois a seus sonhos de formas mais saudáveis. Uma cla-
teimosia da criança ou sua enorme carência é ra imagem de seu processo.
insuportável, já que dialoga com a sua própria Há alguns anos, ela manifestou a vontade de
criança abandonada que tanto quer reprimir ou interromper a análise, mas decidiu continuar com
negar. Outra possibilidade é o terapeuta incenti- frequência quinzenal. A terapeuta se perguntava
var o paciente (a criança) a dar o passo, o salto no se ainda havia sentido atendê-la. Era um proces-
ar em direção ao mundo, com medo, tremendo so de muitos anos e, em certos momentos, pa-
junto com ele e prendendo a respiração no mo- recia não haver muito progresso. Assim como em
mento do voo. outros processos que podem ser considerados
Não podemos deixar a criança para trás para “intermináveis”, a terapeuta sente que a acom-
nos tornarmos adultos, maduros. Ela está sem- panha em sua vida e que a análise ofereceu a
pre conosco. Nos momentos mais difíceis da vi- ela um eixo e uma base que lhe faltaram muito
da ou quando vivemos perdas, é a criança órfã cedo. Recentemente, a paciente trouxe um so-
que pede acolhida e aceitação. nho com a terapeuta, em que esta lhe falava que
Em sua formação e treinamento, geralmente era o momento de parar a análise, o que inco-
o terapeuta passa por algumas experiências co- modou a paciente. Será agora esse momento? A
mo paciente, eventualmente vivendo vários tipos questão que se faz sempre presente em casos
de términos, desde os mais tranquilos aos mais como esse é: qual é o sentido da permanência
difíceis – isso compõe sua bagagem como ana- na terapia? É necessário investigar se a perma-
lista. Ter passado por alguns fins dolorosos, se nência está a serviço do Self do paciente ou da

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sombra do terapeuta, que precisa se sentir útil e 1981) sempre falou a respeito de não ficarmos do
imprescindível. lado de fora mas, sim, junto do paciente, dentro
É importante assinalar que uma separatio 2 se do vaso. Recomendava abandonar as teorias e per-
anuncia quando o tema do encerramento da análi- manecer junto ao mistério vivo da alma humana.
se surge na sessão. Uma separatio que pode ser Quando alguém está sofrendo na nossa frente, é
vivida objetiva ou subjetivamente, de modo con- inútil explicarmos que ela está dominada por seu
creto ou simbólico, e que manifesta a necessidade complexo. Mais vale, nesse momento, estar ali em
do ego de sair do estado de participation mystique silêncio, em sintonia com sua dor, apenas trocan-
que pode ocorrer na análise. A separação ou a di- do os curativos, como bons enfermeiros.
ferenciação entre sujeito e objeto, entre os opos- Uma última analogia. No hospital, os médi-
tos, é passo importante para o processo de indi- cos não conseguem prever o momento da mor-
viduação e sempre precede a coniunctio. Tornar-se te, falam em semanas ou em dias. Quando não
um indivíduo implica estar “separado”, o que é um há mais o que fazer, a sombra da impotência se
ato da consciência. Mas, como afirma Edinger: “Ao faz presente e, ao mesmo tempo, é o que os hu-
separar os opostos, o Logos traz clareza; mas ao maniza. Poder conviver com o mistério da vida e
torná-los visíveis, traz também o conflito” (EDINGER, da morte nos aproxima de nosso tema. Quando
1990, p. 207). Essa característica de discórdia pre- entramos na jornada de atender um novo pacien-
sente na separatio pode ser a causa de alguns fins te em análise, não sabemos aonde ela vai nos
complicados de análise, resultado de uma aplica- conduzir, quais os caminhos que juntos iremos
ção errônea da separatio. percorrer. Podemos intuir, sentir e perceber, já
Uma analogia interessante relacionada à análi- nas primeiras sessões, os sinais de sua intensi-
se é a diferença entre médico e enfermeiro. O mé- dade, sofrimento e profundidade. Mas não sa-
dico, identificado com o arquétipo do curador, e bemos qual, como ou quando será seu término.
que geralmente carrega essa projeção, faz o diag- E nem como seremos afetados por tudo. Talvez
nóstico, passa as prescrições, mas se retira. Quem esse seja o grande desafio de individuação do
cuida, mede a pressão, colhe o sangue, limpa a analista. Jung (1986) nos ensina isso dizendo que
sujeira, alimenta, lava, troca o soro e a sonda é o aprendeu muito mais com os fracassos do que
enfermeiro ou o técnico de enfermagem. O médi- com os casos bem-sucedidos. Nas vicissitudes
co, o dr. X, detém o poder, nada é feito sem sua dos términos mal resolvidos, dos pacientes que
assinatura; mas a enfermagem, em seu anonima- se vão sem explicação, fins sem finalização, te-
to, cuida dos detalhes e fica mais tempo com o mos oportunidades para aprender a humildade
paciente. Além de ativarmos o lado ferido na equa- de conviver com a nossa ignorância diante do mis-
ção curador/paciente para que a relação analítica tério que o outro representa.
possa fluir e ativar o arquétipo do curador no pa- Segundo Hillman, a análise, como a conhe-
ciente, precisamos convidar o enfermeiro, com seu cemos, é interminável:
olhar atento, prático e constante, a participar do
espaço analítico. Essa figura anônima, mas pres- O “Conhece-te a ti mesmo” é seu próprio fim e
tativa, é quem cuida de nossa vulnerabilidade ex- não tem fim. É Mercurial. É uma arte hermética
posta e frágil, de nossos fluidos e lamentos. O paradoxal tanto direcionada a um fim quanto
enfermeiro nos remete à atitude paciente, empática sem fim, muito como o velho Freud disse da
e humilde no trato diário com as tarefas de rotina, análise, em seu último ensaio antes do exílio
como ouvir as repetitivas lamúrias dos pacientes, de Viena, tanto de seu fim como objetivo quan-
nas incontáveis sessões, meses ou anos a fio, pon- to de seu fim no tempo: “Não só a análise do
do em cheque muitas vezes as certezas e convic- paciente, mas a do próprio analista, deixaram
ções dos terapeutas. Lembremos o que Jung (1990, de ser termináveis e se tornaram uma tarefa

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interminável”. Não há outro fim senão o ato em Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor
si de fazer alma, e a alma não tem fim. (HILLMAN, tudo o que não sei e – por ser um campo virgem
2010, p. 127). – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei
é a minha parte maior e melhor: é a minha lar-
Guggenbühl-Craig ressalta a importância do gueza. É com ela que eu compreenderia tudo.
arquétipo curador-ferido e como é difícil para a Tudo o que não sei é que constitui a minha ver-
psique suportar a tensão das polaridades, o que dade. (LISPECTOR, 2004, p. 74). „
pode levar à cisão do arquétipo e, portanto, à
vivência cristalizada de um só polo. A fim de evi- Recebido em: 6/3/2017 Revisão: 26/5/2017
tar a cisão enrijecida em que vive o analista, diz
Guggenbühl: “Ele tem que ser sacudido. O se-
1
A referência à criança não significa que o paciente seja visto
nil ‘eu sei, eu sei’ deve transformar-se no socrá- como uma criança, mas se relaciona à manifestação do arquétipo
tico ‘eu não sei’” (2004, p. 137). Essa mesma ideia da criança, à criança interior.
2
Separatio é uma operação alquímica que produz ordem a partir
é expressa em linguagem poética por Clarice
do caos, promovendo a separação dos opostos e a criação da
Lispector no seguinte trecho: consciência. Medir, cortar e pesar são símbolos da separatio.

Abstract

The end of the analysis


This article analyses the end of the analytical as the alchemical separatio operation. The im-
process, which does not mean healing neither ages of the doctor and of the nurse are used as
release nor individuation. The latter may go on an analogy of the role of the therapist, both as a
even after sessions stop. Sudden analytical pro- healer and as a caretaker. Last, the article con-
cess endings which may result in a sense of help- siders the mystery that involves the process of
lessness and failure are also examined here, as life and death and pain and sorrow that affects
well as the interference of the therapist’s shadow analysts – whose own individuation process is
components. Some clinical cases illustrate such challenged and who needs to learn about hum-
situations. The child archetype and the endless bleness in order to cope with the unknown. „
analysis are also dealt with in this article as well

Keywords: Jungian analysis, the end of analysis, failure, individuation, shadow.

Resumen

El fin del análisis


El artículo trata del final del análisis, lo que sentimientos de impotencia, fracaso y aspectos
no implica la cura, el alta o la individuación, de la sombra del terapeuta y se ilustran algunas
porque ésta última puede continuar incluso situaciones en casos clínicos. Se abordan tam-
después del cierre de las sesiones. Se discuten bién el arquetipo del niño, los análisis inter-
los finales repentinos que pueden movilizar minables y la operación alquímica separatio

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relacionada con el fin del análisis. Además, se comprende los procesos de vida y muerte, dolor
utilizan las imágenes del médico y de la enfer- y sufrimiento que afectan a los analistas y cons-
mera como analogías del papel del terapeuta: tituyen desafíos en su proceso de individuación,
además de curador, cuidador. Finalmente, se en el aprendizaje de la humildad de convivir con
presentan reflexiones acerca del misterio que el no saber. „

Palabras clave: analisis junguiano, fin del analisis, fracaso, individuación, sombra.

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Vilão ou herói?
Uma meditação sobre a representação do negro
em dois contos folclóricos brasileiros

Marco Heleno Barreto*

Resumo
O autor examina dois contos folclóricos bra- Palavras-chave
sileiros do século XIX e mostra como a represen- Alma brasileira,
tação do negro em cada um deles aponta para representação
do negro,
duas possibilidades distintas no que diz respei-
exclusão da sombra,
to à configuração psicológica brasileira, em sua
integração
relação com a verdade profunda de nossa cons- psicológica.
tituição psicocultural histórica. „

* Psicólogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais –


UFMG, especialista em psicologia clínica, mestre e doutor em filo-
sofia pela UFMG. Professor titular do Departamento de Filosofia
da FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
E-mail: <marcoheleno@uol.com.br>

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de Psicologia
Analítica,
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Vilão ou herói? Uma meditação sobre a representação do negro em dois contos folclóricos brasileiros
Em 1885, Sílvio Romero, estudioso da cultura em um material proveniente da cultura popular
e sociedade brasileiras, publicava seus Contos brasileira e propor, com sobriedade e parcimônia,
populares do Brasil (ROMERO, 1954), no qual algum tipo plausível de correspondência com as-
apresentava uma coletânea desse material anô- pectos do espírito que nele se expressa. É o que
nimo que, contado de uma geração a outra nos pretendo fazer nas páginas que se seguem, dei-
meios populares de uma determinada região, per- xando, portanto, bem claro que minha interpreta-
mite um vislumbre da mentalidade coletiva da ção, movida por um impulso lúdico e não pelos
qual é expressão espontânea e fiel. Lembrando rigores da inteligência acadêmica, deve ser lida
que, àquela altura, os meios de comunicação de com as reservas e com a benevolência que se fa-
massa ainda não haviam feito sua entrada avas- zem necessárias nessas circunstâncias. Meu tex-
saladora na história, para influenciar de forma to é antes um devaneio do pensamento do que
poderosa e tendencialmente homogeneizante as uma peça de demonstração rigorosa de uma ideia.
mais diversas mentalidades submetidas ao seu Não defendo uma tese: apenas apresento uma su-
raio de ação, os contos recolhidos e publicados gestão que me parece relativamente verossímil.
por Sílvio Romero constituem uma valiosa fonte Na interpretação que se segue, considerarei
de informação acerca dos meandros da mentali- as diversas personagens e situações dos dois
dade brasileira coletiva e popular, naquele mo- contos que examinaremos como expressões da
mento histórico, em seu estado bruto, por assim alma brasileira captada sob um determinado ân-
dizer. Justamente por provir de uma atividade gulo. Ao usar a expressão “alma brasileira”, não
espontânea daquela mentalidade, sem estar sub- reivindico qualquer estatuto ontológico para o
metido ao crivo crítico dos juízos éticos e esté- que é por ela designado, ou seja, não tomo como
tico-artísticos mais apurados, esse material fol- hipóstase ou entidade objetiva a assim chama-
clórico pode fornecer um acesso aos níveis mais da “alma brasileira”. Com essa expressão, que-
elementares e coletivos do solo comum em que ro indicar, antes, um modo particular de ser-no-
se enraíza a alma brasileira, sobre os quais se er- -mundo, dotado de certos traços e características
guem, depois, as diferenciações mais elaboradas relativamente estáveis, de forma a poder ser re-
das expressões culturais de nosso povo. conhecido como representativo deste mosaico
Neste breve ensaio, pretendo tomar dois dos diversificado e plural, mas identificável e incon-
contos anotados por Sílvio Romero e pensá-los a fundível em sua diversidade própria, a que po-
partir de um determinado ângulo interpretativo, deríamos também chamar “caráter brasileiro”. Há
com o objetivo de apontar para um aspecto fun- aqui uma boa aproximação com o que, nos es-
damental da mentalidade brasileira. Evidentemen- tudos junguianos, costuma-se designar por “com-
te, pretender expor alguma característica estrutu- plexo cultural”.
ral de uma mentalidade tão multifacetada como a
brasileira é tarefa arriscada, incerta, e o resultado 1. A negação de si mesmo:
forçosamente será provisório e de validade ape- o negro vilão
nas relativa, na melhor das hipóteses. A rica di- O conto “João mais Maria”, registrado por
versidade que pode ser constatada tanto nos ma- Sílvio Romero em Sergipe e no Rio de Janeiro
teriais que expressam nossa cultura como nos (ROMERO, 1954, p. 167-173), pode ser assim es-
distintos estilos que se reúnem sob a denomina- quematicamente resumido:
ção “brasileiro” aconselha, de partida, uma atitu-
de cautelosa, modesta e cética. No entanto, nada Como nas versões típicas, o pai abandona João
proíbe meditar sobre certos detalhes presentes e Maria no mato. No dia seguinte, encontram a

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casa da feiticeira e roubam bolinhos de milho abandonados no mato, terminando na morte da


feitos pela velha. As crianças são descobertas. A feiticeira; 2) o episódio da paixão de Maria por
bruxa as recebe em sua casa e trama comê-las. um homem, que resulta na tentativa malograda
Nossa Senhora aparece às crianças e lhes ensi- de matar João; 3) o episódio da aventura “solo”
na como derrotar a bruxa. Após a morte da feiti- de João, em que ele mata um tipo de dragão e
ceira, de sua cabeça saem três cães ferozes e, termina por desposar a princesa prometida ao
seguindo a instrução de Nossa Senhora, as crian- herói que libertasse o reino da dominação pelo
ças dão um nome e um pão a cada um deles. Os monstro mítico.
cães então se tornam seus cães de guarda. João Certos detalhes da versão brasileira chamam
e Maria tomam conta da casa e vivem alguns anos a atenção do leitor que se proponha a pensar a
tendo os cães como protetores. partir do postulado da correspondência entre o
Depois Maria se apaixona por um homem e os sentido psicológico do conto e a mentalidade
dois tentam dar cabo de João, que está sempre coletiva em que está inserido e de onde é narra-
protegido pelos cães. Os ardis para neutralizar do. Por exemplo: se levarmos em conta a histó-
os cachorros de João falham e os cães devoram o ria da formação do povo brasileiro, e de sua con-
amante de Maria. João abandona Maria por cau- gênita carência coletiva no que tange à função
sa da traição e sai pelo mundo para ganhar a vida, paterna, não parece simples acidente desprovi-
acompanhado por seus três cachorros. do de possível significação psicológica o fato de
João chega a uma terra assolada por um monstro a aventura do casal de irmãos abandonados pe-
de sete cabeças, devorador de pessoas, que a los pais terminar com a morte da feiticeira, sem
cidade tinha de fornecer para não ser destruída que haja uma reconciliação final com a origem.
pela fera. João encontra uma princesa, a vítima O crônico e brasileiríssimo sentimento de um
sacrificial do dia, e que fora prometida em casa- abandono radical, gravado indelevelmente em
mento a quem matasse o monstro. Os três cães nossas origens históricas, é condizente com a
matam a fera. João corta as pontas das sete lín- eliminação da cena de reconciliação com os pais,
guas do monstro morto e vai com a princesa para como também o é o anseio por uma restituição
o palácio. Mas um preto velho e aleijado passa heroica e narcisisticamente grandiosa da digni-
no local, corta os cotocos das sete línguas e os dade assim anulada, da autoestima desde sem-
leva ao rei, apresentando-se como o matador do pre problemática. Assim, a configuração psico-
monstro. O rei prepara o casamento da princesa lógica que se expressa em “João mais Maria” já
com o preto velho aleijado, a despeito de a prin- exibe, em seu primeiro episódio, pelo traço par-
cesa afirmar que não fora ele quem matara o ticular do abandono radical, uma semelhança
monstro. No almoço de casamento, os três cães com um aspecto da mentalidade brasileira his-
arrebatam os três pratos servidos ao falso noivo toricamente constituída.
negro. A princesa reconhece os cães e diz que Na relação entre a feiticeira, Nossa Senhora e
foram eles que haviam dado cabo do monstro. O os três cães de guarda, podemos ler o dinamismo
rei manda seguir os cachorros, que retornam para psicológico autotransformador em ação nessa ex-
João, e então este vem ao palácio com as sete pon- pressão imaginativa da alma brasileira. Obser-
tas das línguas. O logro é desmascarado e o rei ve-se que a feiticeira está associada à preparação
manda amarrar o negro a quatro burros bravos, de alimentos (bolinhos de milho) e, assim, já se
que o despedaçam. João casa-se com a princesa. localiza no nível da cultura. Não é casual, por-
tanto, que os cães que irrompem de sua cabeça
A versão brasileira do “Hänsel und Gretel” dos sejam conciliados com pães, e que o conheci-
irmãos Grimm resulta da confluência de três mo- mento dessa estratégia seja comunicado pela fi-
tivos distintos: 1) o episódio do casal de irmãos guração positiva da imagem materna (Nossa

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Senhora). Aquilo que ameaça (a feiticeira) é, imagens simbólicas é um processo centrado na


dialeticamente, aquilo que salva (Nossa Senho- oralidade, entendida como matriz arcaica dos
ra), e se transpõe, mediante uma integração ope- processos psíquicos de introjeção/destruição/
rada por artifícios culturais – linguagem (a nomea- assimilação, que determinam a constituição da
ção dos cães) e alimento preparado (os pães que identidade.
os propiciam) –, para o nível de uma potência de- No mesmo sentido, aquilo que no segundo
fensiva (os cães domesticados) à disposição da episódio se opõe a João é designado apenas
própria consciência em vias de autorrealização como “um homem”, pelo qual Maria se apaixo-
(João e Maria). E se os cães emergem da própria na, e que é devorado pelos cães que haviam saí-
feiticeira, então vemos como as quatro imagens do da cabeça da feiticeira morta. O “enamo-
(feiticeira, Nossa Senhora, cães e crianças) são as- ramento” de Maria pelo antagonista de João traz
pectos distintos de uma mesma realidade psico- à tona o fator dinâmico da autonegação da uni-
lógica fundamental, em seu dinamismo de auto- dade atingida em um estado prévio pela cons-
transformação. ciência, uma negação que tem como telos ima-
A ambivalência do arquétipo materno cor- nente a reconstituição em um nível mais eleva-
responde, na perspectiva dialética, ao potencial do, mais diferenciado, da unidade negada ou
autocontraditório, pelo qual a configuração psi- sacrificada. Se atentarmos para o fato de que,
cológica inicial nega a si mesma para atingir na estrutura do conto, a posição de João em re-
uma expressão mais evoluída e diferenciada em lação à personagem feminina é ameaçada por
uma forma ulterior. O dinamismo autotransfor- uma outra figura masculina, perceberemos que
mador refere-se à própria totalidade psicológi- o amante de Maria no segundo episódio e o ne-
ca, de seu momento inicial indeterminado (uma gro velho e aleijado no terceiro são homólogos.
potência que é destruidora e assim criadora de O antagonista interno é necessário para criar a
uma nova ordem psicológica) até seu momento tensão exigida para a transformação da própria
final, simbolizado naconiunctio entre o herói João consciência através da realização heroica. Dito
e a princesa. em outros termos: a consciência constela seu
O monstro que aparece no terceiro episódio próprio outro, que vem romper a sua unidade
é homólogo à feiticeira do primeiro, simbolizan- provisória figurada em João e Maria, para supe-
do esse potencial destrutivo, autonegador da rar a si mesma rumo a um estado mais avança-
própria totalidade psicológica, que é a condição do. Podemos conjecturar que, na diversidade de
que a propele a um nível mais diferenciado de si expressões imagéticas dessas oposições inter-
mesma. Por isso mesmo, são os cães de guar- nas (João, Maria, feiticeira, Nossa Senhora, cães,
da, resultantes da transformação inicial da mes- amante, monstro, preto velho aleijado), encon-
ma imagem materna “negativa”, que dão cabo tram-se diferentes aspectos, em diferentes situa-
do dragão ressurgido. Note-se, de passagem, a ções, da mesma força autonegadora elementar
rede simbólica que se estabelece entre as diver- que cria a possibilidade de autorrealização da
sas partes do conto pela referência ao motivo totalidade psicológica.
da alimentação : João e Maria roubando bolos, Na verdade, temos então uma estrutura sim-
de uma feiticeira antropófaga, de quem brotam ples: João e Maria, e depois João e a princesa
cães apaziguados com pães , que devoram o que vem preencher o lugar vago de Maria, repre-
amante de Maria e, depois, derrotam um mons- sentam a dialética unidade na diferença da tota-
tro devorador, para, finalmente, exporem o usur- lidade autocontraditória da consciência (imagi-
pador em um banquete, roubando-lhe os pratos nativamente representada como uma dualidade
servidos. Podemos afirmar que o processo de em coniunctio ), que emerge de um fundo origi-
autotransformação psicológica aqui figurado em nário obscuro e vai se diferenciando em níveis

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sucessivos na narrativa, uma diferenciação que determina. Assim sendo, a representação da


sempre é posta em movimento pela psique a sombra brasileira como um preto velho aleijado
partir de seu próprio fundo originário ou estado é altamente significativa, e o conto pode estar
inicial (normalmente designado como “o incons- expressando de modo espontâneo algo de um
ciente” na psicologia junguiana tradicional). Esse traço característico da mentalidade brasileira:
fundo, cuja primeira figuração no conto está nos o nosso racismo, frequentemente denegado e
pais que decidem descartar João e Maria, reapa- escondido por trás da nossa também caracterís-
rece no primeiro episódio como feiticeira antro- tica cordialidade. O aviltamento histórico do ne-
pófaga, e como monstro devorador de pessoas gro escravo na formação do povo brasileiro trans-
no terceiro. E a figuração final do movimento da põe-se para a esfera dos valores coletivos sob a
totalidade psicológica representado imagetica- forma do antivalor, aquilo que põe em risco jus-
mente no conto – o par João-princesa – corres- tamente o anseio dolorosamente arraigado de
ponde à mesma forma originária, só que agora uma dignidade compensatória à nossa inferiori-
diferenciada através dos vários momentos do dade (lembre-se que o preto velho é aleijado).
processo autodeterminante (poderíamos dizer Reconhecer a sombra negra implicaria em inte-
autopoiético) da própria consciência. grar nossa inferioridade, o aleijão em nossas ori-
Mas certamente não é casual o fato de o vi- gens, e, como a experiência analítica confirma,
lão embusteiro do terceiro episódio do conto ser contra essa integração erguem-se violentamente
representado como um preto velho aleijado. Em todas as defesas do sujeito, que tendem, portan-
jargão junguiano tradicional, estamos diante de to, a preservar um estado cindido e a se hipno-
uma personificação da sombra do próprio herói. tizar com um ideal ambicionado, que esconde por
Se este é visto como uma personificação do ideal recalcamento a verdade inconsciente.
da consciência coletiva, o que se destrói na ima- Para deixar claro esse ponto, façamos uma
gem do negro vilão é algo que pertence legitima- analogia rápida com o mito adâmico: o casal pri-
mente à totalidade daquela mesma consciência. mordial não se refere ao homem e à mulher con-
Consequentemente, no conto “João mais Maria”, cretos em sua distinção sexual (Adão represen-
encontramos como resultado final um estado tando o homem e Eva representando a mulher),
cindido dessa totalidade consciente. O “mal” mas a todo e qualquer ser humano, cuja situa-
é simplesmente aniquilado e aquilo que se re- ção existencial global é simbolizada no mito pe-
presenta na imagem do negro não é integrado los dois personagens. Assim, como lembra Paul
naquela totalidade. Isso equivale a dizer que o Ricoeur, toda pessoa peca em Adão, toda pes-
estado alcançado pela consciência nessa repre- soa é seduzida em Eva. Se Eva figura a misterio-
sentação imaginária não é verdadeiramente fi- sa infinitude do desejo humano, Adão figura a
nal, trazendo dentro de si uma lacuna de onde tendência a realizá-lo em um plano finito inco-
pode brotar o dinamismo que tenderá a uma evo- mensurável com aquela infinitude radical. Adão
lução ulterior. e Eva representam, portanto, a unidade da cons-
Ora, mas quando uma forma psicológica, em ciência humana em sua relação consigo mesma
sua unidade autocontraditória, se transpõe para e com o mundo. Não obstante, a incrustação his-
o mundo concreto, expressando-se no mundo tórica dos modelos imaginários indubitavelmente
das relações sociais efetivas, via de regra o que guarda as marcas de uma projeção psicológica
ocorre é uma fragmentação daquela mesma uni- real. Assim, não é casual que, na esteira do mito
dade. Em consequência, encontraremos os frag- adâmico, à figura de Eva corresponda um véu de
mentos encarnados em posições que se opõem desvalor lançado sobre as mulheres reais, ali-
externamente, sem se alçarem ao reconheci- mentando a secular misoginia que marca o Oci-
mento consciente da unidade de fundo que as dente cristão.

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Analogamente, e guardadas as devidas propor- agressor” de que fala a psicanálise, apenas com
ções, poderíamos dizer que é a alma brasileira que o vetor invertido).
se nega dialeticamente no “enamoramento” de Para além desse nível de dissociação exclu-
Maria, que aspira a uma integração prematura no dente, a verdade indelével do modo brasileiro de
preto aleijado velho, que aspira à reconstituição ser-no-mundo, histórica e psicologicamente fa-
da unidade perdida no casamento de João com a lando, encontra-se na mestiçagem : o brasileiro
princesa, que se cinde no dilaceramento violento é, por definição, não um branco, um negro ou um
promovido pelo rei. Do mesmo modo, podemos índio, mas um mestiço, a resultante do encontro
supor que a particularidade da atribuição a um histórico, atormentado, apaixonado, violento,
negro do papel de vilão no conto brasileiro é um monstruoso, amoroso, contraditório enfim, de vá-
indício da projeção psicológica que está na base rias raças. A essencial mestiçagem brasileira é
do nosso racismo frequentemente denegado por promessa de máxima universalidade humanista
nossa suposta cordialidade. no reconhecimento incondicional do outro que
Mas insistamos por mais um momento na se apresenta como ingrediente no nosso caldei-
perspectiva da totalidade psicológica, e não na rão étnico antropofágico; a sua negação particu-
da realidade concreta fragmentada e conflitiva em larista é índice seguro de que tal promessa não
que ela se encarna: se o conto é a expressão de foi realizada, detendo-se no nível de uma dis-
um aspecto do modo brasileiro de ser-no-mun- sociação excludente. Na linguagem do conto: a
do, em todas as suas personagens e situações, coniunctio final representada no casamento de
então a figura do preto velho aleijado não desig- João com a princesa se faz às custas de uma vio-
na um indivíduo ou uma parte específica do povo lenta negação do preto velho aleijado, que está
brasileiro, mas uma componente essencial da portanto simplesmente excluído da forma de
configuração psicológica brasileira. Não são ape- consciência aí instaurada, e não dialeticamente
nas os negros reais que estão representados nes- suprassumido. Se considerarmos o nível e a for-
sa imagem, mas toda e qualquer subjetividade ma de consciência correspondentes à lógica do
que for constituída a partir do modo brasileiro conto, perceberemos que, nesse nível, a univer-
de ser-no-mundo, não importando quão azuis salidade mestiça é ainda uma meta a ser atingi-
sejam os olhos ou quão louros os cabelos do in- da, uma possibilidade potencial, latente. A ple-
divíduo concreto que encarne tal subjetividade. na realização da verdade psicológica da alma
O traço de dissociação aí representado (culmi- brasileira não está figurada no conto “João mais
nando com o violento diasparagmos do preto Maria”. O que aí encontramos corresponde a uma
velho aleijado) estará presente nos sujeitos bra- configuração muito difundida em nossa realida-
sileiros cuja organização psicológica situar-se no de social, uma configuração cindida. E, a sus-
nível correspondente ao do conto – seja como a tentar esse nível da forma de consciência brasi-
projeção da sombra nos negros reais, fundamen- leira, está um certo princípio ordenador que, no
to do nosso “racismo cordial”; seja como a tris- conto, é figurado na personagem do rei – que
te “identificação com o agressor”, tão comum não só não é substituído, como ainda é quem
quanto inconfessada nos “negros de alma bran- promove a aniquilação da sombra. Além dis-
ca”; seja ainda como a justificadamente ressen- so, observe-se que há uma clara dominância
tida e agressiva reação “afro” contra qualquer arquetípica maternal sustentando a trajetória do
valor “branco” (uma reação que por vezes se herói (Nossa Senhora, a feiticeira e os cães que
assenta na mesma lógica da discriminação e se- dela nascem) – e trata-se de um herói que não
gregação de que historicamente os negros fo- se destaca propriamente por feitos heroicos tí-
ram vítimas no Brasil, constituindo-se, assim, picos, pelos quais o herói ativamente se realiza
uma forma sutil da mesma “identificação com o em sua essência própria. Como não pensar aqui

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no traço infantil (ou de imaturidade ) tão reco- para não ser castigado. O padrinho diz que o
nhecido no caráter brasileiro, congruente com castigo será no dia seguinte, quando o moço
aquele sentimento de abandono radical aludido tornar a desobedecê-lo. Dá-lhe a sétima chave e
anteriormente? sai. O moço abre o outro quarto proibido, acha
Examinemos agora a constelação psicológi- um rio de ouro. Quando o pássaro preto retorna,
ca brasileira sob um outro ângulo, em um conto castiga-o tirando-lhe a roupa, mergulhando-o no
que apresenta uma estrutura distinta da que rio de prata, depois no de ouro, após o quê lhe
encontramos em “João mais Maria”. dá uma varinha de condão e o expulsa de casa.
O moço chega a um reino, encontra um negro
2. Uma outra posição: o negro triunfante velho, a quem chama Pai Gaforino, e lhe pede a
Na mesma coletânea de Sílvio Romero, encon- roupa velha e suja para encobrir sua cor e poder
tra-se um conto que pode iluminar outras pos- entrar na cidade. O negro cede; mas uma prince-
sibilidades psicológicas presentes na alma bra- sa observa a cena de uma janela do palácio, e
sileira no tocante ao simbolismo psicológico re- então pede ao rei para casar-se com o pior negro
presentado na figura do negro. Trata-se do conto que ali chegasse. O rei concorda e o casamento
“O pássaro preto”, proveniente de Pernambuco é celebrado, mas o rapaz, desconfiado, não se
(ROMERO, 1954, p. 68-73). Ei-lo resumido em for- deita com a princesa na cama, ficando numa tá-
ma esquemática: bua ao pé do fogo.
O rei, desgostoso, fica à beira da morte. A famí-
Um homem pobre possuía um pássaro preto. lia faz uma promessa à padroeira: se o rei se
Um dia, seu filho foi alimentar o pássaro e o recuperasse, fariam uma festa de três dias na
soltou. O pássaro então carrega o menino pelo igreja. O médico prescreve ao rei comer três pás-
bico e o leva a um rico palácio, mandando pôr a saros de plumas. Os outros dois genros do rei
mesa para o almoço. Tendo de sair, o pássaro partem em busca das aves. O genro negro pede
preto (a que o menino chama de padrinho) dá à então à sua varinha de condão uma carruagem,
criança uma chave, com a ordem de só abrir o um rico vestuário e três pássaros de plumas, e
primeiro dos sete quartos que havia em frente à sai no encalço dos outros dois genros do rei.
sala. O menino abre o quarto, encontra muitos Encontra-os, e lhes vende os pássaros de plu-
cavalos e se diverte tanto que se esquece de mas sob a condição de marcar os concunhados
comer. No dia seguinte, o pássaro lhe dá a cha- com seu ferro nos quadris. Os dois concordam,
ve do segundo quarto, onde o menino encontra são ferrados e levam os pássaros ao rei, que os
selins e arreios. Nos três próximos dias, o me- come e se cura.
nino recebe a chave dos quartos seguintes e en- Segue-se a festa. A cada dia o negro manda sua
contra moças brancas no terceiro, mulatinhas mulher à igreja com uma carruagem e um vesti-
no quarto e espadas no quinto. do progressivamente mais ricos, sem a mulher
Passam-se os tempos, o menino vira moço feito saber; o primeiro vestido era da cor do campo
e pede tudo ao padrinho. O pássaro preto lhe com todas as suas flores; o segundo, da cor do
diz que, se o afilhado o obedecer, será dono de mar com todos os seus peixes; o terceiro, da cor
tudo o que ali havia. E dá-lhe a sexta chave, com do céu com todas as suas estrelas. Depois pe-
a recomendação de não abrir o sexto quarto, sob dia o mesmo para ele e, a cada vez, aparecia em
pena de perder tudo o que ele havia lhe prome- todo o esplendor na igreja sem ser reconheci-
tido. O moço abre o quarto, encontra um rio de do. As irmãs da princesa, invejosas e descon-
prata, mergulha o dedo no mesmo, e seu dedo fiadas, ao verem o desconhecido magnífico na
fica prateado. Esconde o dedo em um pano, mas igreja, escarneciam da mulher do negro: “Com
o pássaro percebe o que houvera, e o moço pede um moço assim é que tu devias ter casado e não

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com um negro”. O moço retornava rapidamente rei, que ocupa o lugar mais elevado naquela
ao palácio e assumia as suas vestes andrajo- mesma hierarquia.
sas de negro, à beira do fogo. A referência explícita ao negro encontra-se
Ao fim do terceiro dia, houve festa no palácio e tanto na cor do pássaro como na figura do Pai
todas as princesas e respectivos maridos com- Gaforino. Toda a transformação que se realiza no
pareceram. Então o negro apresentou-se na sua episódio do palácio encantado do pássaro pre-
cor verdadeira e nos mesmos trajes que usara to, culminando no banho de ouro e prata que
ao ferrar os concunhados. Declarou que não se faz do moço o suporte do valor máximo, encami-
assentaria na mesma mesa que seus cativos, e nha-se inequivocamente para a expulsão e para
contou a história da venda dos pássaros o encontro com o Pai Gaforino. Há, aqui, uma
emplumados. O rei verifica a veracidade da mes- mudança de dimensões: da dimensão encanta-
ma, as duas irmãs invejosas atiram-se da varan- da (ou transmundana) para a dimensão social
da do palácio, seus maridos fazem o mesmo. O (mundana). A cena do encontro entre o moço
rei fica tão desgostoso que morre em pouco tem- transmutado e o negro velho às portas da cida-
po. Então Pai Gaforino torna-se o senhor de de marca uma passagem entre uma e outra, de
todo o reino. modo que a entrada do novo valor psicológico
na realidade vigente se faz por meio do persona-
Analisar as diversas e interessantes imagens gem negro. Em analogia com o tema cristão da
do conto em sua totalidade extrapolaria os limi- encarnação de Deus em um homem de condição
tes deste trabalho. Enfocarei apenas aquelas que humilde, o Pai Gaforino encarna o valor funda-
são centrais na estrutura da estória e que nos mental e decisivo na estória em todas as suas cir-
ajudam a pensar a representação do negro que cunstâncias, e o resultado lógico da carnava-
nela encontramos, e o que esta nos revela a res- lização que informa a narrativa em “O pássaro
peito do nível da configuração psicológica que a preto” é a entronização do negro Gaforino, a re-
lógica do conto exprime. velação final de seu valor essencial que vem re-
Observe-se que o ponto de partida é uma si- configurar a ordem instituída.
tuação de pobreza que, após as várias peripécias Como no conto anterior, encontramos mais
da trama, culmina em uma situação de riqueza uma vez a figura de um negro velho, desta vez
(e de poder: o Pai Gaforino torna-se o senhor de não mais aleijado, mas simplesmente pobre, mi-
todo o reino). Há uma inversão evidente em ope- serável. Aqui, porém, o negro não será esquar-
ração na estória, de tal modo que poderíamos tejado, mas assumirá o posto de valor máximo
apontar no conto a presença do dinamismo da (a função real), consumando a inversão carna-
carnavalização, estudado por Mikhail Bakhtin valizante que comanda a estória. Temos, então,
(2005). Aliás, as inversões pontuam toda a cadên- um desenlace exatamente inverso ao que encon-
cia da estória: o menino que alimenta o pássaro tramos em “João mais Maria”: lá, o herói (João)
cativo é raptado pelo pássaro e por ele alimenta- reúne-se à princesa, integrando-se à ordem vi-
do; na sucessão de figuras paternas, temos o pai gente (o rei que sanciona o casamento), à custa
pobre, o padrinho rico, e o Pai Gaforino miserá- da supressão violenta do negro; aqui, a prince-
vel; o moço tem sua roupa arrancada pelo pás- sa acolhe a essência valiosa do herói negro, que
saro preto e consegue roupas andrajosas de um se apossa da ordem vigente à custa da autos-
negro velho; instala-se a oposição entre uma supressão de seus avatares (as irmãs invejosas,
essência valiosa (de ouro e prata) e uma apa- seus maridos e, por fim, o próprio rei).
rência miserável (o negro andrajoso); por fim, O estranho pássaro que dá título ao conto é a
Pai Gaforino, pertencente à condição mais hu- peça-chave para toda a transformação expressa
milde na hierarquia social, assume o lugar do na estória (assim como, em “João mais Maria”,

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um personagem sobrenatural é estratégico na princesa com quem se casa: ele não se deita com
peripécia: Nossa Senhora). Evidentemente, no ela, não consuma o casamento, e mantém-se nu-
pássaro preto encontramos um “rei invertido”: ma tábua ao pé do fogo. Somente após a revela-
propriedade de um homem pobre, ele é, na ver- ção final é que – pode-se inferir – a coniunctio será
dade , proprietário de um palácio encantado. E é plenamente realizada.
nesse palácio que se opera a transformação do A mesma contradição, em sentido inverso,
menino-moço, segundo um esquema arquetípico também vem à tona com o desgosto e a doença
muito difundido em contos de fadas. A promes- do rei, causados pelo casamento da filha com o
sa da posse de todo o reino encantado terá que negro andrajoso. A doença será curada pela in-
ser resgatada em outro nível. É necessário que o tervenção do herói camuflado, mas não se trata
herói aparentemente perca tudo o que estava à de uma verdadeira reconciliação, pois, ao final,
sua mão, preservando, contudo, a nova essên- mesmo após a revelação da essência valiosa do
cia de ouro e prata (e o dom da varinha de con- negro andrajoso – ou melhor: justamente em vir-
dão, pelo qual o poder mágico do pássaro en- tude dela –, o desgosto novamente toma conta
cantado se transmite ao afilhado transmutado), do rei e ele morre. Em linguagem junguiana tradi-
e assuma a pobreza do Pai Gaforino, para que o cional: o princípio dominante da consciência de-
valor de sua essência, reunindo-se à princesa, saparece para dar lugar a uma nova orientação.
possa tomar posse do reino, mediante o auxílio Segundo a lição do simbolismo dos contos de
mágico concedido pelo padrinho sobrenatural (a fadas, essa transformação renovadora provém
varinha de condão) e a astúcia própria no uso do sempre daquilo que é rejeitado, vil, desprezado,
mesmo. Em outros termos: o novo valor psicoló- inferior, marginalizado. Sob o ponto de vista da
gico virá inscrever-se no mundo, realizar-se nesta lógica dos símbolos, portanto, não é casual o en-
dimensão, organizando-a segundo uma forma em contro do moço, portador do novo valor psicoló-
que não há mais lugar para a depreciação de tudo gico, com Pai Gaforino, encarnação da sombra re-
aquilo que se simboliza na imagem do Pai Gaforino jeitada dentro da ordem vigente.
– do negro excluído e desprezado. Note-se que há uma repetição de motivos en-
O esquema simbólico é análogo ao da kenosis tre a transgressão e o casamento com a princesa:
na visão cristã: Deus se esvazia de sua majesta- o moço oculta seu dedo prateado com um pano,
de para encarnar-se em uma condição infinita- assim como oculta sua essência transmutada
mente inferior àquela majestade transcendente, com as vestes de Pai Gaforino; o pássaro preto
assumindo a condição humana, ou sarx (carne) percebe o que houvera, assim como a princesa
em linguagem bíblica. Da mesma forma, há uma percebe o ocultamento da janela do palácio. E, ao
identidade dialética entre o moço transmutado expulsar o moço do palácio encantado, o pássa-
e o Pai Gaforino, e a atribuição final do reino ao ro preto arranca-lhe as roupas. Se, em “João mais
negro andrajoso não é um simples “engano” da Maria”, o simbolismo fundamental era o da ali-
consciência popular que narra o conto: é a mani- mentação, aqui todo o sentido psicológico se con-
festação da verdade simbólica específica sobre centra no simbolismo do vestuário, que representa
a qual a estória se funda. a mediação necessária entre as duas dimensões
Observe-se que a contradição entre os dois distintas (a dimensão do palácio encantado do
polos – a ordem vigente da consciência (reino, pássaro preto, que simboliza o fundamento psi-
cidade) e a nova forma proveniente da transfor- cológico arquetípico da consciência, e a dimen-
mação ocorrida no momento anterior – é repre- são do reino, que simboliza a realidade social
sentada em “O pássaro preto” como a descon- empírica que manifesta uma configuração parti-
fiança que o herói, disfarçado com as roupas an- cular da mesma consciência). A roupa andrajosa
drajosas de Pai Gaforino, manifesta em relação à de Pai Gaforino oculta a essência verdadeira do

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personagem, mas também a revela, segundo a em relação a “João mais Maria”, no que diz res-
lógica da coincidentia oppositorum que rege o peito à expressão da forma de realização da con-
dinamismo psicológico. Aqui vale a pena recor- figuração psicológica mestiça da alma brasilei-
rer a um comentário especializado: ra. Aliás, há um detalhe interessante no palácio
encantado do pássaro preto: no terceiro quarto
Já no Antigo Testamento, a roupa pode signifi- encontram-se moças brancas e, no quarto seguin-
car, ao manifestá-lo, o caráter profundo daque- te, encontram-se mulatinhas, indicando que, na-
le que a veste. [...] Portanto, a vestimenta não é quela dimensão onde se reúne toda a riqueza
um atributo exterior, alheio à natureza daquele psicológica da forma de consciência que se ex-
que a usa; pelo contrário, expressa a sua reali- pressa no conto, os opostos estão contidos, em
dade essencial e fundamental. (CHEVALIER; forma feminina. Há uma totalidade em potên-
GHEERBRANT, 1995, p. 948). cia contida no reservatório que é o castelo en-
cantado do pássaro preto, e é essa totalidade
Seguindo a linha dialética de interpretação, que se encarna na figura do herói-Gaforino e se
parece-me importante insistir nesse paradoxo do transmite à ordem que ele vai inaugurar, após
simbolismo das vestes: elas revelam e ocultam o desaparecimento do princípio que sustenta-
ao mesmo tempo. Revelar é ocultar, ocultar é re- va a ordem velha. Se pensarmos em termos de
velar. Por isso, os andrajos de Gaforino são as preconceito e depreciação como sendo caracte-
vestes suntuosas que o moço providencia com rísticos da ordem decadente (veja-se o escárnio
o auxílio da varinha mágica. Por isso, o moço das irmãs invejosas quanto ao marido negro e
triunfante é o negro Gaforino que se assenhoreia pobre da princesa), podemos dizer que a ordem
de todo o reino. Como diriam os alquimistas, o antiga é unilateralmente (e simbolicamente) “bran-
ouro filosofal está em uma pedra vil, lançada no ca”, ao passo que a nova ordem vai reunir o “ne-
meio da rua, desprezada pelo vulgo, venerada gro” (Gaforino) e o “branco” (a princesa) em uma
pelos sábios. coniunctio mestiça – e, justamente por isso, “O
As vestes suntuosas não precisam ser inter- pássaro preto” representa um estágio mais avan-
pretadas literalmente, como mera ostentação çado no que diz respeito à realização plena da
exterior de poder, prestígio e riqueza. Seu cará- verdade psicológica brasileira.
ter cósmico aponta para a correspondência en-
tre o microcosmo e o macrocosmo e, assim, elas 3. Concluindo
simbolizam o aspecto de totalidade que recobre Se, como sustenta Darcy Ribeiro (1995, p. 126-
o personagem, ou seja: as roupas aqui apontam 133), o brasileiro não é branco europeu, nem
para a realização plena da consciência investida negro africano, nem ameríndio, então qualquer
na posição do herói, e não para um suposto po- adesão exclusivista a qualquer dessas três linha-
der empírico, literal, concreto. Em jargão junguia- gens originárias (como, eu acrescentaria, a qual-
no tradicional, estamos diante do simbolismo do quer outra posterior que se derramar em nosso
si mesmo, o Anthropos ou totus homo enquan- caldeirão étnico mestiço) será irremediavelmen-
to figuração da totalidade psicológica veiculada te negadora da brasilidade. Acontece, porém,
no conto. Essa mesma totalidade representava- que essa negação é, paradoxal e efetivamente,
se, na cena do palácio encantado do pássaro pre- constitutiva do próprio movimento de constru-
to, como os sete quartos com seus respectivos ção e realização gradual do modo brasileiro de
conteúdos e a promessa de que o herói seria o ser-no-mundo, um modo cujo vetor fundamen-
possuidor de tudo aquilo. tal está na mestiçagem. A destinação gravada em
Assim, o conto “O pássaro preto” pode ser nossa origem aponta para uma unidade plural
visto como estando em um nível mais avançado de ingredientes étnicos, e é nessa diversidade

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que está cifrada a identidade brasileira. O brasi- na forma de casamento com a princesa) e que
leiro lúcido não pode reivindicar títulos de no- substitua as bases psicológicas do preconceito
breza ancestral – seja ela europeia, africana ou e da depreciação raciais. O autocontraditório pre-
indígena, ou qualquer outra. Nossa nobreza, conceito racial integra a configuração psicológi-
paradoxalmente, está na falta de nobreza, na ca brasileira como uma espécie de esfinge pos-
mestiçagem irrestrita, nossa ferida mais funda e tada no caminho da autorrealização da nossa
nosso tesouro mais valioso. Somos vira-latas. forma de consciência. A inclusão compreensiva
Se houver uma possível contribuição brasileira corresponde à forma de realização plena e últi-
à família humana mais ampla, ela estará na ma da verdade psicológica brasileira da miscige-
assunção serena e alegre da humilde condição nação. Concluindo, talvez pudéssemos dizer que
mestiça. Resta saber se estaremos à altura de o desafio da individuação brasileira está na ca-
tal atitude, que exige ultrapassar o círculo vicio- pacidade de passarmos do nível de consciência
so dos mecanismos psicológicos de compensa- representado em “João mais Maria” para aquele
ção grandiosa e narcísica contra nosso congêni- representado em “O pássaro preto”. Mas a ques-
to sentimento de inferioridade. tão é: seremos capazes de suportar a “morte” das
A exclusão que verificamos em “João mais irmãs invejosas e de seus maridos em nós? Con-
Maria” não realiza a verdade psicológica da mis- seguiremos deixar que o rei de nossa atitude pre-
cigenação que é essencial à alma brasileira. Já a conceituosa morra de desgosto dentro de nós?
renovação da consciência expressa em “O pás- Pois individuar não é simplesmente ganhar o rei-
saro preto” parece-me mais próxima da exigên- no, mas morrer em nossas defesas mais arraiga-
cia inscrita no mais fundo do caráter brasileiro. das. E isso não é fácil, nem simples. Por isso, ser
A nossa forma de totalidade psicológica (pode- plenamente brasileiro é – que me seja permitido
ríamos dizer em jargão junguiano: o si mesmo encerrar com um paradoxo esta meditação lúdica
brasileiro) reclama uma estrutura inclusiva, que – um indesejado desideratum. „
supere a exclusão do preto velho aleijado (que
legitimamente representa o impulso de inclusão Recebido em: 4/3/2017 Revisão: 24/5/2017

Abstract

Villain or hero? A meditation on the representation of the Negro in two Brazilian folk tales
The author examines two Brazilian folk tales to the Brazilian psychological configuration, in
from the nineteenth century and shows how the its relation to the deep truth of our historical
representation of the Negro in each of them psychocultural formation. „
points to two distinct possibilities with regards

Keywords: Brazilian soul, representation of the Negro, exclusion of the shadow, psychological integration.

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Resumen
¿Villano o héroe? Una meditación sobre la representación del negro en dos cuentos
populares brasileños

El autor examina dos cuentos populares a la configuración psicológica brasileña, en su


brasileños del siglo XIX y muestra cómo la re- relación con la verdad profunda de nuestra cons-
presentación del negro en cada uno de ellos titución psicocultural histórica. „
apunta a dos posibilidades distintas con respecto

Palabras clave: alma brasileña, representación del negro, exclusión de la sombra, integración psicológica.

Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janei- RIBEIRO, D. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil.
ro: Forense Universitária, 2005. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de ROMERO, S. Contos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José
Janeiro: José Olympio, 1995. Olympio, 1954.

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Elaboração das vivências psíquicas:


o papel da literatura

Isabela Paixão Rodrigues*


Fernanda Gonçalves Moreira**

Resumo
Este artigo tem como objetivo explorar como Palavras-chave
a literatura pode auxiliar na elaboração de vi- Literatura,
vências psíquicas, não apenas para quem escre- processo criativo,
Vinicius de Moraes,
ve como também para quem lê. Com base nos
Carlos Drummond
textos de C. G. Jung sobre psicologia analítica e
de Andrade,
literatura, e mantendo o enfoque principal no Harry Potter.
processo criativo e não na interpretação da obra,
o presente artigo avalia como diferentes tipos
de textos (poemas, letras de músicas e livros)
de épocas distintas podem representar confli-
tos surgidos do inconsciente do autor ou atuar
na individuação do leitor. „

* Médica residente em psiquiatria pela Escola Paulista de Medicina.


E-mail: <isa.paixao.ip@gmail.com>
** MD-PhD, psiquiatra e psicoterapeuta, analista junguiana pela
SBPA, professora adjunta da UNIFESP.
E-mail: <femoreirapsi@gmail.com>.

RevistaRevista
da Sociedade
da Sociedade
Brasileira
Brasileira
de Psicologia
de Psicologia
Analítica,
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Elaboração das vivências psíquicas: o papel da literatura


1. Introdução significativo na elaboração das vivências psíqui-
A literatura, também conhecida como sexta cas e, portanto, na saúde mental daqueles que
arte, é fonte inesgotável de estudos. Os movi- as produzem. Paralelamente, aquele que ler o
mentos literários retratam a realidade do perío- produto dessa elaboração, ainda que sem pre-
do histórico em que estão inseridos, e uma aná- tensões analíticas ou interpretativas, também
lise detalhada da obra de um autor específico será impactado e lidará com questões próprias.
pode dizer muito sobre a vida desse indivíduo As relações entre psicologia analítica e obra de
ou sua maneira de interpretar a mesma. Esse tipo arte descritas por Jung serão exemplificadas com
de interpretação tem como objeto de estudo a Vinicius de Moraes, Gilberto Gil, Rita Lee, Fernan-
arte em si, ou seja, suas considerações artísticas, do Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e a
a essência daquilo que está sendo retratado. Uma saga Harry Potter, mostrando como cada produ-
outra maneira de considerar e refletir sobre a lite- ção artística pode ter impactado seus autores e
ratura é direcionando o foco para o processo de consumidores.
criação, ou seja, considerando o impacto da pro- A análise inclui também letras de música: ain-
dução de determinada obra, e não a biografia ou da que o resultado final seja diferente, o proces-
a anamnese do artista que a produziu (PALOMO, so de criação tem sobreposições importantes, e
2014, p. 40). as diferenças são cada vez mais tênues. Desde a
Jung realça a importância de que as obras de utilização de trechos de obras na composição de
arte não sejam avaliadas de maneira científica, letras – como, por exemplo, a citação do capítulo
uma vez que tal ótica induziria um reducionismo 13 de Coríntios na música “Monte Castelo”, da
prejudicial à total compreensão da obra (JUNG, banda Legião Urbana – até a musicalização com-
1922/2007, par. 108). A obra de arte, de acordo pleta de uma obra, como a que transformou uma
com Jung, é maior do que o indivíduo que a es- crônica de Arnaldo Jabor na música “Amor e sexo”,
creve; naturalmente trará características de seu por Rita Lee (LEE, 2016, p. 255), podemos notar
autor, mas também sairá, como Pallas Athene que o processo de escrita literária e de escrita
da cabeça de Zeus, formada e pronta a seus pró- musical não são apenas parecidos: por vezes, são
prios moldes (JUNG, 1922/2007, par. 110). Por- o mesmo. A percepção dos dois processos de cria-
tanto, manter a análise restrita à visão exata e ção artística como algo semelhante, talvez até
científica, vinculando todo o significado da obra mesmo único, é ratificada pela premiação do com-
à biografia do artista que a produziu, leva a uma positor americano Bob Dylan com o Prêmio Nobel
privação de nuances significativas. A arte é maior de Literatura, em 2016.
que seu artista, é livre das estreitezas e dificulda- Portanto, este artigo se propõe a aplicar a teo-
des do que é pessoal, capaz de se desenrolar de ria que une o processo de criação artística à psi-
apenas um indivíduo e atingir o coletivo, tornan- cologia analítica e observá-la em prática em diver-
do-se parte do mundo interno de inúmeras ou- sas obras de variados estilos, pelo ponto de vista
tras pessoas. Esse caráter a torna muito ampla do autor, do leitor e, de modo mais detalhado,
para uma visão científica; porque se a ciência é o sobre como a arte se mistura com o mundo inter-
conhecimento e a observação do mundo e de suas no e o processo de individuação de cada um.
transformações, no que diz respeito aos indiví-
duos e seus processos mentais, a arte é um agen- 2. Aquele que escreve
te dessas transformações. Esta avaliação começa, naturalmente, a partir
Este artigo tem como proposta justamente do indivíduo em que se inicia a obra literária.
avaliar como as obras literárias podem ter papel Jung considera o autor o “solo” no qual a arte se

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desenvolve: ou seja, o produto literário carrega- Animal e vegetal


rá características da pessoa que o escreveu, mas Que mata a vida da terra
também se moldará à própria vontade (JUNG, E mata a vida do ar
1922/2007, par. 115). Ele também faz a distinção Mas que também mata a guerra...
entre dois processos criativos: o introvertido, Bomba atômica que aterra!
aquele em que o artista controla cada palavra que Pomba atônita da paz!
é colocada no texto, produzindo uma obra mais
estética e com significados ocultos menos evi- Pomba tonta, bomba atômica
dentes; e o extrovertido, em que o artista é su- Tristeza, consolação
jeito a um produto sobre o qual tem menor con- Flor puríssima do urânio
trole, expressando sua natureza mais íntima, a Desabrochada no chão
qual nunca teria coragem de manifestar conscien- Da cor pálida do helium
temente, resultando numa obra um pouco mais E odor de radium fatal
simbólica (JUNG, 1922/2007, par. 111). Lœlia mineral carnívora
Esses dois processos não são necessaria- Radiosa rosa radical.
mente exclusivos – Jung cita uma situação exem-
plo de um autor tão absorto em sua obra que Nunca mais, oh bomba atômica
sente que tem pleno comando sobre o que pro- Nunca, em tempo algum, jamais
duz mas, na verdade, está sendo dirigido pelo Seja preciso que mates
inconsciente (JUNG, 1922/2007, par. 113) – e nem Onde houve morte demais:
mesmo um ou outro é característico de um de- Fique apenas tua imagem
terminado autor. Na realidade, todo processo Aterradora miragem
criativo parece ter algo de extrovertido e algo de Sobre as grandes catedrais:
introvertido, em proporções diversas. O interjogo Guarda de uma nova era
entre introversão e extroversão completaria o pro- Arcanjo insigne da paz!
cesso de elaboração.
Para exemplificar essa diferença na obra de um A rosa de Hiroshima
mesmo artista, seguem dois poemas de Vinicius Pensem nas crianças
de Moraes, “A bomba atômica – canto II” e “A rosa Mudas telepáticas
de Hiroshima” (MORAES, 1954): Pensem nas meninas
Cegas inexatas
A bomba atômica – canto II Pensem nas mulheres
A bomba atômica é triste Rotas alteradas
Coisa mais triste não há Pensem nas feridas
Quando cai, cai sem vontade Como rosas cálidas
Vem caindo devagar Mas oh não se esqueçam
Tão devagar vem caindo Da rosa da rosa
Que dá tempo a um passarinho Da rosa de Hiroshima
De pousar nela e voar... A rosa hereditária
Coitada da bomba atômica A rosa radioativa
Que não gosta de matar! Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
Coitada da bomba atômica A antirrosa atômica
Que não gosta de matar Sem cor sem perfume
Mas que ao matar mata tudo Sem rosa sem nada.

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Os dois poemas não têm em comum apenas tendência de projetar nos outros a razão e a so-
o poeta, mas também o tema central – entretan- lução para nossos conflitos faz da “paz” da bom-
to, diferem diametralmente quanto à abordagem ba atômica doente, cirrótica (doença crônica grave
desse tema. A primeira obra tem uma construção associada ao alcoolismo, àqueles que adoecem
que parece mais calculada, sugerindo um proces- e eventualmente morrem por não conseguirem
so introvertido, tentando racionalizar o atentado deixar a ilusão).
atômico às cidades japonesas de Hiroshima e Comparando as duas obras, é perceptível que
Nagasaki, que marcou o fim da Segunda Guerra o inconsciente se manifesta e se impõe apesar
Mundial. Nessa poesia, Vinicius coloca a bomba das tentativas do consciente de privilegiar a óti-
como assassina também da guerra, um instru- ca da razão sobre os acontecimentos. Também é
mento de paz. A impressão de que foi uma tenta- perceptível o caminho de elaboração do autor.
tiva de elaborar um acontecimento cujo impacto Em “A rosa de Hiroshima”, com o evento traumá-
não tinha precedentes é fortalecida pela poesia tico melhor trabalhado psiquicamente, é possível
seguinte, “A rosa de Hiroshima”, que é muito mais ao poeta uma maior aproximação da emoção, sem
simbólica e emotiva. tantos disfarces ou racionalizações. Se entender-
A segunda obra fala com seus leitores por mos o conjunto dos poemas como o processo de
meio de símbolos tanto visuais como significa- elaboração de Vinicius, o autor passou pelo pro-
tivos. A escolha do termo “rosa” alude tanto à cesso de introversão e extroversão até chegar a
imagem da explosão da bomba como a conceitos um certo equilíbrio em relação ao tema.
mais subjetivos, como a alusão ao feminino, à Jung, no parágrafo 448 de Símbolos da trans-
delicadeza e ao não belicismo. O argumento formação, discute que, por meio da introversão,
explorado racionalmente em “A bomba atômi- um aspecto arquetípico seria ativado e humani-
ca – canto II” pode ajudar a compreender a es- zado, possibilitando a emergência de uma ideia
colha de uma flor como metáfora para a bomba criativa salvadora, para um indivíduo ou para uma
atômica: esta, como dito no primeiro poema, é comunidade.
uma agente do fim da guerra, e essa promessa, A imposição do inconsciente, necessária para
a promessa de paz, é simbolicamente tão bela o surgimento das obras simbólicas, é chamada
quanto as rosas. por Jung de complexo autônomo, os pensamen-
No entanto, nessa obra mais extrovertida e tos que se formam no inconsciente para, só en-
carregada emocionalmente, Vinicius já contesta tão, irromperem para a porção consciente do indi-
essa beleza. As rosas também são as mulheres víduo (JUNG, 1922/2007, par. 122). Tal conceito é
e crianças que foram feitas vítimas, agora cáli- exemplificado pela descrição de Manuel Bandeira
das, cegas e inexatas. Tão cegas e inexatas, é sobre sua produção literária:
possível argumentar, quanto as pessoas que dis-
pararam o ataque e acreditavam que isso traria Acontecem-me os poemas inesperadamente e,
a paz novamente, que solucionaria magicamente às vezes, fulminantemente. De tal modo que a
todos os problemas que haviam culminado na- minha impressão a posteriori é que não fiz o poe-
quela guerra. ma: ele é que se faz em mim. (SENNA, 1993).
Acreditar em soluções mágicas é uma tendên-
cia natural do ser humano. É, assim como a rosa Esses conceitos e exemplos mostram que
de Vinicius, hereditária, adjetivo que também tem tanto a teoria da psicologia analítica de Jung
importante carga simbólica: além da procura por como a leitura e relato da obra de alguns poetas
soluções mágicas, é da natureza humana, tam- importantes da literatura brasileira concordam
bém, a tendência a conflitos e guerras. A heredi- que o processo de criação artística, por vezes,
tariedade dessas características sugere que a sai do inconsciente do autor, expondo ideias e

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sentimentos que o indivíduo não acessaria de Porque era uma canção para Sandra [apelidada
outra maneira, permitindo-lhe analisar essas Drão] e para mim. Eu me lembro de estar senta-
considerações do inconsciente para incorporá- do no chão, anotando frases no caderno, com o
-las à sua elaboração das vivências e angústias violão do lado, e de repente sentir o sufoco do
pessoais. coágulo da criação, e ao mesmo tempo a imi-
A criação artística muitas vezes serve ao ar- nência da explosão da via criativa, e não aguen-
tista de caminho de elaboração, como visto aci- tar, saindo dali e indo pro meu quarto me deitar,
ma, no processo de Vinicius de Moraes em ela- então, aquele coágulo se dissolver, criando fi-
borar o horror atômico, que chocou toda uma letes que se encaminhavam pra aqui e pra ali…
geração. Dramas pessoais também são elabora- Aí o cérebro e o coração se intumesciam, algu-
dos por meio do trabalho artístico, como expli- mas ideias fluíam, e dois, três ou quatro versos
cou Gilberto Gil ao discorrer sobre o processo de saiam. (RENNÓ, 2003, p. 305).
composição da música “Drão” (GIL, 1981):
Neste relato, Gil descreve um momento de gran-
Drão, o amor da gente é como um grão, de introversão, que, a custo de muito sofrimento,
Uma semente de ilusão, vai se revertendo paulatinamente. Jung chama
Tem que morrer pra germinar, atenção para o risco inerente a esse processo:
Plantar nalgum lugar,
Ressuscitar no chão, nossa semeadura, Se a libido fica presa no reino maravilhoso do
Quem poderá fazer aquele amor morrer, mundo interior, o homem se transforma em som-
Nossa caminhadura, bra para o mundo exterior, ele está morto ou gra-
Dura caminhada pela estrada escura. vemente doente. Mas se a libido consegue des-
Drão, não pense na separação, vencilhar-se e subir à tona, o milagre aparece:
Não despedace o coração, a viagem ao submundo é uma fonte da juventu-
O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito, de para ela e da morte aparente desperta novo
Imenso monolito, nossa arquitetura, vigor. (JUNG, v. 5, par. 449).
Quem poderá fazer aquele amor morrer,
Nossa caminha dura, É interessante perceber que o próprio artis-
Cama de tatame, pela vida afora. ta, uma vez tendo vencido esses riscos e volta-
Drão, os meninos são todos sãos, do, junto com a libido, dessa viagem ao mundo
Os pecados são todos meus, interior, pode apresentar também compreensão
Deus sabe a minha confissão, não há do processo de elaboração que acabou de
o que perdoar, vivenciar.
Por isso mesmo é que há de haver mais Rita Lee, em sua autobiografia, faz a associa-
compaixão, ção entre um momento extremamente traumáti-
Quem poderá fazer aquele amor morrer co e uma música composta anos depois: a artis-
Se o amor é como um grão, ta conta que foi a última a saber de sua saída do
Morre nasce, trigo grupo Os Mutantes, quando lhe comunicaram
Vive morre, pão que haviam decidido retirá-la por “não ter cali-
bre como instrumentista” para seguir a direção
Sobre o momento de composição, Gil explica que estavam tomando. Rita juntou suas coisas,
que sua criação “apresentou altos graus de difi- pegou o carro e a estrada, parou no acostamen-
culdade”, pois ela lidava com um assunto den- to e conta que “chorei, gritei, descabelei, xinguei
so – o amor e o desamor, o rompimento, o fim de feito louca”. Finalizada a “cena”, se recompôs e
um casamento: voltou para a casa dos pais (LEE, 2016, p. 113).

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Essa vivência retorna anos depois; nas palavras Pelo contrário, as obras consequentes de um com-
da própria Rita: plexo autônomo estão repletas de símbolos. Jung
define símbolo como “expressão de uma concep-
Na letra da música “Mutante”, não sei se contei ção para a qual ainda não se encontrou outra ou
um filme triste ou se uma personal joke para melhor” (JUNG, 1922/2007, par. 105). Uma vez que
exorcizar o vudu. Depois de tanto tempo, eis que a obra simbólica tem significados passíveis de in-
me reconheci como a verdadeira mutante, aque- terpretação, seu significado afeta diferentemente
la coisa minha de não ser fixa no rock de uma cada um dos seus leitores, dependendo do incons-
nota só, de sair do conforto ilusório para viver na ciente e do contexto em que está inserido cada
fragilidade da dúvida. (LEE, 2016, p. 187). indivíduo. A relação entre a criação da obra sim-
bólica e sua leitura pode ser avaliada na poesia
A própria artista, após passar pelo processo “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa:
de criação e elaboração, conseguiu associá-lo à
experiência que foi capaz de elaborar melhor por Autopsicografia
meio da composição. O poeta é um fingidor.
A descrição de Gilberto Gil sobre o processo de Finge tão completamente
composição de “Drão” também demonstra certa Que chega a fingir que é dor
compreensão, ainda que prática e não teórica, so- A dor que deveras sente.
bre aspectos analíticos do processo criativo:
E os que leem o que escreve,
Outra exigência que eu me colocava era de não Na dor lida sentem bem,
me precipitar. Eu queria que o fazer, a prática, o Não as duas que ele teve,
empirismo da realização fossem observados Mas só a que eles não têm.
pelo meu ser ali à distância: eu tinha que con-
templar o feitio da canção. Ao lado do esforço, E assim nas calhas de roda
da tensão concentrada, tinha que haver a des- Gira, a entreter a razão,
contração, o relaxamento concentrado – as duas Esse comboio de corda
coisas, e todas essas exigências sobrepostas Que se chama coração.
determinando o modo de compor a canção. (PESSOA, 1942)
(RENNÓ, 2003, p. 305).
O ato da leitura promove uma introversão pro-
Essa vivência exemplifica muito bem a procu- gressiva por parte do leitor, que gradativamente
ra de equilíbrio entre introversão e extroversão, vai se fechando para seu entorno e mergulhando
o controle da forma e o fluxo das emoções. naquele universo paralelo proposto pelo texto.
O resultado desses processos artísticos, no Esse universo, por sua vez, vai se misturando com
entanto, não pertence apenas ao seu autor; tam- o mundo interno do leitor, para onde este é leva-
pouco serve somente às elaborações do artista. do, completando o processo de introversão.
A obra de arte tem a capacidade de se comunicar A obra simbólica é naturalmente inquietante,
com os dramas conscientes e inconscientes da- justamente por trazer significados ocultos que
queles que a admiram, possibilitando também a acessam questões internas do leitor. Ao mesmo
estes uma imersão em seus mundos internos. tempo, essa característica provocativa também
traz à tona questões inconscientes daquele que
3. Aquele que lê interage com os símbolos, permitindo, por meio
A expressão do inconsciente do autor não da introversão, o acesso a questões individuais
costuma ser feita de maneira clara e objetiva. antes suprimidas no próprio inconsciente, assim

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como aconteceu com o autor da obra ao criar tal As casas espiam os homens
símbolo. que correm atrás de mulheres.
Um estudo qualitativo conduzido na Escola A tarde talvez fosse azul,
Paulista de Medicina na Universidade Federal de não houvesse tantos desejos.
São Paulo também encontrou conclusões a res- O bonde passa cheio de pernas:
peito do impacto da literatura em seu leitor (SIL- pernas brancas pretas amarelas.
VA, 2016). Nesse estudo, um grupo de alunos e Para que tanta perna, meu Deus, pergunta
profissionais da área se encontraram semanal- meu coração.
mente ao longo de seis meses para discutir a Porém meus olhos
leitura e as interpretações de um livro (Os anos não perguntam nada.
de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe), O homem atrás do bigode
enquanto os pesquisadores analisavam as dis- é sério, simples e forte.
cussões, a interpretação trazida por cada parti- Quase não conversa.
cipante e a análise sobre a experiência feita por Tem poucos, raros amigos
cada indivíduo. Também estudaram a história o homem atrás dos óculos e do bigode,
oral de vida de quatro participantes para com- Meu Deus, por que me abandonaste
preender a influência das vivências pessoais na se sabias que eu não era Deus
leitura da obra. Ao fim das análises, perceberam se sabias que eu era fraco.
que a validade de uma leitura não é medida pelo Mundo mundo vasto mundo,
conhecimento que ela proporciona mais do que se eu me chamasse Raimundo
pelas percepções que o indivíduo teve durante seria uma rima, não seria uma solução.
essa leitura. Um dos participantes ponderou que Mundo mundo vasto mundo,
as mudanças provocadas por uma leitura ficam mais vasto é meu coração.
no inconsciente do indivíduo, alterando-o de ma- Eu não devia te dizer
neira gradual e, por vezes, imperceptível. Outra, mas essa lua
ainda, disse que “ao falar sobre a obra, falamos mas esse conhaque
sobre nós distraidamente” (SILVA, 2016, p. 97). botam a gente comovido como o diabo.
Entre muitas outras conclusões, o estudo afir- (ANDRADE, 1930, p. 11)
ma que a arte é sempre modificadora (SILVA,
2016, p. 97). Ao longo de toda essa obra, Drummond dá
vazão a um sentimento de estranhamento e de
4. Caminho da individuação não pertencimento ao mundo em que se encon-
Um livro ou uma poesia pode colaborar com a tra; um conflito é natural, uma vez que cada pes-
elaboração de um momento ou circunstância. Mas soa é de fato única e precisa dessa constatação
autores também produzem uma obra inteira em para iniciar seu processo de individuação. Um
nome de uma elaboração. Drummond, notada- exemplo de elaboração desse estranhamento é
mente, elaborou sua melancolia ao longo de sua a já citada música “Mutante”, na qual Rita Lee já
obra. Esse autor começa com a fase gauche , na se entendeu e se aceitou única, mutante.
qual a ironia transborda a angústia de um eu Em “Poema das sete faces”, no entanto,
maior que o mundo, isolado em pessimismo, bem Drummond está na primeira fase do processo. Ele
representada pelo “Poema das sete faces”: descreve um desejo que ainda não está pronto
para aceitar, e esse conflito torna o mundo dis-
Quando nasci, um anjo torto torcido: casas vendo pessoas, pessoas resumi-
desses que vivem na sombra das a pernas, um coração maior que o mundo.
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. Coração esse que é vasto de tantas dúvidas, que

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reconhece sua fraqueza e a questiona a Deus, Um amor que não tem descrição! Algo realmen-
mas que ainda é inibido e silenciado atrás da fi- te MÁGICO nasceu dentro de mim quando, aos
gura do homem de bigode, que não deixa seus 8 anos, eu li Harry Potter e a Pedra Filosofal !
conflitos chegarem a seus olhos. É possível apon- Isso faz parte da minha vida e da minha histó-
tar que nem tudo foi elaborado ainda na produ- ria! Cada pequeno detalhe que passei ao escre-
ção dessa obra: Drummond fala, ao fim, que fo- ver meu próprio livro, indo fantasiada ver os fil-
ram “a lua” e “o conhaque” que o botaram como- mes, dar autógrafos, tirar fotos, aos 11 anos quan-
vido, afastando-se da angústia que ainda não está do eu chorei por não receber a carta me convo-
preparado para reconhecer como sua. cando para a escola! Se algum dia meus filhos
Após essa primeira fase, Drummond passa tiverem o prazer de ler e assistir Harry Potter a
gradativamente a se abrir para o mundo e a per- vida deles vai estar completa! São 8 anos do
ceber o sofrimento deste. Passa a se perceber relacionamento mais perfeito, encantador, sin-
menor que o mundo, talvez por vislumbrar a co- cronizado e mágico que alguém possa imagi-
nexão com a totalidade, talvez desfazendo uma nar! 2005/2013/infinito! (ANSELMO, 2012).
superidentificação com o ego. Ao desfazer a in-
flação de ego, o poeta sai da posição de impo- Não é difícil compreender a relação da “gera-
tência gerada pela idealização do que deveria ser. ção Harry Potter” com a saga de mesmo nome. Na
Na sua fase social, marcada pela vontade do poe- época em que Harry Potter foi lançado, poucas
ta de participar e tentar transformar o mundo, obras tratavam o público infanto-juvenil com tan-
Drummond mostra maior percepção de potên- ta seriedade. Prova disso é que o primeiro livro
cia: “Ó vida futura! nós te criaremos” (ANDRADE, da saga, Harry Potter e a pedra filosofal, foi recu-
1940, p. 46). sado algumas vezes antes de ser publicado, prin-
Jung comenta, sobre o caminho da individua- cipalmente pela temática e pelo tamanho da obra.
ção, que, quanto maior o grau de individuação, Portanto, os livros de J. K. Rowling introduziram,
maior a conexão do sujeito com a humanidade. num mercado escasso de material semelhante,
Há, ainda, a situação de uma obra ou uma saga um protagonista jovem, que não apenas passa
servir de alicerce para a elaboração de toda uma por várias etapas da jornada arquetípica do herói
geração. O recente fenômeno Harry Potter é um como também lida com problemas comuns de
exemplo. Uma medida do impacto dessa obra so- jovens desta idade, seja em relação a amizades,
bre o público infanto-juvenil foi dada pelo traba- relacionamentos ou autoconhecimento. O univer-
lho de Gwilym e colaboradores, que acompanha- so mágico compôs um apelo extra para atrair o
ram os registros de atendimentos de emergência interesse dos jovens leitores, mas o que tornou
por trauma osteomuscular no Reino Unido nos Harry Potter tão marcante na vida de toda uma
fins de semana de verão. A constatação surpreen- geração foi justamente oferecer a possibilidade
dente foi que houve uma queda de quase 50% nos de se identificar com um protagonista, fazendo
atendimentos em fins de semana de lançamento dessa identificação uma ferramenta de elabora-
dos livros da série. O autor inicia seu artigo com a ção da passagem para a vida adulta.
provocação: “Sobre as crianças deste milênio, po- A “geração Harry Potter” é principalmente
demos ter duas certezas: elas vão se machucar, e composta por indivíduos que, literalmente, cres-
elas (provavelmente) lerão Harry Potter” (GWILYM ceram com os livros, que estavam no começo da
et al., 2005, p. 1505; tradução nossa). adolescência quando a saga teve início e eram
Em 30 de abril de 2012, lia-se o seguinte de- jovens adultos na sua conclusão, dez anos de-
poimento, numa rede social, no perfil de uma pois. Esses jovens acompanharam o processo de
adolescente de 17 anos, ilustrando o sentimen- amadurecimento do protagonista juntamente com
to da “geração Harry Potter”: o seu próprio; ainda que não fossem bruxos, eram

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também adolescentes. Assim como as diferen- essência da arte transcende a compreensão do


tes fases da obra de Carlos Drummond de Andra- artista e, até mesmo, suas experiências pessoais,
de podem servir como “fio-guia” para leitores que mas o inconsciente do autor não deixa de ser
estão passando por uma elaboração semelhan- onde a obra e seus símbolos se desenvolvem,
te à do poeta, a série Harry Potter permitiu que a fazendo com que sejam representação e não có-
geração de jovens da época se identificasse com pia ou depoimento um do outro.
um protagonista que, num universo mágico e en- Aqueles que produzem arte transformam o
cantador, também passou por importantes situa- conteúdo do seu inconsciente em símbolos que
ções de conflitos e enfrentamentos sombrios. serão lidos e interpretados de maneiras distin-
Dessa forma, ao fazer a introversão no universo tas, dependendo do inconsciente daquele que
da saga e fundi-lo ao seu próprio mundo inter- for apreciá-la. Como diz Mãe, ao ser publicado,
no, os jovens da “geração Harry Potter” não ape- o livro ultrapassa o autor, que não pode contro-
nas puderam entender melhor seu amadureci- lar se os outros lerão sua obra como ele acha
mento e processo de individuação como também que deve ser lida (MÃE, 2016). Dessa forma, uma
criaram a característica identificação com a série, obra literária pode ajudar seus leitores de manei-
um vínculo que foi possibilitado pela fusão des- ras distintas entre si e distintas da maneira como
se universo com uma fase tão importante na for- ajudou seu escritor, uma vez que acessa temas
mação pessoal. ocultos no inconsciente de cada um, oferecendo-
-lhes uma nova elaboração ou, ao menos, uma
5. Considerações finais perspectiva diferente. Como Jung também diz, no
O escritor Valter Hugo Mãe diz que espaços capítulo já citado, o artista é um indivíduo um
carregados de livros são semelhantes a multi- pouco inadaptado, que segue por caminhos dife-
dões, uma vez que os livros representam pesso- rentes dos demais e acha aquilo que o restante
as (MÃE, 2016). É possível concordar com essa da sociedade sente falta sem saber. „
afirmativa mesmo sem tentar interpretar e aco-
plar a obra de arte à vida pessoal do artista; a Recebido em: 4/3/2017 Revisão: 26/5/2017

Abstract

Psychic experiences’ elaboration: the role of literature


This article aims to explore how literature can the interpretation of the work, the present article
help to elaborate psychic experiences, not only for evaluates how different types of texts (poetry,
the one who writes it but also for the one who reads lyrics and books) from different periods can repre-
it. Based on Jungian texts on analytical psychology sent a conflict brought from the author’s uncon-
and literature and focusing the creative process not scious or act on the reader’s individuation. „

Keywords: literature, creative process, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Harry Potter.

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Resumen

Elaboración de experiencias psíquicas: el papel de la literatura


Este artículo pretende explorar cómo la litera- interpretación de la obra, se evalúa cómo diferen-
tura puede ayudar a elaborar experiencias psíqui- tes tipos de textos (poesía, letras de canciones y
cas, no sólo a quien la escribe sino también a libros) de distintos períodos pueden representar
quien la lee. En base a los textos junguianos so- un conflicto surgido del inconsciente del autor o
bre psicología analítica y literatura y con el enfoque actuar sobre la individuación del lector. „
principal en el proceso creativo en lugar de en la

Palabras clave: literatura, proceso creativo, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Harry Potter.

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“Casa tomada” – leitura de um


conto de Julio Cortázar

Victor Palomo*

Resumo
A partir do conto “Casa tomada”, de Julio Palavras-chave
Cortázar, o presente artigo faz amplificações e cor- “Casa tomada”,
relações com os conceitos de anima e incons- literatura,
anima,
ciente coletivo, além de sugerir pontes para a inter-
inconsciente
locução entre psicologia analítica e literatura. „
coletivo.

* Psiquiatra graduado pela Unifesp, analista junguiano, membro


da SBPA e IAAP, mestre e doutorando em letras pela USP.
E-mail: <victorpalomo@uol.com.br>.

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da Sociedade
da Sociedade
Brasileira
Brasileira
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de Psicologia
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“Casa tomada” – leitura de um conto de Julio Cortázar


No texto “O direito à literatura”, o ensaísta (CORTÁZAR, 2008, p. 159), converge em direção
Antonio Candido (em diálogo com Otto Rank) afir- à proposição junguiana a respeito do tema da
ma que, assim como o sonho assegura a capaci- gênese do processo literário: “a grande maioria
dade de fabular durante o sono, a literatura a ga- dos meus contos foram escritos independente-
rante no período de vigília, fazendo-se o sonho mente de minha vontade, por cima ou por baixo
acordado de todas as civilizações, em todos os de minha consciência, como se eu fosse um meio
tempos. Em suas múltiplas funções humaniza- pelo qual passava e se manifestava uma força
doras, porque resultado da atividade imaginativa alheia”, enfatizava (idem, p. 154).
(ou mitopoética) da psique, a arte literária tem a Essa suposição cortaziana que mapeia o pro-
força da palavra organizada como viga mestra de cesso de criação artística dialoga com os textos
seu edifício narrativo ou poético, uma vez que “tira junguianos que formulam hipóteses sobre o tema.
as palavras do nada e as dispõe num todo articu- No texto “Relação da psicologia analítica com a
lado” (CANDIDO, 2011, p. 179). Ao ordenar caos obra de arte poética” (Obras completas, vol. 15,
em cosmos, o autor expressa-se, organiza-se e capítulo 6), Jung (1987) ocupa-se em assinalar que
promove efeitos semânticos ao leitor, que, na as obras de arte não autorizam, para sua aprecia-
fruição da obra, adquire conhecimento que reite- ção psicológica, a necessária avaliação clínica e
ra ou abala suas prévias suposições de sentido biográfica do artista. Jung distingue duas modali-
para as palavras e para as coisas, procedimentos dades de fenômenos psicocriativos na literatura.
que não necessariamente se efetuam numa di- Um primeiro caso refere-se às obras que “nas-
mensão consciente. cem totalmente da intenção e determinação do
Julio Cortázar (1914-1984) foi um escritor aten- autor, visando a este ou àquele resultado especí-
to a esses preceitos. Referindo-se ao processo fico”, de forma que o poeta afirma um projeto
criativo de seus contos, o autor argentino afirma conscientemente e escolhe suas expressões se-
que “busca instintivamente que ele [o conto] seja mióticas mais adequadas, às quais submete seu
alheio a mim enquanto demiurgo” e que o leitor material artístico. Em procedimento oposto, há
tenha a sensação de que o mesmo nasceu “por obras que se “impõem” ao autor, o qual experi-
si mesmo, em si mesmo ou até de si mesmo” menta um estranhamento diante do que é mobi-
(CORTÁZAR, 2008, p. 229). Para o também autor lizado pela função transcendente: “[...] sua mão
de O jogo da amarelinha (CORTÁZAR, 2013), o é de certo modo assumida, sua pena escreve
indício do valor de uma grande obra literária está coisas que sua própria mente vê com espanto. A
no fato de que ela tenha se desprendido do au- obra traz em si a sua própria forma” (JUNG, 1987,
tor, uma vez que o escritor tenha sido capaz de par. 10). Nesses casos, Jung observa que a cons-
transmiti-la sem demasiadas perdas das latên- ciência é “inundada” por pensamentos e imagens,
cias da psique profunda, conservando-a “o mais os quais nada mais são que a manifestação do
perto possível da sua fonte, com seu tremor ori- si-mesmo do artista. Este não se identifica com a
ginal, seu balbucio arquetípico” (idem, p. 234). realização criadora, mas tem consciência de um
Cortázar deixa clara, então, a importância da for- fenômeno “como uma segunda pessoa que tives-
ma como inextricável aos possíveis caminhos se entrado na esfera de um querer estranho” (par.
semânticos de uma obra. 110). Como se um “desconhecido” pensamento
Para ele, o entendimento de que alguns es- em imagens, infenso à percepção consciente au-
critos tornam-se obras de arte graças ao seu tomática, conferisse singularidade à obra criada.
substrato mítico, ou seja, à “ressonância de ar- De volta aos textos críticos de Cortázar, consta-
quétipos mentais ou os hormônios psíquicos” ta-se que ele considerava a expressão metafórica

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como a integridade da linguagem, sendo aquela ela que não nos deixou casar”, assevera a voz en-
um lugar-comum do homem: sua tendência inata dogâmica do narrador.
a pensar por analogia. Como um intercurso lúdico, Ele vivia com a irmã Irene, que tecia e destecia
o poeta (ou o escritor) corre contra a corrente (da peças de lã como pretexto para não fazer nada.
linguagem cotidiana, prosaica), atentando para Apoiados no favorecimento que a condição aris-
a força ativa dessa habilidade arquetípica da fala tocrática de herdeiros lhes conferia, viviam “tecen-
– e da linguagem. Daí o motivo de seus contos do e destecendo” o tempo: o tecido (o texto) era
serem magistralmente analógicos ou, por assim repetitivamente o mesmo, como indicam as pas-
dizer, “poéticos”, consistindo em elementos con- sagens com influxos líricos um tanto lentificados:
densados de realidades psíquicas, caracóis da
linguagem, fazendo-se como “irmãos misteriosos [...] e eu passava horas olhando suas mãos que
da poesia em outra dimensão do tempo literário” pareciam ouriços prateados, agulhas indo e vin-
(CORTÁZAR, 2008, p. 149). do e uma ou duas cestinhas no chão com os
“Casa tomada” (CORTÁZAR, 2014) é um conto novelos se agitando constantemente. Era lindo.
paradigmático dessa linha argumentativa. Publica-
do em 1951 no volume Bestiário (2014), traz no tí- Ou então, “Almoçávamos ao meio-dia, sem-
tulo, com a força de sua rima toante, uma imagem pre pontuais; nada mais a fazer além de uns pou-
incontestavelmente polissêmica, suscitando no cos pratos sujos”. Ou, ainda, trechos prosaicos
leitor de primeira mão um sem-número de asso- de caráter desencantado como “Desde 1939 não
ciações inconscientes (ou devaneios). Por exem- chegava nada de valioso na Argentina”. Esta últi-
plo, o filósofo francês Gaston Bachelard (2008) ma frase suscita interpretações políticas de base
lembra que a imaginação da casa faz emergir a casa alegórica que consideram que a casa é uma re-
em que nascemos e as outras que depois habita- presentação da própria Argentina tomada (ou iso-
mos, construindo um feixe associativo de lembran- lada), a partir da Segunda Guerra Mundial (1939).
ças e devaneios cujos substratos temáticos giram Porém, esse primeiro movimento marca a de-
em torno dos sentidos de abrigo, proteção, intimi- finição (ou indefinição) da dupla incestuosa de
dade, estabilidade, “porque a casa é o nosso can- irmãos preocupados com a preservação da casa
to no mundo, o nosso primeiro universo. É o verda- e alheios aos acontecimentos externos a ela.
deiro cosmos” (BACHELARD, 2008, p. 24). “Mas é da casa que me interessa falar, da casa e
Organizada em seis movimentos, a narrativa de Irene, porque eu não tenho importância”, en-
de “Casa tomada” é iniciada com o narrador tes- fatiza o narrador, numa aceitação resignada da
temunha (“eu”) expondo os sentimentos, percep- negatividade (uma negação da própria singulari-
ções e perplexidades a respeito de seu “canto no dade). Tal como a casa, que será minuciosamen-
mundo”. No primeiro, o eu-narrador descreve a te descrita no segundo movimento do conto, Irene
casa, personificada como imagem da clausura (“a garota que tinha nascido para não incomo-
imposta pelos bisavós e responsável pelo “ma- dar ninguém”) é aparentemente passiva (pois a
trimônio de irmãos”, repositório de lembranças repetitiva e atenuada atividade provém do nar-
que se plasmam em perspectiva transgeracional rador) e apresentada num plano mítico. O duplo
(dos bisavós aos seus pais), alcançando a infân- do narrador (Irene) mistura uma dupla linhagem
cia dos protagonistas: a irmã (Irene) e “eu”. Esse mítica: se uma das horas é Irene (a paz), filha de
cenário é impregnado de memória (portanto “to- Zeus e Têmis, suas irmãs são Eunomia (a discipli-
mado”, por princípio), e nele os irmãos, agora com na) e Dique (a justiça). Irene, no conto, é personi-
mais de 40 anos, acostumaram-se à solidão e à ficação de um tempo aparentemente pacificado
repetição monótona dos rituais triviais de limpeza e também uma fiadora, pois “só se distraía [e
e alimentação: “Às vezes chegamos a crer que foi quem precisa se distrair não está em paz] com o

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tricô”. A fiadora mítica é Cloto, que puxa o fio (o modo de paralelismo, recusam veementemente
tecido, o texto) da vida, sendo filha da noite e seus outros lados. Assim abre-se o terceiro mo-
projeção de uma lei que nem os deuses conse- vimento, quando súbitos barulhos, na sala de
guem transgredir (BRANDÃO, 1988, p. 230-231). refeições ou na biblioteca, obrigam o narrador a
Segundo arguta observação da crítica literária fechar com ferrolho a espessa porta de carvalho
Cleusa Rios (1986, p. 15), Irene aglutina a ambi- que separava a parte maior da casa, agora per-
guidade desse duplo, sendo as horas (o conhe- ceptivamente “tomada”.
cido) e o fio do destino (conhecido-desconheci- Aqui o conto abre-se à multiplicidade de sen-
do que é tecido e destecido): “às vezes fazia um tidos. São dignas de destaque as locuções in-
colete e logo depois o desmanchava num segun- determinadas com que o narrador descreve essa
do [...]”. Tal cisão promove uma repetição contí- passagem: o som “impreciso e surdo” ou “algu-
nua e mecânica, assim como a própria narração, ma coisa na sala de jantar ou na biblioteca”. Es-
denunciando uma consciência defensivamente sas indefinições introduzem o estado de estra-
coagulada. nhamento que agora toma o narrador, pois o que
Se o primeiro movimento apresentou os per- era familiar fez-se insólito, espantoso ou inquie-
sonagens, o segundo delineia o espaço narrati- tante. Uma breve digressão: no texto “Teeteto”,
vo: a casa dividida pela densa porta de carvalho, Platão atribui a Sócrates a afirmação de que o
que restringe a circulação dos irmãos à sua me- conhecimento nasce do espanto. Ancorado na
nor parte. No espaço maior, iam apenas fazer a palavra grega “thaumázein”, o filósofo grego re-
limpeza da poeira do ar de Buenos Aires (nova- ferenda as importâncias semânticas da admira-
mente uma imagem que motiva interpretações ção, da perplexidade e do assombro, ou seja, a
políticas). Há de se atentar para o verbo “esque- realidade percebida por meio de lentes insólitas,
cer” na primeira frase do segundo movimento do como essencial ao desenvolvimento do pensa-
texto (“Não dá para esquecer como era a distri- mento filosófico (PLATÃO, 2007, p. 63). No campo
buição da casa”), o que sugere a enumeração de- da teoria literária, tais formulações ganham rele-
talhada da planta da casa como forma de marcar vo no texto-referência do formalista russo Viktor
a presença do eu e da irmã, pois, como sugere Chklovski “Arte como procedimento” (1917), no
Bachelard, “No teatro do passado que é a memó- qual explicita que as leis do discurso prosaico
ria, o cenário mantém os personagens em seu pa- regulam a percepção da imagem pelo processo
pel dominante”. Diz ainda Bachelard: de automatismo, de tal forma que “a vida desa-
parece, transformando-se num nada” (CHKLOVSKI,
o espaço retém o tempo comprimido. [...] Por ve- 1999, p. 81). Se a arte (e ele disserta sobre a arte
zes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao pas- poética) é o pensamento em imagens, sua finali-
so que se conhece apenas uma série de fixações dade “é dar uma sensação de objeto como visão
nos espaços da estabilidade do ser, de um ser e não como reconhecimento; o processo da arte
que não quer passar o tempo [...]. (BACHELARD, é o de singularização dos objetos e consiste em
2008, p. 28). obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a
duração da percepção” das imagens, afastando-
Alheios aos desígnios coletivos do tempo, os -se de sua percepção automática e aproximan-
irmãos viviam em uma parte menor da casa, que do-se de suas singularidades.
era separada por uma porta de carvalho maciço, A forma “singular”, ou singularmente estranha,
e “ali começava o outro lado da casa”. Essa pa- por meio da qual o narrador percebe seu espaço
rece ser a função desse movimento na narrativa, outrora (ou até então) familiar, pode ter uma am-
ou seja, apresentar as cisões constitutivas da plificação apoiada pelo texto freudiano O estranho
casa e dos personagens, que, consideradas em (1919), no qual o autor disserta sobre as coisas

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que estão dentro do campo do amedrontador. A lado”): “Nos primeiros dias achamos penoso por-
partir das palavras alemãs heimlich-unheimlich (do que ambos tínhamos deixado na parte tomada
familiar, pertencente à casa, ao não familiar), Freud muitas coisas que queríamos”. Apartados de seus
faz um inventário dos campos semânticos dessas desejos e num esforço simultâneo de contenção,
expressões, com o intuito de circunscrever a cate- os irmãos retomam as atividades habituais de ca-
goria do duplo: tudo o que deveria permanecer ráter monótono e repetitivo, ela tecendo e ele ade-
secreto e oculto, mas veio à luz. Após analisar a rindo às disposições senex do espaço da casa:
novela O homem de areia, de Hoffman, Freud con- “Comecei a examinar a coleção de selos do papai,
clui que a experiência de estranheza forja-se pelo e isso me servia para matar o tempo”. Esse arre-
retorno de algo familiar e há muito estabelecido e medo de tédio com intenções dissociativas apoia-
que se alienou pelo processo de repressão: a cate- -se na suposição de uma possível vida automática
goria do estranho resulta da expressão de comple- e administrada, na qual o pensamento, os deva-
xos reprimidos (FREUD, 1969, p. 237-269). neios, as fantasias e os sonhos – os barulhos com-
Jung elege o conceito de complexo autônomo plexos – estivessem excluídos: “Pode-se viver sem
como um dos pilares de sua teoria. Ao postular, pensar”, reflete o narrador.
a partir dos “Estudos diagnósticos das associa- Mas a vida é formada e deformada pelo impon-
ções”, a noção de “agrupamentos de ideias de derável anunciado pelas tais instâncias complexas,
acento emocional no inconsciente”, monta um edi- motivo pelo qual, astutamente, a narrativa incor-
fício teórico em que o complexo eu, parcialmente pora o quinto movimento do conto usando parên-
consciente, relaciona-se com os complexos que teses, como um material que se insere solto ao
“constituem as verdadeiras unidades vivas da tecido (texto), ainda por ser integrado, por ser ela-
psique inconsciente, cuja existência e constitui- borado. Tais imagens articulam narrativas das ex-
ção só podemos deduzir por meio deles. Os com- periências insólitas dos sonhos e os escapes das
plexos, responsáveis pelos sonhos e pelos sin- proposições oníricas manifestas para a consciên-
tomas, são a via régia para o inconsciente” (JUNG, cia do interlocutor-narrador insone: “Irene dizia
2000, par. 210). Assim sendo, seu caráter autôno- que os meus sonhos consistiam em grandes sa-
mo faz com que “a liberdade do eu cesse onde cudidas que às vezes faziam o cobertor cair”.
começa a esfera dos complexos, pois são potên- O crítico Davi Arrigucci (2003, p. 19) conside-
cias psíquicas cuja natureza profunda ainda não ra que a análise da obra cortaziana consiste em
foi alcançada” (idem, par. 216). Em alinhamento desmontar e montar cada traçado do texto, hon-
com essas assertivas, para Jung, o efeito de estra- rando um projeto literário que é um buscar per-
nheza se dá porque “os complexos podem ter- manente: “Uma linguagem à caça de outra lin-
-nos. Toda constelação de complexos implica um guagem que já se enrodilha num complexo tran-
estado perturbado da consciência” (idem, par. çado”, pondera o autor. Assim, a maior parte dos
200). Daí que resultem em “manifestações nor- textos de Cortázar se estrutura como um jogo –
mais da vida” (par. 211) ou em situações psíquicas em “Casa tomada”, explicitamente, como um jogo
de não-liberdade, de pensamentos obsessivos e entre vigília e sonho ou consciente e inconscien-
ações compulsivas” (par. 200). te. De fato, algumas tentativas de interpretação
Aderindo-se ao texto literário, essa “não-liber- do conto preferem tomar esse caminho de enten-
dade” fica clara quando o narrador afirma que “to- dimento, ressaltando as imagens do conto como
maram a parte do fundo”, ao que Irene, restriti- elementos análogos à produção do trabalho
vamente, decide: “vamos ter que viver deste lado” onírico – imagens que se organizam por conden-
(grifo meu). Esse quarto movimento da narrativa já sação e deslocamento. Aqui, opta-se pela aten-
deixa clara a autonomia das disposições afetivas ção e fidelidade ao que está marcado no texto:
integrantes da parte alijada à consciência (“deste os parênteses (comentário ou texto alheio, ou

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ainda uma nota emocional que se insere ao tex- dispunha a sonhar. Cito Hillman (2013, p. 62):
to) (CINTRA, 2011, p. 681). Os parênteses distin- “A historinha para dormir básica de nossa cultu-
guem o relato de uma consciência onírica (parte ra é que dormir é sonhar, e sonhar é entrar na
alheia), que é inquietante (estranha) para a cons- casa do Senhor dos Mortos, onde nos esperam
ciência do narrador e para a própria narrativa, nossos complexos. Não entramos suavemente
além de análoga aos ruídos que engendram a nessa boa noite”.
clausura numa parte menor da casa. Diz Jung: No texto Os sonhos e o mundo das trevas,
o sonho é uma parcela da atividade psíquica in- James Hillman (2013) lembra que se, para Freud,
voluntária que possui, precisamente, suficiente os sonhos eram a expressão, a serviço do dese-
consciência para ser reproduzida no estado de vi- jo, de conteúdos psíquicos submetidos à força
gília. De modo geral, o sonho é um produto es- da repressão, e se, para Jung, tinham uma fun-
tranho e desconcertante, que se “caracteriza por ção compensatória, para ele os sonhos estão
falta de lógica, uma moral duvidosa, formas des- relacionados à alma e a alma, à morte. Ao procu-
graciosas, contrassensos ou absurdos manifes- rar a fundamentação arquetípica para os sonhos,
tos. Por isso, podem ser rejeitados como estúpi- encontra que Hipnos é filho da noite, assim como
dos” (JUNG, 2000, par. 532). Como uma forma Tânatos (a morte) e Letes (o esquecimento). Nes-
estranha à organização unilateral da consciência, sa linha argumentativa, Hillman associa os so-
o sonho teria uma função compensatória, com a nhos a uma experiência que tem seu correlato
expressão de enredos “trançados” nos comple- mítico ligado ao deus grego Hades, associado
xos autônomos inconscientes. Enredo, aliás, pa- às semânticas das profundezas e do invisível.
rece um termo adequado aos cotejamentos dos Como usa o capacete da invisibilidade, Hades
sonhos com as narrativas literárias, pois, segun- aglutina categorias de profundidade e interio-
do Jung, poderíamos compreendê-los em quatro ridade que são postas e sentidas, ainda que não
etapas: a exposição (lugar e personagens da vistas. Porém, Hillman toma o cuidado de alertar
ação); o desenvolvimento da trama; a culminação, o leitor do seu ensaio de que, se ele busca pelos
o ponto decisivo da peripécia; e a lise ou solução sentidos revelatórios das experiências, o mais
do trabalho de sonho (par. 561-564). escondido no que está aparentemente revelado,
Porém, é exatamente em relação a esse tra- tal desvelamento não consiste numa compreen-
balho que os personagens (Irene e eu) parecem são literal da morte, mas metafórica, ou seja, o
imprimir uma força oposta, recusando qualquer que será que a alma quer quando se expressa na
contato com o desconhecido, repetindo ações interioridade de um sonho, sintoma ou devaneio?
compulsivamente e evitando o silêncio: “[...] pas- Tal trabalho é impossível aos personagens para
samos a falar em voz mais alta ou então Irene quem os ruídos dos desvãos da alma suscitam
cantava canções de ninar... Pouquíssimas vezes pavor. Tal é o tom do sexto e último movimento
permitimos que houvesse silêncio... Acho que era do conto, quando os sons se intensificam e se
por isso que de noite, quando Irene começava a aproximam deles, tomando a parte diminuta da
sonhar em voz alta, eu logo perdia o sono”. Sabe- casa por eles habitada. “Apertei o braço de Irene
-se que os sonhos personificam componentes e puxei-a sem olhar para trás”, diz o narrador, o
da esfera complexa, em formações analógicas e que faz Irene soltar o fio do tricô sem olhar. O
espontâneas. Mas tal situação determina medo movimento brusco fomenta a interrupção do flu-
e recusa ao narrador e a Irene, que parecem iso- xo narrativo (do texto, do tecido) da memória, das
lar-se por não dispor de possibilidades para ela- experiências e das fantasias constitutivas da par-
borar seus sonhos e o mundo das trevas. Tal qual te insondável da casa: da anima. No texto Anima
os ruídos na casa, os sonhos de Irene faziam – anatomia de uma noção personificada, Hillman
ruído na consciência do narrador, que não se (1995), contrastando passagens da obra de Jung

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com comentários próprios, esforça-se em dimen- consciência e o inconsciente, ou entre o oculto e o


sionar a anima como a interioridade, a dimensão revelado, o novo (a imagem-símbolo) é apresenta-
arquetípica que abre o caminho para o incons- do ao eu consciente, que tece os fios de uma nar-
ciente coletivo. Sobre essa acepção, fundamen- rativa e a contrasta com os registros da memória,
ta Jung: “Com a anima, então, mergulhamos no urdindo sentidos para as imagens qualificadas
mundo arcaico”. E ainda Jung: “a anima vive no como “novas”. Portanto, quando o leitor entra em
substrato filogenético que chamei inconsciente contato com os elementos condensados nos con-
coletivo... [Ela traz] para nossa consciência efême- tos cortazianos (que são como uma fotografia, as-
ra uma vida psíquica desconhecida que pertence sim como os romances estão para o cinema), pode
ao passado remoto. É a mente dos nossos ances- conectá-los ao seu repertório pessoal – talvez uma
trais desconhecidos...” (JUNG, 2001, par. 518). das maiores funções do texto literário.
Contudo, é justamente do imponderável, da Em “Casa tomada”, nós, leitores, ficamos
imersão no mundo ancestral da memória e da fan- diante de um par irmanado e incestuoso que se
tasia que “Irene e eu” não podem ser tomados. defende da (ou se recusa à) emergência do in-
Estrangeiros em sua própria casa, posto que eles consciente coletivo. Como a instância egoica é
se recusam ao deleite da atividade barulhenta da defensivamente coagulada, a anima torna-se
reflexão, faculdade precípua da anima, decidem ameaçadora porque condutora para o desconhe-
abandoná-la: a casa agora é “casa tomada”, inva- cido. O puer (o novo) é vigorosamente rechaçado
dida pelos conteúdos da psique coletiva. Transi- e reprimido (vide a força e espessura da porta de
tam, dessa maneira, do outrora privado (cujas carvalho), pois denunciaria a condição falaciosa
chaves são lançadas num bueiro) para o espaço de controle sobre o imponderável, os devaneios,
público (a rua), espaço aberto indefinido que as fantasias e os sonhos. O conto aponta, assim,
enclausura suas agora restritivas anomias. o destino da dissociação com a história e as fanta-
Em Introdução à literatura fantástica, o crítico sias (conscientes ou não), ou seja, uma fenome-
Tzvetan Todorov enfatiza que nologia do medo e do desencanto. Freud (1969,
p. 261) lembra que uma das formas de efetivação
o fantástico se caracteriza por uma introdução do efeito de estranheza se dá quando se extin-
brutal do mistério na vida real... A narrativa fan- gue a distinção entre imaginação e realidade, con-
tástica apresenta, no mundo real em que nos dição de enclausuramento do eu que faz com que
achamos, homens como nós, colocados subita- os personagens abdiquem de si mesmos. Jung
mente em presença do inexplicável. (TODOROV, abre caminho a um entendimento do incons-
1975, p. 32). ciente coletivo como memória, substrato coleti-
vo da psique. Hillman atenta a essa noção de
Cortázar adere a tal posição, ao afirmar que seus inconsciente como mundo imaginal e postula o
contos pertencem ao gênero fantástico, pois obje- conceito de ego imaginal: um eu menos estru-
tiva uma oposição ao falso realismo de um mundo turado como vontade e razão e “menos estranho
regido por um sistema de leis, de princípios de à sua alteridade fantástica”, ou seja, análogo ao
causa e efeito, de psicologias definidas, de geo- eu onírico e poroso à realidade imaginal, ou seja,
grafias bem cartografadas. Essa oposição promo- à memória. E é justamente esse eu imaginal – pro-
ve, inquestionavelmente, um efeito de estranhe- posição hillmaniana que traz na sua semântica a
za nos leitores, que vivenciam a leitura do conto possibilidade de fabular (direito humano reivindi-
tal qual a consciência se comporta quando toma- cado por Antonio Candido) – que é recusado por
da pela emergência do novo, condição indiscri- “Irene e eu”. „
minada inextricável às imagens que mobilizam a
função transcendente. Como mediador entre a Recebido em: 6/3/2017 Revisão: 29/5/2017

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Abstract

“Casa tomada” – a short story by Julio Cortázar


This article amplifies the short story “Casa scious and suggests bridges between the fields
tomada”, written by Julio Cortázar, correlates it of analytical psychology and literature. „
with the concepts of anima and collective uncon-

Keywords: “Casa tomada”, literature, anima, collective unconscious.

Resumen

“Casa tomada” – una lectura del cuento de Julio Cortázar


A partir del cuento “Casa tomada”, de Julio e inconsciente colectivo, además de sugerir
Cortázar, el presente artículo hace amplificacio- puentes para una interlocución entre psicología
nes y correlaciones con los conceptos de ánima analítica y literatura. „

Palabras clave: “Casa tomada”, literatura, anima, inconsciente colectivo.

Referências bibliográficas
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CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In: TODOROV, T.
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JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis,


RJ: Vozes, 2001. (Obras completas de C. G. Jung, v.9/1).

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Resenha

Calatonia – o toque sutil na psicoterapia


FARAH, Rosa Maria. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2016.

Sylvia Mello Silva Baptista* convite – toda resenha nada desse professor húngaro de co-
mais é que um convite ao leitor ração brasileiro.
– começa alertando para que Como vemos, com o perdão
Resumo se levem em conta as mãos. do trocadilho, temos em mãos
Esta resenha é um convite a Elas estão na capa – no clássico uma pequena joia. A delicade-
entrar no mundo da calatonia, gesto da criação imortalizado za que Sándor pede ao toque
uma técnica de integração por Michelangelo –, elas estão realizado na prática da calato-
psicofísica, pelas mãos delica- no assunto – a calatonia, mé- nia, como se segurássemos uma
das de Rosa Farah, psicóloga e todo, e por que não dizer atitu- bolha de sabão, está presente
professora que dedicou anos de, de integração psicofísica também na tessitura do texto
de sua vida à prática e ensino. criado pelo professor Pethö que apresenta o método em to-
Trata-se de uma adaptação do Sándor (1916-1992) –, e estão dos os seus detalhes.
seu próprio livro Integração psi- também na autora, ou no seu Rosa inicia nos contando a
cofísica – o trabalho corporal e cuidado ao nos fazer adentrar história de Pethö Sándor, e nos
a psicologia de C. G. Jung, pu- esse universo. dá a conhecer as dificuldades e
blicado em 2008, agora em for- Calatonia – o toque sutil na perdas que esse corajoso ho-
mato mais sintético em portu- psicoterapia trata-se de uma mem enfrentou ao longo de sua
guês e em inglês. Sua versão adaptação do livro Integração vida até chegar ao Brasil e en-
em inglês tornará possível que psicofísica – o trabalho corpo- contrar aqui ressonância para
os conhecimentos do professor ral e a psicologia de C. G. Jung, sua prática. Todo o seu esforço,
Pethö Sándor cheguem a alu- publicado em 2008 pela mes- ao longo de anos como psico-
nos da Europa e dos Estados ma autora, agora em formato terapeuta e professor, apontou
Unidos. „ mais sintético em português e para a “consideração da corpo-
em inglês. Sua versão em inglês ralidade de forma efetivamente
Palavras-chave: calatonia, toque tornará possível que os conhe- integrada ao trabalho psicote-
sutil, corpo, Jung, Pethö Sándor. cimentos do professor Sándor rápico”. O livro passa por uma
cheguem a alunos da Europa e enormidade de questões que
dos Estados Unidos. Esse fato um leitor leigo – ou um psicote-
Muitas das nossas experiên- é de grande importância para os rapeuta sem conhecimento do
cias, se não todas, dependem seus seguidores, uma legião de que seja a calatonia, mesmo que
de por que porta entramos, ou psicólogos e profissionais da praticante da psicologia, jun-
por que mãos somos conduzi- saúde, que sempre trabalharam guiana ou não – possa formu-
dos. É assim desde as mais ten- e ainda trabalham incansavel- lar, em suas minúcias. Assim,
ras idades, não é mesmo? Este mente para deixar vivo o legado apresenta o método, sua origem,

* Psicóloga, membro analista da SBPA/IAAP, mestre em psicologia clínica (PUC-SP), professora, supervisora clínica e coordenadora do
Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica (MiPA) na SBPA e do Núcleo de Mitologia no Areté – Centro de Estudos Helênicos. Autora de
O arquétipo do caminho (Casa do Psicólogo), entre outros.
Email: <sylviamellobaptista@gmail.com>.

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os toques, o cuidado com o es- dia do lançamento desse livro.


paço, as observações imprescin- O afeto, podia-se tocá-lo no ar.
díveis, os fundamentos fisio- Para os que desejem ler, ou
lógicos e orgânicos, aspectos reler, sobre esse método tão
funcionais, os conceitos sobre poderoso quanto misterioso, fa-
imagem corporal e identidade, e zê-lo pelas mãos de Rosa Farah
como tudo isso se coaduna com é entregar-se ao delicado e pro-
a teoria de Jung, até finalizar com fundo. Receba!
“toques” para quem toca, dicas
ao terapeuta iniciante nessa
abordagem. Calatonia: the subtle Calatonia: el toque
Como uma educadora zelo-
touch in psychotherapy sutil en la psicoterapia
sa que descortina uma nova
perspectiva em um já conheci- Abstract Resumen
do panorama, Rosa Farah pega This review is an invitation to Esta reseña es una invitación
pela mão o leitor e o guia a uma enter the world of calatonia, a a entrar en el mundo de cala-
lei fundamental: o cultivo de uma technique of psychophysical tonia, una técnica de integración
atitude na qual é preciso “aten- integration, by the delicate psicofísica, por medido de las
ção, cuidado, presença e respei- hands of Rosa Farah, a psycholo- delicadas manos de Rosa Farah,
to frente ao corpo do outro”; e gist and teacher who dedicated una psicóloga y profesora que
ressalta: isso vale também para years of her life to its practice ha dedicado años de su vida a
o terapeuta. and teaching. It is an adaptation su práctica y enseñanza. Se trata
Rosa, além de cuidadora e of her own book Integração de una adaptación de su propio
escritora, foi, acima de tudo, psicofísica – o trabalho corpo- libro “Integração Psicofísica – o
uma professora. Sou uma entu- ral e a psicologia de C. G. Jung trabalho corporal e a Psicologia
siasta a chamar atenção para (Psychophysical integration – de C. G. Jung” , publicado en
a importância do professor na bodywork and psychology of 2008, ahora más sintético, en
vida do indivíduo. Ele espalha C. G. Jung would be the title in portugués y en inglés. Su ver-
sementes, enxerga carências e English) published in 2008, now sión en inglés hará posible que
fertilidades no solo em que plan- in a more synthetic format in los conocimientos del maestro
ta, ele aponta limites, incentiva Portuguese and English. Its En- Pethö Sándor lleguen a los es-
e acolhe, critica dificuldades e glish version will enable profes- tudiantes de Europa y de los
enaltece talentos, muitas vezes sor Sándor’s knowledge to Estados Unidos. „
tornando-se peça decisiva em reach students in Europe and in
escolhas significativas que fare- The United States. „ Palabras clave: calatonia, toque
mos para nossas vidas. Muitas sutil, cuerpo, Jung, Pethö Sándor.
sementes foram plantadas por Keywords: calatonia, subtle touch,
essa mulher. Era só olhar para o body, Jung, Pethö Sándor.

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Normas para publicação de artigos


A revista Junguiana, periódico cientifico da Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica, editada pela primeira vez no ano de 1983, destina-se à divulgação de
trabalhos inéditos, que contribuam para o conhecimento e o desenvolvimento
da psicologia analítica e ciências afins, em um espírito aberto ao debate científico,
cultural, social e político contemporâneo. Com periodicidade semestral, a revista
aceita artigos originais, de revisão, casos clínicos, comunicação breve, entrevista
e resenha.
Para mais informações sobre as normas de publicação acesse o site da SBPA:
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Junguiana is the scientific Journal of the Brazilian Society for Analytical Psy-
chology, published for the first time in 1983 and directed towards the dissemina-
tion of unpublished works that contribute to the knowledge and development
of analytical psychology and related sciences, with an openness towards scien-
tific, cultural, social and contemporary political debate. Twice a year, the journal
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and interviews.
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