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GUILHERME ELIAS DA SILVA

FRANCISCO HASHIMOTO
(Organizadores)

PSICOLOGIA E TRABALHO
Desafios e perspectivas

Assis
UNESP – Campus de Assis
2018
Conselho Editorial Conselho Consultivo
Sílvia Maria Azevedo (Presidente) Adilson Odair Citelli (USP)
Karin Adriane H. Pobbe Ramos (Vice-presidente) Antonio Castelo Filho (USP)
Álvaro Santos Simões Junior Carlos Alberto Gasparetto (UNICAMP)
André Figueiredo Rodrigues Durval Muniz Albuquerque Jr (UFRN)
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FICHA CATALOGRÁFICA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp

Psicologia e trabalho [recurso eletrônico]: desafios e perspe-


P974 ctivas / Guilherme Elias da Silva, Francisco Hashimoto
(organizadores). Assis: UNESP - Campus de Assis, 2018.
199 p. : il.

Vários autores

ISBN: 978-85-66060-24-9 1. Subjetividade. 2. Trabalho -


Aspectos psicológicos. 3.

Saúde dos trabalhadores. 4. Saúde e trabalho. 5. Trabalhadores -


Saúde mental. I. Silva, Guilherme Elias da. II. Hashimoto,

Francisco.

CDD 158

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SUMÁRIO

Apresentação

Parte 1- Subjetividade e Saúde Mental no Trabalho

Capítulo 1
Trabalho, subjetividade, transformações: uma breve reflexão sobre a construção e reconstrução
de seus significados
Ana Céli Pavão

Capítulo 2
O Núcleo de Oficinas e Trabalho e sua contextualização na história do trabalho na psiquiatria
Ariana Campana Rodrigues
Silvio Yasui

Capítulo 3
Infância e Trabalho: algumas incursões sobre as concepções de infância e as políticas de
erradicação do trabalho infantil
Ednéia José Martins Zaniani
Cristina Amélia Luzio

Capítulo 4
As mulheres no mundo do trabalho: continuidades e rupturas de gêneros na pós-modernidade
Luciana Codognoto da Silva
Francisco Hashimoto

Capítulo 5
Fenômeno migratório: o caso dos dekasseguis
Cizina Célia Fernandes Pereira Resstel
José Sterza Justo

Capítulo 6
Meandros intrapsíquicos da escolha profissional: uma abordagem psicanalítica freudiana
Kelly Cristina Pereira Puertas

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Capítulo 7
O Sentido do Trabalho e a Escolha Profissional: uma visão da Logoterapia
Danielle Cristina Ferrarezi Barboza

Parte 2 - Psicologia: atuação profissional e pesquisa

Capítulo 8
Diálogos entre Foucault e a Pragmática do Desejo sobre música e subjetividade: Alguns relatos
de experiência de trabalho em Centro de Atenção Psicossocial
Tânya Marques Cardoso

Capítulo 9
Quando o corpo fala primeiro: Uma ilustração clínica a partir da psicoterapia psicanalítica
proposta por Joyce McDougall
Fatima Itsue Watanabe Simões

Capítulo 10
A transdisciplinaridade em pesquisa: Relato de um percurso metodológico errático em uma
dissertação de mestrado em Psicologia
Mateus Pranzetti Paul Gruda

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APRESENTAÇÃO

Esta coletânea efetiva-se através de produções frutos das discussões que ocorreram na
disciplina Modos de Produção dos Dispositivos Institucionais no Trabalho, do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, da Faculdade de Ciências e Letras de Assis (SP) – Universidade
Estadual Paulista – UNESP, assim como a partir de resultados de trabalhos de mestrado e
doutorado desenvolvidos no referido programa e no Grupo de Pesquisa vinculado ao CNPq
denominado Figuras e Modos de Subjetivação no Contemporâneo.

A produção desta coletânea foi incitada pela proposta que se concretizou em 2010.
Naquele ano, foi publicada pela Editora UNESP a obra: Psicologia e trabalho: desafios e
perspectivas, organizada pelo Prof. Dr. Francisco Hashimoto. Esta buscava, através de diferentes
referenciais teóricos e metodológicos, versar sobre as relações de trabalho no contexto atual.
Este volume, também apresenta como norteador o processo de construção do conhecimento a
partir de diferentes olhares sobre as questões do trabalho no mundo contemporâneo. Além do
mais, abre um espaço dedicado às reflexões relativas ao desenvolvimento teórico e técnico dos
profissionais de Psicologia visando intervenção às demandas em saúde mental produzidas
atualmente. E, em adição, propõe a discussão de nuances relevantes à pesquisa científica
acadêmica em Psicologia como disparadora de produção teórica, metodológica e de técnicas de
trabalho para a intervenção, de forma a acompanhar as decorrências dos processos multiformes
de gestão da vida e do trabalho na sociedade atual.

O objetivo do livro incide novamente, portanto, em desenvolver sítios de interlocução a


respeito da temática, vislumbrando ampliar as discussões, enriquecendo e divulgando o
conhecimento acerca de Psicologia e Trabalho. Tudo isso impulsionados, principalmente, pelo
pensamento sobre os desafios a serem enfrentados e a proposição de algumas reflexões para a
transformação do cenário em questão.

Para fins didáticos e visando melhor organização discursiva o livro foi dividido em duas
partes:

A Parte 1 compõe-se por capítulos que versam sobre a subjetividade e a


intersubjetividade nas relações de trabalho, bem como apresenta discussões acerca da inter-
relação: saúde mental e trabalho na contemporaneidade.

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O primeiro capítulo, escrito por Ana Céli Pavão, busca refletir sobre questões como: qual
é o significado da palavra “trabalho” que carregamos ao longo das nossas vidas? E como
podemos extrair do trabalho identidade, prazer e satisfação, se o legado histórico que
carregamos nos ensina que trabalho é fonte de sofrimento, fadiga, dissabor?

No segundo capítulo, Ariana Campana Rodrigues e Silvio Yasui, propõem (re)pensar a


relação entre trabalho e psiquiatria. O texto é norteado pela crítica de que o trabalho foi
utilizado na psiquiatria como elemento de ajustamento social e não como oferta possível de
possibilidade de um campo clínico de transformação para que o louco pudesse se produzir como
sujeito autônomo e protagonista de suas próprias escolhas.

Em outro capítulo, Ednéia José Martins Zaniani e Cristina Amélia Luzio produzem um
texto visando realizar algumas incursões sobre as concepções de infância e discutir criticamente
as políticas de erradicação do trabalho infantil. As pesquisadoras trazem para debate o quanto
a “naturalização da infância” – bem como de outras questões subjetivas que permeiam a
questão – podem corroborar para que a inserção precoce no mundo do trabalho seja aceita e
por vezes defendida.

No quarto capítulo, Luciana Codognoto da Silva e Francisco Hashimoto, refletem sobre


as mulheres no mundo do trabalho. Embora, se tenha tido importantes conquistas em relação
à participação feminina neste cenário, surge à necessidade de novas análises sobre as formas
pelas quais elas manifestam seus reflexos na atualidade. Os autores questionam se é possível
falar em relações de gênero mais igualitárias dentro dos limites laborais; ou se as práticas
tradicionais de divisão sexual de papéis continuam a permear a vida e as atividades de mulheres
e homens nos espaços privados e públicos da sociedade.

No capítulo seguinte, Cizina Célia Fernandes Pereira Resstel e José Sterza Justo
apresentam o fenômeno migratório analisando, mais especificamente, o caso dos dekasseguis.
A compreensão das experiências dos Dekasseguis, tomadas como experiências
fundamentalmente construídas no encontro/confronto com a figura do outro, não se restringe
a um caso particular, mas sim oferece elementos para o entendimento dos desafios que a
mobilidade e, consequentemente, os relacionamentos com o estranho colocam para o homo
viator da contemporaneidade.

Encerrando a primeira parte do livro, o sexto e o sétimo capítulos versam sobre as temáticas:
sentido do trabalho e a escolha profissional. Kelly Cristina Pereira Puertas discorre sobre os
meandros intrapsíquicos da escolha profissional, a partir de uma abordagem psicanalítica

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freudiana. Já a autora Danielle Cristina Ferrarezi Barboza trata sobre as temáticas em questão
por intermédio de uma visão da logoterapia.

A Parte 2, intitulada “Psicologia: atuação profissional e pesquisa”, é composta por três


capítulos.

O primeiro deles, escrito por Tânya Marques Cardoso, apresenta diálogos entre Foucault
e a “Pragmática do Desejo” sobre música e subjetividade. Para expor essa relação, a autora
apresenta relatos de experiência de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial.

Em um próximo capítulo, Fatima Itsue Watanabe Simões, realiza uma ilustração clínica
a partir da psicoterapia psicanalítica proposta por Joyce McDougall para analisar como o corpo
pode ser a via de expressão para a exteriorização dos conflitos psíquicos.

Por fim, no último capítulo, Mateus Pranzetti Paul Gruda, discute o tema da
transdiciplinaridade em pesquisa. Para tanto, o autor apresenta o relato de um percurso
metodológico errático em uma dissertação de mestrado em Psicologia.

Organizadores

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Parte 1

Subjetividade e Saúde Mental no Trabalho

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Capítulo 1

Trabalho, subjetividade, transformações: uma breve reflexão sobre a construção e


reconstrução de seus significados

Ana Céli Pavão

O trabalho – e todo contexto que o envolve – está presente na vida do ser humano no
decorrer da história. Desde que nascemos, acompanhamos nossos pais na busca do sustento da
família por meio do trabalho e, muitas vezes, a imagem que recordamos dos finais de tarde é de
um semblante fatigado e cansado por causa das agruras vividas no ambiente laboral. É como se
vivêssemos o mesmo sofrimento e, portanto, lutamos contra o sofrimento dos nossos pais como
se se tratasse do nosso (DEJOURS, 2007).
Ao longo do nosso desenvolvimento, tomamos contato com outras figuras que nos
remetem à condição de trabalho, uma vez que os processos de socialização foram sendo
delegados a instituições e organizações sociais: professores, cuidadores, instrutores, entre
outros. E, cada vez mais, vivemos a experiência dolorosa da angústia, da solidão, do abandono,
da rejeição dos pais; e a angústia, o sofrimento e as preocupações fundamentais de nossos pais
tornam-se um enigma que carregamos durante a vida adulta, quando nos é exigida uma escolha
profissional, uma identidade, que, dentre outros fatores, vai determinar o nosso sustento e o da
família que devemos formar, além de possibilitar nosso ingresso definitivo à sociedade
(DEJOURS, 2007).
Mas, qual é o significado da palavra “trabalho” que carregamos ao longo das nossas
vidas? Como podemos extrair do trabalho identidade, prazer, satisfação, se o legado histórico
que carregamos nos ensina que trabalho é fonte de sofrimento, fadiga, dissabor?
Este texto, portanto, busca compreender, ainda que de forma breve, um pouco da
evolução do trabalho ao longo da história, ou seja, procura problematizar o trabalho utilizando
como sustentação sua historicidade. Além disso, serão utilizados alguns dos caminhos e
revoluções da ciência, como forma de produção do conhecimento, que geraram impactos
intensos na maneira de pensar e viver das pessoas.
Para adentrarmos esta reflexão, iremos esmiuçar a palavra “trabalho” e alguns de seus
significados, a fim de construir um retrato que nos permita enxergar o peso real desta expressão
em nossas vidas e, ao mesmo tempo, desconstruir e reconstruir significados novos que
provoquem rupturas e nos possibilitem discernir novos caminhos.

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A ciência como transição de paradigma

A ciência, no auge de sua hegemonia, apresenta-se como infalível, um sinônimo de


verdade inabalável, orientando o homem em suas realizações presentes, com vistas às futuras.
Mais tarde, mesmo com toda sua supremacia e ascensão, a ciência não ficou livre de
questionamentos, e todo seu arsenal de alegorias (racionalidade técnica, objetividade,
neutralidade) começou gradativamente a despenhar-se.
Deste modo, tem ocorrido uma revisão de paradigmas, com transformações no
contemporâneo, momento em que a cultura também passa por profundas modificações.
Neste sentido, Custódio Luiz de Almeida (1997) nos alerta que falar da origem,
desenvolvimento e articulação da ciência é falar de epistemologia.
A epistemologia configura-se como um campo recente do conhecimento, que nasceu a
partir do processo de desenvolvimento da própria ciência moderna, com o intuito de analisar de
forma crítica os princípios, hipóteses e resultados advindos da ciência, para, assim, estabelecer
os fundamentos de uma ciência específica ou, ainda, saber como se dá o conhecimento
científico. Deste modo, a ciência deixa de ser vista como imutável e previsível, para ser
entendida como construção, saber processual, cuja estrutura é baseada na historicidade
(ALMEIDA, 1997).
Sabe-se que o início da ciência moderna é assinalado pelo choque com a religião, bem
como com a imagem de homem como criatura de Deus, e a natureza como um mistério, dádiva
divina. Assim, a ideia da modernidade se dá pelo júbilo da razão, colocando o homem, agora
livre, como o centro do mundo, delegando à ciência o único caminho para se encontrar a
verdade; esse período é chamado de Racionalidade Científica.

A racionalidade científica da modernidade nasceu no século XVI, não


de uma evolução ou de um acúmulo de saberes, mas de uma ruptura
de visão e de uma organização de mundo caracterizado como um
saber contemplativo, teocêntrico, formal e finalista, no contexto de
profundas transformações econômicas, sociais, políticas e culturais,
iniciadas com a Renascença, que caracterizaram a transição do mundo
feudal para a modernidade (YASUI, 2010, p. 78).

O homem, agora como o Senhor de suas vontades, passa a estabelecer uma relação com
a Natureza, reduzindo-a a simples objeto, uma vez que pode dominá-la, já que ela não é mais
dependente de um ser imaterial.
Nesta reflexão, não é apenas a natureza que se reduziu à condição de coisa, mas tudo
aquilo que se deseja desvendar, inclusive o próprio homem. Este, assim como a natureza e como

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parte dela, deve ser submetido à amputação de suas forças e, com elas, sua subjetividade, pois
esta é a única forma de ser revelado.
E o mais audacioso de tudo isso é que a ciência, neste período intenso de avanço,
prometeu ao mundo a felicidade, uma vez que, sobre o triunfo da razão, o homem, agora como
o centro de suas realizações e investimentos, teria a possibilidade de dominar a natureza,
colocando-a a seu inteiro dispor, em prol do progresso e da construção de uma sociedade justa,
livre e igualitária.
É justamente neste cenário que se descortina a Revolução Industrial (século XVIII),
período caracterizado por profundas e incomensuráveis mudanças no mundo do trabalho, que
irá, de uma vez por todas, reduzir o homem a objeto, desta vez com o formato de máquina. Não
por acaso, a noção de tempo, até então associada à natureza, passa a apresentar na era
moderna um ritmo extremamente rigoroso, sendo materializado no aparelho que mensura o
tempo e espaço, o relógio. Além deste, inúmeras invenções como termômetros, réguas de
cálculo, entre outros, carregam o significado do mecanicismo, e o trabalho passa a ser regido
enquanto movimento disciplinado e altamente controlado.
Santos (2001), contudo, aponta as consequências futuras da ciência moderna quando
cita a exploração excessiva e despreocupada dos recursos naturais, sucedida à promessa de
dominação da natureza e do seu uso em benefício comum. Ou, ainda, quando traz à tona
questões mais recentes como a catástrofe ecológica, a ameaça nuclear, a destruição da camada
de ozônio, a emergência da biotecnologia, da engenharia genética, que contribuiu para
converter o corpo humano em mercadoria última.

A promessa de uma paz perpétua, baseada no comércio, na


racionalização científica dos processos de decisão e das instituições,
levou ao desenvolvimento tecnológico da guerra e ao aumento sem
precedentes de seu poder destrutivo. A promessa de uma sociedade
mais justa e livre, assente na criação da riqueza tornada possível pela
conversão da ciência em força produtiva, conduziu a espoliação do
chamado Terceiro Mundo e a um abismo cada vez maior entre Norte
e o Sul (SANTOS, 2001, p. 56).

O próprio avanço da ciência moderna permitiu o olhar para seus limites e carências, e
aquela promessa de tornar o homem feliz trouxe, na verdade, a sensação enfadonha do
desassossego, do mal estar. (FREUD, 1997). Isso leva a uma crise da ciência moderna que
ocasionou profundos abalos na estrutura que sustenta seu discurso.

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Utilizando, ainda, o conceito construído por Boaventura Souza Santos (1988, 2000,
2001) acerca do fracasso da ciência moderna, refletiremos sobre o nascimento de um novo
paradigma, a chamada ciência contemporânea e o paradigma emergente.
Para este autor, a revolução científica ocorre no seio da sociedade e, portanto, o
paradigma que dela emergir não pode ser apenas um paradigma científico, tem de ser um
paradigma social (SANTOS, 1988).
Desta forma, este paradigma emergente suscita quatro importantes características
(SANTOS, 1988): a primeira é a de que todo conhecimento científico-natural é científico-social;
a segunda traz a ideia de que todo o conhecimento é local e total; a terceira, por sua vez, aponta
que todo conhecimento é autoconhecimento; e a última característica é a de que todo
conhecimento científico visa constituir-se num novo senso comum.
A partir da primeira característica, Santos (1988) afirma que as ciências sociais dão
sentido ao novo paradigma, introduzindo conceitos que se contrapõem à ciência moderna,
como historicidade e autonomia.
Tais conceitos tendem a dar novo valor aos estudos humanísticos que, por
consequência, “ao contrário das humanidades tradicionais, coloca o que hoje designamos por
natureza no centro da pessoa. Não há natureza humana porque toda natureza é humana”
(SANTOS, 1988, p. 63).
Em relação à segunda característica, pode-se dizer que completa a primeira, uma vez
que é por meio das inter-relações e interações humanas ocorridas em pequenos territórios que
o conhecimento tende a emergir. Assim, o conhecimento é total e também local, pois se compõe
de tópicos que são adotados por grupos sociais concretos, como projetos de vida locais, que
tenham por finalidade reconstituir a história de um lugar ou, talvez, fazer baixar a taxa de
mortalidade infantil etc. (SANTOS, 1988).
Buscar o conhecimento total nos permite reconstruir disciplinas em uma perspectiva de
superação, estabelecendo um diálogo transdisciplinar. “Sendo local, o conhecimento pós-
moderno é também total porque reconstitui os projetos cognitivos locais, salientando-lhes a sua
exemplaridade, e por essa via transforma-os em pensamento total ilustrado” (SANTOS, 1988, p.
66).
A terceira característica apontada pelo autor – todo conhecimento é autoconhecimento
– admite que há influência do sujeito na produção de seu próprio conhecimento, do pesquisador
no trabalho referente ao objeto pesquisado. Desta forma, o conhecimento adota um caráter
histórico, autobiográfico e autorreferenciável, no qual “o objeto é a continuação do sujeito por
outros meios” (SANTOS, 1988, p. 67).

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E, por fim, a quarta e última característica – todo conhecimento científico visa
constituir-se num novo senso comum – converge em ações que alteram a vida dos cidadãos
comuns, pela associação da ciência ao senso comum. Este mesmo senso comum que, para a
ciência moderna, era entendido como superficial, tendencioso e distante da verdade. O
paradigma emergente sustenta a ideia de dialogar com outras formas de conhecimento, sendo
a mais respeitável delas o senso comum, aquele conhecimento prático e, por vezes, subjugado,
que orienta as ações do cotidiano e dá sentido à vida. De acordo com o mesmo autor, a relação
do conhecimento científico com o senso comum pode enobrecer a relação do ser humano com
o mundo, inclusive, a tecnologia pode e deve ser traduzida em sabedoria de vida (SANTOS,
1988). Esse mesmo autor propõe, ainda, uma ruptura epistemológica, que tem a intenção de
“romper com o senso comum conservador, mistificado e mistificador, não para criar uma forma
autônoma e isolada de conhecimento superior, mas para transformar a si mesmo num senso
comum novo e emancipatório” (SANTOS, 2001, p. 107).
Diante deste panorama, portanto, percebe-se que o processo de fazer ciência passou
por transformações paradigmáticas intensas, e isso muito bem nos apontou Santos (2000), ao
afirmar que a ciência da contemporaneidade atravessa um momento em que se despe do poder,
da verdade absoluta, para partilhar, com o senso comum e outros saberes populares, suas
práticas e aprendizados a fim de produzirem, juntos, conhecimentos que tenham aplicabilidade.
A partir deste embasamento, orientados por uma discussão científica como esta que
trazemos neste texto, é interessante observar que a questão do trabalho deve ser compreendida
nestes termos, por meio dos seus significados, das pessoas que o envolvem, dos conhecimentos
produzidos a partir de suas várias dimensões, compartilhando saberes que não são
desconectados.

O significado do trabalho a partir do olhar da história

O Trabalho, como objeto de estudo de várias ciências, em especial da Psicologia,


também passou por denso processo de mudança que permitiu diferentes e novos olhares.
A começar pela origem da palavra “trabalho”, que adveio do latim medieval tripalium e
que caracterizava um instrumento de tortura, exposto como um artefato composto de três paus
aguçados, algumas vezes ainda munidos com pontas de ferro, que eram cravadas no solo,
convergindo para um vértice no alto, onde se atavam os infelizes a serem castigados ou mortos.
A relação com o sofrimento começa a fazer sentido quando se leva em conta que, no momento
histórico em que a palavra surgiu, o trabalho era uma atividade indigna, reservada a subalternos,
de preferência servos ou escravos (SAMPAIO, 1998).

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Com o advento da Revolução Industrial, no século XVIII, as cidades passaram a ser
grandes centros concentradores de indústrias e de operários, levando muitas pessoas a
deixarem o campo em busca de novas oportunidades. Nesse contexto, o trabalho do homem
mudou radicalmente com a concentração em fábricas, o que reformulou a concepção do
trabalho até aquele momento representado pelas necessidades humanas de sobrevivência. A
mudança ocorreu, inclusive, na estrutura comercial e social da época, sendo esta representada
por uma nova relação: o proprietário, dono do capital, bens e recursos, e o trabalhador, detentor
de um único bem, o trabalho, caracterizando uma relação que “se costuma chamar de
dominação” (GUARESCHI, 1999, p.143).
Por conseguinte, surgiu o modelo de produção em massa que revolucionou a indústria
automobilística, o Fordismo, que utilizava à risca os princípios de padronização e simplificação
de Taylor, desenvolvendo outras técnicas avançadas para a época. Uma das principais
características do Fordismo foi o aperfeiçoamento da linha de montagem. Os veículos eram
montados em esteiras rolantes que se movimentavam enquanto o operário ficava praticamente
parado, realizando uma pequena etapa da produção (DRUCKER, 1999).
A preocupação em aumentar a eficiência das empresas tornou-se tão grande que o
método utilizado era a racionalização do trabalho operário, ou seja, exigia-se que os
trabalhadores se comportassem essencialmente como partes das máquinas. Além desse
comportamento mecânico, as tarefas eram altamente fragmentadas, tirando do trabalhador
toda e qualquer necessidade de usar o cérebro e os afetos. Dessa forma, é possível entender o
termo “mão de obra” que identifica o ser humano apenas como uma parte, não considerando o
seu todo, aquilo que é intrínseco.
Ao avançar alguns capítulos da história, chegamos à segunda metade do século XX,
caracterizada pela crescente globalização, que acarretou mudanças intensas nas relações de
trabalho, e cujo aumento significativo da produção, aliado ao desenvolvimento de tecnologias,
culminou num cenário de desemprego massivo, ou seja, nas palavras de Guareschi (1999),
passou-se de uma relação de dominação para uma “relação de exclusão”, na qual o trabalhador
é meramente excluído do trabalho. Houve grandes transformações no formato estrutural com
o qual o trabalho vinha se apresentando. Rifkin (1996) escancara esta nova era ao escrever O
fim do emprego, destacando a crise do emprego, decorrente da diminuição substancial deste
tipo de trabalho, e anunciando novas formas de conceber o trabalho.
O poder privado e as complexas organizações possuem um único e perverso objetivo: o
lucro. Não é mais garantido ao trabalhador o emprego de antigamente, trazendo como
consequência o trabalho informal, “bicos”, empregos temporários, trabalho ilegal.

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A nova ordem mundial é a precariedade e a incerteza, acompanhadas pela nova lógica
do mercado, que transformou expressivamente o sentido do trabalho.
Na sociedade, agora chamada “sociedade pós-industrial”, o auge do sistema capitalista
acarretou consequências devastadoras: um mercado de excedentes, a fartura de objetos que
prometem satisfazer todos os desejos, o consumo desenfreado e generalizado de uma “maioria
silenciosa” (BAUDRILLARD, 1985).
E o homem, o trabalhador, o sujeito? Esclarecemos que, ao utilizar o termo “sujeito”,
definido por Dejours (2008), estamos falando daquele que vivencia a situação em questão de
forma afetiva, ou seja, sob a forma de uma emoção ou de um pensamento que não é apenas
um conteúdo de pensamento, mas, especialmente, um estado do corpo. A afetividade é,
portanto, o modo pelo qual o próprio corpo vivencia seu contato com o mundo.
O que se percebe no contemporâneo é o que nos apontou Enriquez (2006), em seu
artigo “O homem do século XXI: sujeito autônomo ou indivíduo descartável” – a violência por
excesso.
Trata-se de uma violência que, segundo o autor, não é a violência fundadora do direito,
nem a violência necessária às relações humanas, mas uma violência que visa suprimir o sujeito
e, mais ainda, sua subjetividade, “fazendo com que nada na vida tenha sentido” (ENRIQUEZ,
2006, p. 2).
Essa constatação se contrapõe ao discurso sobre a emancipação e o progresso humano,
dos séculos XIX e XX, de que o homem poderia e deveria tornar-se um sujeito autônomo, sujeito
histórico, sujeito de direito, sujeito psíquico e sujeito moral, sendo, desta forma, sujeito de suas
próprias ações (ENRIQUEZ, 2006).
Para o autor, o nascimento do sujeito psíquico se deve à psicanálise e, portanto, é mais
recente. À luz desta abordagem,

ser reconhecido como sujeito psíquico, é ser respeitado em seu fórum


interior, no seu trabalho de pensamento, na sua atividade de
sublimação, ser protegido das ‘mortes psíquicas’, realizadas pelos
adversários que são, às vezes, os pais, e aparecer como ‘o mais
insubstituível dos seres’, dando às imagens de intimidade todo o seu
vigor. Reconhecer-se como sujeito psíquico é, por outro lado,
aprender a se defender da fantasia da dominação total (o famoso
‘mestre e dono da natureza’) e se perceber como um indivíduo clivado,
submetido à perda, à falta, ao trabalho de luto e ao sofrimento, dívidas
a pagar para poder realizar, pelo menos em parte, o programa do
princípio do prazer. O sujeito psíquico é, assim, um ser que reconhece
as suas contradições e os seus conflitos, sabendo que não é totalmente
senhor de sua própria casa pelo fato de existir o inconsciente,
submetido à vacilação e ao medo do despedaçamento, mas capaz de

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fazer de suas falhas o trampolim para chegar à posição de sujeito
humano e de sujeito social, estando ambos intimamente ligados [...]
(ENRIQUEZ, 2006, p. 4).

Seria desta maneira que o homem estaria a caminho de sua autonomia, capaz de ditar
suas próprias regras, conduzir sua própria vida e ter uma visão otimista do futuro.
Infelizmente, não é o que parece.
Na busca intensa pelo capital, são utilizadas algumas artimanhas que envolvem os
trabalhadores em verdadeiras arapucas.
A precarização do trabalho e a ameaça de perdê-lo têm sido estratégias infalíveis que
fazem dos trabalhadores instrumentos do gozo do outro, trazendo como consequência a
dissolução do vínculo social, o enfraquecimento dos movimentos sociais, a competição
exacerbada (ENRIQUEZ, 2006).
Além disso, surge um estilo de ação perverso, no qual as organizações “hipermodernas”
(PAGÈS et al., 2006; ENRIQUEZ, 2006), consideradas como organizações-mães ou “instituições
divinas” (ENRIQUEZ, 2006, p. 5) exigem a identificação (ou melhor, a internalização) dos valores
organizacionais em detrimento dos valores pessoais, tornando o indivíduo um instrumento
dócil, submisso e, sobretudo, fazendo-o acreditar que ele é o único responsável por seu sucesso
e pelo sucesso da organização; portanto, se esta fracassa, é ao indivíduo que é atribuída a
responsabilidade. É a chamada “psicologização dos problemas”, segundo Enriquez (2006, p. 6).
Mais ainda, emaranhados nesta teia social, os indivíduos são obrigados a dar um
caminho um tanto tortuoso à sua própria agressividade, como nos elucida Freud (1997) em sua
obra O Mal-Estar na Civilização. A agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na verdade,
enviada de volta para o lugar de onde proveio, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é
assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que
então, sob a forma de consciência, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma
agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele
estranhos. E porque os indivíduos reagem desta forma diante da agressividade que, segundo
Freud (1997), é um processo que está a serviço da vida, uma vez que protege o indivíduo de
possíveis ataques externos a ele? O motivo é o sentimento inconsciente de culpabilidade, ou
seja, a tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é chamada de
sentimento de culpa, expressando-se como uma necessidade de punição. A civilização,
portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o,
desarmando-o e impedindo-o de se proteger.
O sofrimento, assim, permanece rejeitado do foro íntimo do indivíduo, não sendo
percebido como resultante da perversa organização do trabalho da atualidade, que exclui

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muitos homens ou sobrecarrega muitos outros, precarizando ainda mais o já empobrecido
trabalhador da contemporaneidade (DEJOURS, 2001 apud CANIATO et al, 2010).
Haverá luz no fim do túnel? Terá o trabalho perdido sua função de construtor de
identidade e gerador de significados que transcendam à ação?
O que é possível ainda ser feito para reconstruir e dar novo significado ao trabalho, de
forma que o homem consiga reconhecer-se e ser reconhecido por meio do trabalho que
desempenha?

O trabalho e a construção de novos significados

Ao pensar em alternativas e saídas para este cenário tão devastador em que o


trabalhador está inserido, percebe-se a necessidade de refletir sobre os significados do
“trabalho” construídos socialmente e, assim, a possibilidade de repensá-los, reconstruí-los,
ressignificá-los.
No início deste texto, fizemos um panorama da revolução científica e enfatizamos que
hoje, o indispensável é uma ciência que dialogue com outras práticas de saber, que problematize
conceitos para promover novos conhecimentos. É uma quebra de paradigma, ou melhor, uma
profunda transformação paradigmática epistemológica.
Parece ser este o caminho: dialogar com outras áreas de conhecimento, analisar
conceitos, refletir sobre os significados existentes, questioná-los e produzir novas formas de
pensar.
Assim, como sugere Yasui (2010, p. 77),

trata-se não apenas de um novo olhar para o mesmo objeto, mas de


uma ruptura epistemológica que descortina um campo complexo de
dimensões do real e nos instiga a produzir conhecimento sobre as
relações possíveis de serem feitas, construídas, tecidas.

Alguns exemplos da Psicologia nos mostram que é possível e, mais ainda, necessário
analisar o contexto social - histórico - cultural em que se vive e refletir sobre implicações e
consequências, repensar novas perspectivas e provocar debates.
É a partir de O Mal-Estar na Civilização que Freud (1997) apresenta uma visão repensada
da psicanálise, não mais como ciência que carrega a possibilidade de cura de todos os males (até
porque a promessa de felicidade anunciada pela racionalidade científica não se efetivou), mas
como uma ciência que apresenta a possibilidade de analisar e reger os conflitos.

16
Dejours (1986, 1994, 2003, 2007), por sua vez, reformula a teoria sobre a qual ele se
debruçava, a Psicopatologia do Trabalho, que tinha como objetivo diagnosticar, entender e
descrever as síndromes e neuroses psíquicas diretamente relacionadas à condição de trabalho,
cujo objetivo passou a ser o de compreender como o trabalhador consegue lutar pela sua saúde
e permanecer saudável (administrar seu sofrimento, elaborando táticas defensivas) mesmo em
situações de trabalho consideradas desestabilizadoras. O enigma passou a ser a normalidade,
dando lugar à Psicodinâmica do Trabalho. E como esta reflexão veio à tona? Questionando-se:
“Como os trabalhadores, em sua maioria, conseguem, apesar dos constrangimentos da situação
do trabalho, preservar um equilíbrio psíquico e manter-se na normalidade?” (DEJOURS, 2007, p.
152). A partir deste questionamento, chegou-se ao ponto de realizar uma reviravolta
epistemológica, que conduziu a investigação acerca do trabalho para um novo direcionamento.
É importante advertir que esta nova forma de pensar colocou em questão o próprio
conceito de saúde proposto pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo a OMS, saúde
é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, que não consiste somente da
ausência de uma doença ou enfermidade. A partir desta concepção, Dejours (1986, 2003)
aponta que a saúde é dinâmica, modifica-se constantemente e, portanto, é conquistada:

A saúde não é algo que vem do exterior [...] não é assunto dos outros,
não é assunto de uma instância, de uma instituição, não sendo
também assunto do Estado ou dos médicos... a saúde é uma coisa que
se ganha, que se enfrenta e de que se depende. É algo onde o papel
de cada indivíduo, de cada pessoa é fundamental (DEJOURS, 2003, p.
11).

Repensar os tantos significados a respeito do trabalho faz-nos retomar as quatro


características construídas por Santos (1988, 2000, 2001) acerca do paradigma emergente.
Se todo conhecimento científico-natural é científico-social (primeira característica), não
podemos compreender o homem que trabalha sob o olhar da racionalidade científica, que opera
a partir da simplificação ou da divisão em categorias para buscar a resposta. Podemos, no
entanto, compreendê-lo a partir de um olhar do todo: do contexto, da historicidade, dos afetos,
promovendo uma ruptura epistemológica que coloca o ser humano, e não os sintomas, no
centro do processo.
Além disso, este mesmo ser humano deve ser olhado a partir de seu território, do lugar
onde desempenha seu trabalho, local este construído não apenas por paredes e recursos
materiais e/ou tecnológicos, mas, principalmente, por cultura, símbolos, valores,
intersubjetividades. Assim, todo conhecimento é local e total (segunda característica).

17
Alegar que todo conhecimento é autoconhecimento (terceira característica), assinala-o
como um conhecimento próximo, mais que isto, íntimo, familiar, que une sujeito e objeto,
considerando que aquele que observa está inteiramente implicado no processo. Neste sentido,
pensar o sujeito que trabalha, numa relação de conhecimento tão íntima, é deparar-se com seus
invernos existenciais, suas limitações e sofrimentos, reconhecendo-o como sujeito psíquico, tal
como definiu Enriquez (2006): um indivíduo clivado, submetido à perda, à falta, ao luto, tendo
que se haver com seus conflitos e contradições, e, sobretudo, um indivíduo que, para existir,
teve que experimentar o desamparo.
Considerando o desamparo como um estado inicial do ser humano, Freud (1996), em
seu texto O Futuro de uma ilusão, retrata que a necessidade das pessoas de se apoiarem em
instituições divinas, como, por exemplo, as entidades religiosas, dá-se, justamente, para
amenizar o sentimento de desamparo.
Citando novamente O Mal-Estar na Civilização, Freud (1997) proclama a difícil condição
do homem moderno que agora se encontra num mundo sem Deus, corroborando que todos os
investimentos na ciência e os avanços da tecnologia não cumpriram a missão de trazer felicidade
às pessoas. O pai protetor se desfaz e resta ao sujeito a possibilidade do desamparo. Desta
forma, o desamparo está relacionado à renúncia pulsional para assegurar um lugar na
sociedade, sendo o mal estar resultante de uma vida de conforto e segurança na civilização.
Compreender, portanto, este sujeito fadado ao desamparo é compreender um sujeito
dependente do outro, que se constitui em sua relação com outros sujeitos; mas também um ser
que deseja, que busca seu próprio caminho e que é capaz de produzir ciência.
Na sociedade contemporânea, no entanto, existe espaço para fragilidades?
Sabemos que, no momento atual em que vivemos, ambiciona-se a perfeição, privilegia-
se o belo, ostenta-se o luxo, recusa-se a finitude da vida, buscam-se satisfações a todo custo. E
não se ajustar a este modelo impecável é não ser aceito nesta sociedade. E é por isso que é tão
dolorido ao homem assumir seu desamparo.
A partir deste novo padrão imposto pelo coletivo, é possível entender como nascem
acusações severas ao homem trabalhador: se este está doente e não comparece ao trabalho,
não seria uma desculpa de sua preguiça e incompetência? Mesmo se a doença foi adquirida
pelas condições do ambiente de trabalho, não é permitido senti-la e desapontar a organização-
mãe.
Acepções deste tipo não estão escritas em livros ou em manuais de conduta da nova
sociedade, mas no imaginário das pessoas que vivem a dor e a frustração de serem rejeitadas,
descartadas; ou, ainda, que escondem sua condição de fraqueza por medo das consequências
em sua vida profissional e pessoal, sentindo-se culpadas e envergonhadas por não se adequarem

18
ao grupo de seres humanos perfeitos. Este é o exemplo da força do senso comum, segundo o
qual todo o conhecimento visa a constituir-se em senso comum (quarta característica). Essa
força deve ser transformada num senso comum novo e emancipatório, nas palavras de Santos
(2001), agindo no dia a dia das pessoas e operando transformações que produzam mudanças na
cultura popular em prol da vida e do acolhimento de si mesmo. Principalmente porque o que se
tem percebido é que o mal estar permanece e a sensação de desamparo tão incômoda resiste,
e vai resistir sempre.

Considerações finais – o que é possível construir?

Em uma nota de rodapé do comentado texto de Freud, O Mal-Estar na Civilização, é


retratada, de forma privilegiada, a relação do homem com o trabalho:

Não é possível, dentro dos limites de um levantamento sucinto,


examinar adequadamente a significação do trabalho para a economia
da libido. Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o
indivíduo tão firmemente à realidade quanto à ênfase concedida ao
trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa
parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa
técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes
libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o
trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele
vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em
segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à
preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade
profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente
escolhida, isto é, por meio de sublimação, tornar possível o uso de
inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou
constitucionalmente reforçados (FREUD, 1997, p. 29).

Estas palavras, ainda atuais, provam que o trabalho não perdeu sua principal definição:
o de ser fonte de significados na constituição da essência humana.
O trabalho é uma atividade fundamental na própria construção do sujeito, envolvendo
todas as suas dimensões: a física, a social, a psíquica. É o lugar do investimento subjetivo e é
também um espaço de edificação do sentido e, por conseguinte, de conquista da identidade, da
continuidade e da historicização do sujeito (ENRIQUEZ, 1999).
Resgatar este sentido é uma emergência social, é quase uma questão de sobrevivência
e, apesar da “visão trágica da vida”, como já apresentamos aqui, assegura-se que há saídas.

O indivíduo começa a perceber que não é apenas à base de


estimulantes que ele pode encontrar saídas, que não é somente

19
adotando todas as próteses possíveis que ele pode se adaptar, mas
que é principalmente se interrogando sobre as suas capacidades, seus
limites, sua mortalidade, individualmente e com os demais. O
indivíduo então se confessa capaz de um trabalho de luto, de um
trabalho de interrogação, que pode levá-lo a analisar-se, a trabalhar o
seu ‘fórum interior’, não para fazer análise pela análise, mas para
tentar saber por que faz tal coisa e que sentido lhe atribui. É dizer que
retorna de maneira fundamental a algo que estava em vias de
desaparecer: a questão do sentido. Os seres humanos são seres em
busca de sentido. É a definição fundamental de ser humano e ser
social. De outro modo, seríamos apenas animais totalmente
programados (ENRIQUEZ, 2006, p. 11).

E não há por que fazer este esforço sozinho. O ser humano precisa retomar o convívio
com os seus, reencontrar a alegria em estar junto e reconstruir o “tecido social”.

Os sujeitos se dão cada vez mais conta da identidade dos problemas


com os quais se defrontam. São capazes de começar a se interrogar. É
necessário que haja pessoas que possam ajudá-los a analisar o que
estão fazendo, a fim de que possam pensar novos projetos, construir
novas instituições, transgredir as regras que não valem nada e guardar
aquelas que valem algo, retomar o que haviam esquecido, fazer
experimentação social e, talvez, um dia formar um novo paradigma
social e humano. Esse paradigma implicaria ter-se maior consideração
pelos outros (ENRIQUEZ, 2006, p. 11).

Assim, ao encararmos o trabalhador como ator social, sujeito protagonista de seu


trabalho, percebemos que, ao viver o sofrimento, este sente e sofre sozinho; porém, tal
sofrimento não tem origem individual, é constituído no meio em que este sujeito está inserido,
nas relações sociais que são estabelecidas, na sua historicidade, nas intersubjetividades
formadas.
Neste contexto, cabe igualmente pensar o papel da Psicologia e do ser Psicólogo que,
muitas vezes, se infiltra em organizações “hipermodernas” (PAGÈS et al., 2006; ENRIQUEZ, 2006)
e acaba produzindo e reproduzindo ações reducionistas, fechado em uma pequena sala, onde
apenas se envolve no controle de frequência dos trabalhadores e na folha de pagamento.
Este profissional também necessita resgatar o sentido de sua atuação, precisa pensar
em novos rumos que, com suas habilidades e seu saber, podem contribuir com a construção de
alternativas, para além das paredes das empresas, de modo a ajudar o trabalhador a questionar-
se e reedificar significados, pesquisando, procurando compreender e alcançar meios eficazes de
intervenção e enfrentamento contra o sofrimento psíquico nas organizações e, assim, buscar,
coletivamente, ações que desconstruam a atual realidade.

20
Deste modo, cabe à Psicologia se posicionar de forma reflexiva, crítica, e quebrar
paradigmas, pensar e repensar novas formas de agir e refletir o trabalho mediante o impacto
produzido na subjetividade do trabalhador, contribuindo para o nascimento de um novo saber,
não um saber qualquer que possa vir a se tornar meramente um discurso institucionalizado; mas
um saber como nos define Chauí (2006, p. 17): “Só há saber quando a reflexão aceita o risco da
indeterminação que a faz nascer, quando aceita o risco de não contar com garantias prévias e
exteriores à própria experiência e à própria reflexão que a trabalha”.
No decorrer destes escritos, foi possível fazer uma breve explanação a respeito de
algumas das características do que chamamos de ruptura paradigmática.
E, a partir deste olhar, tivemos a pretensão de pensar o trabalho, sustentado pela sua
historicidade, trazendo como principal enfoque o sujeito que trabalha, buscando compreender
sua subjetividade por meio da construção dos significados do trabalho em sua existência.
Assim, entendemos que estamos num momento de mudanças e rupturas, de
desconstruir para reconstruir e, portanto, devemos adotar uma postura ativa e aberta que
permita o diálogo com diferentes saberes, cujo principal alvo seja promover a sincera autonomia
do sujeito, respeitando-o em sua singularidade.

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21
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22
YASUI, S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2010.

23
Capítulo 2

O Núcleo de Oficinas e Trabalho e sua contextualização na história do trabalho na


psiquiatria

Ariana Campana Rodrigues


Silvio Yasui

1 O trabalho na constituição da civilização ocidental

Sendo uma das principais marcas da produção humana, o trabalho ocupa um lugar
crucial na vida do homem desde tempos imemoriais. Nesse texto, estudo o trabalho sob a ótica
de atividade transformadora do mundo e também do próprio homem, ou seja, da ação humana
que transforma a natureza em prol da sobrevivência, do desfrute, e que subjetiva a existência.

Nos primórdios da história da humanidade, com a descoberta da possibilidade da


manipulação do fogo e da confecção de instrumentos que facilitariam a caça e a pesca, o ser
humano deu início a uma relação com a natureza profundamente marcada pela exploração e
por sua transformação. Essa relação só aconteceu graças a uma força de trabalho despendida
que se aprimorou com o passar dos tempos até os dias atuais.

Os agrupamentos nômades que se deslocavam constantemente em busca de alimentos


para fugirem de intempéries e para se defenderem de outros animais, deram origem às
primeiras civilizações quando se fixaram em determinados territórios. Permanecer em um lugar
específico foi possível devido ao desenvolvimento e aprimoramento de técnicas diversas de
cultivo da terra e criação de animais. Já não era mais necessário transitar em busca de alimentos.
A continuidade de determinada população em certa localidade geográfica, geralmente nos vales
dos grandes rios como no Egito, na Índia, na China e na Mesopotâmia, dependia muito mais de
uma adequação feita pelo homem dos ciclos do plantio ao ambiente do que de condições
climáticas e de procura de víveres. Isso possibilitou a produção de outra cultura que não
somente a de peregrinos, pois o homem já manipulava e abstraía da natureza o necessário para
sua subsistência de modo mais elaborado do que seus antepassados.

Se nesse momento o trabalho provinha principalmente da lavoura, posteriormente o


homem desenvolveu a capacidade de produzir artesanalmente os objetos mais variados, desde
utensílios e vestimentas até as construções de grandes monumentos.

24
No decorrer dos milênios, essas civilizações se expandiram e habitaram o planeta,
produzindo culturas e tradições que originaram a humanidade na atualidade, na qual o trabalho
como ato de produção humana tem importância vital. Com a lapidação de suas capacidades de
trabalho, entre outros elementos culturais, o homem pôde se constituir como ser social tal como
o concebemos hoje.

Na Grécia Antiga, o trabalho era próprio dos escravos, ou seja, daqueles que viviam por
distintivos inerentes à necessidade. E, para essa civilização, a necessidade era contrária à noção
de cidadania. Não se negava que o cidadão tivesse necessidades humanas, mas a ele não era
permitido trabalhar para suprir tais necessidades. O trabalho só era digno ao cidadão grego se
fosse relacionado diretamente à condição de liberdade. Nesse sentido, o estatuto de humano
era inerente ao homem livre, bem como o do trabalho era emblema inseparável da escravidão.

No mundo de Homero, Páris e Ulisses ajudam na construção de suas


casas, a própria Nusicaa lava as roupas dos irmãos, etc. Tudo isto faz
parte da auto-suficiência do herói homérico, de sua independência e
supremacia autônoma de sua pessoa. Nenhum trabalho é sórdido
quando significa maior independência; a mesma atividade pode ser
sinal de servilidade se o que estiver em jogo não for a independência
pessoal, e sim a mera sobrevivência, se não for a expressão de
soberania mas de sujeição à necessidade (ARENDT, 1985, p.93).

O que distinguia o escravo do homem livre não era o ato do trabalho em si, mas o sentido
que se dava a ele. Ao cidadão era vedado o ato do trabalho que atendesse às necessidades, e ao
escravo era atribuída a servilidade como condição de existência. Embora se admitisse que todos
os homens eram sujeitos às necessidades, não eram todos os que deveriam se sujeitar ao
trabalho para supri-las. Os homens livres conquistavam tal lugar social subjugando os escravos
à força para que estes trabalhassem em prol da sobrevivência de todos.

Para Aristóteles, artesãos e escravos não eram cidadãos, pois ambos tinham suas forças
de trabalho usadas essencialmente em virtude das necessidades de toda a população, além de
não possuírem a capacidade de deliberar e de decidir. Entretanto, quando um escravo era
alforriado, sua natureza se alterava, passando ele a poder ter artifícios de cidadão pela
capacidade de experimentar a liberdade. No entanto, mesmo nessas condições,

[...] estima-se que até 80 por cento da mão-de-obra livre,


trabalhadores e comerciantes consistiam em indivíduos que não eram
cidadãos: eram ‘estrangeiros’ [...] ou escravos emancipados que
haviam galgado essas posições (ARENDT, 1985, p. 92).

25
Transitando na história dos termos labor e trabalho, Hanna Arendt (1985) aponta que
ambos não eram usados como sinônimos, tal como o fazemos hoje:

Assim, a língua grega diferencia entre ponein e ergazesthai, o latim


entre laborare e facere ou fabricari, que têm a mesma raiz
etimológica; o francês entre travailler e ouvrer, o alemão entre
arbeiten e werken. Em todos estes casos, só os equivalentes de “labor”
têm conotação de dor e atribulação. O alemão Arbeit aplicava-se
originariamente ao trabalho agrícola executado por servos, e não ao
trabalho do artífice, que era chamado Werk. O francês travailler
substituiu a outra palavra mais antiga, labourer, e vem de tripalium,
que era uma espécie de tortura (ARENDT, 1985, p. 90).

Assim, a noção de trabalho e de trabalhador, conforme a conhecemos hoje, se


transformou de acordo com a região e no transcorrer da evolução histórica da humanidade. Dos
tempos da Grécia Antiga à Idade Média, podemos apontar um emaranhado de enunciações que
transitam do homem que necessita do trabalho como circunstância para sua sobrevivência ao
homem que trabalha em virtude de sua condição livre.

Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da


escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão-de-obra
barata nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a
tentativa de excluir o labor das condições da vida humana (ARENDT,
1985, p. 95).

No ocidente, à época da Idade Média, inicialmente o modelo dominante era o feudal,


no qual predominavam as produções agrícolas e o artesanato de origem familiar para o sustento
de seus membros. As sobras dessas produções eram destinadas ao escambo. A atuação da Igreja
Católica e a relevância dos dogmas cristãos dominavam na condição de instância ideológica e
civilizatória principais, mantendo sua importância na regulação social pela perpetuação de
acumulação de riquezas nas mãos de poucos e por gerações de pessoas que tinham no
nascimento a indicação de sua posição social: nascia-se servo, nobre, clero ou monarca. A
nobreza era proprietária das terras e dos servos que faziam parte diretamente delas. Assim,
quando um senhor vendia suas terras, os servos também eram vendidos. Estes pagavam tributos
àquele e prestavam serviços cultivando as plantações e criações de animais para, em troca,
terem uma mínima parte dessas produções para sua subsistência e para proteção militar.

26
Esse período marca o início do que seriam as relações de trocas entre o que se produzia
artesanalmente, aplicando uma força de trabalho diferenciada daquela que se aplicava nos
cultivos de alimentos e animais. Surgem os comerciantes, que em breve seriam denominados
historicamente de burgueses por fazerem os papéis de mediadores das trocas das produções.
Com os primórdios da comercialização, começaram a se organizar, no seio dos feudos, os
burgos, que inspiraram o que é a constituição civilizatória urbana na sociedade atual. Tais
espaços eram vilas onde vivia praticamente metade da população da Europa em meados do
século XIV.

Com a evolução no modo como se realizavam essas trocas, houve o início de um


movimento comercial mais fortalecido, quando a produção começou a ser direcionada não mais
primordialmente para a subsistência, mas principalmente para as permutas. Esse processo de
transição do sistema feudal para o capitalista potencializou o nascimento dos centros
predominantemente urbanos, com a transição dos burgos para as cidades, onde o mercado era
o centro em que se realizavam os encontros para as atividades comerciais.

Nessa transição, o espaço urbano era o lugar, por privilégio, onde aconteciam as
relações de troca e, consequentemente, de valorização do trabalho da nascente burguesia. O
poder declinava da centralidade dos senhores feudais e se transferia para os burgueses, que
detinham em si a semente para o fortalecimento e expansão do comércio e de um novo sistema
econômico. Apoiados pelas monarquias, a crescente burguesia ocupava espaços antes tomados
pelos senhores feudais, nobreza e clero, até o momento da Revolução Francesa. Eis o
nascimento do Estado Moderno.

A família se transformou densamente nessa transição dos sistemas. Houve um aumento


no número de filhos, pois cada novo membro representava uma mão-de-obra a mais na
economia familiar. O crescimento populacional proporcionou a expansão das cidades sem
planejamento algum. Esse aumento das cidades desencadeaou evoluções com tudo o que isso
pode implicar: aumento da produção de bens consumíveis, do comércio, maior número de
epidemias, mais mortes prematuras e a urgente necessidade de atuação do Estado em prol da
regulação de uma saúde que, posteriormente, veio a se chamar saúde pública, além da
regulação de um modo de trabalho que viabilizava a permanência e expansão desse novo modo
coletivo de organização.

2 O hospital e o trabalho na Idade Média

27
Dessa época datam os primeiros hospitais no ocidente, que tinham como principal
função não o tratamento, mas a contenção de epidemias pelo isolamento dos doentes. A
segregação em um único espaço físico de pessoas com agentes causadores de doenças
transmissíveis era primordial para a tentativa de não contaminação geral da população.

A lepra foi a doença que mais levou à internação na Idade Média, pois ela se alastrou
na população com incrível rapidez em virtude das movimentações promovidas pelas Cruzadas
da Igreja Católica. Além disso, as epidemias de peste bubônica, varíola, difteria e sarampo
também justificavam a disseminação das instituições hospitalares.

Estas instituições, em geral filantrópicas, ofertavam aos doentes cuidados paliativos e


quase sempre religiosos. Eram ocupadas principalmente pelo internamento de pessoas que não
conseguiam trabalhar e pelas que anteriormente habitavam as ruas das cidades.

Desaparecida a lepra, as estruturas dos leprosários abrigaram doentes de epidemias


de doenças venéreas. Após, vêm as epidemias de peste bubônica, varíola, difteria e sarampo,
adoecendo a população e inflando as instituições hospitalares. Os doentes eram internados
tanto para não contaminarem outras pessoas quanto porque não eram mais capazes de
trabalhar, fosse produzindo artesanalmente, fosse comercializando.

A internação pela incapacidade de trabalhar se estendeu também aos loucos, que


pertenciam a esse cenário hospitalar não por serem possíveis propagadores de doenças, mas
por serem considerados inaptos para aplicarem suas forças para fins de trabalho.

Nesta época, as funções dos hospitais eram a de dar assistência aos doentes pobres e
a de proporcionar um lugar para que eles morressem. Eram instituições dirigidas por leigos ou
religiosos que tinham como objetivo a salvação de si próprios pela ajuda caridosa oferecida.

O pobre como pobre tem necessidade de assistência e, como doente,


portador de doença e de possível contágio, é perigoso. Por estas
razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-lo, quanto
para proteger os outros do perigo que ele encarna. O personagem
ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar,
mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido
material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos
cuidados e o último sacramento (FOUCAULT, 1998, p. 101).

Esse morredouro de pobres e segregador de doentes, meliantes, loucos, prostitutas,


enfim, improdutivos em geral, abrigava as pessoas que foram diretamente das ruas ao hospital

28
com a justificativa de que eram necessitados, acima de tudo, de caridade e, em alguns casos, de
cuidado.

A medicina também não estava implicitamente relacionada à instituição hospitalar. A


prática médica era individualista e direcionada à crise ou à cura de sintomas com receitas
exclusivas. A atuação médica se limitava aos atendimentos nas casas dos doentes,
principalmente daqueles da nascente burguesia que podiam pagar por seus serviços. A
experiência hospitalar só pertenceu à formação médica no século XVIII, quando a medicina
começou a produzir a verdade sobre as doenças relacionada aos ideais burgueses, tentando se
adequar à proposta de curar doentes para que eles pudessem ter uma vida de trabalho
produtiva.

Em toda Europa, no século XVII, havia um conjunto social de medidas que impunha à
população a ordem do trabalho. Os desempregados e ociosos eram banidos das cidades ou
obrigados a trabalhar.

Em 1532, o parlamento de Paris decidiu mandar prender os mendigos


e obrigá-los a trabalhar nos esgotos da cidade, amarrados, dois a dois,
por correntes. [...]. Uma decisão do parlamento datada de 1606 decide
que os mendigos de Paris serão chicoteados em praça pública,
marcados nos ombros, a cabeça raspada e expulsos da cidade
(FOUCAULT, 1997, p. 64).

Isso aconteceu até a criação dos Hospitais Gerais. O Estado pela primeira vez custeou e
aprisionou num espaço público os que não trabalhavam, causando uma situação de detenção
em vez do afastamento da cidade. Tal modalidade de repressão representou uma utilidade
pública. Principalmente nos períodos de guerras e de crises econômicas, o internamento
desempenhou um papel social decisivo ao livrar parte dos desempregados da circulação social
e do policiamento. O internamento representava a assimilação dos ociosos ao mundo do
trabalho pela obrigatoriedade de desempenharem algum ofício produtivo no hospital, o que,
além de contribuir para a economia, também representava uma medida de preservação de
revoltas e agitações sociais.

No século XVII, as denominadas “Casas de Internamento” abrigavam todo tipo de


desordeiros: os desempregados, os loucos, os mendigos, entre outros desvalidos. A inauguração
do Hospital de Paris, em 1656, aponta para a necessidade de internação dos ociosos e dos
desempregados em geral.

29
É moralmente que se pode apreender o principal significado desta
instituição. O Grande Enclausuramento assinala uma ética de trabalho
em que este é moralmente concebido como o grande antídoto contra
a pobreza. Força moral, portanto, mais que força produtiva. Enfim,
politicamente ele significa a incorporação de um projeto moral a um
projeto político, a integração de uma exigência ética à lei civil e à
administração do Estado sob forma da correção da imoralidade
através da repressão física (MACHADO, 1981, p. 64).

Quando o país não estava em guerra e se encontrava em crescimento econômico, nos


períodos de prosperidade, os internos deveriam também trabalhar nos Hospitais, contribuindo
para a prosperidade geral. Eles representavam mão-de-obra de baixo custo.

Houve diversas tentativas de estabelecimento de manufaturas em hospitais franceses.


Na Inglaterra, os hospitais eram propositalmente construídos próximos às regiões com mais
indústrias para aproveitarem o trabalho dos internos. Em Hamburgo, na Alemanha, há um
decreto que anuncia que todos os internos dos hospitais devem trabalhar e ganhar a quarta
parte da produção. Os trabalhos nestas instituições são principalmente os de fiação, tecelagem,
fabricação de cordas, aplainamento de madeira, polimento de vidros ópticos, moenda de
farinha, fabricação de roupas e lonas e na agricultura (FOUCAULT, 1979).

Junto do pobre e do ocioso, o louco constituía a população de internos dos hospitais na


Renascença, onde era classificado como mais um dos tipos de sujeitos improdutivos por serem
incapacitados ao trabalho. Enquanto operacionalidade moral e em proveito da manutenção da
ordem social e econômica, ao louco também cabia a internação e o trabalho obrigatório no
hospital.

A loucura era atribuída a uma desordem da razão: não havia ainda a relação entre
loucura e doença presente no discurso moderno. Somente depois de quase dois séculos, a
loucura começa a ser olhada como desordem mental.

3 O trabalho e as Revoluções Francesa e Industrial

Ser sujeito em ato de trabalho parece ser um dos principais modos de subjetivação
humana desde o início da evolução do homem como ser social. Podemos localizar que um dos
elementos primordiais da constituição da sociedade, tal como ela hoje se apresenta, foi
produzido quando os homens começaram a se associar para garantir a sobrevivência. Desde a
antiguidade, essa associação foi progressivamente se sofisticando, conformando uma
estratificação social na Idade Média que delegava à maioria o status de trabalhador e a poucos

30
os status de clero, nobre e monarca. No ocidente, é com a marca da Revolução Francesa que se
determina o aparente e talvez ainda falacioso retraimento de fronteiras entre burgueses e
nobres.

Os burgueses, em tempos de Século das Luzes e denominados homens da razão, criaram


o jargão “liberdade, igualdade e fraternidade”, dando sustentação a uma mudança
paradigmática que se tornaria a marca do início da Era Moderna. Houve uma reviravolta nos
valores da época com a centralização social da burguesia em detrimento dos nobres, estes que
até então tinham um lugar social privilegiado sem ter relação direta com o trabalho.

Cabe salientar o que nem sempre os contadores da história nos revelam: as mulheres,
as crianças e os escravos não estavam contidos na referida revolução. Já os homens burgueses
detinham o que de mais valioso possuía um cidadão naquela época: a propriedade dos meios
de produção nas manufaturas e, em consequência disso, a exploração da força de trabalho de
quem não era proprietário. Assim, essa foi uma revolução feita por homens que tinham em suas
mãos não o ato do trabalho, mas a posse dos instrumentos que outros usavam para realizá-lo.

Outro movimento datado historicamente nos séculos XVIII e XIX – que contribui para
pensarmos a centralidade do mundo do trabalho na vida do homem na atualidade – foi a
Revolução Industrial, eclodida na Inglaterra e rapidamente espalhada pelo ocidente. Os
maquinários a vapor, carvão e petróleo gradativamente substituíram a agricultura e as
manufaturas artesanais. Profundas marcas desta revolução nos acompanham até hoje.
Destacamos o capitalismo firmado neste período, que ainda se institui como a ordem vigente.
Permanecem na atualidade as relações de trabalho que os proprietários das máquinas e os
empregados que as conduziam produziram neste período.

Os operários não tinham mais o saber sobre todo o processo produtivo de um produto,
pois trabalhavam operando máquinas que fabricavam parte desse produto para que
posteriormente ele fosse montado em sua totalidade por outros operários, o que tornou o
trabalho alienante do ponto de vista de apropriação pelo trabalhador do que se produzia. Tais
operários trabalhavam em condições precárias e degradantes para que sua sobrevivência fosse
mantida, enquanto os donos dos meios de produção enriqueciam com o lucro e aumentavam
sua quantidade de bens. O discurso social atual de que o trabalho adoece deve muito a como o
trabalho foi produzido e instaurado desde esta época.

O trabalho hoje ainda mantém um lugar de pilar de sustentação de muitas das relações
humanas. Mas, de que trabalho estamos falando? Do trabalho que emancipa, compreende
criações, que por meio do fazer propicia a novidade e a invenção de homens? Ou do trabalho

31
que reproduz a lógica do capital e da divisão social em classes, que é sem sentido, que gera
sofrimento, dor e adoecimento? O que o homem produz com e pelo trabalho? O que o trabalho
produz no homem? Mais ainda: para essa produção textual, pergunto-me: qual o lugar do louco
no mundo do trabalho na atualidade?

4 O surgimento da psiquiatria e o tratamento moral

O lugar social dedicado ao louco durante a passagem dos séculos no ocidente se alterou
conforme se modificava a sociedade.

Seu destino na Europa, durante a Idade Média, eram as fogueiras da Inquisição ou as


estranhas Naus dos Loucos: navios que carregavam de lugar em lugar os loucos escorraçados de
suas cidades. Estas naus continham não apenas pessoas, mas acima de tudo a esperança da
população de que eles não voltassem mais. Eram empreendimentos navais que levavam embora
aqueles que causavam tamanha estranheza e fascínio. Os moradores do lugar tinham a
referência de que esses loucos fantásticos apresentavam a eles próprios sua essência: a natureza
em seu estado mais bruto e hediondo. Era justamente por isso que confiavam às Naus que se
encarregassem de tirar das vistas da cidade aqueles que desnudavam aos moradores o que é o
humano. A esse respeito, o pintor da época Hieronymus Bosh imortalizou a cena na pintura Nave
dos Loucos.

Durante o transcorrer do tempo da Renascença, a Nau dos Loucos cede lugar aos
nascentes hospitais. Foi uma miúda transformação e de caráter ainda excludente: já não mais
mandavam embora os loucos; ficavam com eles, mas em lugares específicos e, ainda, longe da
cidade.

Conforme já citado, na Idade Média a criação dos primeiros hospitais foi pautada na
necessidade de estabelecimentos com características asilares para fazerem contenção às
epidemias de doenças, aos pobres e à loucura. Neste momento, o hospital ainda não era lugar
de tratamento das enfermidades, mas de limitação espacial de pessoas.

No Renascimento, o hospital perpetuou esta função, pois não era ainda um lugar
destinado a curar doentes, mas sim a afastá-los de qualquer contato com a cidade. Sua serventia
foi, inicialmente, a de limpeza das ruas das cidades europeias de toda pessoa que apresentasse
algum tipo de desvio da norma geral que estabelecia a necessidade irrestrita do trabalho ao
homem.

32
Do mesmo modo, também não era o hospital simplesmente um lugar de loucos, mas
especificamente de apartar loucos que não podiam ou conseguiam trabalhar. A insígnia trabalho
é o que designava se uma pessoa pertencia ou não aos que seriam enviados ao hospital.

Com o advento da intervenção médica na instituição hospitalar, o papel social do


hospital é alterado para o lugar que abriga os doentes que buscam a cura longe dos homens
saudáveis. Nesta época, designavam-se hospícios os hospitais que também recebiam, além de
doentes e pobres, os loucos. Do esforço pela diferenciação destes de outros enfermos de toda
ordem, nasceram os manicômios a partir do século XIX, que consistiam em estabelecimentos
destinados somente ao universo dos loucos. Alguns dos indicativos das concepções de saúde e
de doença que perpetuaram até a atualidade têm seu início aqui.

Foi no século XVIII que Samuel Tuke, na Inglaterra, e Phillipe Pinel, na França, iniciaram
as intervenções nos hospitais, separando os loucos dos demais internos. Tuke começou a
manifestar na Inglaterra um movimento de questionamento sobre as casas de internamento, e
Pinel a intervir no Hospital de Bicêtre, na França.

Tuke, que pertencia à seita religiosa e sociedade de amigos dos Quacres, inventou o
Retiro. Ela era uma casa que servia ao acolhimento dos amigos de tal sociedade que
eventualmente necessitassem de apoio em momentos de, como ele dizia, perda da razão. A
finalidade era proteger os sócios da internação em estabelecimentos clássicos destinados aos
loucos na Inglaterra do século XVIII. O Retiro era uma casa de campo onde os internos
permaneciam sem as usuais correntes.

O exercício ao ar livre, os passeios regulares, o trabalho no jardim e


na fazenda têm sempre um efeito benéfico [...]. Todos os poderes
imaginários da vida simples, da felicidade campestre e do retorno das
estações são aqui invocados para presidir à cura das loucuras. É que a
loucura, conforme as idéias do século XVIII, é uma doença não da
natureza, nem do próprio homem, mas da sociedade; emoções,
incertezas, agitação, alimentação artificial, todas estas são causas de
loucura admitidas por Tuke e seus contemporâneos (FOUCAULT, 1997,
p. 467. Grifo nosso).

Nota-se que está presente a preocupação com a inserção do trabalho na rotina como
“benéfico”. Data dessa época a concepção de que o mesmo trabalho que o homem seria incapaz
de realizar porque estava louco seria apropriado para recobrá-lo à razão caso fosse aplicado
como modalidade terapêutica. Essa era a lógica: o louco é incapaz de trabalhar numa sociedade

33
que o retirou do âmbito da razão e por tal motivo é necessitado de um ambiente propício para
que recobre sua razão pelo trabalho e seja capaz de trabalhar em sociedade novamente.

O trabalho vem em primeira linha no ‘tratamento moral’ tal como é


praticado no Retiro. Em si mesmo, o trabalho possui uma força de
coação superior a todas as formas de coerção física, uma vez que a
regularidade das horas, as exigências da atenção e a obrigação de
chegar a um resultado separam o doente de uma liberdade de espírito
que lhe seria funesta e o engajam num sistema de responsabilidade
(FOUCAULT, 1997, p. 480).

Em relação a esse período, quando eclodiu a Revolução Francesa em 1789, o século das
luzes viu nascer, entre outras ciências, a psiquiatria de Phillipe Pinel no hospital de Bicêtre, na
França. Ele inaugurou a ciência psiquiátrica neste estabelecimento literalmente com a quebra
das correntes que prendiam os loucos. Sua função era rever os internamentos por demência.

Um saber de tipo médico sobre a loucura que a considera como


doença mental e uma prática com a finalidade de curá-la por um
tratamento físico-moral só se constituem em determinado momento
da história. Transformação da loucura em doença, fenômeno
patológico, mas doença diferente, exigindo, por conseguinte, um tipo
específico de medicina para tratá-la, justamente a psiquiatria
(MACHADO, 1978, p. 375).

Com a publicação de Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental, em 1801, a


psiquiatria é inaugurada como especialidade médica por Pinel. Ele introduz não somente um
novo pensamento científico com a classificação dos sintomas e a psicopatologização dos
comportamentos; mais que isso, instaura na cultura uma transformação paradigmática que
indicava que os loucos eram acometidos por paixões desregradas e violentas, ocasionando os
mais diversos comportamentos mensuráveis, cada qual com sua indicação de tratamento moral.

Esse médico não acreditava na organicidade da loucura, apontando que não havia
substrato biológico de qualquer natureza que fosse sua causa. Ao contrário, enfatizava que a
loucura, como perda da razão, era produzida por eventos na vida da pessoa, sendo esta uma
enfermidade mental manifestada por alterações comportamentais.

[...] a loucura é entendida como comprometimento ou lesão


fundamental do intelecto e da vontade, e se manifesta no

34
comportamento do paciente, nos sintomas, sob as mais variadas
formas. Mas formas muito diferentes entre si podem ter em comum o
fato de refletirem um determinado tipo de lesão da vontade ou do
juízo. As propriedades que são comuns entre elas podem servir de
critério de classificação e de diagnóstico. Contudo, essa ordenação
requer longa e constante observação do comportamento de
numerosos pacientes. (Dessa exigência metodológica talvez derive o
apego de Pinel à instituição hospitalar como condição de acerto
diagnóstico) (PESSOTTI, 1995, p. 146).

O que Pinel introduziu foi o método clínico da observação dos loucos de maneira
sistemática, ordenada e metódica para a descrição dos comportamentos e a definição de
diagnósticos que podiam ser melancolia, mania, excitações, excessos alcoólicos, emoções
violentas, superexcitação, entre outros. Nascia, nesse momento histórico, a psicopatologia.

Nesse cenário de observação e classificação nosográfica, Pinel criou o tratamento moral


para cuidar dos loucos. Para Pinel, a loucura era uma possibilidade humana, capaz de incidir
sobre qualquer ser racional. Ao médico, aqui chamado de alienista, coube auxiliar o homem no
caminho de reencontrar a razão.

Essa foi a primeira vez na história que se admitiu haver algo que retornaria o homem à
razão perdida. O tratamento moral era feito de inserções de terapêuticas na recém inaugurada
instituição psiquiátrica. Havia um direcionamento do irracional a medidas interventivas que
incidiam sobre o que se chamava de doença moral e não sobre a saúde física. A intencionalidade
era conduzir à cura da loucura pelas receitas do médico alienista de acordo com sua
identificação a determinada teoria. O tratamento era dominador e doutrinário, sendo chamado
de moral justamente por incidir sobre o plano das ideias pelas correções dos excessos
passionais.

Este tratamento consistia em práticas de se dirigir ao louco de modo tolerante,


caloroso, intimidador, encorajador, autoritário, violento, entre outros, com evidentes
inspirações humanísticas da Revolução Francesa. Não se negava ao louco seu delírio. Ao
contrário, era a partir dele que se intervinha. Tais práticas eram denominadas pelos alienistas
como mais humanizadas no trato com a loucura. Por exemplo, pensava-se que a substituição
das correntes que os prendiam pelo uso da camisa-de-força era menos violenta.

Além disso, o tratamento era denominado moral por ser contrário ao imoral que o louco
apresenta. A essa terminologia de imoral se relacionavam os comportamentos julgados como
errados e vergonhosos pelas normas sociais da época, como os excessos das paixões, o
descontrole, a imprudência e outras condutas diretamente relacionadas à loucura.

35
Por que o tratamento eletivo se chama “moral”? A palavra moral
designa, segundo Pinel, um misto de fatores não-físicos, mas
psíquicos, sociais e situacionais e fatores éticos. É nesse território do
”moral” que as influências ambientais, as paixões da alma, os apetites
e a fantasia se entrelaçam. E como a influência ambiental moral é a
educação, Pinel entende que erros pedagógicos dos adultos, aos quais
são submetidas as crianças, são suficientes para produzir as alienações
mentais (PESSOTTI, 1996, p. 126).

O médico, autoridade moral e pedagógica, aplicava técnicas educativas para corrigir os


desvios do louco no plano das ideias. Os espaços eram disciplinadores e as atuações médicas
eram da ordem da franqueza, da bondade e da gentileza, empregando regras e indicando
condutas ideais. Pela experiência delirante, estabelecia-se uma conexão com o louco para,
posteriormente, corrigir o delírio por meio de intervenções de acordo com seu conteúdo. Por
exemplo, a um louco que acreditava não ter cabeça, dava-lhe um chapéu pesado para que
usasse até que se sentisse desencorajado de sua conduta delirante e admitisse ter cabeça.

A esse panorama de transformação da função hospitalar, soma-se o cenário de


valorização do homem racional e trabalhador em detrimento do nobre, pela primeira vez na
história ocidental. A ociosidade continua a ser veementemente condenada, tal como na
Renascença. A internação, além de continuar impedindo que os loucos transitassem pelas ruas
praticando a mendicância, agora também tem o atributo de tratamento.

5 A psiquiatria e o trabalho

Com a Revolução Francesa em 1789, a civilização ocidental inicia um período de alusão


à racionalidade como marcação necessária para se caracterizar o humano. O período marca em
seu bojo o nascimento da ciência psiquiátrica, entre tantos outros acontecimentos.

Décadas mais tarde, o trabalho foi tido na psiquiatria como recurso de tratamento. A
ciência psiquiátrica inaugurou uma prática engendrada em intenções de ocupação de tempo
ocioso pela produção de atividades. O tratamento moral preconizava que ocupar o tempo
ocioso também era um modo de reconduzir o desarrazoado à normalidade, além de inserir no
contexto do tratamento o trabalho ao qual o louco deveria se atrelar para ser curado.

Sendo a capacidade para o trabalho um dos principais distintivos de valor humanizador,


na época da atuação de Tuke e Pinel, e sendo os loucos tidos como inaptos ao trabalho, estes
deveriam, portanto, necessariamente ser tratados para que retornassem à razão e à capacidade

36
de trabalhar. Os loucos eram invalidados com a marca de improdutivos e só seriam considerados
novamente humanos se recobrassem a racionalidade e retornassem à competência para a
atividade do trabalho.

Eis a inovação da moderna ciência: os loucos, antes considerados malfadados, eram


passíveis de tratamento e de cura. O hospício não mais era configurado como o lugar de
segregação, asilamento ou abrigamento da loucura, assim como as instituições asilares do
período clássico, mas se apresentava como o lócus por privilégio de tratamento, e o trabalho
era um dos elementos terapêuticos.

As buscas por entendimentos e definições da loucura eram muitas. Para René Descartes,
ela era um estado definitivo e contrário à razão, ou seja, onde houvesse desrazão, não haveria
razão e vice-versa. O pensamento cartesiano conclui que, se o indivíduo é acometido pela
loucura, não há iluminação mental e, seguindo tal linha de raciocínio em tempos do século das
luzes, não há o homem. Nessa perspectiva, temos a loucura como distintivo desumanizador.

Já para Pinel, a loucura é uma possibilidade humana em qualquer época da vida; é uma
passagem ou mesmo um limbo no qual o homem pode vir a se encontrar; é um desequilíbrio da
razão ou dos afetos. Cabe, portanto, ao alienista, o dever de auxiliar o louco a retornar ao mundo
da ordem da racionalidade pelo tratamento moral. A política é a da filantropia e a filosofia é a
humanística, que tem como valor absoluto o homem livre e pensante.

Assim, da concepção de loucura de Pinel advém também a prerrogativa de que ela


demanda tratamento. Sendo tratado, o louco pode retornar à razão e, mais que isso, também
retornar ao mundo do trabalho burguês. Verifica-se então que a relação entre o trabalho e a
psiquiatria é antiga e envolve aspectos de posicionamentos culturais, sociais, políticos, éticos,
entre outros.

Há ainda outra experiência do uso do trabalho em instituições asilares que merece


sinalização: a atuação de Hermann Simon, na Alemanha da década de 20, fundando o
Tratamento Ativo. Esta proposta consistia na realização de alguma atividade, útil ou não,
durante todo o tempo, para que o interno do manicômio se tornasse responsável e ativo. Estava
nascendo a Terapia Ocupacional (PESSOTTI, 1996).

A Terapia Ocupacional, em sua vertente de cuidados em Saúde Mental, se consolidou


no Brasil vinculada ao tratamento moral.

No Brasil, o tratamento moral e a terapia pelo trabalho também foi


nomeada ergoterapia, praxiterapia e laborterapia. Esses conceitos

37
possuem similaridade e foram substituídos por Terapia Ocupacional
na medida em que o curso e a profissão foram criados no país na
segunda metade do século XX (SOARES, 2007, p.3).

Desde a fundação do Hospital Psiquiátrico Pedro II no Rio de Janeiro, o primeiro do Brasil


e da América Latina, a prática do trabalho como recurso terapêutico esteve presente. A
psiquiatra Nise da Silveira iniciou sua atuação profissional no Centro Psiquiátrico em Engenho
de Dentro, também no Rio de Janeiro, na década de 40, fundando a Seção de Terapêutica
Ocupacional com os pacientes, ao propor-lhes atividades que lhes rendessem ganhos
terapêuticos. Também nessa cidade, ainda na década de 1910, Juliano Moreira fundou uma ala
feminina de trabalho no hospital psiquiátrico em Engenho de Dentro, onde se usava o trabalho
com a terra com o intuito de ocupação do tempo das internas e com vistas ao tratamento
(PESSOTTI, 1996).

No Brasil, vingou a disseminação das colônias agrícolas, que consistiam em hospitais


construídos em fazendas distantes da cidade para proporcionar ao louco um lugar de trabalho
e dificultar sua fuga para a área urbana.

[...] a entusiástica adesão à política de construção de colônias agrícolas


não se deu apenas por exclusão das outras estratégias terapêuticas,
de eficiência duvidosa, mas também por ter encontrado ambiente
político e ideológico propício ao seu florescimento. As necessidades do
incipiente capitalismo brasileiro tinham nas concepções e atividade
em relação ao trabalho, prevalentes desde o tempo da colônia, um
sério obstáculo. Era preciso reverter ao ‘normal’ a tradicional moleza
do brasileiro, atitude, já se viu, histórica e sociologicamente
determinada, mas elevada pelos alienistas à categoria de característica
da índole de certos grupos sociais e étnicos. [...] a ideia de implantação
de colônias agrícolas para doentes mentais se coadunava com a
decantada vocação agrária da sociedade brasileira (RESENDE, 2001, p.
47).

O trabalho como indicação aos internos de manicômios aparece na literatura tanto


como elemento de tratamento quanto de punição, essencialmente se fazendo próximo a termos
como “disciplina”, “ordem”, “regularidade”. Nessa perspectiva, não haveria surgido a psiquiatria
sem a relevância do trabalho na estruturação econômica e social dos últimos dois séculos. A
ênfase no trabalho perpetuou e mesmo inspirou modos de intervenções psiquiátricas na
atualidade. Manifesta-se, como efeito da história do trabalho na psiquiatria, na conjuntura atual
da Reforma Psiquiátrica, a tendência de que um dos modos de possibilitar ao louco que ele se
posicione como cidadão é que ele tenha trânsito no mercado de trabalho.
38
É relevante esse breve histórico da fundação da psiquiatria e do tratamento moral como
abordagem terapêutica para que agora, posteriormente, seja problematizado como o trabalho
é indicado aos loucos na atualidade. Para isso, iniciarei contextualizando a instituição estudada
e farei considerações sobre a relação entre trabalho e psiquiatria na atualidade.

6 A Reforma Psiquiátrica e a abertura do Cândido Ferreira

6.1 Breve histórico da Reforma Psiquiátrica no Brasil

A Reforma Psiquiátrica é um movimento fundado em 1978, durante o período de


ditadura militar no Brasil, e é sustentado politicamente até hoje por diversos atores envolvidos
com a proposta crítica ao modelo asilar clássico que tem o louco como figura que necessita ser
aprisionada. Uma das principais insígnias é que esse movimento – território em constante
criação de práticas assistenciais e de gestão que questionam como e por que o louco se tornou
objeto de saber da medicina – foi capturado no discurso científico e aprisionado nos
manicômios. Desterritorializa-se o saber-fazer manicomial, deixando a circunscrição do hospital,
para reterritorializar em uma prática em outro espaço, o que implica múltiplas invenções
cotidianas capazes de nos provocar a viver a experiência da loucura com maior potência de vida.

Isso não acontece sem maiores dificuldades, pois a estrutura de leitos psiquiátricos é
imensa, tal como o lucro financeiro envolvido, e há movimentos contrários que intentam manter
a loucura aprisionada nos manicômios. Entretanto, a Luta Antimanicomial segue seu curso,
colocando ao social a questão da loucura que circula e não mais a que era escondida.

Nos primórdios da psiquiatria no Brasil (com a fundação do Hospital Psiquiátrico Pedro


II, no Rio de Janeiro, em 1853), independente da desordem, fosse ela psiquiátrica ou moral
(como, por exemplo, no caso do trancafiamento das prostitutas e imigrantes nos manicômios),
para todos os desviantes havia uma mesma internação em um mesmo lugar e com a mesma
supressão de direitos: aos primeiros, de natureza psiquiátrica, por medo e compaixão; aos
segundos, de origem moral, por punição; e a ambos, para a vigilância.

A comunidade científica brasileira há muito importa inspirações para produzir seu


próprio modo de fazer saúde, seguindo a perspectiva da constituição de sua própria população:
somos um povo nascido de muitas misturas étnicas e, cada qual com suas características,
contribui para dar o formato da nossa cultura. Nesse sentido, a saúde mental brasileira tem
nuances de muitos movimentos da psiquiatria mundial.

39
A construção de mais hospícios no Brasil afora sustentou o modelo de internação como
única oferta de lugar social ao louco e seguiu inexoravelmente até o final de 1970, quando os
primeiros sinais de alerta com relação à internação psiquiátrica desmedida e desnecessária
foram dados.

Na maré do processo de redemocratização do país, a psiquiatria também entrou em


discussão nos movimentos sociais (principalmente entre os profissionais dos hospitais, os
intelectuais e a universidade). Propôs-se inicialmente um movimento de reforma interna dos
manicômios, com a humanização das práticas na tentativa de resgatar a função terapêutica que
supostamente teria o estabelecimento, tal como fez a corrente da Psicoterapia Institucional
francesa. Além disso, pensou-se também na prevenção dos distúrbios mentais, como fizeram as
Comunidades Terapêuticas inglesas. O próximo passo seria o de estender ao público a
psiquiatria, com intenções de prevenção e promoção da saúde mental coletivamente, não
restringindo sua ação apenas ao indivíduo, mas expandindo a toda comunidade, com a
Psiquiatria Comunitária e Preventivista.

A crítica à estrutura hospitalar asilar somente acontece com a Psiquiatria Democrática


na Itália. Podemos destacá-la como a principal inspiradora do movimento de Reforma
Psiquiátrica brasileira, pois possibilitou que os loucos habitassem a cidade e ocupassem lugares
outros que não mais o do detrás dos muros dos manicômios. A experiência italiana foi a única
que questionou profundamente e substituiu as internações. Neste sentido, o que hoje se
pretende produzir está na relação da loucura com outro lugar social que não o do hospital
psiquiátrico.1 Franco Basaglia, maior expoente do movimento italiano, bradava: “contra o
pessimismo da razão, o otimismo da prática”, usando esse refrão para fazer sustentação ao
movimento que propunha, em parceria com outros profissionais insatisfeitos com a assistência
oferecida.

Entre os anos de 1978 e 1980, institui-se o MTSM (Movimento de Trabalhadores da


Saúde Mental). Sua principal característica era ser reconhecido não como uma entidade, mas
como um movimento em saúde essencialmente de participação popular. A partir daí, a trajetória
da saúde mental brasileira começa a se transformar.

1
Interrogo o uso corrente pelos agentes da Reforma Psiquiátrica da expressão “excluído socialmente”,
pois o que houve não foi propriamente a exclusão da loucura da sociedade, mas sim a oferta de um lugar
de enclausuramento – o manicômio - que a configurava como segregada, mas não extinta ou eliminada.
Embora esse seja um lugar de controle da vida, de afastamento da cidade, de potencial esquecimento, de
exercício de inúmeras e imensas violências, não deixou de se configurar como um lugar social. Mesmo
sendo o pior lugar, constituiu-se como uma resposta social à loucura e, consequentemente, como um
lugar social.

40
Essa trajetória – marcada pela noção de desinstitucionalização – tem
seu início na segunda metade da década de 80 e se insere num
contexto político de grande importância para a sociedade brasileira. É
um período marcado por muitos eventos e acontecimentos
importantes, onde destacam-se a realização da 8ª Conferência
Nacional de Saúde e da I Conferência Nacional de Saúde Mental, o II
Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, também
conhecido como o ‘Congresso de Bauru’, a criação do primeiro Centro
de Atenção Psicossocial (São Paulo), e do primeiro Núcleo de Atenção
Psicossocial (Santos), a Associação Loucos pela Vida (Juqueri)
(AMARANTE, 2001, p. 52).

O marco jurídico da Reforma Psiquiátrica no Brasil se deu com a promulgação da Lei


10.216 em 06 de abril de 2001. Essa lei redireciona a assistência, regulamentando os direitos e
dispondo sobre a proteção dos loucos, propondo o tratamento em liberdade em serviços
comunitários e substitutivos ao manicômio. Ela garantiu o respaldo legal para que não houvesse
retrocessos no processo da Reforma Psiquiátrica.

Atualmente, é necessária a promoção de uma ruptura com a psiquiatria clássica,


propondo a demolição de seus saberes e práticas pelo questionamento da redutibilidade do
conceito de doença mental atribuído a um sujeito que desconsidera todo seu entorno social e,
principalmente, familiar. Esta vertente de pensamento é, em parte, inspirada na Antipsiquiatria
inglesa (FLEMING, 1976).

6.2 O Cândido Ferreira e a Reforma Psiquiátrica

Em Campinas, no interior de São Paulo, um dos marcos do processo da Reforma foi a


abertura do Hospital Psiquiátrico Cândido Ferreira, em 1991. Ele foi fundado em 24 de abril de
1924 e funcionou nos moldes clássicos de um manicômio até a assinatura de um convênio de
cogestão com a Prefeitura Municipal, regulamentado pela lei 6.215 de 09 de maio de 1990,
tornando-se serviço financiado totalmente pelo SUS e, como tal, assumindo seu caráter público.
Desde então é reportado como Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF) e opera em caráter
aberto.

Hoje o SSCF é constituído pelo Núcleo de Retaguarda, Núcleo de Oficinas de Trabalho,


Serviços Residenciais Terapêuticos, 3 CAPS III (Centros de Atenção Psicossocial), 1 CAPS AD
(Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas) e 3 Centros de Convivência.

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Tal transformação do caráter estrutural e do funcionamento do SSCF foi protagonizada
por diversos atores da saúde coletiva do município e é respaldada nos princípios e diretrizes da
Reforma Psiquiátrica, sendo este um movimento que comporta em si a aposta da complexidade
de sua própria criação. São tais expressões de modos de agir no âmbito da saúde que
prosseguem na composição de um novo paradigma (MERHY; AMARAL, 2007).

6.3 A Atenção Psicossocial como proposta de um novo paradigma

Entendemos o paradigma da Atenção Psicossocial como um movimento em voga que


busca superar o modelo manicomial.

A Atenção Psicossocial está no caminho de romper radical e definitivamente com as


práticas hegemônicas hospitalocêntricas, médico-centradas, medicalizadoras e curativistas,
praticadas no modelo asilar, substituindo este antigo paradigma pela produção de um cuidado
fundamentalmente centrado no usuário da saúde e em serviços de tratamento de base
comunitária. A estratégia sugere a criação de um arranjo com dimensões que contemplam
práticas de saberes compostos por muitos, inclusive e principalmente pelo usuário, fazendo
supor que há uma multiplicidade de ações que produzem instrumentos para a produção de
novas práticas de cuidados.

[...] é possível indicar que a Atenção Psicossocial parece configurar um


campo capaz de congregar e nomear todo o conjunto das práticas
substitutivas ao Modo Asilar, conservando ao mesmo tempo a
abertura necessária para a inclusão das inovações que ainda estão se
processando e para outras que certamente virão (COSTA-ROSA; LUZIO;
YASUI, 2003, p. 18).

A intenção primeira não é a proposta de alternatividade dos Modos Asilar e da Atenção


Psicossocial, mas sim de um rompimento definitivo com aquele para a produção desta,
principalmente negando a psiquiatria como ideologia e enfatizando o tratamento apropriado
pelo sujeito-sofrimento, na condição de uma clínica de produção de sentidos.

Os autores citados definem o paradigma psicossocial a partir de quatro parâmetros


básicos:

1- Concepções do processo saúde-doença e dos meios teórico-técnicos sustentados para


lidar com ela: Desloca-se aqui a noção de doença-cura para a de existência-sofrimento,
o que implica uma clínica da escuta e da produção do cuidado de si. A noção de

42
enlouquecimento é processual, sendo social, psíquica e orgânica, exigindo para o
tratamento a atuação nessas três esferas;

2- Concepções da organização das relações interinstitucionais: Há a necessidade da


horizontalização das relações dos trabalhadores para que elas também possam se dar
nas relações entre equipe e usuário, desmistificando que o saber sobre o sujeito em
sofrimento está somente na equipe, abrindo possibilidade para que o sujeito também
se responsabilize por seu tratamento, e buscando ferramentas para o trabalho
transdisciplinar;

3- Concepções das relações da instituição e seus agentes com a clientela e com a população
em geral: Pretende-se um processo de desinstitucionalização para além do fenômeno
da desospitalização, produzindo um serviço que esteja em porosidade com seu território
de atuação e que realize ações a partir das complexidades das demandas da população,
agindo a partir do conceito de integralidade.

4- Concepção efetivada dos efeitos de suas ações em termos terapêuticos e éticos: A ética
é a da singularização, da implicação subjetiva e da contratualidade social, e não a da
supressão dos sintomas e da produção serializada de subjetividades.

Quanto à cara noção de desinstitucionalização do aparato psiquiátrico de internação


proposta por Franco Basaglia, em sua visita ao Brasil em 1978 e 1979, os autores citados
apontam que:

[...] a desinstitucionalização supõe a desconstrução e transformação


dos elementos explícitos e implícitos do Modo Manicomial. Essa
desconstrução e transformação devem ter como uma das estratégias
de ação a negação da psiquiatria enquanto ideologia. Enfim, a
desinstitucionalização é um processo ético-estético-político, que
transcende as reformulações técnicas dos serviços e das ações
terapêuticas. A desinstitucionalização supõe a renúncia da vocação
terapêutica instituída, por intermédio da superação do paradigma
psiquiátrico. Isto significa negar a instituição manicomial; o saber
psiquiátrico sobre a doença mental, compreendido como um processo
histórico e social de apropriação da Loucura; o poder do psiquiatra em
relação ao paciente; o seu mandato social de custódia. Implica
também a denúncia da violência a que o doente está submetido
dentro e fora da instituição (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2003, p. 13).

Assim, a proposta da Atenção Psicossocial busca superar a prática de cuidados ao louco


exclusivamente pela psiquiatria, rompendo definitivamente com o Modo Asilar e propondo

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outra ética de cuidado, com a evidente intenção de produzir a clínica em seu espectro mais
amplo de criação de sentidos, portanto, não restringindo o sujeito a um emaranhado de
sintomas a serem desvelados, tal como propõe a psiquiatria, mas considerando o sujeito em seu
maior potencial de vida em expansão.

Na Atenção Psicossocial, a transformação das práticas de cuidados segue produzindo


mudanças profundas e, desejamos, ininterruptas e sem retorno na política, assistência e gestão.

7 O NOT: trabalho e loucura na atualidade

Um dos equipamentos que tem um viés não convencional de tratamento e que caminha
rumo à Atenção Psicossocial é o Núcleo de Oficinas e Trabalho (NOT). Enfoco aqui como penso
a saúde produzida neste espaço, desde seu passado, apresentado para nós por relatos orais e
escritos, até a atualidade, representada por nossas próprias memórias.

O NOT, tal como propõe a Atenção Psicossocial, busca romper com uma prática de
cuidados exclusivamente médica, ofertando ao louco o lugar do trabalho.

7.1 Poucas linhas de muita história

Ainda quando o Cândido Ferreira era fechado e seu cotidiano não fugia à clássica rotina
dos manicômios, os internos compensados psiquicamente já realizavam serviços na lavanderia,
rouparia, cozinha, limpeza e agropecuária em troca de doces, cigarros e objetos de higiene
pessoal. Prezava-se pela ocupação do tempo ocioso desses pacientes considerados sem
agressividade e aptos para tarefas que exigiam pouca reflexão e muita disposição física. Com o
passar do tempo, houve um aumento da demanda desse tipo de trabalho por outros pacientes,
o que teve como efeito o investimento específico do setor de Terapia Ocupacional do hospital
em atividades de marcenaria, pintura e montagem de prendedores de roupas.

No início da década de 90, foram propostas frentes de trabalho para atender 20 internos
com evidentes intenções de instrumentalização e formação profissional. Aos poucos, o projeto
foi crescendo e, consequentemente, os investimentos de ordem profissional e financeira
também. Nessa época, percebeu-se que a crescente procura dos internos pelo trabalho exigia
um redirecionamento na prática. Começou a se configurar no SSCF a necessidade de tornar
juridicamente legalizada o exercício de compra e venda de bens e serviços que acontecia
informalmente no hospital.

44
Por iniciativa dos próprios funcionários envolvidos com esse projeto, que começava a
ter um efeito interessante nos pacientes, inaugurou-se em 1993 a Associação Cornélia Vlieg para
estes fins. Simultaneamente, acontecia o processo de abertura do manicômio até que ele se
transformasse num serviço aberto (HARARI; VALENTINI, 2001).

O projeto cresceu paulatinamente, exigindo que se investisse com a contratação de mais


profissionais de saúde e monitores para coordenar as oficinas que estavam sendo criadas no
novo braço do SSCF: o NOT.

Atualmente, o NOT constitui-se de 17 oficinas. São elas: Agrícola-Horta, Agrícola-


Jardinagem, Agrícola-Limpeza Ambiental, Ladrilho Hidráulico, Construção Civil, Marcenaria,
Serralheria, Cerâmica, Vitral Artesanal, Costura, Culinária-Nutrição, Mosaico, Papel Artesanal,
Velas (em Sousas, distrito de Campinas, no espaço da fazenda onde se encontra o antigo
manicômio e hoje Serviço de Saúde Cândido Ferreira), Vitral Plano, Gráfica e Culinária-Eventos
(no bairro Bosque e anexas à loja Armazém das Oficinas).

O horário de funcionamento da maioria das oficinas é de 7h a 15h ou de 8h a 16h, com


pausa de 1 hora para o almoço e duas pausas de aproximadamente 15 minutos para o
“cafezinho”. O serviço oferece as refeições aos oficineiros.

Hoje o NOT é considerado um dos importantes serviços que se sustenta por sua
constituição pautada em um modo de produção de saúde caracterizado pelos preceitos da
Reforma Psiquiátrica.

7.2 Armazém das Oficinas

Faz parte do NOT a loja Armazém das Oficinas, que atualmente está localizada em uma
casa do bairro Bosque, numa rua de comércio com intensa movimentação de pessoas. É uma
loja que impressiona não somente pelos produtos expostos, que são de qualidade excelente,
mas também pela beleza de sua estrutura e pelo clima acolhedor.

Há duas profissionais para vendas de produtos das oficinas do NOT e de outros


empreendimentos econômicos solidários do município que queiram usar o espaço e que tenham
relação direta com o setor público da saúde, sendo uma funcionária do Cândido Ferreira e outra
contratada com recursos das próprias oficinas. Elas têm como atribuições de suas funções, além
das vendas na loja, a ligação com possíveis compradores por meio de pedidos e encomendas.
Portanto, confeccionam-se nas oficinas produtos para abastecer a loja e para responder às
demandas das encomendas.

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O volume da produção é variável, de acordo com a época do ano, com as tendências de
modismos e com a característica de cada oficina. Por exemplo, a Oficina de Velas mantém a
venda pouco variável durante quase todos os meses do ano, exceto no período que antecede o
natal, quando o volume aumenta significativamente, chegando a atingir dez vezes mais do que
nos meses de janeiro a outubro. Além disto, o NOT participa de três grandes feiras paulistanas
durante o ano, que fazem as vendas aumentarem e, em consequência, a produção também
atingir altos números. Neste sentido, é preciso que se tenha o cuidado constante de manter as
oficinas afastadas da lógica de comercialização própria da valorização somente do capital,
tendendo a se aproximar da produção de relações comerciais solidárias.

7.3 Mãos de muitos profissionais

Embora o NOT esteja para além de ser somente um equipamento de saúde mental, pois
engloba circunstâncias de extremo cuidado com aspectos mercadológicos, que implica
influência direta em seu funcionamento, sua preocupação maior é a do tratamento entendido
como práticas que visam à estabilização do sujeito pela produção de responsabilização,
protagonismo e autonomia. Justamente por isso, as oficinas são coordenadas por profissionais
que têm como prerrogativa o tratar. São assistentes sociais, nutricionistas, psicólogos e
terapeutas ocupacionais coordenando oficinas, uma assistente social que lida diretamente com
a orientação aos oficineiros acerca de assuntos relacionados a benefícios sociais, monitores que
têm conhecimento da técnica artesanal a ser aplicada, uma médica e uma técnica de
enfermagem que fazem sustentação aos pacientes que necessitam de atenção para o uso de
medicação diária.

O NOT compõe-se também de monitores – profissionais de nível médio – que têm o


conhecimento da técnica a ser empregada para a confecção dos produtos e que
necessariamente devem ter manejo e disponibilidade de produzir cuidado com os oficineiros.
São os monitores que acompanham, em parceria com o coordenador, o processo de produção
de um produto ou serviço, primando pela qualidade do que será posteriormente vendido.

Há ainda uma gerente que faz a gestão da equipe do NOT, dois assistentes
administrativos que cuidam da burocracia relativa ao funcionamento do serviço e uma
recepcionista que articula a entrada e saída de pessoas nas oficinas. Essas funções são todas
exercidas em correlação com os coordenadores e monitores das oficinas.

8 O NOT e a Economia Solidária


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Há uma grande preocupação dos participantes do NOT para que não seja reproduzida a
lógica de trabalho que constituiu os espaços de manicômios da Idade Médica até a Idade
Moderna, conforme pesquisa bibliográfica feita e apresentada no início desse texto. Se naquela
época a proposta era a de manter enclausurado o louco que não trabalhava e que, por isso, não
contribuía com a constituição social dominante, na atualidade o NOT busca romper com esse
lugar social destinado à loucura, produzindo cotidianamente um serviço que não apenas
problematiza, mas, mais ainda, proporciona ao louco a produção de outros modos de trabalho
que condizem com a condição de liberdade.

Nesse contexto e transitando entre as posições que o serviço ocupa tanto no mercado
quanto na saúde, verifica-se a necessidade de profissionais com perfil clínico de tratamento,
mas também com disponibilidade para conhecer e saber lidar com questões do mercado.
Embora o serviço não viva a Economia Solidária em sua radicalidade, inegavelmente ela inspira
e norteia muitas de suas ações. Essa perspectiva de economia harmoniza com os pressupostos
da Reforma Psiquiátrica, quando propõe ao sujeito que ele produza uma relação com o seu
trabalho marcada pela liberdade, responsabilização, protagonismo e autonomia.

No entanto, as influências de diversas insígnias na geração de trabalho e renda no


serviço fazem valer ressalvas quanto à condição pura e única de empreendimento de Economia
Solidária. De seus princípios, o de maior importância é a relevância que se dá às pessoas e não
ao mercado. Além disso, valoriza-se que o cuidado com as etapas do processo de confecção do
produto ou da prestação de serviço seja feito de maneira que cada oficineiro possa ser
respeitado em sua capacidade produtiva e em sua habilidade. Também é incorporado que as
oficinas são de propriedade coletiva, ou seja, que a posse dos meios de produção é de todos os
oficineiros. Além disso, as decisões acerca da repartição dos ganhos em dinheiro tendem a
acontecer de modo democrático, procurando envolver todos os participantes neste processo de
gerenciamento.

A pretensão é que se chegue o mais próximo possível da autogestão, embora seja


inegável que esta é uma prática ainda distante do cotidiano de trabalho. Esse é um indicativo
interessante do quanto os oficineiros produzem autonomia. É um contingente de processos
lentos, complexos, entruncados, que se dão no interstício entre a produção do oficineiro e a
produção do coordenador. Na produção do oficineiro porque a autogestão depende
diretamente do grau de autonomia conquistado; e na produção do coordenador porque
também é de sua função estrategicamente sair do papel de coordenador em algumas situações
para permitir que o oficineiro se aproprie desse lugar. Enfrenta-se cotidianamente o desafio de

47
fazer oficinas autogestionadas com oficineiros que têm seus poderes contratuais quase
anulados em muitas das situações cotidianas de suas existências.

Há em minha memória o registro de uma situação que figura a descrição acima: quando
coordenei a oficina de velas no NOT, de 2009 a 2012, ao recebermos uma grande encomenda,
propositalmente, como sempre fazia, não organizei sozinha o início da produção das velas,
solicitando a eles que pensássemos juntos sobre o que fazer. Atribuí a eles as escolhas sobre
como começaríamos esse processo de produção. Uns mais, outros menos, mas todos opinaram
sobre o que fazer primeiro: comprar a matéria-prima. Houve falas no seguinte sentido: Onde
vende mais barato? É de boa qualidade? Dá pra pedir desconto? Eles entregam no prazo? Eu
não gosto dessa cor que pediram. Mas tem que fazer, o cliente gosta. Podemos comprar a mais
para fazer estoque? Só que não tem dinheiro nem pra comprar o que precisa. O que fazer agora?
Eu não quero mais trabalhar aqui. Por quê? Dá muito trabalho trabalhar aqui. Eu quero que ela
decida. Mas o dinheiro é nosso e quem vai ganhar é a gente!

Esse “dá muito trabalho trabalhar aqui” figura os movimentos que aconteciam
cotidianamente na oficina. Quando as atribuições são diluídas entre todos, dá mesmo muito
trabalho trabalhar, porque o trabalho pode ser produção coletiva.

Esta lembrança apresenta o porquê de insistir nessa posição: dessa relação se produz a
demanda para a criação subjetiva e política de sujeitos capazes de fazer e sustentar escolhas,
inicialmente relacionadas ao trabalho e, posteriormente, a outras esferas da vida. Consideramos
ser este um dos motes terapêuticos principais do serviço.

Embora o NOT não seja uma cooperativa, as oficinas tentam cotidianamente funcionar
inspiradas num esquema cooperativista onde todos podem, a sua maneira, participar de todo
processo de produção do que se venderá. Busca-se potencializar aspectos de cada oficineiro na
constituição de um saber acerca daquele produto/serviço, desde a ideia de criação até o
resultado final. Além disso, a oficina pertence a um plano de constituição que privilegia a
participação de todos no processo de sua construção.

Embora alguns oficineiros só consigam produzir uma parte do produto/serviço, é


prerrogativa que todos tenham conhecimento sobre todas as etapas do processo de produção.
Isto é primordial para que seja possível uma relação com o trabalho que não a de um processo
de alienação. É preciso que o oficineiro conceba aquele produto/serviço como sua própria
produção, e não como algo exterior a si. É sua valiosa produção a ser comercializada, mas não é
somente objeto de comércio. Para além de estar disponível para venda, trabalha-se no sentido

48
de que o oficineiro se aproprie daquilo que suas mãos produzem e concebam o produto final
como algo relacionado a si próprio.

A Economia Solidária é uma das interfaces que inspiram e sustentam o NOT. Nas
oficinas, não há finalidade de geração de lucro, mas de renda. Não há intenções de
competição/rivalidade entre oficinas e/ou oficineiros, mas de cooperação/generosidade. Sim,
há problemas, como em toda organização que se preze como tal, gerida por pessoas que se
apresentam como sujeitos desejantes. Mas há também coerência mesmo nas discussões
ideológicas dentro e fora das oficinas. Por exemplo: a priori, a renda obtida com a venda dos
produtos é revertida em compra de mais matéria-prima, em adquirir e fazer a manutenção dos
instrumentos de produção e em bolsas que variam de valor entre cada oficina e oficineiro. Esse
processo de distribuição tende a ser feito com o esforço de envolver todos os participantes da
oficina.

Nesse viés financeiro, há oficinas que operam “no vermelho”, ou seja, que não têm saldo
suficiente para se sustentar nem em bolsas, nem em instrumentos, nem em manutenção de
estoque de matéria-prima. Elas se mantêm com o caixa das oficinas que têm mais verba.
Operamos com um só montante de dinheiro que é depositado na conta bancária da Associação,
e o gerenciamento dele é feito por todos os coordenadores, na intersecção de discussões com
o grupo de oficineiros e monitores.

A escolha da Economia Solidária como ideologia e como uma das sustentações do NOT
não é ao acaso. Consideramos que os princípios norteadores de tal prática são muito bem vindos
no espaço da psiquiatria que hoje tenta se libertar das amarras de sua própria história. Lidamos
com loucos que, muitas vezes, não tinham possibilidade de escolha sequer nas situações mais
banais de seu cotidiano. Ofertar a eles um lugar onde podem eleger como produzirão bens e
serviços é muito precioso. Na tentativa cotidiana de prática de oficina autogestionária, os
oficineiros contemplam que também podem tomar a gestão de suas próprias vidas,
transferindo-se de um lugar de objeto do outro ao de sujeito de suas próprias ações.

Este não é um processo simples e sem dor, pois mudanças sempre carregam em si
alguma resistência. Porém, verificamos no cotidiano das oficinas que tais transformações são
possíveis. Tentamos a construção de um espaço onde caibam as práticas do trabalho na
coletividade como recurso emancipatório, as relações solidárias no grupo e a bandeira da justiça
social. Tais propostas são, em si próprias, transformadoras não apenas de modos de trabalho,
mas das vidas em sua maior potência.

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O limite entre a geração de trabalho e renda e a geração de sentido para cada oficineiro
é produzido paralelamente no mesmo espaço da oficina. Não há demarcação entre tais
produções, mas consideramos que todas estão presentes. Os sentidos que cada um produz na
oficina, até mesmo os monitores e coordenadores, são as forças motrizes que mantêm viva a
proposta.

Há que se ter muito cuidado nessa “dobradinha” tratamento e trabalho. Como descrito
anteriormente, essa é uma relação que data da Idade Média e que hoje pode reaparecer com
outra roupagem. Se naquela época os loucos eram internados por serem inaptos ao trabalho,
hoje o trabalho na psiquiatria pode ocupar um lugar falacioso de salvação dos loucos. Será
mesmo verdade o ditado popular inspirado em São Mateus e do qual Max Weber se fez valer
em sua obra de que o trabalho dignifica o homem? Diz-se, equivocadamente, que louco que
trabalha é muito mais adaptado ao social do que aquele que não trabalha. Questiono essa
afirmação, pois é justamente porque o lugar do trabalho na atualidade é tão central na vida do
homem que mesmo os que não são loucos, ao não trabalharem, estão desajustados. É mesmo
o trabalho em si ou seria a produção de sentidos (em vez da reprodução) no trabalho que
contribui na produção da identidade do homem? Por outro lado, embora não seja a salvação do
louco, são inegáveis os benefícios que o trabalho produz nele e em seu entorno. O oficineiro do
NOT é um sujeito que está sempre em vias de produção de mais saúde.

Podemos pensar a saúde como a principal produção de uma oficina do NOT. A intenção
primeira é a de produção de vida e não a monetária. Ao contrário do que acontece nas relações
da economia capitalista, as bolsas em dinheiro são consequência do trabalho de produção de
saúde, não o inverso.

O raciocínio do modelo hegemônico capitalista conduz o louco a um lugar social de


quem não tem potência produtiva. Contrariamente, a proposta do movimento da Reforma
Psiquiátrica tem a intenção de produzir o desabrochamento da potência de pessoas que foram,
durante séculos, consideradas incapazes e improdutivas. Paradigmas tão antagônicos se
entrecruzam, se misturam e se atravessam em diversos momentos na atualidade. Acreditamos
ser necessária a afirmação da transformação nos dois sistemas: o psiquiátrico e o capitalista.
Compreendemos que a proposta da Economia Solidária vinculada à Saúde Mental parece ser
uma saída para tantas e tamanhas questões. Porém, admitimos dificuldades na gestão mútua
dessas dimensões.

9 O que de mais valioso se produz no NOT

50
A intenção primeira das oficinas é a de proporcionar ao oficineiro um ambiente onde
ele seja capaz de caminhar no sentido de sua autonomia e de ser protagonista de sua história.
A oficina é um dos seus lugares no mundo; é onde ele pode, à vontade e de acordo com suas
possibilidades e desejos, produzir e atribuir a si essa produção.

No cuidado cotidiano com o oficineiro, há diversas insígnias de sua história de vida que
devem ser consideradas. Se há conflito com a família, dificuldade em pagar contas, medo de
estudar, briga com cônjuges, problemas em usar a medicação, opressão social de todo tipo, na
oficina ele pode finalmente respirar distante de tanto caos e se fortalecer para desvendá-los e
enfrentá-los. Vi pessoas chegarem para a entrevista inicial caladas, receosas, concordando com
o que seu acompanhante dizia mesmo sem necessariamente concordar; mas que, depois da
entrada, da vinculação e de algum tempo variável de investimento delas próprias na atividade
de trabalho – e de todos os que participam do NOT, ao acreditar que elas seriam capazes de
fazer algo – também vi essas mesmas pessoas se tornarem mais audaciosas, sorridentes,
expressivas de suas opiniões e, mais que isso, argumentativas e responsáveis por elas próprias.

Isso só é possível porque, para além do diagnóstico psiquiátrico, cada novo oficineiro
chega com sua própria diversidade subjetiva e singular para compor o coletivo da oficina. É com
essa diversidade que se busca produzir um arranjo de pessoas que se entendam como aquelas
que buscam, cada qual a sua maneira, um reposicionamento de sua existência no mundo. O que
há de mais importante numa oficina não é o que dela se vende, mas o esforço pela produção de
saúde dos oficineiros e tudo o que disso advém.

Situo minha temática no campo da saúde coletiva e no fazer cotidiano do oficineiro no


ato de trabalhar. Acredito e defendo o conceito ampliado de saúde, que não se restringe à
ausência de doenças, mas se expande à produção de saúde; que não tem mais como locus de
atuação o corpo biológico, mas o corpo em produção subjetiva, social e orgânica, que
contextualiza o ser humano doente e não a doença. Essa discussão de saúde tem seu respaldo
no SUS da Constituição Federal de 1988 e nas Leis 8080/92 e 8142/92, que enfatizam a saúde
como direito de todos e dever do Estado. A saúde é nesse texto pautada na esfera do direito e
não na cultura da dádiva; como necessidade do homem e obrigação do Estado e não como
mercadoria a ser consumida no mercado da saúde privada.

Também aponto aqui a escolha pela tentativa de superação do paradigma biomédico


clássico que considera no ser humano unicamente o aspecto da doença biológica e sintomática
que deve ser curada. Há no NOT a constante preocupação de que o processo seja de uma
produção jamais acabada de concepção de saúde que considere outros aspectos para além dos

51
especialistas. Nessa perspectiva, o NOT é inovador por ser um desvio no modo de fazer saúde,
já que sua concepção de saúde ultrapassa a racionalidade hegemônica do modelo biomédico na
medida em que desestabiliza muitos dos lugares instituídos pelos métodos tradicionais
curativistas de doenças.

A aposta coletiva é de se produzir tantos agenciamentos quantos forem necessários


para inventarmos coletivamente outras saídas possíveis para a produção de saúde. Numa
sociedade que tem como valor maior o capital em vez do trabalho e o curativismo em vez da
saúde, persistimos no sentido inverso na tentativa de fazer resistência a essas lógicas.
Intentamos possibilitar as ações de cuidados que contemplem a produção de sujeitos
autônomos e protagonistas de suas próprias histórias.

O NOT faz frente ao instituído da esfera do trabalho que fragmenta grupos, burocratiza
demasiadamente, adoece, produz desgosto. A novidade que esse equipamento apresenta é a
do mundo do trabalho que produz saúde. Partindo desta dimensão, podemos pensar que, além
do oficineiro, o técnico também deve estar disponível para problematizações constantes acerca
de seu próprio fazer, pois elas também conduzem à transformação das práticas no campo da
saúde coletiva. Quando era coordenadora de oficinas no NOT, eu aprendia cotidianamente
sobre qual é o trabalho de um coordenador, pois não há um modelo pré-estabelecido no qual
pudesse me basear para fundamentar a prática profissional. Não há uma proposta técnica ou
mesmo teórico-metodológica única a todos os profissionais, pois ali também é necessário que
cada um possa criar seu jeito próprio de trabalhar. A criação deve ser primazia, pois é ela que
sustenta a vastidão de modos de produção de saúde no serviço.

O principal ponto convergente entre todas as oficinas é que elas devem existir na
perspectiva ética da produção de sujeitos autônomos e protagonistas, devendo tais
prerrogativas circular entre todos os espaços do NOT. Sem uma receita de como se fazer essa
modalidade de oficina de geração de trabalho e renda na saúde mental, é preciso sempre
construir um caminho tendo como fundamento o cuidado humanizado. Fazer oficina no NOT é
um modo de intervir na práxis corrente e hegemônica das concepções de saúde e doença, pois
é conduzir um fazer processual diferente do que se entende classicamente por tratamento
psiquiátrico.

Ao trabalhamos na riqueza de poder construir processualmente como a oficina


funciona, é preciso seguir diretrizes que balizam todas. Entres as muitas diretrizes que poderiam
ser descrita, aponto aqui para as que parecem de imensa potência: a possibilidade de dar voz a
cada oficineiro; problematizar os conflitos; transformar desacordos em acordos na condução de

52
um processo; transformar um cotidiano de trabalho que poderia ser desgastante em prazeroso;
enfim, construir participativamente quais são as normas de funcionamento do grupo.

Quando um oficineiro dispõe seu pensar aos outros e com eles consegue compartilhar
e traçar um indicativo de uma invenção de como deve funcionar a oficina, ele se apropria de
uma construção que é coletiva e pode produzir um sentido para aquilo que se cria. Apostamos
nesses diversos agenciamentos de falas (e, por vezes, de silêncios) para inventar a unicidade da
oficina. Num movimento processual de construção das diretrizes, emergem também sujeitos
com um grau maior de autonomia. É um fazer como produção coletiva que problematiza o
próprio fazer.

A administração das questões de modo a contemplar que todos se posicionem permite


uma reorganização coletiva para solucioná-las, o que conduz à apropriação de todos os
participantes do processo de trabalho. Acreditamos na potência que a negociação e que o
envolvimento nas decisões comportam para produzir pactos.

Entretanto, em alguns momentos o coordenador também deve se apresentar como


alguém que, mais que mediar os conflitos, coloca neles um ponto final para que a oficina
continue a acontecer. Por isso há fagulhas do exercício de descentralização e compartilhamento
de poder na gestão, mas não é possível prontamente afirmar que as oficinas do NOT sejam
caracterizadas como de auto-gestão.

As instâncias de tomadas de decisão e de poder são parciais e relativas, sendo


demarcadas pelo funcionamento constante da oficina. Há que se contemplar no coletivo que
cada oficineiro possa se apresentar com seu modo diverso de trabalhar e de enfrentar os
problemas que o fazer produz. Neste modo de atuar, é preciso estar além da relação profissional
de saúde x paciente. Deve-se cotidianamente reinventar a relação coordenador-oficineiro, que
transita entre diversos signos comuns à sociedade, beirando em alguns momentos o
estabelecido entre empregado e patrão, chefe e subordinado, paciente e terapeuta,
reivindicante e reivindicador. Perpassando por todos esses papéis sociais e tantos outros
quantos existirem, o coordenador e o oficineiro criam uma relação em que se reconhecem em
tantos outros papéis quantos forem necessários para estarem juntos na mesma oficina. Estão
todos agregados sob o signo do trabalho, promovendo rupturas no modelo instituído de fazer
saúde.

São produzidas no NOT práticas de saúde que se dão nas relações entre equipe técnica
e oficineiros e não entre profissionais de saúde e doentes. Esses posicionamentos permitem a
interação entre ambos para produzir uma instância maior que é a própria oficina. Todos

53
trabalham em proveito deste projeto. Desconstrói-se o modelo clássico em que o doente está à
mercê do saber do profissional da saúde, em que o doente está posicionado como alguém
despotente que necessita da potência do outro para se restabelecer (FOUCAULT, 2006). Ao
contrário, valoriza-se o potencial inventivo do oficineiro e do técnico para refazer esses papéis
tantas vezes e maneiras quantas sejam possíveis e necessárias. Para ser coordenador, é
necessário balizar e acompanhar as relações, fazendo a gestão dos movimentos e situações que
perpassam o funcionar do grupo para possibilitar um ambiente que propicie a transformação
dos modos verticais de fazer saúde.

Criam-se processos em que os lugares na oficina são produzidos e ocupados por cada
um, de acordo com seu desejo e sua possibilidade. Embora sejam pré-definidas as funções que
cada oficineiro pode desempenhar, acima de tudo é respeitado o singular. Por exemplo, para se
produzir uma vela, é preciso minimamente separar a parafina a ser utilizada, levá-la ao fogo até
que ela atinja a temperatura de 90°C, tingi-la com certo corante e perfumá-la com certa essência
em determinada quantidade, a depender da proporção de parafina derretida, despejá-la em
fôrma própria já untada, acompanhar o resfriamento, preenchendo com mais parafina derretida
as sobras que se formam até o completo endurecimento da parafina para, depois de fria,
conseguir desenformar a vela e então destiná-la aos próximos processos de artesanato, que
podem ser de entalhe, decalque, decoupage, pintura, embalagem, etiquetagem, entre outros.
Destina-se um ou mais oficineiros para desempenhar cada um desses processos. Há quem tenha
habilidade mais para uma ou para outra etapa, há quem tenha habilidade para todas ou quase
todas as etapas, há quem quase não tem habilidade para nenhuma. Entendemos, nas oficinas,
habilidade como aptidão, destreza, agilidade e desenvoltura para a realização da atividade. A
designação da tarefa é feita a partir da avaliação do coletivo sobre quem deseja e pode
desenvolver essa ou aquela função. Tal avaliação exige delicadeza e é inventada a cada
necessária circulação do oficineiro nas etapas do processo produtivo. É de muita riqueza
perceber que cada oficineiro se autoriza a ocupar um lugar por conseguir desempenhar as
atividades que nele são exigidas, mas que ele pode desenvolver a mesma atividade de modo
diferente, em tempo diferente e com habilidades diferentes, se se comparar a outro oficineiro
exercendo a mesma função. Essa permissão não é encontrada tão facilmente no mercado
formal de trabalho e esse é um dos motivos que me faz acreditar que o caráter de oficinas de
trabalho na saúde mental produz saúde, ao permitir que o oficineiro invente seu lugar de acordo
com suas possibilidades.

Quando o sujeito se apropria de seu trabalho, ele se torna menos dependente das
orientações do coordenador e/ou do monitor e mais autônomo quanto à criação de seu modo

54
próprio de exercer a atividade. O oficineiro começa a se colocar no que está fazendo e aparece
um tanto dele no produto final. A esse processo nomeamos como “invenção de si no trabalho”,
que designa algo singular daquele sujeito que aparece na peça feita, e que essa singularidade a
diferencia de qualquer outra peça. Dois cozinheiros confeccionam bolos diferentes, usando a
exatidão de uma mesma receita; dois vitralistas fazem dois abajures com brilhos diferentes a
partir de um mesmo molde; dois jardineiros capinam diferentemente o mesmo terreno com as
mesmas instruções e a mesma enxada. Mire a beleza do processo: é o sujeito se apresentando
em seu fazer.

Há ainda a “invenção de si no trabalho” mais propriamente quando o oficineiro


incorpora algo da atividade em outras esferas de seu cotidiano. Não se trata apenas da técnica
que ele aprende e pode aplicar em situações outras que não apenas a do trabalho, mas
principalmente do que se incorpora das relações na oficina que pode ser transposto para outras
relações. Acompanhei pessoas que chegavam ao NOT sem conseguirem dizer se preferiam
tomar café ou chá durante os intervalos das atividades e que, após um tempo e a partir do
investimento em relações que estabeleciam nas oficinas, opinavam sobre como deveria ser
preparada sua bebida preferida em sua casa.

Assim, o oficineiro amplia seu próprio fazer e o transborda para além do NOT. Durante
seu processo de trabalho, ele também produz conhecimento sobre si na relação com a tarefa a
ele atribuída. Não desejo que haja oficineiros que se identifiquem meramente com a execução
de seus afazeres, mas que eles se façam sujeitos de suas próprias histórias.

10 Considerações finais

Trabalhei (Ariana) durante aproximadamente 2 anos no NOT, entre 2009 e 2012, e a


implicação com este trabalho me levou a produzir alguns questionamentos. Era necessário e
impreciso o esforço cotidiano de fazer a intersecção da psicologia com a acomodação de novas
funções muito próprias de outras áreas de conhecimento, como, por exemplo, da economia e
da matemática. Logo nos primeiros dias, vi-me em uma situação em que era preciso calcular os
preços dos produtos, com a tabela do Excel numa mão e a calculadora em outra. Isto se deu
imediatamente após um atendimento em que escutei um sujeito em intenso sofrimento por ter
produzido um delírio com elementos que lhe trouxe seu parceiro. Esse seria um anúncio do que
estaria por vir: tempos de muita aprendizagem e crescimento, quando pude finalmente
compreender que o lugar de um coordenador de oficina no NOT exige maleabilidade para lidar
com circunstâncias diversas, quase que consecutivamente.

55
Ter faro para bons negócios pode ser tão importante para a oficina num período de
poucas vendas quanto a imprescindível escuta clínica, bem como acolher um sujeito em crise
pode ser tão importante quanto conhecer qual a tendência de cores que os arquitetos mais têm
usado ultimamente. A conjuntura financeira da oficina inevitavelmente desinquieta a todos, já
que ocorrências como a diminuição das vendas por um período pode resultar na diminuição do
valor da bolsa dos oficineiros.

Para além dos tecnicismos e dos instrumentais de profissional da saúde, é preciso ao


coordenador a humanidade na relação. Deve-se usar o saber tecnológico em sua justa medida
para que ele possa, inclusive, ser superado em alguns encontros. O que comporta essa relação
nos instiga a pensar que a clínica possível ao NOT está muito além da clínica restrita contida num
consultório clássico. A ação é cotidiana, se dá em um fazer que incomoda justamente por não
ser balizado por nenhuma teoria a priori, pois está localizada nas ocorrências do que nos reserva
aquele dia de trabalho, nas provocações que a loucura nos propõe e que foge rapidamente de
qualquer tecnologia aprendida. Isso não quer dizer que não há necessidade de formação para
atuar no NOT. Ao contrário, é preciso formação justamente para nos despirmos dela, quando a
ocasião assim exigir. A clínica usada é inventada e por isso tão difícil de ser descrita.

A relação entre o trabalho e a psiquiatria é antiga e deve ser conhecida para que não
reproduzamos o discurso secular de que o louco necessariamente deve estar inserido no
mercado de trabalho para ser respeitado como cidadão. O trabalho foi utilizado na psiquiatria
como elemento de ajustamento social e não como oferta possível de possibilidade de um campo
clínico de transformação para que o louco pudesse se produzir como sujeito autônomo e
protagonista de suas próprias escolhas. A intenção da indicação do trabalho ao louco era a de
subjugar pessoas à ordem vigente, controlando corpos a fim de melhor moldá-los para o mundo
do capital.

A proposta do NOT está na contramão desse discurso que também constituiu a história
da psiquiatria: esse é um serviço que tem em seu cerne a força capaz de romper com a proposta
moral de que o trabalho é necessário ao louco para que ele se aproxime da operacionalização
social neurótica clássica. Provocam-se transformações não apenas na esfera do trabalho na vida
do sujeito, mas em seu posicionamento no mundo.

A composição ética, estética e política do NOT balizam seu funcionamento. A dimensão


ética aponta para a perspectiva do pensamento crítico sobre o mundo do trabalho atual,
produtor de sofrimento, e o que de diferente a oficina pode produzir num processo com o
oficineiro. A dimensão estética supõe a invenção da forma de um território existencial permeado

56
por um modo de concepção de saúde vinculado à produção de sujeitos autônomos e
protagonistas de sua história, questionando a maneira de se fazer saúde na atualidade e
intrinsecamente vinculado à criação de novos modos de viver. A dimensão política supõe que o
oficineiro é constituído por um campo complexo de relações de forças, em que se encontram
dialogando indissociavelmente seus direitos e deveres como cidadão. Assim, o posicionamento
subjetivo no mundo do oficineiro é produzido cotidianamente.

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59
Capítulo 3

Infância e trabalho: algumas incursões sobre as concepções de infância e as políticas


de erradicação do trabalho infantil

Ednéia José Martins Zaniani


Cristina Amélia Luzio

Apesar de proibido legalmente no Brasil, o trabalho infantil e a sua exploração há


tempos despendem esforços e demandam propostas de enfrentamento à
incorporação/exploração de crianças por diferentes setores da sociedade. A sua erradicação
parece estar longe de ser alcançada. Em 2009, as estimativas do IBGE apontaram que no Brasil
cerca de 4,2 milhões de crianças com 5 e 17 anos ainda trabalhavam2. Tais cifras revelam um
problema social complexo e de grande magnitude, que se mantém em detrimento inclusive do
crescente investimento por parte de algumas políticas sociais e programas governamentais.
O termo trabalho infantil vem definir, independente da condição ocupacional, todas
aquelas “[...] atividades econômicas e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de
lucro, remuneradas ou não, realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16
(dezesseis) anos”, e, para essa regra, há a exceção apenas para aquelas atividades que observam
“a condição de aprendiz a partir dos 14 (quatorze anos)” (BRASIL, 2011, p.4).
Olhando para a história, verificamos que a conotação negativa que a inserção precoce
em atividades laborais resguarda, embora não seja nada contemporânea, acena-nos a
necessidade de debater, sobre diferentes prismas, a constituição e persistência deste fenômeno
no cenário social brasileiro. Este texto, de cunho teórico, tem como objetivo refletir sobre o
trabalho infantil e, pautando-se numa perspectiva histórica, resgatar discussões que já no início
do século XX sinalizavam a urgência de políticas voltadas ao seu fim. Em sequencia, propomos
discutir alguns entraves que corroboram para sua permanência como um problema social que
precisa ser combatido.

2
O mapa do trabalho infantil também acena para a região Nordeste como a que possui maior proporção
de pessoas de 5 a 17 anos de idade ocupadas, cerca de 12,3% (1,7 milhão), enquanto a Sudeste, a menor,
7,9% (1,3 milhão). Do mesmo modo, acena para o trabalho infantil como uma questão de gênero, ou seja,
são os homens de 5 a 17 anos de idade, em sua maioria, que estão ocupados, chegando ao número de
13,1%, ou 2,9 milhões de pessoas, enquanto as mulheres ficam na casa de 7,1%, (1,5 milhão), fato comum
percebido em todas as regiões (IBGE, 2009).

60
A constatação de que existem milhões de crianças3 envolvidas com o trabalho precoce
justifica nosso empenho em debater o tema para além das questões econômicas que o
constituem. Sua permanência como mazela social sinaliza também para a sustentação de
concepções ideológicas que perpassam a defesa do trabalho como uma atividade educativa,
dignificante e promotora do desenvolvimento moral, sobretudo quando alvitrada pelas mãos de
crianças da camada empobrecida da população.
Nesse sentido, os questionamentos que propomos incitar interessam à Psicologia por
trazerem ao campo acadêmico um debate que nos parece, embora não desconhecido, ainda
pouco explorado: o quanto a naturalização da infância – bem como de outras questões
subjetivas que permeiam a questão – corrobora para que a inserção precoce no mundo do
trabalho seja aceita e por vezes defendida.
A psicologia tem se inserido acriticamente no contexto da infância, como assinalam
Cruz, Hillescheim e Guareschi (2005) e, como saber, tem ajudado a consolidar concepções
naturalizadas que norteiam políticas de atendimento. Desejamos que este trabalho possa se
somar a outros e contribuir para que essa inserção se traduza não em práticas que legitimam o
discurso hegemônico, mas que se desdobrem em mediações que favoreçam reais possibilidades
de acesso à cultura e apropriação dos bens e serviços que a humanidade produziu ao longo de
sua história. Apropriação que se configura como condição para o processo de humanização.

As concepções de Infância: da insígnia da incompletude à representação de força potencial de


trabalho

Pensar a infância como fase peculiar do desenvolvimento humano, que possui


características e necessidades distintas, tornou-se possível, segundo Ariès (1981), somente na
Idade Moderna. Até aquele momento, a função da criança na sociedade assemelhava-se à do
adulto, seus trajes e demais atividades também. Afirma o autor que, em diferentes classes
sociais, logo que a criança superava a faixa mais propensa à mortalidade, ela era colocada em
casa de outra família para que aprendesse os ofícios dos mais velhos. Desta feita, a criança
exercia um papel produtivo direto, tornando-se útil à economia familar, cumprindo assim uma
função na sociedade.

3
Os termos criança e infância, utilizados com frequência neste estudo, serão tomados na maioria das
vezes como sinônimos. Na atualidade, segundo a Lei n. 8. 069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da
Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990) é considerada ‘criança’ a pessoa de até doze anos de idade
incompletos, e ‘adolescente’ aquela entre doze e dezoito anos de idade. Esses são os limites cronológicos
que definem no geral o público infanto-juvenil.

61
Para Ariès (1981, p.162) foi “[...] entre os moralistas e os educadores do século XVII que
se viu formar outro sentimento da infância”. Foram estes que, preocupados com a disciplina e
a racionalidade dos costumes, inspiraram “[...] toda a educação até o século XX, tanto na cidade
como no campo, na burguesia como no povo”. Assim, “[...] através do interesse psicológico e da
preocupação moral”, em finais do século XVII e início do século XVIII, o surgimento da escola
contribuiria para modificar a concepção de criança na sociedade ocidental, uma vez que os
educadores se achariam responsáveis por fazer da criança uma pessoa honrada e racional.
Este ‘sentimento de infância’, conforme Ariès (1981), expressa o reconhecimento de
que existe uma particularidade infantil, e dele decorrem duas atitudes em relação à criança: a
paparicação e a moralização. A primeira representa a concepção de criança como um ser
ingênuo e inocente, devendo, por isso, ser preservado da corrupção do meio. De modo
simultâneo, surge a atitude de moralização que atribui imperfeição e incompletude,
fortalecendo a ideia de que é preciso educá-la e moralizá-la a fim de torná-la uma pessoa
honrada. Aparentemente contraditórias, essas duas atitudes balizam, como elucida Kramer
(1982), a concepção moderna de infância.
À criança estava demarcado um tempo chamado Infância. Esse tempo passou a ser
compreendido pelos seus elementos e contornos e a demandar matizes peculiares. Cabe
destacar que, se Ariès (1981) se deteve na análise da infância burguesa e aristocrática da Europa
Ocidental no período abrangente dos séculos XV e XVIII, outros estudos, inclusive no campo da
historiografia brasileira, vêm apontando perspectivas distintas daquelas empreendidas por tal
autor. Questionando a transposição abstrata e linear das interpretações de Ariès para outros
contextos, Kuhlmann Jr. (1998) observa que, nos estudos sobre os ‘sentimentos de infância’, a
criança pobre encontra-se silenciada. Segundo o autor, são poucos os registros diretos da vida
privada da infância das classes populares, enquanto são recorrentes os documentos que tratam
da sua vida pública, das iniciativas de atendimento aos pobres e aos trabalhadores de maneira
geral.
A leitura que aqui empreendemos pede o entendimento da infância como uma
categoria histórica cujo significado não é universal, mas depende de vários fatores, sobretudo
da relação estabelecida entre o adulto e a criança dentro de uma dada cultura e da classe social
a que pertencem. Se a criança não é anistórica, como lembra Kramer (1982), não existe um, mas
vários significados atribuídos à infância. Com efeito, partimos então do princípio de que várias
infâncias podem coexistir, num mesmo tempo e num mesmo lugar e, por isso, talvez fosse mais
apropriado falar em condição social da criança, como observa Kuhlmann Jr. (1998).
Um exemplo dos matizes que no Brasil essa condição social da criança assumiu pode ser
localizado durante o período colonial e imperial, ao observarmos o trato destinado a elas

62
conforme a classe e o grupo social ao qual pertenciam. Conforme adverte Marcílio (1998), se
fosse uma criança escrava, não passava da condição de uma mercadoria; se fosse uma criança
órfã ou abandonada, era tratada como exposta. Em última possibilidade, se fosse filha da elite,
vivia sob o jugo do poder paterno e sua educação era, quase sempre, atribuída a outrem.
Uma concepção diferente de infância seria enfim gestada com o nascimento da
sociedade capitalista. A infância como uma fase do desenvolvimento, que precisa ser cuidada,
escolarizada e preparada para uma atuação futura, tal qual compreendemos na
contemporaneidade, ascende no bojo da sociedade capitalista urbano-industrial, fruto de uma
visão burguesa4 de homem (KRAMER, 1982). Logo, a concepção de infância é determinada
historicamente e, conforme se modificam as formas de organização da própria sociedade, essa
igualmente se modifica.
Entendida como uma etapa biológico-moral do desenvolvimento, idade de transição e
esperança para a construção de uma nova sociedade (DEL PRIORE, 1999), a infância, no geral, e
a criança pertencente às camadas empobrecidas da população, em particular, nos primórdios
do século XX, será revestida de positivas expectativas futuras. Com o capitalismo avançando no
Brasil, as contradições da sociedade de classes também se acirravam. A atenção que a infância
passava a receber vinha ao encontro das reivindicações políticas e sociais da burguesia brasileira
nascente.
Lembramos que, no Brasil, especialmente a década de 1920 representou um momento
de transição do sistema capitalista de produção. De acordo com Nagle (1976, p.12) representou
o “[...] período de passagem de um sistema do tipo colonial, induzido, para um outro, autônomo
[...] e, portanto, se define como período intermediário entre um sistema econômico agrário-
comercial para o sistema urbano-industrial”. Conforme o autor, esses seriam os dois grandes
ciclos da vida econômica brasileira.
Quando voltamos nossa atenção para aquele contexto, o fazemos ancorados em vários
estudos5 que o reconhecem como ímpar na história da assistência à infância no Brasil. Naquele
momento, a criança assumiria a representação de força em potencial de trabalho e, na condição
de elemento decisivo para o progresso da nação, deveria ser valorizada, preservada e preparada

4
De acordo com a Nota de F. Engels à edição inglesa de 1888: “Por burguesia entende-se a classe dos
capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social que empregam o trabalho assalariado.
Por proletariado, a classe de assalariados modernos que, não tendo meios próprios de produção, são
obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviverem” (MARX; ENGELS, 1888/1983, p.365).
5
Kramer, (1982), Pilotti e Rizzini (1995), Marcílio (1998), Kuhlmann Jr. (1998), Del Priore (1999), Freitas e
Kuhlmann Jr. (2002), Rizzini (2006), entre outros.

63
para o futuro. Assim, a criança tornava-se promessa de potencialidades numa sociedade
centrada no adulto e na sua força produtiva.
A visibilidade alcançada pela inserção precoce de crianças no mundo do trabalho será
aos poucos problematizada em consonância com o entendimento dos limites psíquicos e físicos
para a realização de determinadas atividades, bem como dos efeitos negativos que tal inserção
poderia acarretar na sua vida pregressa, como assevera Ferreira (2001). A crença de que criança
contitui um ser incompleto, dotada de caracteríticas naturais e que por isso necessita de
aperfeiçoamento, implusionou práticas e norteou políticas que insistem em reconhecê-la,
compreendê-la e atendê-la, sem olhar para o contexto sócio-histórico no qual ela se insere.
Neste movimento, a psicologia ocupa lugar de destaque, pois contribuiu desde seu
nascimento para a construção de uma concepção de infância como etapa natural e universal do
desenvolvimento humano. Como assevera Bock (2000), a psicologia desenvolveu-se pautada
numa perspectiva liberal de homem e acabou favorecendo a naturalização do fenômeno e do
desenvolvimento psicológico. Na mesma medida, por meio de suas teorias, contribuiu para que
o contexto social fosse entendido como mero espaço de cultivo e de cuja corrupção deveria ser
protegida, restando aos adultos a tarefa e o dever de fornecer-lhe modelos de comportamento
mais adequados. Assim, a

[...] Psicologia não tem sido capaz de, ao falar de fenômeno


psicológico, falar de vida, das condições econômicas, sociais e
culturais nas quais se inserem os homens. A psicologia tem ao
contrário, contribuído significativamente para ocultar estas
condições (BOCK; GONÇALVES; FURTADO, 2001, p.25).

Com efeito, as teorias sobre o desenvolvimento infantil que se apresentam descoladas


da realidade social acabam por instruir práticas educativas que tornam os profissionais
responsáveis pelo processo de formação da criança verdadeiros vigias do desenvolvimento
“normal”. Um desenvolvimento que a priori é desejado porque dominante numa dada
sociedade. O que aspiramos assinalar com isso é que, se do ponto de vista biológico a infância
pode ser reconhecida como fase universal do desenvolvimento, socialmente não há como
uniformizá-lo e qualquer esforço em fazê-lo pode legitimar práticas igualmente naturalizadas e
excludentes.

Binômio Infância-Trabalho: nuances de uma antiga relação

64
O termo trabalho infantil resguarda na atualidade tamanha obviedade que não
atentamos para o fato de ele não ter sido compreendido sempre da mesma maneira, nem
problematizado num tempo pregresso. O trabalho que fez e faz parte do cotidiano humano,
inclusive de crianças e adolescentes, ao longo do tempo sofreu inúmeras variações, tornando-
se apenas recentemente um tema relevante dentro da questão social da infância. A
transformação da representação social do trabalho infantil estaria, portanto, ligada
historicamente [...] às mudanças ocorridas no mundo do trabalho, aos movimentos sociais e
políticos relacionados aos direitos humanos, à luta dos trabalhadores e às mudanças sobre a
concepção de infância (VIEIRA, 2009, p.13).
Histórias de infâncias capturadas pelo mundo do trabalho não são invenções da
atualidade e estão imbricadas à história do próprio capitalismo como modo de produção. Se
tomarmos como exemplo o que ocorreu na Europa durante a expansão do capitalismo, Marx
(1867/2001) já observava que, graças ao desenvolvimento das máquinas, à medida que elas
tornavam desnecessário o emprego da força muscular, a tecnologia abria a possibilidade para a
incorporação de mulheres e crianças no processo produtivo industrial. Logo, a utilização das
máquinas resultou no aumento da exploração da força de trabalho pelo dono do capital, que
passou a se apossar não só do trabalhador, mas de sua família, inclusive das crianças. Já nos
primórdios do capitalismo na Inglaterra, Marx (1867/2001) identificava as contradições desse
sistema que, com as mudanças tecnológicas, introduziu novos métodos de produção, trazendo
benefícios e gerando riquezas. Contudo, tais mudanças não beneficiaram aqueles que com as
mãos diretamente as produziam, passando a servir de instrumento de exploração do homem
pelo homem, determinando a exclusão e gerando sofrimento.
Nas manufaturas inglesas, o pequeno porte das crianças e a acuidade das mãos da
mulher as tornavam as melhores auxiliares das máquinas. Na verdade, as máquinas já eram
projetadas para isso e, além dessa conveniência, os salários das crianças variavam de 1/6 a 1/3
do salário do adulto, e muitas recebiam como pagamento apenas a alimentação. Ademais, a
criança resguardava a passividade que muitos adultos já não possuíam, como lembra Rocha
(1997, p.15): “[...] as condições de trabalho e de vida tão abjetas a ponto dos próprios
empresários considerarem que só pessoas que desde a infância não tivessem conhecido outra
vida poderiam resignar-se a nela trabalhar”.
A maioria das crianças era filhas de ex-camponeses cujas terras foram roubadas,
colocando-as em situação de miséria. Rocha (1997) afirma que, ao contrário do que se pensa, a
fábrica não nasceu no afã de multiplicar a produção ou reduzir custos. Tal qual a prisão, a
invenção da fábrica resultou mais de uma manobra política que tecnológica, uma vez que criou
a condição de cativeiro para a exploração desmedida. Nesse ambiente, as máquinas hídricas ou

65
a vapor seguiram mutilando corpos e favorecendo o surgimento das mais variadas doenças. Na
França, a implantação das fábricas se deu em moldes semelhantes depois da década de 1820 e,
já no final da década de 1930, dados apontavam que entre os dez mil jovens alistados pelo
governo, 89,9% eram inválidos ou deformados. Em finais da década de 1840 essa estatística
ainda estava na casa dos 60%.
Essa leitura desnuda como, nos primórdios do capitalismo, a inserção da infância no
universo do trabalho já expressava o processo de estratificação social legitimado pelo sistema.
Marx (1867/2001) assevera que o capitalismo degradou moralmente a família; muitos pais
passaram a vender os filhos para os industriais e as senhoras passaram a alugar crianças asiladas
para trabalhar nas fábricas. Assim, conclui o autor que a exploração do trabalho infantil não foi
invenção nem fruto da inconsequência paterna, mas que o sistema capitalista, tirando do pai as
bases econômicas de sustentação da família, abriu para ele a necessidade de explorar a força de
trabalho, inclusive dos próprios filhos.
Portanto, a história nos revela que o trabalho precoce, ainda que problematizado e
encarado como maléfico socialmente, não foi condenado a ponto de ser definitivamente
combatido. Em se tratando das crianças das camadas empobrecidas da população, essa prática
foi em muitos momentos tolerada e até mesmo justificada. Rizzini (1999) lembra que as crianças
pobres sempre trabalharam no Brasil, fossem as escravas que trabalhavam para seus donos
durante o período colonial e imperial, fossem aquelas incorporadas pelos capitalistas às fábricas
no início da industrialização, fossem, ainda, aquelas cuja mão de obra era aproveitada pelos
grandes proprietários de terra, bem como as incorporadas às unidades domésticas de produção
artesanal ou agrícola, dentro das casas de família ou nas ruas. Logo, durante a Colônia e Império,
não se atribuía o caráter de exploração ao uso desmedido daquela mão de obra.
Destarte, observamos que no Brasil, enquanto perdurou a escravidão, a incorporação
de crianças no trabalho braçal nas grandes lavouras ou no auxílio das tarefas domésticas não
fora, nem poderia ser, questionado. Acompanhando o curso da vida, os filhos seguiam
invariavelmente os passos trilhados pelos pais e, como portadora de uma mão de obra dócil e
adaptável, a criança tinha seu destino selado desde o nascimento. Atesta Del Priore (1999) que,
do total de escravos que desembarcaram no Rio de Janeiro no início do século XIX, 4% eram
crianças e, destas, apenas um terço sobrevivia até os dez anos. As que superavam a fase mais
propensa à mortalidade, por volta dos quatro anos de idade, começavam a trabalhar com os
pais ou sozinhas. Lembra a autora que uma criança escrava com 12 anos tinha um valor
econômico dobrado, uma vez que era considerada suficientemente capacitada para as
exigências do trabalho.

66
Enquanto no alvorecer do século XX, na Europa, o capitalismo já havia se consolidado e
se deslocava em direção inversa6, aqui o desenvolvimento das relações capitalistas de produção
caminhava em passos menos largos e precisava ser fomentado. Para a reprodução e acumulação
do capital, os mais franzinos trabalhadores não seriam dispensados. Com a República, o trabalho
infantil passaria a ser concebido sob as premissas de seu caráter moralizador, e a ética positiva
do trabalho passava a ser valorizada e apontada como capaz de regenerar uma sociedade que,
durante os séculos precedentes, esteve marcada pelo signo negativo da escravidão. Com efeito,
se o trabalho constituía a base para o desenvolvimento econômico, promover a nação
implicaria, necessariamente, converter o trabalho numa atividade nobre, e a infância passaria a
ser considerada o período mais apropriado para isto.
A incursão de hábitos saudáveis, que conformassem o modelo de homem requisitado
para o desenho de uma nação civilizada, seria o mote das ações reivindicadas e implementadas
no início do século passado pelos chamados ‘homens de ciência’7. Grande parte dos intelectuais
do período republicano concebia o trabalho como “[...] antídoto aos perigos decorrentes do ócio
e do vício que “rondavam” crianças pobres desocupadas” (MARQUES, 2003, p.58). Uma
verdadeira cruzada civilizatória seria alçada por médicos, pedagogos, juízes, empresários, entre
outros, com vistas a adaptar um modelo de homem afinado com as necessidades da época.
A qual modelo de homem estamos nos referindo? Tratar-se-ia do tão alardeado ‘cidadão
autônomo’ que, em essência, resume-se ao trabalhador ordeiro e disciplinado, gestado a partir
da concepção liberal, em conformidade com o Capital? Um sujeito declarado livre, que passa a
ser responsabilizado pelo seu fracasso, entendido como expressão da sua incapacidade em
aproveitar as oportunidades que a sociedade ‘igualitariamente’ lhe oferece? E, neste cenário, o
desenvolvimento do homem passaria a ser pauta de inúmeros debates, e a criança,
compreendida como um vir a ser, demandaria cada vez mais uma intervenção pontual e
precoce.
Como lembra Ferreira (2001), o fato de envolver, majoritariamente, crianças pobres,
cujas oportunidades de crescimento e desenvolvimento lhes são negadas, o trabalho infantil

6
O salto produtivo ocorrido na Europa exigia a expansão territorial dos países industrializados. A
acumulação de capitais alcançada graças ao desenvolvimento industrial dava condições a estes países de
não mais depender da importação e passar a se organizar em grandes monopólios, fechando-se de modo
a fortalecer e proteger suas indústrias. Outrossim, essses países necessitavam instalar novos hábitos de
consumo, que favoreceriam a exportação de suas mercadorias e de capitais excedentes (Sevcenko, 1998).
7
Entre citados “homens de ciência”, damos destaque aos membros do chamado Movimento Higienista
que teve início ainda no século XIX e esteve ligado num primeiro momento à busca por soluções aos
problemas sanitários enfrentados pela população brasileira. No século XX, tal movimento, até então de
cunho eminentemente sanitarista, desdobrou-se no que ficou conhecido como Movimento de Higiene
Mental, cuja ação mais expressiva foi a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental em 1923. Outras
informações sobre esses movimentos consultar Costa (1989); Boarini (2003).

67
assombra por desvelar padrões de vulnerabilidade inaceitáveis para uma sociedade que
pretende ser próspera e democrática. Tal perspectiva nada contemporânea, impulsiona-nos a
observar um pouco o início do século passado, quando a ‘causa’ da infância no Brasil assumirá,
de maneira geral, a feição de um problema social, e o destino da infância será equiparado ao
destino do próprio Brasil.

Apontamentos sobre o trabalho infantil no alvorecer do século XX

Nas páginas anteriores, vimos que a exploração infanto-juvenil não é uma questão atual.
Queremos agora igualmente ressaltar que tampouco ela passou despercebida diante das lentes
da ciência e de algumas parcelas da sociedade. Embora os questionamentos acerca das
consequências do envolvimento com o trabalho precoce não sejam uma invenção do século XX,
será no seu alvorecer que muitas discussões serão levantadas pelos chamados ‘homens de
ciência’, cuja representatividade no Brasil republicano será notória em diferentes setores
políticos e sociais.
No discurso de abertura do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância,
ocorrido no Rio de Janeiro em 1922, o médico baiano Alfredo Ferreira de Magalhães (1923,
p.132) advertia aos participantes que “[...] o problema da criação dos meninos deixou de ser
uma questão de ordem puramente familiar para abranger múltiplos interesses de ordem social”.
Magalhães discursava em nome dos ‘delegados oficiais dos Estados do Brasil’ e justificava a
investida médico-higiênica sobre a família, considerando os problemas ‘da infância’ como
problema do político e social, e não mais como um problema circunscrito ao comando e à
diligência do núcleo familiar.
O Congresso foi palco de discussões que pretendiam indicar as formas mais adequadas
de proteger e promover a infância brasileira. Magalhães (1923, p.132) procurava convencer os
participantes de que “[...] uma criança que se perde, material ou moralmente, não significa
somente uma saudade para a família, uma vergonha para os pais; é, mais do que isto, uma força
que se perde para a sociedade”. Nesse sentido, enquanto a morte de uma criança significasse
para a família um dano situado no plano subjetivo, para o Estado e a sociedade tratava-se
doravante de uma perda material.
Uma mão de obra especial, por significar produtividade em potencial, que estava sendo
desprezada, mas se viesse a ser bem cultivada, poderia converter-se em benefícios para a
sociedade e isso, por si só, já era comprovadamente motivo para protegê-la. Nesse período,
pretendemos sinalizar a designação da infância como objeto de intervenção de uma política de

68
fato pública, que refletia a reivindicação crescente para uma expansão do poder do Estado sobre
os cidadãos.
A infância, pensada como uma idade determinante de todas as outras, instaurou a
necessidade de cuidados e proteção e justificou a relevância da implementação de ações
governamentais que deveriam se somar às das demais instituições, de tal modo que:

No lar, na escola, nas oficinas diversas, a criança não pertence


somente à família, não cabe a esta cuidar de que ela viva, cresça, se
desenvolva, se aperfeiçoe; á sociedade, aos governos, cabe verificar,
fiscalizar, assistir, defender no menino os seus próprios interesses,
impedindo que ele seja mal ou insuficientemente nutrido, que se lhe
exijam trabalhos intelectuais ou físicos incompatíveis com as suas
forças ou com a sua idade, que se lhe negue o pão do espírito ou se
lhes crestem as flores da virtude e do coração, que se veja ele exposto
ao contágio das moléstias e dos vícios (MAGALHÃES, 1923, p.133,
grifo nosso).

A tarefa atribuída ao Estado era complexa e estava atrelada a um interesse nada


altruísta. A inserção formal do Estado na elaboração de políticas públicas de assistência à
infância emergia com a nobre função de oferecer proteção às crianças, sobretudo àquelas das
classes populares. No entanto, de qual proteção falavam os homens daquele período? No que
tange ao tema do trabalho infantil, mais do que uma tônica discursiva, as palavras de Magalhães
(1923) ratificam que a proteção contra a exploração intelectual ou física de crianças e
adolescentes, incompatível com a força ou idade, desvela um conceito de proteção que se
equipara à defesa da própria sociedade e se coloca a serviço da manutenção do status quo.
Reivindicando um Estado forte e um aparato jurídico de proteção, as leis voltadas à
proteção e fiscalização contra a exploração do trabalho infantil sofreram diversas alterações
desde o século XIX. Indicando-nos a transitoriedade do tema, deparamo-nos com leis que
regulamentavam o trabalho infantil como o Decreto nº 1.313 de 1891, que já estipulava a idade
mínima de 12 anos para o trabalho. Tal deliberação não fora quase nunca respeitada, e as muitas
indústrias nascentes, bem como a própria agricultura, continuariam a dispor da mão de obra
dos pequenos trabalhadores.
Arrebatados pelos ventos da modernidade, criança e trabalho formavam um binômio
de sucesso: atendia à demanda do mercado e dava aos genitores a oportunidade de tornar o
filho um elemento fértil, cuja renda era um acréscimo ao orçamento familiar. O nascimento da
família operária alçava outro contorno à infância que, ao trabalhar sol a sol para suprir as
necessidades de sobrevivência, viu-se diante de duas possibilidades: ou deixá-los ou conduzi-los
às fábricas e às oficinas. Assim, aos poucos o aperfeiçoamento do processo produtivo acarretava

69
mudanças sociais, econômicas e políticas que repercutiriam também sobre a família. As
transformações cotidianas decorrentes das exigências do trabalho fabril fizeram emergir
socialmente questionamentos sobre a maneira como as classes populares educavam seus filhos,
bem como sobre sua capacidade de influenciar positivamente na formação, sobretudo, do seu
caráter.
Não obstante, o início do século XX, no Brasil, conformou-se num período em que o
trabalho infantil começava a inquietar inclusive a classe trabalhadora. Foi durante a greve geral
de 19178, liderada por trabalhadores urbanos que reivindicavam melhores condições de
trabalho, salários e garantias trabalhistas, que um Comitê de Defesa Proletária foi criado. Esse
Comitê solicitava, entre outras coisas, a proibição do trabalho para os menores de 14 anos e a
abolição do trabalho noturno para mulheres e menores de 18 anos, que, além das doenças,
eram acometidos frequentemente por acidentes de trabalho. Esta reivindicação se faz
contundente quando atentamos para o que ocorria em São Paulo. Nesta capital, segundo dados
do Departamento de Estado do Trabalho, em 1919 chegava a 40% o contingente de menores
trabalhando no setor têxtil (MOURA, 2000). A exploração do trabalho infantil no alvorecer da
República havia atingido a dimensão de problema social, pois testemunhar crianças adoecerem,
morrerem ou serem mutiladas, dentro das fábricas, tornara-se fato corriqueiro.
Somente em meados da segunda década do século XX apresentar-se-ia uma proposta
de lei que acabaria por demarcar a história brasileira de assistência à infância. Em 1925, o juiz
José Cândido de Albuquerque Mello Mattos apresentou à Câmara dos Deputados um novo
projeto que fora transformado em Lei em 1926, e pelo Decreto n. 17.943-A de 12 de outubro de
1927, quando foi finalmente promulgado. Era o Código de Menores, conhecido como Código de
Menores Mello Mattos9, que outorgava parcialmente ao Estado a assistência aos chamados
‘menores’, a proteção contra o abandono, os maus tratos e as influências imorais exercidas pelo
meio social.
No seu Artigo 1º, esta lei já definia a quem estava sendo destinada. As medidas de
assistência e proteção previstas no Código de Menores destinavam-se ao “[...] menor, de um ou
outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido
pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste Código”

8
Essa greve, deflagrada em junho de 1917, teve seu início nas fábricas têxteis e paralisou a cidade de São
Paulo. De acordo com Moura (2000), a greve de 1917 é considerada a mais importante no que tange às
manifestações dos trabalhadores contra os abusos do trabalho infantil.

9
Quando em 1923 foi instituída na administração da Justiça a figura do Juiz de Menores, José Cândido de
Albuquerque Mello Mattos foi nomeado e tornou-se o primeiro ‘Juiz de Menor’ da América Latina.

70
(BRASIL, 1927). O Código de Menores não era endereçado a todas as crianças, e a proteção nele
prevista tinha como alvo as consideradas em situação de abandono ou delinquência.
Referendava uma série de denominações diferentes para a categoria ‘menor’, a saber: expostas
para menores de sete anos, abandonados aos menores de dezoito anos, vadios aos que
moravam nas ruas, mendigos aos que pediam esmolas ou eram vendedores de rua e libertinos
aos que frequentavam prostíbulos. Previa, dentro da mesma perspectiva de assistência, ações
voltadas àquelas marcadas pela condição de desamparo e àquelas que possuíam desvios de
conduta. Instituir-se-ia, a partir daí, uma intervenção legalmente fundamentada no binômio
pobreza-delinquência.
Com a aprovação do Código de Menores Mello Mattos em 1927, entre outras
disposições, ficaria estabelecida a idade mínima de 12 anos para o ingresso no mundo do
trabalho. Esta Lei, ao mesmo tempo, regulamentava questões que abrangiam o tema do
trabalho infantil, especificamente no seu artigo 102, ao estabelecer que, embora proibido o
trabalho para os menores de 12 anos, o juiz poderia autorizá-lo se o considerasse indispensável
à subsistência do menor ou da sua família, desde que o subordinasse à oferta concomitante da
instrução escolar. Nas linhas daquela Lei, também se reconhecia a periculosidade de alguns
ambientes e atividades, como atesta o artigo 103 que proibia a admissão de menores em usinas,
manufaturas, estaleiros, pedreiras, minas ou qualquer outro trabalho subterrâneo. Não
obstante, abria-se a exceção para aqueles que possuíam ao menos a escolaridade elementar, à
época considerada mínima (BRASIL, 1927).
Na década de 1930, período em que Getúlio Vargas ascendeu ao poder, o trabalho
alcançou um status particular e acirrou-se o controle do Estado sobre os menores trabalhadores.
A valorização do trabalho tomou proporções ideológicas e doutrinárias sob o mote da criação e
da defesa do interesse do cidadão-trabalhador. Fato ocorrido no governo getulista que merece
destaque foi que, apesar da ênfase colocada pelo governo sobre o trabalhador, a legislação
acabou sofrendo uma alteração que eliminava a proibição do trabalho antes dos 14 anos. Só em
1943, com a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, recuperar-se-iam algumas
prescrições do Código de Menores sobre o trabalho infantil, como a idade mínima de 14 anos, a
jornada diária de 6 horas e a proibição do trabalho noturno (CAMPOS; ALVERGA, 2001).
Entre as ações jurídico-policiais criadas para corrigir as condutas consideradas
desviantes, destaca-se o Serviço de Assistência ao Menor – SAM. Criado em 1942, seu
atendimento baseava-se em internatos-reformatórios para os infratores e escolas de
aprendizagem de ofícios para os carentes e abandonados, como destacam Cruz, Hillescheim e
Guareschi (2005). De acordo com as autoras, em razão das reiteradas denúncias e críticas pela
falta de higiene, instalações inadequadas, superlotação, ensino precário e uma rotina de

71
exploração do trabalho dos internos, o SAM passou a ser visto como escola da criminalidade, e
seu atendimento tampouco acabou por diminuir a chamada conduta antissocial da juventude,
tão almejada por aquela sociedade.
Cruz, Hillescheim e Guareschi (2005) pontuam que, com o Golpe Militar de 1964, o SAM
foi extinto, estabelecendo-se a Política de Bem-Estar do Menor. Criou-se a Fundação Nacional
de Bem-Estar do Menor – FUNABEM e, nos estados, as FEBEM’s, com a proposta de atender o
menor carente ‘bio-psico-social-cultural’. O atendimento diferenciava-se do SAM porque
pressupunha que, se o ambiente socioeconômico produzia déficits comportamentais, as ações
precisavam ter um caráter compensatório. Nesta direção, no período militar, como apregoa
Vieira (2009), o atendimento infanto-juvenil também se ancorou na ideológica defesa dos
interesses e da segurança nacional.
Não obstante, embora desde o início do século XX os ‘homens de ciência’ clamassem
por uma legislação protetiva, creditando a ela a efetivação do amplo projeto de proteção
idealizado para a infância ‘material e moralmente abandonada’, sabemos que essa legislação
perduraria durante os sessenta anos subsequentes à sua aprovação. Em 1979, quando então foi
reformulado, o Código de Menores continuou a basear-se numa concepção segmentada – na
condição de ‘abandonados’ ou ‘delinquentes’, crianças e adolescentes passaram a ser
enquadrados dentro da chamada ‘doutrina da situação irregular’ e deveriam ser assistidos e
corrigidos pela mão forte do Estado.
Enfim, a inserção do Estado na formalização das políticas de atendimento à infância e
juventude, como ressalta Arantes (1995), não se traduziu em propostas efetivas para a
diminuição da pobreza ou de seus efeitos. Longe de se converter em mudanças nas condições
concretas de vida dessas crianças, se constituiu muito mais em estratégias de criminalização e
medicalização da pobreza. O autor ressalta que, a partir do momento em que a carência, a falta
de moradia e o abandono, o exercício ilegal de atividades laborais colocavam certas crianças na
condição de ‘situação irregular’, pode-se imaginar o que isto representava em um país marcado
por desigualdades sociais, que já no início do século XX abarcava 36 milhões de crianças pobres.
Como se pode notar no alvorecer do século XX e décadas subsequentes, não faltaram
propostas que ambicionavam legitimar o discurso da assistência como resolução de todos os
males. E neste percurso também não faltaram manifestações contrárias à incorporação e
exploração de crianças no mercado de trabalho. Por que a despeito das leis esse fenômeno ainda
persiste nas pautas políticas? Partimos da premissa de que as leis nascem como respostas aos
problemas quando estes já estão postos, e nos parece evidente que “[...] existe um abismo
profundo entre as belas normas e a dura realidade da infância brasileira” (MARCÍLIO, 1998,

72
p.309). A historicidade do tema desnuda a existência de questões que, certamente, ultrapassam
a esfera legislativa e institucional, atestando outros limites, nem sempre considerados.

Trabalho e Infância: velho encontro, novos desafios?

A partir de finais da década 1980, deflagraram-se vários movimentos sociais em busca


de uma política de atenção à infância no Brasil que fosse verdadeiramente protetiva.
Movimentos que culminam na promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA
(BRASIL, 1990), que representa um marco e que corporifica, para além da premissa legal, uma
mudança paradigmática. Tal qual ressalva Carvalho (2008), a utilização da mão de obra infanto-
juvenil, até então considerada sina de crianças pobres, e o trabalho considerado instrumento
pedagógico capaz de torná-las úteis à sociedade e bons cidadãos, passará a ser questionada,
bem como as concepções e as políticas assistencialistas e correcionais vigentes serão alvo de
severas críticas.
Com o ECA, passou-se a prever medidas protetivas, sem discriminar mais nenhum
segmento ou classe social. A todos deveria ser garantida pelo Estado, pela sociedade e pela
família, a chamada proteção integral. Sob o mote dos direitos, programas de combate ao
trabalho precoce foram implementados focando, sobretudo, suas piores formas10. O Capítulo V
do ECA, intitulado “Do Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho”, tratará da
proteção ao adolescente trabalhador especificamente em seus artigos 60 a 69. Enquanto o Art.
60 proíbe a inserção de menores de quatorze anos de idade em qualquer forma de trabalho
(salvo na condição de aprendiz), o Art. 68 prevê que o programa social que ofertar o chamado
trabalho educativo deverá assegurar condições de capacitação para o exercício de uma atividade
regular remunerada. Mas, o que o ECA define por trabalho educativo? Segundo essa Lei,
educativa é toda atividade cuja exigência pedagógica concerne ao desenvolvimento pessoal e
social e prevalece sobre o caráter produtivo da atividade (BRASIL, 1990).
As ações empreendidas a partir do ECA resultaram numa redução do problema, que,
segundo Carvalho (2008), não pode ser desapreciada. Por outro lado, essa redução tem se
tornado mais tênue nos últimos anos, pois entre 1992 e 2002, foi de 34,91%, enquanto entre os
anos de 2002 e 2009 teve queda de 22,44% (BRASIL, 2011). As medidas de combate parecem

10
As piores formas de trabalho infantil envolvem aquelas consideradas perigosas, penosas, insalubres ou
degradantes. Podemos citar o trabalho em carvoarias e olarias, o corte de cana-de-açúcar, a plantação de
fumo, o trabalho em lixões, a exploração comercial sexual, o tráfico de drogas, entre outros...

73
ter atingindo certo limite e por isso conforma-se na atualidade como um problema persistente
e de difícil erradicação.
Problema que tem impelido esforços como os empreendidos pela Comissão Nacional de
Erradicação do Trabalho Infantil – CONAETI11 que identificou como problema central ainda a ser
enfrentado a “persistência do trabalho infantil e de trabalho a partir da idade permitida sem a
devida proteção [...]” (BRASIL, 2011, p. 17). Entre as consequências identificadas, aponta-se que
quanto “mais precoce é a entrada no mercado de trabalho menor é a renda média obtida ao
longo da vida adulta”, a existência de “acidentes de trabalho e problemas de saúde relacionados
ao trabalho em crianças e adolescentes trabalhadores” e, ainda, que o trabalho infantil contribui
para manutenção de “altos graus de desigualdade social” (BRASIL, 2011, p.19).
Entretanto, são as causas e não as consequências do problema central que precisam ser
analisadas, entendendo que as causas estão interligadas dentro de uma cadeia causal. Assim,
não é possível definir linearmente claras determinações do trabalho infantil no Brasil e no
mundo. Contudo, algumas causas poderiam ser elencadas como favoráveis ao seu aparecimento
e/ou manutenção.
Entre as causas do trabalho infantil estaria a desigualdade social e o fato de muitas
famílias ainda terem nele importante fonte de renda (BRASIL, 2011). Nesta mesma direção,
Monte (2008) destaca como causa do trabalho infantil a concentração de renda cada vez maior
e do aumento da pobreza dela decorrente. Outra causa seria o fato de que a prevenção e o
combate ao trabalho infantil não são prioridades para a sociedade e para o poder público. São
também causas importantes a falta de infraestrutura e capacitação dos atores responsáveis pelo
Sistema de Garantias de Direitos de Crianças e Adolescentes (Conselho de Direitos, Conselho
Tutelar etc.), as lacunas presentes na legislação vigente e o conhecimento insuficiente do
fenômeno trabalho infantil, especialmente de suas piores formas. Outras causas seriam a
desarticulação entre os programas e planos e a notória exclusão histórica de segmentos pobres
da população ao acesso à política de educação.
Outro aspecto relevante para a exploração do trabalho infantil está relacionado aos
baixos salários pagos a essa faixa etária, associada às justificativas de que as crianças aprendem
mais rapidamente as tarefas, são mais hábeis e, consequentemente, produzem mais do que
adultos não treinados (FIALHO, 2000, apud SANTANA, 2012). Por fim, outro lastro causal seria o

11
A CONAETI é vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego e foi criada conforme propunham as
Convenções 138 e 182 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Ela é composta de representantes
do poder público, dos empregadores, dos trabalhadores, da sociedade civil organizada e de organismos
internacionais. A esta comissão cabe, entre outras coisas, a implementação de um Plano Nacional de
Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, cuja segunda edição data de 2011.

74
fato de o trabalho permanecer no imaginário social como positivo para crianças em condições
de pobreza, exclusão e risco social (BRASIL, 2011).
Esse imaginário social inegavelmente traz as marcas, como lembra Carvalho (2008), de
uma história de preconceitos, estigmas e discriminações que contribuem para uma associação
determinista e reducionista da pobreza com a delinquência, para a qual se reclama
constantemente ações repressivas e punitivas do Estado. A despeito da evidente exclusão social,
a fim de neutralizar tais estigmas os trabalhadores das classes populares procuram provar que
estão a salvo da “poluição moral da pobreza, apesar da ocupação precária ou do desemprego,
dos salários insuficientes, de moradias inadequadas e de más condições de vida em geral”
(CARVALHO, 2008, p.566). Dessa forma, o trabalho onera valores que ultrapassam o econômico
e articula-se aos de ordem moral. Por temer o envolvimento com a criminalidade, muitas
famílias encaram o trabalho precoce como forma eficaz para o direcionamento saudável do
tempo dos filhos e prevenção da marginalidade. Com isso, atestam os valores morais e a divisão
social do trabalho.
No encalço das políticas de combate, vemos que prevalece tonificada uma dada
representação social da infância, sobretudo daquela pertencente à camada empobrecida da
população, e a crença de que seu caráter poderá ser moldado por meio do trabalho. Campos e
Alverga (2001) asseveram que o argumento de que o trabalho precoce pode se converter em
benefícios para o desenvolvimento e fortalecimento do caráter está alicerçado em uma
concepção ideológica de trabalho, que acaba por encobrir seu verdadeiro papel no processo de
produção de valor dentro da cultura.
Lembram os autores que as ações de combate acabam por ficar comprometidas em
função desses aspectos subjetivos e afirmativos do trabalho e precisam ser desvelados.
Propomos que o mesmo seja compreendido a partir da relação infância pobre – trabalho
precoce, como elo entre o desenvolvimento moral e a formação do caráter. Neste sentido, se
encontra arrolado a uma série de valores culturais e fundamentos ideológicos, revelando
nuances que sustentam algumas políticas que resguardam aparentemente as melhores
intenções.
Vieira (2009) comenta que as estratégias alçadas atualmente pelas políticas
governamentais para o enfrentamento do trabalho infantil têm consistido, maiormente, na
transferência de renda às famílias. Como condição para o recebimento do recurso, as famílias
precisam firmar o compromisso do ingresso da criança na escola e a manutenção da sua
frequência. As crianças precisam, na sequência, participar, no período do contraturno escolar,
dos serviços de proteção social básica. E esse é o cerne das ações do Programa de Erradicação

75
do Trabalho Infantil – PETI12 – um programa que aspira proteger e retirar crianças e adolescentes
com idade inferior a 16 anos da prática do trabalho precoce, resguardado o trabalho, na
condição de aprendiz, a partir de 14 anos.
O trabalho infantil como fenômeno multifacetado tem, nos aspectos econômicos, um
dos seus vieses. Focar esse aspecto e enfrentá-lo com políticas de transferência de renda não
tem se configurado suficiente para que se desconstruam concepções arraigadas histórica e
culturalmente. Não obstante, assegura Vieira (2009, p. 14) que “[...] o aspecto cultural, como
uma das causas que precisam ser enfrentadas, não é alcançado por essas ações” e, neste
sentido, conclui que reduzir “as ações de combate e erradicação do trabalho infantil ao
enfrentamento das questões econômicas [...] compromete o alcance dos diferentes fatores que
envolvem essa temática”.
Poder-se-ia justificar que o PETI não se resume à transferência de renda, mas que
procura atrelá-la ao desenvolvimento de ações socioeducativas e de convivência, como medida
efetiva para o combate ao trabalho infantil, proporcionando, no período contrário ao da escola,
a oferta de refeições, atividades culturais, esportivas e de lazer, além de reforço escolar, com
vistas a contribuir para um melhor desempenho escolar, a ampliação das expectativas de vida e
o desenvolvimento de potencialidades. Porém, efetivamente, em que as chamadas ações
socioeducativas estão acrescentando para que, de fato, tais crianças e suas famílias construam
um novo percurso?
Outrossim, observa Carvalho (2004) que a maioria dos incluídos no PETI, quando
atingem a idade limite de permanência no programa, acaba por não ter concluído sequer o
ensino fundamental, o que implicará no futuro o ingresso em atividades que exigem pouca
escolaridade, restringindo não somente seu leque de oportunidades, mas reproduzindo o ciclo
vicioso de pobreza já vivenciado pelos pais. Deste modo, o PETI

[...] não transforma significativamente as condições e perspectivas dos


seus próprios beneficiários. Os ganhos obtidos quanto a nutrição,
estímulos socioculturais e a própria escolarização tendem a ser
relativamente restritos e temporários. Frequentando uma escola
pública de péssima qualidade (que não estimula a permanência e a
dedicação) e trabalhando no turno complementar, ao ingressar no PETI
os meninos e meninas apresentam um atraso escolar que poucas vezes
pode ser compensado (CARVALHO, 2004, p.59).

12
O PETI foi lançado pelo Governo Federal no ano de 1996 no estado do Mato Grosso do Sul. Com o apoio
da OIT, através do Programa Internacional para a Erradicação do Trabalho Infantil, teve sua cobertura
ampliada para Pernambuco, Bahia, Sergipe e Rondônia, e gradualmente foi sendo implantado em todo
território brasileiro. Em 2005, o PETI foi integrado ao Programa Bolsa Família e na atualidade é um dos
programas que compõem a política do Sistema Único de Assistência Social – SUAS.

76
São as condições reais de existência que atestam que as políticas de transferência de
renda, ainda que para muitos se configurem em real possibilidade de subsistir, não podem dar
cabo de desigualdades que pairam sobre um país em que mais de 16 milhões de pessoas vivem
em extrema pobreza. Esta população, que sobrevive com renda mensal de até R$ 70 por mês,
abarca 40% com menos de 14 anos e, ainda, dos brasileiros com 15 anos ou mais, que vivem na
zona rural, 30,3% são analfabetos, enquanto na área urbana esse índice alcança 22% (IBGE,
2010).
Nessa perspectiva, inclusive as normativas legais ficam sujeitas aos impasses concretos
que impedem uma erradicação efetiva do trabalho infantil. Oliveira (2011) assevera que, mais
do que extirpá-lo, as concepções teóricas que embasam as propostas de enfrentamento a essa
problemática servem, maiormente, à manutenção da ordem vigente, sob um discurso
aparentemente progressista. Perante essa afirmativa, propomos que retornemos novamente ao
ECA e à exceção que, infelizmente, não escapa à regra. Em que condições o trabalho infanto-
juvenil é permitido? Como vimos anteriormente, o ‘trabalho educativo’ é permitido para o grupo
que responde pelo nome de ‘adolescente aprendiz’. Tal permissão incita-nos a lançar um olhar
mais atento para como, por meio de uma manobra sutil, o discurso da proteção acaba mais uma
vez por escamotear a lógica perversa que inspira e torna necessárias certas políticas
socioassistenciais.
Foi o que a análise documental de arquivos de um Conselho Municipal dos Direitos da
Criança e do Adolescente e Conselho Municipal de Assistência Social permitiu a Benelli e Costa-
Rosa (2011) observarem. Os autores constataram, entre outras, que a aclamada ‘formação para
o trabalho’ visa conformar os usuários dos programas socioassistenciais em meros empregados.
Sob a insígnia da profissionalização, preparar para o trabalho significa ensinar o respeito e a
obediência às normas, às leis, enfim, às regras da vida social, e espera converter jovens
trabalhadores em indivíduos moldados, conformados, adaptados e “[...] resignados ao lugar que
lhes toca na estrutura social” (BENELLI; COSTA-ROSA, 2011, p.559). Nessa direção, os autores
problematizam o porquê das atividades que prometem ‘formar para o trabalho’ passarem
basicamente pela aprendizagem do artesanato, pelas oficinas de pintura, bordado, crochê e
costura, ou, ainda, pelos cursos de cabeleireira, manicure, auxiliar administrativo, eletricista,
panificador... Indaga-se deste modo o porquê de a formação da massa trabalhadora excluir, não
por acaso, o preparo e a possibilidade do ingresso numa universidade.
Assim, concluímos que é no interjogo de forças que asseguram a conservação da ordem
social vigente que as políticas governamentais se sustentam, inclusive aquelas políticas que

77
almejam erradicar o trabalho infantil. Essa afirmação nos faz ponderar que a formação para o
trabalho, alçada como dignificante e educativa, acaba por legitimar a separação e a
discriminação do que está reservado a cada uma das classes sociais, como confirmou Campos e
Alverga (2001). Às menos privilegiadas restaria o trabalho manual, enquanto às classes mais
abastadas destinar-se-ia o trabalho intelectual, que arrola consigo inclusive o direito de dizer
quais ações devem ser desenvolvidas pelos demais trabalhadores que compõem a camada
inferior da escala social.

Considerações finais

Procuramos discutir neste texto o tema do trabalho infantil apontando como, a despeito
de sua ilegalidade, ele permanece vigoroso e continua tenazmente desafiando as estratégias
políticas. No Brasil, sobretudo nas últimas décadas, as estatísticas apontam para uma redução
significativa do número de crianças e adolescentes que trabalham. Por outro lado, vimos que
esta redução alcançou certa estabilidade, o que tem suscitado questionamentos a respeito de
por que o trabalho infantil conserva-se como problema social que merece e precisa ser
combatido.
Vimos que há séculos o trabalho tem se configurado como destino de milhares de
crianças pertencentes às camadas empobrecidas da população e, como fenômeno
multifacetado, as questões de ordem econômica, embora sejam estruturantes, não são
suficientes para explicar esse problema. Neste sentido, afirmamos que sua permanência como
mazela social sinaliza-nos a sustentação de concepções ideológicas que permeiam o imaginário
social, que lhe atribuem um viés educativo e dignificante. Propusemos assim que o trabalho
infantil fosse enfim compreendido, considerando como a relação infância-pobre e trabalho-
precoce tem sido preconcebida como elo entre o desenvolvimento moral e a formação do
caráter.
Assim, a crença de que o homem e seu caráter podem ser moldados por meio do
trabalho confirma-nos que, para além das questões econômicas, uma série de valores culturais,
perpassados por ideologias e demarcados por uma concepção de criança como um vir a ser,
orientam práticas e motivam a elaboração de políticas sociais voltadas às familias das camadas
empobrecidas da população. Uma intervenção pontual e precoce que legitima em seu bojo a
separação e a discriminação do que está reservado a cada uma das classes na conjuntura social.
Sob o mote do ‘trabalho educativo’, permite-se a aprendizagem de ofícios que apenas
reproduzem e mantêm a ordem social vigente.

78
Sem olhar para o contexto sócio-histórico no qual a criança e o adolescente se inserem,
as políticas de Estado ocultam a lógica produtora da necessidade de se criarem aparatos de
proteção à infância. Tal necessidade, quando analisada à luz da história, desvela que não há
política capaz de abolir as mazelas sociais sem que se altere a estrutura que as produz, sem que
se problematizem as concepções que as fundamentam.
Entretanto, é preciso que esclareçamos que os apontamentos aqui traçados não
significam uma posição contrária à elaboração e implementação de propostas que previnam e
combatam a exploração da mão de obra infanto-juvenil, do mesmo modo que não desprezam
as ações políticas empenhadas nos últimos anos, como sinalizado anteriormente. Doravante, se
essas políticas contribuíram para que no Brasil o tema do trabalho infantil fosse colocado em
pauta, devemos analisá-las criticamente sob o risco de nos paralisarmos diante dos fatores que
subjazem e sustentam sua permanência.
Nosso olhar para o fenômeno precisa ser destituído de ingenuidade, precisa inquietar e
resistir às artimanhas dos discursos que nos aprisionam e impedem que reconheçamos que
neste velho encontro – infância pobre e trabalho precoce – os desafios que nos cerceiam não
são nada novos. Em última instância, são desafios que expressam as contradições de um sistema
que produz suas mazelas, para, em seguida, criar políticas que, embora se lancem à difícil tarefa
de reduzi-las e ou eliminá-las, muitas vezes não produzem mais efeitos do que os meramente
simbólicos e ideológicos.

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81
82
Capítulo 4

As mulheres no mundo do trabalho: continuidades e rupturas de gêneros na pós-


modernidade

Luciana Codognoto da Silva


Francisco Hashimoto

Este estudo tem por finalidade apresentar breve análise da história das mulheres e das
relações de gêneros vinculadas ao mundo do trabalho. Para tanto, propõe-se discutir as
permanências, as mudanças e os desafios da trajetória feminina nos espaços sociais e suas (re)
significações na vida de homens e mulheres na pós-modernidade.
Ser mãe, esposa e dona de casa era considerado o destino natural das mulheres. Na
ideologia dos anos dourados, ocorrida durante a década de 1950, os ideais de casamento, de
dedicação ao lar e de maternidade faziam parte do que consistia ser a essência feminina. Em
contraponto, percebe-se que, nas décadas subsequentes, as mulheres foram produzindo
rupturas nos padrões tradicionais de gêneros, os quais se mostram presentes na realidade
construída/vivida por elas, principalmente no mercado de trabalho brasileiro.
Embora tenha havido importantes conquistas em relação à participação feminina no
mundo do trabalho, surge a necessidade de novas análises sobre as formas pelas quais tais
conquistas manifestam seus reflexos na atualidade. Ao assumir esse pressuposto, questiona-se:
é possível falar em relações de gêneros mais igualitárias dentro dos limites laborais? Ou as
práticas tradicionais de divisão sexual de papéis continuam a permear a vida e as atividades de
mulheres e homens nos espaços privados e públicos da sociedade?
Utilizando-se das contribuições teóricas propostas por Antunes (1995), Bruschini
(2000/2007), Scott (1995) e demais autores/as, esta pesquisa buscará responder a esses
questionamentos, até então suscitados. Primeiramente, intentará discutir sobre o significado da
categoria trabalho atrelado às concepções históricas propostas pelos estudos de gêneros. Em
seguida, objetivará uma reflexão, mais aprofundada, sobre as continuidades e rupturas de
gêneros e suas manifestações na vida de mulheres em meio ao cenário do trabalho privado e
público na chamada pós-modernidade.

83
Gêneros e Trabalho: um diálogo necessário

A concepção de trabalho passou por diferentes entendimentos ao longo dos tempos e


das sociedades. Etimologicamente, as palavras que mais se aproximavam dela – labor e opus –
eram ligadas semanticamente à ideia de pena física e moral, consequências do pecado original,
ou ainda, uma forma de oferenda a Deus por todo o esforço humano, o opus Dei, tido como a
liturgia dos monges.
Enquanto definição, Albornoz concebe-o, simultaneamente, como: “[...] a ação de
realizar uma obra que te expresse; que dê reconhecimento social e permaneça além da tua vida;
e a de um esforço rotineiro e repetitivo sem liberdade, de resultado consumível e incômodo
inevitável” (ALBORNOZ, 1994, p.9).
Para Antunes (1995), a ação do trabalho consiste na transformação de algum aspecto
da realidade. Ao ser transformado em parte material, o mundo subjetivo também se constrói e
reconstrói. Esta realidade permite aos sujeitos impulsionarem novos projetos e novas
ideações/objetivações em suas práticas e vivências cotidianas.
Arendt (2009) designa as três atividades relacionadas à condição humana: o labor, a
ação e o trabalho. O labor é definido, por ela, como a atividade relacionada ao processo
biológico do corpo, ou, ainda, ao trabalho do corpo pela sobrevivência. Enfim, a condição
humana do labor é a própria vida. A ação corresponde à atividade exercida diretamente entre
as pessoas, sem a mediação das coisas ou da matéria. Logo, ela está representada pela condição
humana da pluralidade, o que diferencia o ser humano de qualquer pessoa que tenha existido,
exista ou venha a existir. Em relação à terceira atividade referente à condição humana, o
trabalho, Arendt ressalta que:

[...] é a atividade correspondente ao artificialismo da existência


humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo
vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último.
O trabalho produz um mundo ‘artificial’ de coisas, nitidamente
diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras
habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a
sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição
humana do trabalho é a mundanidade (ARENDT, 2009, p. 15).

Segundo a autora, as três atividades, o labor, a ação e o trabalho, e as suas respectivas


condições, a vida, a pluralidade e a mundanidade, estão intimamente relacionadas à existência
humana. Para ela, o labor assegura a sobrevivência do indivíduo e de sua geração; a ação
proporciona condições para o estabelecimento da memória, isto é, da história do sujeito; e o

84
trabalho, acompanhado de seu produto, o artefato humano, oferece certa materialidade,
permanência e durabilidade ao tempo e às necessidades de homens e mulheres.
Neste contexto, pode-se dizer que, historicamente, as mulheres sempre trabalharam.
Contudo, ocorreu que, sem serem remuneradas, elas ficaram incumbidas das tarefas de
reprodução, ligadas ao âmago da vida privada, e os homens, por sua vez, às de produção,
vinculadas à vida pública social, “[...] transformando essa rígida divisão sexual do trabalho em
natural, própria à biologia de cada sexo” (MASSI, 1992, p.79).
Sendo assim, a divisão sexual do trabalho pode ser descrita como:

[...] decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é
um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os
sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como
características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva
e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a
apropriação pelos homens das funções com maior valor social
adicionado (HIRATA; KÉRGOAT, 2007, p. 599).

Essas diferenças biológicas foram adotadas pelo discurso histórico-cultural de cunho


naturalista e determinista para explicar e manter contendas sociais e profissionais, de forma a
produzir um modo peculiar de subjetividade feminina, profundamente ligada à esfera doméstica
e aos ideais de maternidade. Assim, até meados dos séculos XVIII e XIX, a visão elaborada e
dirigida às mulheres ainda se relacionava aos papéis domésticos, ao casamento e à criação dos
filhos, conforme se pode verificar em:

O casamento, ao contrário, enobrecia a mulher e abria-se como a


única possibilidade de ascensão social, em um tempo que não eram
permitidas às mulheres atividades que possibilitassem sua promoção
por seu esforço próprio. Apenas através do casamento e da criação de
uma família, a mulher podia instituir uma atividade própria ainda que
esta área fosse carente de poder político e econômico (ROCHA-
COUTINHO, 1994, p. 83).

Ao executarem a supervisão e as atividades do trabalho doméstico, as mulheres


passaram grande parte do tempo confinadas ao espaço da individualidade e da vida privada do
lar, o que contribuiu para que lhes fosse atribuído, segundo Menegat (2009), um caráter de não
trabalho, visto que tais atividades não apresentavam remuneração de qualquer ordem, seja
econômica seja de reconhecimento social. Em paralelo, foi percebida na década subsequente
uma maior participação das mulheres no mercado de trabalho assalariado, de forma a

85
ocuparem, significativamente, os espaços das fábricas. Contudo, essa maior presença feminina
no mundo público não passou a ser concebida como fonte de realização pessoal para muitas
delas. Para Rocha-Coutinho, isso se deve ao fato de que

[...] o trabalho feminino era aceito pela sociedade do século XVIII


apenas na medida em que complementava a renda familiar e na
medida em que era necessário aos interesses da industrialização
crescente no Brasil. Assim, a mão-de-obra feminina se colocava como
um exército industrial de reserva, acionado sempre que necessário aos
interesses do Estado. E o Estado buscou sempre controlar a atuação
da mulher, limitando-a a tipos especiais de ocupações (geralmente
educacionais e/ou assistenciais e de prestação de serviços)
supervisionados e/ou controlados por homens (ROCHA-COUTINHO,
1994, p. 95).

Nas palavras da autora, o trabalho feminino, apesar de importante para a manutenção


da ordem social vigente, continuava a ser percebido como subsidiário ao do homem. Ela ainda
argumenta que a divisão sexual do trabalho tem suas raízes no âmbito biológico, passando a ser
transportada para a esfera da cultura, onde se materializa em valores dissonantes, os quais têm
possibilitado modos muito particulares de demarcação dos espaços sociais e profissionais a
homens e mulheres.
Já a partir da década de 1960, o Movimento Feminista possibilitou espaço para
importantes críticas ligadas às práticas sociais pautadas nas relações entre os sexos. Tal
Movimento teve como principal proposta desmistificar as raízes naturais e históricas que se
tornaram determinantes para a elaboração de uma visão fragmentada e funcionalista sobre
homens e mulheres no contexto social, em especial aquelas repercutidas no mundo do trabalho.
No Brasil, o Movimento Feminista abriu espaço para importantes rupturas de
paradigmas identitários, de forma a favorecer a criação de um ambiente de debates, que teve
como foco primordial os estudos de gêneros. Estes estudos conquistaram lugar privilegiado nas
universidades, ao discutir o tema trabalho e ao ter como primeiro alvo de análise as mulheres
trabalhadoras e carentes. Naquele momento, as pesquisas acadêmicas estavam voltadas às
situações vividas pelas mulheres nos diferentes espaços e conjunturas laborais, dentre os quais
destacam-se: a existência das duplas jornadas, os baixos salários pagos a elas e a inferiorização
feminina em cargos de chefias. Tais pesquisas se fizeram com base as concepções respaldadas
pelos estudos de gêneros.
Como demonstra Scott (1995), o termo gêneros surgiu na tentativa de designar as
relações sociais entre os sexos. Assim, salienta a autora que:

86
No seu uso mais recente, o termo gênero parece ter aparecido
primeiro entre as feministas americanas que queriam insistir na
qualidade fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo.
A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito
no uso de termos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’ [...] Nos Estados
Unidos, o termo gênero é extraído tanto da gramática, do uso da
linguística, quanto dos estudos de sociologia dos papéis sociais
designados às mulheres e aos homens. Embora os usos sociológicos de
‘gênero’ possam incorporar tônicas funcionalistas ou essencialistas, as
feministas escolheram enfatizar as conotações sociais de gênero em
contraste com as conotações físicas de sexo (SCOTT, 1995, p. 86).

Visto como um conceito plural e fundamentado em analogias históricas e sociais, as


relações de gêneros se estabelecem, segundo a autora, mediante três principais características:
como dimensão relacional, como construção social da diferença entre os sexos e como campo
primordial onde se articulam as relações de poder. Para Scott (1995), a dimensão relacional e a
construção social da diferença entre os sexos se referem às categorias de análise histórica,
votadas às problematizações de como são estabelecidos os comportamentos ditos masculinos
e femininos na sociedade. Assim, os gêneros se resumem, segundo a autora, na “[...] maneira
de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das
mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo
sexuado” (SCOTT, 1995. p.86).
No que se refere às relações de poder, Foucault (2000) salienta que não existe algo
unitário ou global que possa ser chamado de poder, mas formas díspares e heterogêneas em
constante transformação, uma prática social constituída historicamente. Em suma, o poder não
se encontra fixo em um local específico da estrutura social. Ao contrário, ele funciona, segundo
Foucault (2000), como uma rede de dispositivos que caracteriza uma relação também marcada
por mecanismos de resistências. No caso estudado, tais pressupostos ligados às artimanhas do
poder apresentam-se da seguinte maneira: de um lado, refletem o crescimento da presença
feminina no mercado de trabalho brasileiro e, de outro, vem demonstrar que tal crescimento
encontra-se, em grande parte, marcado por alguns atrasos e importantes permanências de
marcas de gêneros.
Esse fato se vê alentado pela demarcação do mercado de trabalho que tem dirigido às
mulheres, sobretudo às pobres e negras, aos grupos de mão-de-obra secundária, marcados
pelos baixos salários, desqualificação e instabilidade profissional e invisibilidade social. Destarte,
a questão estrutural sobre o caráter do trabalho feminino tem possibilitado a discussão das
formas históricas e culturais da divisão sexual e social do trabalho, conforme apontam as

87
pesquisas de Saffioti (1976), autora que se destaca pela análise dos fatores de gêneros, classes
e raças/cor e pelos reflexos históricos que essa tríade tem deixado transparecer na trajetória
trilhada pelas mulheres em diferentes contextos brasileiros.
Logo, ao se problematizar o conceito de classe, Thompson (1992) destaca:

Por classe, entendo um fenômeno histórico. Não vejo a classe como


uma estrutura, nem como uma categoria, mas como algo que de fato
acontece nas relações humanas. Mais do que isso, a noção de classe
contém a noção de relação histórica [...]. Essa relação vem sempre
corporificada em pessoas reais e num contexto concreto (p. 67).

Sob o ponto de vista econômico e social, observou-se que, durante as décadas de 1980
e 1990, o Brasil presenciou significativas transformações, marcadas por períodos alternados de
inflação e estabilização da moeda. Nesse momento, a reestruturação da economia brasileira
esteve ligada à perda significativa de postos de trabalho nos setores formais da economia e pelo
consequente aumento dos modelos mais precários de contratação profissional – o
assalariamento sem carteira assinada, o trabalho autônomo e a queda dos rendimentos
econômicos pelo trabalho –, fatores que influenciaram, diretamente, as famílias e muitos
cidadãos brasileiros, de maneira especial as mulheres que passaram, em pleno momento de
crise econômica no país, a participar das analogias envolvendo o mundo do trabalho não restrito
ao lar.
Alavancadas pelas (re)configurações econômica, familiar e social do período vigente, as
mulheres passaram a exteriorizar muitos de seus desejos, os quais se centravam na construção
de um projeto identitário não ligado ao plano doméstico e aos ideais de maternidade, conforme
atestam os estudos de Emídio e Castro (2010). Neste contexto, surgem no Brasil as novas
alternativas de trabalho, representadas tanto pelo declínio do número de empregos formais,
com direitos e garantias previstos em lei, quanto pelo desemprego e o aumento da
informalidade em muitos setores da economia. É, pois, nesse contingente que o trabalho
feminino passou a ocupar um importante papel na atividade econômica do país e na nova
manutenção da ordem doméstica e familiar brasileira, iniciada em fins do século XX.

As Mulheres no Mundo do Trabalho: manutenção ou redefinição de antigos papéis sociais de


gêneros?

Até meados do século XX, os ideais de maternidade e de concepções ligadas ao lar


mantiveram seus reflexos na sociedade brasileira, colaborando não somente para a manutenção

88
da ordem familiar-doméstica, como também para a formação de um princípio pedagógico que
se estendeu ao registro das primeiras profissões ocupadas pelas mulheres no país.
Para Rocha-Coutinho (1994), tais profissões se mostraram carregadas de marcas
geradas por representações que se estendiam, por conseguinte, aos trabalhos assistenciais e
educacionais, como os de enfermeira e professora, considerados tipicamente femininos por
estarem ligados essencialmente aos papéis maternos e de cuidados. Mais precisamente com o
advento das guerras mundiais, sucedidas entre os períodos de 1914-1918 e 1939-1945, as
mulheres, em especial aquelas pertencentes às classes menos abastadas, passaram a participar
diretamente da esfera pública, antes reservada aos homens.
Na visão de Arendt (2009) os termos público e privado se relacionam a importantes
territórios de expressão das representações, sobretudo as que tangem à concepção de feminino
e masculino nos domínios da sociedade. Ao realizar uma análise mais remota desses dois
termos, a partir da concepção grega, a autora ressalta, de um lado, o público como um meio de
referência à construção da identidade e expressão do sujeito e, de outro, como espaço que
poderá ser escutado por todos/as, ao apresentar máxima publicidade e tornar-se comum às
pessoas. Logo:

[...] o termo público significa o próprio mundo, à medida que é comum


a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo,
contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado
para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica.
Antes, tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos
humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos habitam o
mundo feito pelo homem [...]. A esfera pública, enquanto mundo
comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo, evita que
colidamos uns com os outros, por assim dizer (ARENDT, 2009, p. 62).

O privado, por sua vez, é definido pela autora como local de privação e necessidade,
bem como um espaço pertinente à manutenção da vida, o labor, tido como o trabalho do
próprio corpo em busca da sobrevivência física. Enfim, o privado, nas palavras de Arendt (2009),
remete aos fatos e às coisas que devem ser ocultas pelos/dos indivíduos.
Essas considerações possibilitam trilhar um caminho de entendimento sobre as
permanências e rupturas referentes à participação feminina no mundo do trabalho assalariado.
Estudos recentes, como aqueles enfatizados por Bruschini (2007), vêm revelar novas
configurações do trabalho e na situação feminina no mercado laboral brasileiro em fins do
século XX e início do século XXI. Tal estudo demonstrou que, apesar dos progressos ocorridos
em relação à maior inserção das mulheres nos setores formais da economia, ainda continua a

89
se manter os denominados guetos ocupacionais femininos no país. Estes guetos, por sua vez,
encontram-se representados pela participação majoritária das mulheres nos serviços de saúde,
educação, bem-estar social, humanidades e artes em geral.
Para Hirata e Kérgoat (2007), as causas de tais permanências continuam sendo as
análises restritas de sexos/gêneros e as suas ligações íntimas com o capitalismo. Isso porque,
mesmo com os avanços conquistados pelas mulheres, continuam a perpetuar as tensões e
contradições, as quais evidenciam, fundamentalmente, a conflituosa delegação das
responsabilidades familiares como sinônimos do feminino. Outros estudos, como aqueles
enfatizados por Bruschini e Lombardi (2002) e, posteriormente, por Bruschini (2007), vêm
chamar a atenção para dois pontos significativos: o primeiro se refere à intensa incorporação
feminina no mercado de trabalho assalariado; o segundo está representado pela persistência de
relações desiguais de emprego, caracterizada pelo alto índice de mulheres em atividades e
remuneração precárias no país.
Ao problematizar esse fenômeno, Bruschini e Lombardi (2002) salientam que se devem
levar em conta duas posições distintas de análise. A primeira é que as mulheres deixaram de ser
apenas uma parte da família para liderá-la em algumas situações, de forma a conjeturar um
novo projeto identitário feminino, não recluso aos limites do lar e ao cuidado dos filhos. A
segunda posição é que, mesmo estando a ocupar números mais significativos de participação
no mercado de trabalho no país, suas atuações ainda acontecem, em grande parte, de forma
precária e informal, conforme atesta o estudo de Silva (2011), o qual versa sobre o trabalho de
mulheres na reciclagem em um município do interior do Oeste Paulista.
Sob outro prisma, rupturas têm sido observadas em relação ao trabalho feminino,
ocorridas desde o final da década de 1980. Uma delas refere-se ao maior acesso das mulheres
aos cursos de graduação e técnico-científico, resultando na melhoria do perfil da força de
trabalho feminina. Segundo Bruschini e Lombardi (2002), as razões dessas rupturas estariam
relacionadas não somente aos fatores econômicos, mas, sobretudo, às transformações
culturais, demográficas e sociais, que têm afetado diretamente grande parte das famílias
brasileiras. A queda da taxa de fecundidade, o envelhecimento da população, o maior acesso
das mulheres às universidades e aos níveis mais elevados de estudos e os novos arranjos
familiares, representados pelo crescente número de lares que centralizam as mulheres como
seus principais provedores ou coprovedores, são exemplos importantes dessas mudanças,
conforme realçam, primeiramente, os estudos de Bruschini e Lombardi (2002) e,
posteriormente, os de Hirata e Kérgoat (2007).
Outro aspecto importante em relação ao novo perfil de trabalho feminino se refere à
faixa etária e à situação social de grande parte das mulheres trabalhadoras brasileiras. Se, nas

90
décadas de 1970 e 1980, a maioria das trabalhadoras era jovem, solteira e sem filhos, ao final
dos anos 1980 e início dos anos 1990, passa a se tornar mais velha, com união afetiva estável e
com um número reduzido de filhos. Para Bruschini e Lombardi (2002), as razões dessas
mudanças estariam relacionadas:

A diversificação das pautas de consumo, gerando novas necessidades


e desejos, o empobrecimento da classe média e a necessidade de arcar
com os custos de educação e saúde, devido à precarização dos
sistemas públicos de atendimento, fariam parte desse processo.
Contudo, esse aumento também é fruto de um intenso processo de
modernização e de mudança cultural observados no Brasil a partir dos
anos setenta, do qual faz parte a expansão da escolaridade, à qual as
mulheres vêm tendo cada vez mais acesso (BRUSCHINI e LOMBARDI,
2002, p. 9-10).

Com o desenvolvimento tecnológico das décadas de 1960 e 1970, os modelos de família


baseados nas figuras homem/provedor e mulher/dona-de-casa foram sofrendo significativo
declínio. Tal fato se deveu, principalmente, à abertura de novos postos de trabalho que,
assumidos pelas mulheres, foram associados à redução dos salários dos homens, constituindo
fatores que colaboraram também para a maior participação feminina no mercado de trabalho
assalariado.
Somando-se a isso, há que se destacar a ascendente inserção feminina nas profissões
consideradas de maior prestígio econômico e social, como as carreiras de magistratura e aquelas
ligadas à área médica e às engenharias em geral, as quais, apesar de serem consideradas durante
muito tempo como redutos ocupacionais masculinos, passaram, nas últimas décadas, a
concentrar um número significativo de mulheres. A partir dessas considerações, pode-se dizer,
com base nos diferentes estudos elencados até esse momento, que a população feminina
brasileira tem se voltado, desde as três últimas décadas, para o trabalho assalariado, mesmo em
meio às nuances e às contradições que ainda permeiam esse processo de trabalho versus
relações entre os gêneros.
Tal fato também acena para o que Castells (1999) denominou de crise da família
patriarcal, na medida em que a supervisão/chefia da casa deixa de ser papel exclusivamente do
homem para se tornar também espaço das mulheres, possibilitando a elas, apesar das duplas
jornadas, a participação considerável no mercado de trabalho assalariado. Tais aspectos podem
ser percebidos nas palavras de Oliveira (2005), ao enfatizar que:

91
O modelo de dona-de-casa em tempo integral, tão valorizado ao longo
das décadas passadas e que implicava, inclusive, uma situação de
status, experimentou um crescente esvaziamento. Em contrapartida,
o espaço público do trabalho, antes domínio masculino, passou a ser
compartilhado por mulheres casadas e mães, que vislumbravam no
exercício do trabalho remunerado uma possibilidade de realização
pessoal fora do espaço privado da família (OLIVEIRA, 2005, p. 124).

Portanto, as figuras de homem/provedor e mulher/dona-de-casa em tempo integral


vêm perdendo força, de modo que as mulheres do século XXI estão a romper com as
representações de maternidade e domesticidade como elementos essenciais direcionados ao
feminino. Essa nova configuração do trabalho reproduz as causas e as consequências dos novos
arranjos familiares, salientados tanto por Birman (2007) quanto por Emídio e Castro (2010).
Esses arranjos acontecem na medida em que a família passa a ser sustentada não apenas por
um provedor, o pai/homem, como também passa a se tornar elemento de um movimento
bilateral, em que homens e mulheres detêm importantes contribuições para organização do
ambiente doméstico e social.
Não obstante, faz-se necessário destacar que muitas dessas mudanças ainda não
conseguiram ser efetivadas socialmente, devido ao fato de muitas mulheres apresentarem
dificuldades para desconstruírem os sentidos conferidos pelas representações domésticas e
maternas em suas vidas. Menegat (2010) destaca que essas reproduções sociais consistem em
artimanhas estabelecidas no seio familiar, local onde são tecidos os modos de subjetivação e os
comportamentos tidos como peculiares a homens e mulheres que se apropriam, internalizam e
perpetuam tais significados em diferentes contextos históricos e culturais. Portanto,
desconstruir essas teias e desatar esses velados “nós sociais” tem sido uma das tarefas mais
constantes na vida de muitas mulheres, principalmente no que se refere à criação e ao cuidado
dos filhos. Entretanto, esse processo nem sempre consiste em uma tarefa fácil, uma vez que,
segundo a autora:

O soltar de teias em relação aos/às filhos/as não ocorre livre de


dilemas porque são atribuições históricas que fazem parte do universo
feminino, muitas vezes naturalizadas como funções delas,
responsabilizando-as para com essa atuação, o que denota a ideia de
que os/as filhos/as são, antes de tudo, filhos/as das mulheres. Essa
situação por vezes é mantida por elas próprias, na medida em que
potencializam suas atuações nessa posição, como se fossem figuras
centrais e fundamentais. Com isso, colocam as atuações dos
companheiros numa escala de capacidade inferior no desempenho de
ações com o cuidado com filhos/as (MENEGAT, 2010, p. 12).

92
Esta perspectiva, apontada pela autora, penetra os campos de saber sobre os sexos e os
corpos, na medida em que a categorização binária do ser humano passa a ser uma identidade
passível de dissolução, amparada nas análises que envolvem os gêneros. Constituídas em
práticas discursivas e históricas, tais desigualdades, que marcam a condição social das mulheres,
passam a ser consideradas mediante a naturalização das diferenças entre os sexos, conferindo
papéis sociais e, por conseguinte, desigualdades a homens e mulheres no mundo do trabalho.
Exemplo disso são as duplas jornadas laborais desempenhadas pelas mulheres, representadas
pela execução das tarefas diárias domésticas, do ser mãe e profissional. Há também que ser
mencionados os baixos salários pagos a muitas delas e a menor participação feminina em cargos
de chefia, conforme se pode verificar nos estudos de Bruschini (2007) e de Hirata e Kérgoat
(2007).
Se, no contexto público, importantes rupturas de gêneros vêm sendo efetivadas, no
contexto privado, muita coisa ainda continua igual, uma vez que (co) existem as diferenças
sociais que contribuem para o acúmulo do trabalho feminino no lar. Sobrecarregadas no espaço
doméstico, muitas mulheres, em especial aquelas de menor poder aquisitivo, passam a
apresentar índices mais baixos de atividade produtiva, se comparadas à população feminina de
classes média e alta, colaborando para suas inserções e permanências em trabalhos pouco
reconhecidos econômica e socialmente e no âmbito dos direitos previstos em lei.
Este descompasso deixa transparecer importantes traços ligados às práticas sociais de
gêneros, classes e raças/cor que, por sua vez, dificultam os novos olhares dirigidos às mulheres
no âmbito do mercado de trabalho brasileiro. Entretanto, não se pode negar que importantes
rupturas têm sido observadas na vida de muitas mulheres, ainda que de forma tênue,
contribuindo para a construção de relações menos hierarquizadas de gêneros, as quais tendem
a ser edificadas mediante um processo de constantes questionamentos, em analogia às
redefinições e às manutenções de antigas desigualdades sociais entre os sexos.

Considerações Finais

Ao analisar os aspectos voltados à interface dos estudos de gêneros e do trabalho


durante esta pesquisa, pode-se afirmar que a significativa participação das mulheres no
mercado profissional e, consequentemente, as melhores possibilidades de inserção feminina na
vida pública não foram relevantes para que se pudesse pensar em igualdade de gêneros, ou

93
ainda, em relações sociais e profissionais mais democráticas entre homens e mulheres. Muitas
dessas convergências ainda continuam, de certa forma, determinantes no curso das analogias e
das práticas sociais estabelecidas de acordo com os sexos. No contexto do trabalho assalariado,
apesar dos avanços conquistados pelas mulheres, rupturas necessitam ser efetivadas, sobretudo
quando referendados os baixos salários, a menor participação feminina em cargos de chefia
e/ou em carreiras consideradas de maior prestígio econômico e social.
Entretanto, esses aspectos não devem ser analisados somente pelo viés dos estudos de
gêneros e do trabalho. Outros aspectos, como as questões de classes e raças/cor, possibilitam
críticas pormenorizadas dos fatores que envolvem a participação feminina no mundo do
trabalho, ligado tanto ao âmago da vida privada quanto pública. Ademais, é preciso lembrar que
o contexto doméstico, considerado historicamente o reduto feminino por excelência, continua
a ser o lugar onde as assimetrias de poder sobre os sexos parecem ganhar contornos menos
visíveis de mudanças, apesar de muitas delas estarem sendo efetivadas gradualmente desde o
final do século XX.
A sociedade tem se transformado, ainda que de forma muito lenta e resistente à
mudança de velhos paradigmas. Teorias têm sido reformuladas, de tal forma a já apresentar
outra visão em relação à participação feminina no mundo do trabalho. Tudo isso deve-se à luta
de muitas mulheres por melhores condições de inserção social e de igualdade de participação
no mundo do trabalho, seja ele privado ou público. Embora uma parcela das mulheres esteja
engajada nos espaços públicos da sociedade, muitas delas ainda buscam melhores condições de
trabalho com direitos e garantias previstos em lei e equidade de participação social e laboral. É,
pois, nessa conjuntura que as mais importantes rupturas deverão ser efetivadas, a fim de que o
espaço do trabalho não seja o local por excelência do exercício do poder e o lugar onde imperam
antigas e novas tensões entre os gêneros.

Referências

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94
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MENEGAT, Alzira. Mulheres assentadas e acadêmicas construindo novos pertencimentos
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Dourados – UFGD. Dourados, 2011.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

95
Capítulo 5

Fenômeno migratório: o caso dos dekasseguis

Cizina Célia Fernandes Pereira Resstel


José Sterza Justo

Velhas como o homem, as migrações humanas têm sido


encaradas desde muitos pontos de vista. Numerosos estudos
têm considerado as implicações históricas, demográficas,
culturais, religiosas, políticas, ideológicas, econômicas, etc., das
migrações, implicações que são, sem dúvida importantes e
transcendentais (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p. 11, tradução
nossa.).13

O Homo Viator

Diversas características têm sido tomadas como centrais no homem e consideradas


responsáveis primeiras pelo seu desenvolvimento como espécie animal bastante diferenciado.
A inteligência foi dessas características consideradas tão fundamentais que deu ao homem a
alcunha de Homo Sapiens. Outras qualidades também foram enfatizadas mediante tantas outras
denominações, tais como Homo Erectus, Homo Sacer, Homo Habilis, Homo Faber, Homo Ludens,
Homo Economicus e assim por diante.
Outra característica que não poderia deixar de ser destacada como central para a
construção da humanidade seria a da mobilidade, ou seja, a capacidade e disposição do homem
para se deslocar, para sair de um lugar e ir para outro. Marcel (1967) considerava tão importante
a itinerância do homem que não teve dúvidas em considerá-lo como Homo Viator. Rouanet
(1993), na mesma linha de pensamento, enfatiza que a essência do homem é viajar, mesmo que
sejam viagens fortuitas como essas atuais que turistas fazem por lugares fugazes como a
Disneylândia. Maffessoli (2001, p.21-34) é outro autor que considera a movimentação humana
um traço fundamental, segundo ele, decorrente da “pulsão da errância”.

13
Viejas como el hombre, las migraciones humanas han sido encaradas desde muchos puntos de vista.
Numerosos estudos han considerado las implicaciones históricas, demográficas, culturales, religiosas,
políticas, ideológicas, econômicas, etc., de las migraciones, implicaciones que son, sin duda, importantes
y trascendentales (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p. 11).

96
Ainda que não se considere a mobilidade como um traço central, indubitavelmente ela
é uma parte constitutiva fundamental do homem. Ao lado da sabedoria, da capacidade
laborativa, da postura ereta e de tantas outras, está também a itinerância, o nomadismo, a
errância, a andança, enfim, a disposição e a habilidade do homem para realizar deslocamentos
no plano geográfico, social, psicológico e cultural.
Dentre as diferentes experiências humanas de deslocamento e mobilidade estão essas
que se expressam no chamado fenômeno migratório. O conceito de migração não é simples,
nem existe consenso em torno dele. De maneira geral, refere-se a deslocamentos de um lugar
a outro, a movimentações que possuem uma origem e um destino, imbuídas do propósito de se
fixar ou residir em outro território. Tais movimentações tendem a formar fluxos de trânsito de
uma região a outra, dentro de um mesmo país, como no caso das chamadas “migrações
internas”, ou a fluxos de movimentações entre diferentes países ou continentes, como ocorre
com os chamados “migrantes internacionais”, comumente designados como “imigrantes”. Os
fluxos de partida foram nomeados como “emigração” e os da chegada ao destino como
“imigração”. Paralelamente, surgiram os conceitos de “emissão” e “recepção” para caracterizar
regiões ou países dos quais partiam ou para os quais chegavam os migrantes.
No mundo atual, o conceito de migração se torna ainda mais complexo pelo aumento
vertiginoso das diferentes formas de mobilidade e de trânsito entre uma localidade e outra,
entre regiões geograficamente distantes, entre países, continentes e entre povos e culturas
marcadamente diferentes. Hoje, diferentemente de outras épocas, são relativamente comuns
as viagens de turismo, de negócios, de trabalho, de estudos, de intercâmbios culturais e
científicos e tantas outras viagens, com duração bastante variável. É possível permanecer em
um lugar longínquo por alguns dias ou por uma larga temporada ou, ainda, ter domicílios em
diferentes países. Por exemplo, são considerados “migrantes regionais” cantores e demais
artistas que se deslocam do nordeste brasileiro para se fixarem na Cidade do Rio de Janeiro ou
em São Paulo? São considerados “imigrantes” executivos de empresas multinacionais que
deixam seu país natal para residirem em outros países? São considerados “imigrantes”
representantes e funcionários de outros países, tais como embaixadores, cônsules e outros
estrangeiros? Aliás, qual a diferença entre “imigrante” e “estrangeiro”? Por que todos os
“imigrantes” não são simplesmente tratados como “estrangeiros”?
Santamaria (2002) chama a atenção para o fato de que o fenômeno migratório é uma
construção fortemente assentada no imaginário social e em formações discursivas
transpassadas por relações de poder, interesses econômicos e políticos, e por dinamismos
psicológicos. Dessa forma, o “imigrante” carrega consigo, frequentemente, imagens que o
retratam como um intruso, perigoso, um ser inferior, incivilizado e tantas outras que até podem,

97
inversamente, retratá-lo de forma positiva. Destaca ainda esse mesmo autor que a experiência
da imigração se desenvolve, precipuamente, na relação com o estranho, com o desconhecido,
no desafio do encontro com um “outro radical”, ou seja, com tudo aquilo – especialmente outros
seres humanos – que soa como não familiar, como absolutamente diferente.
Dentre os fenômenos migratórios da atualidade, podemos tomar como emblemático
aquele que se expressa no caso dos chamados Dekasseguis: descendentes de japoneses que
retornam à terra dos seus antepassados – o Japão – para trabalharem durante algum tempo ou,
eventualmente, para residirem em caráter definitivo. O caso dos Dekasseguis pode ser tomado
como paradigmático, como uma experiência de encontro/confronto com o estranho, com o
“outro radical”. Mesmo sendo descendentes de japoneses emigrados para outros países, como
o Brasil e Peru, na America Latina, ao retornarem para o país dos seus antepassados os
Dekasseguis se confrontam com uma cultura e um modo de vida muito diferentes daqueles do
seu país natal. Vivem uma experiência de estranhamento muito particular porque se trata de
não se reconhecerem nas imagens daquele outro, de um espelho que, mesmo à distância, fez
parte da constituição de suas referências de si mesmo: a cultura japonesa veiculada pelos seus
antepassados que emigraram do Japão e cultivaram hábitos, costumes, língua, culinária,
tradições e tantas outras referências simbólicas oriundas da terra natal. Portanto, a
compreensão das experiências dos Dekasseguis, tomadas como experiências
fundamentalmente construídas no encontro/confronto com a figura do outro, não se restringe
a um caso particular, mas sim oferece elementos para o entendimento dos desafios que a
mobilidade e, consequentemente, os relacionamentos com o estranho colocam para o homo
viator da contemporaneidade.
Fusco e Souchaud (2010) afirmam que a imigração de retorno dos dekasseguis tem sido
pouco estudada na América Latina, devido à predominância do interesse no fluxo migratório de
outras etnias, como a européia, asiática e africana. No entanto, aos poucos os dekasseguis estão
ocupando espaços na ciência e nas políticas públicas, sobretudo, com os desafios e problemas
gerados pelos retornos desses migrantes ao Brasil, intensificados pela desaceleração da
economia japonesa nos últimos tempos.

A chegada dos japoneses ao Brasil

Ennes (2001) traz em seu trabalho a trajetória da imigração japonesa no Brasil,


destacando a primeira visita oficial japonesa feita, em 1884, pelo deputado Massayo Neguishi,
com o propósito de escolher o estado mais adequado para adaptação dos japoneses ao Brasil.

98
Ele conheceu os estados de Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo, resultando da sua viagem a
escolha do Estado de São Paulo, pelo fato de a terra e o clima proporcionarem condições
consideradas ideais para os japoneses fixarem o seu lugar de morada. O primeiro tratado
comercial marítimo Brasil/Japão foi firmado em 1895, seguido da iniciativa do governo japonês
de enviar ao Brasil um diplomata japonês. “Esse tratado se baseava nos seguintes princípios: paz
perpétua entre Brasil e Japão, instalação de representação diplomática, liberdade econômica e
comercial, isenção de tributos sobre importação e liberdade de consciência, entre outros”
(ENNES, 2001, p.49).
Em 1897, foi assinado um contrato entre a Companhia de Imigração Tôyo do Japão e a
empresa Prado & Jordão, prevendo a vinda de 1500 japoneses para trabalharem nos cafezais
paulistas. Porém, a empresa brasileira rompeu o contrato desses imigrantes. Depois de sete
anos, o Japão voltou a pensar no envio dos japoneses ao Brasil. Através dos meios de
comunicação eram oferecidas propostas otimistas sobre prodigiosas terras e um futuro melhor
no Brasil.

Entre 1906 e 1907, o presidente da Companhia Colonizadora Kôkuko,


Ryú Mizuno, faz visitas ao Brasil. Na primeira viagem fez um
reconhecimento das condições ambientais e agrícolas do Estado de
São Paulo. Na segunda, firma com o governo estadual um contrato no
qual se estabeleceu a imigração de 3.000 pessoas por ano a partir de
1908. No dia 28.4.1908, parte do porto de Kobe o navio “Kasato Maru”
com destino ao Brasil. Trazia a bordo 167 famílias, num total de 761
pessoas, sendo 601 do sexo masculino e 190 do sexo feminino. O navio
atracaria 52 dias após no porto de Santos, trazendo sonhos e a
esperança de “fazer a América” e depois voltar para a terra natal
(ENNES, 2001, p. 50).

Nessa época, o Brasil, por um lado, vivia a expansão cafeeira e necessitava contratar
mão de obra para as lavouras de café, visto que o fluxo de imigrantes italianos havia diminuído
drasticamente por iniciativa do governo daquele país europeu. Por outro lado, o governo
japonês, numa franca política desenvolvimentista e expansionista, estava interessado em enviar
parcelas de seus agricultores de regiões mais pobres para países que eram estratégicos, tal como
os da América.
Os imigrantes japoneses, também chamados de dekasseguis, com pouco ou nenhum
conhecimento dos interesses de Estado e de empresários que circundavam a arrojada iniciativa
de deslocar grandes contingentes de trabalhadores entre extremos do planeta, vinham com o
objetivo de acumular dinheiro e retornar para o Japão, galgando uma ascensão social com o
presumível enriquecimento obtido no exterior.

99
O Japão, país de ilhas e arquipélagos, isolado de outros territórios, mantinha
peculiaridades no modo de vida de seu povo que eram tidas pelas culturas ocidentais como as
de um povo marcado por uma forte rigidez, senso de disciplina, obediência severa, reverência à
hierarquia e disposição para o trabalho e para o sacrifício. Mesmo tendo que enfrentar o intenso
apego ao solo natal e as estereotipias do olhar dos estrangeiros sobre eles, japoneses
tradicionais e empobrecidos se dispuseram a ser aríetes da política de abertura do Japão para o
mundo, fustigados pelo sonho de “fazer a América”.
No ano de 1868, houve grandes mudanças na história, na política, nos setores
econômicos e sociais do Japão. O país passou de um Estado Feudal para um Estado Moderno.
Deliberador (1992) relata que a economia dos japoneses, predominantemente centrada na
agricultura, passou a ser manufatureira e industrial. Muitos camponeses deixaram suas terras
para trabalhar nas indústrias, e esse deslocamento trouxe consequências para o país. A indústria
precisava de mão de obra qualificada e não de camponeses despreparados para o trabalho nas
fábricas. Devido a essas transformações econômicas e políticas no país, muitos camponeses
perderam suas terras e, com a reforma tributária de 1873, a situação ficou gritante no país e a
condição econômica dos japoneses foi ainda mais afetada.

A Reforma Tributária de 1873 não permitiu mais o pagamento dos


tributos em espécie e sim em dinheiro. O reflexo dessa medida pode
ser observado no fato de que, entre 1883 e 1890, aproximadamente
367.000 lavradores perderam suas propriedades pelo confisco e, entre
1884 e 1886, 1/7 de todo território arável foi perdido por hipotecas. O
governo japonês, diante da penúria do campo, não mais impediu a
saída dos cidadãos para o exterior (DELIBERADOR, 1992, p. 36).

Em 1888, o Brasil vivia o período da abolição da escravatura e estava contratando mão


de obra estrangeira nas lavouras cafeeiras. No entanto, em 1902 o governo italiano proibiu a
emigração subsidiada, provocando um forte declínio do número desses imigrantes para o Brasil.
A crise cafeeira de 1906, decorrente de superprodução e baixa dos preços do produto no
mercado internacional, também afetou os movimentos migratórios, porém, a rápida adoção de
políticas de proteção fez que houvesse uma rápida recuperação da economia cafeeira e a
retomada da imigração. Nesse contexto, os japoneses, considerados como exímios agricultores,
passaram a ser vistos, pelos fazendeiros brasileiros, como uma alternativa de mão de obra para
o cultivo do café.
A imigração japonesa acontece com a chegada do navio a vapor Kasatu Maru em
18/06/1908, no porto de Santos, quando o Brasil já se recuperava da crise cafeeira. O
desembarque dos primeiros imigrantes japoneses foi cercado de curiosidades e de sentimentos

100
dispares. Havia imagens negativas, já anteriormente formadas em torno do “perigo amarelo”,
que incluía também os chineses, mas também apareceram, nas primeiras observações acerca
dos hábitos de condutas dos recém-chegados, imagens de um povo asseado, paciencioso e bem
comportado. Iniciava-se um grande e radical encontro/confronto entre duas nacionalidades e
culturas bastante distintas.

Desafios do imigrante

Grinberg e Grinberg (1984) enfatizam que o indivíduo alimenta o desejo de se deslocar


e que, às vezes, esse desejo surge de forma surpreendente e, em outras ocasiões, suscita visadas
impossíveis de se concretizarem, mas são contentadas com fantasias. Muitas pessoas migram
por razões externas, como a necessidade financeira, buscando melhores condições de vida para
si e para a família.
Ainda conforme Grinberg e Grinberg (op.cit.), ao chegar a um mundo desconhecido, o
imigrante pode encontrar muitas dificuldades internas para se integrar ao meio, por entrar em
contato com objetos que soam estranhos, tal como o idioma, os costumes, e tantos outros que
fazem parte do lugar. Surge o temor do perigo de não se comunicar com os outros e consigo
mesmo. Esses estados chamados confusionais podem resultar do fracasso de se manter em uma
dissociação eficaz e também de uma precoce tentativa de integração que ainda não pode
ocorrer. O imigrante usa mecanismos de defesas primitivos, como a dissociação e idealização no
novo ambiente a que chegou. Surgem também sentimentos de desvalia e persecutoriedade em
relação ao novo lugar e a todas as pessoas que ficaram no antigo ambiente. “Esta dissociação
lhe serve para evitar o duelo, o remorso e as ansiedades depressivas que se intensificam pela
mesma imigração, sobre tudo quando se trata de uma imigração voluntária” (GRINBERG;
GRINBERG 1984, p. 19, tradução nossa).14
Tais sentimentos de idealização do novo e desvalorização do antigo é sentido na
experiência migratória como negação da ansiedade e do sentimento de culpa. Grinberg e
Grinberg (1984) mencionam outra situação que pode ocorrer, na qual a terra prometida fica
desencantada, ou seja, com defeitos, com aspectos negativos e persecutórios.
O essencial é manter a dissociação: ‘o bom’ em um extremo e ‘o mau’
em outro, não importa qual deles reperesente uma ou outra dessas
características. Porque, no caso de fracassar a dissociação, surge
inexoravelmente a ansiedade confusional, com todas suas temidas

14
Esta disociación le sirve para evitar el duelo, el remordimiento y las ansiedades depresivas que se
agudizan por la misma migración, sobre todo cuando se trata de una migración voluntaria” (GRINBERG;
GRINBERG 1984, p. 19).

101
consequências: já não se sabe quem é o amigo e quem é o inimigo, de
onde se pode triunfar e de onde fracassar, como diferenciar o útil do
prejudicial, como discriminar entre o amor e o ódio entre a vida e a
morte. Esta confusão pode chegar a ser vivida, portanto, como o
castigo pelo impulso migratório, pelo desejo de ‘conhecer’ um mundo
novo... diferente. (GRINBERG: GRINBERG 1984, p. 20, tradução
nossa).15

Para Grinberg e Grinberg (1984), a migração nomeia a condição da pessoa no lugar, ou


seja, ela passa a ser vista e tratada como “emigrante”, por aqueles que ficaram no lugar de onde
partiu, ou como “imigrante”, por aqueles do lugar para onde foi. Passa a ser reconhecido
precipuamente como aquele que se desloca de um país a outro ou como alguém proveniente
de lugar distinto e distante, que se instala como um intruso no cotidiano alheio, por um
determinado tempo, impondo uma convivência cotidiana com os locais. Há uma diferença
significativa entre trabalhadores estrangeiros e imigrantes. O trabalhador estrangeiro tem um
tempo determinado para retornar ao país de origem e é visto pelos locais mais como um
convidado desejado do que um intruso, enquanto os “imigrantes”, mesmo tendo autorização
para ingresso e trabalho no país receptor, como ocorre com os Dekasseguis, são percebidos
como intrusos, perigosos, não confiáveis e tantas outras pechas negativas. Formam uma
categoria social específica, decorrente do lugar em que são colocados, pelas funções que
exercem e catalisam no plano econômico, político, cultural e psicossocial.
Higa (2006, p. 47), em sua tese de doutorado Conflitos intrapsíquicos e interpessoais em
um grupo de migrantes brasileiros no Japão, traz uma importante e instigante citação de Sayad
(1998) sobre a questão da migração.

Estudioso arguto da questão da imigração argumenta que embora


possa parecer banal, é importante assinalar que a imigração é um fato
social completo. Torna-se pertinente dizer que o itinerário de um
imigrante ancora-se no cruzamento das ciências sociais e como o
ponto de encontro de disciplinas como história, geografia, demografia,
direito, sociologia, psicologia, psicologia social e até mesmo das
ciências cognitivas, antropologia, linguística, sociolingüística, ciências
políticas, etc. Insiste Sayad que como ‘fato social total’ o fenômeno da
imigração diz respeito à sociedade como um todo seja na dimensão

15
Lo esencial es mantener la disociación: ‘lo bueno’ en un extremo y ‘lo malo’ en outro, no importa cuál
de ellos represente una u outra de esas características. Porque, en el caso de fracasar la disociación, surge
inexorablemente la ansiedad confusional, con todas sus temidas consecuencias: ya no se sabe quién es el
amigo y quién el enemigo, donde se puede triunfar y donde fracasar, cómo diferenciar lo útil de lo
perjudicial, cómo discriminar entre el amor y el ódio, entre la vida y la muerte. Esta confusión puede llegar
a ser vivida, entonces, como el castigo por el impulso migratório, por el deseo de ‘conocer’ un mundo
nuevo... distinto (GRINBERG: GRINBERG 1984, p.20).

102
diacrônica, isto é, numa perspectiva histórica e também em sua
extensão sincrônica, isto é, a partir das estruturas da sociedade e de
seu funcionamento. Enfatiza Sayad que o imigrante é aquele que se
deslocou fisicamente para um país estrangeiro, mas, para fazê-lo,
assinala, o imigrante emigrou de seu país de origem. Enfim, imigrante
e emigrante são duas faces de um mesmo processo. O autor adverte
ainda sobre a confusão entre estrangeiro e imigrante. Para o autor um
estrangeiro é definido enquanto tal até as fronteiras, mas continua
estrangeiro mesmo além fronteiras, ou seja, durante a permanência
no país. Não se trata da mesma situação do imigrante que é definido
como estrangeiro até o limite da fronteira. Ultrapassada esta, diz
Sayad, deixa de ser estrangeiro para tornar-se imigrante. Se
‘estrangeiro’ é a definição jurídica de um estatuto, ‘imigrante’ é, antes
de tudo, uma condição social (HIGA, 2006, p. 47).

Grinberg e Grinberg (1984) distinguem duas categorias: a dos emigrantes voluntários e


a dos emigrantes forçados. Muitos emigrantes são forçados a deixarem seu país por motivos
sociopolíticos ou até pela ausência de condições mínimas para a subsistência. A migração
forçada também pode ocorrer em massa, como em 1947 e 1950, quando dez milhões de pessoas
foram obrigadas pelos seus governantes a emigrarem do Paquistão para Índia e, inversamente,
sete milhões da Índia para Paquistão, por questões religiosas. Existem as no migraciones
forzadas (migrações não forçadas), caracterizadas por situações em que há o impedimento da
entrada de estrangeiros ou da saída de cidadãos para outros países. Muitas pessoas, impedidas
de partirem, sentem-se presas no país em que vivem e onde não querem permanecer, enquanto
outras desertam e passam a viver como ilegais em outro país.
Há migrações chamadas de resistencial cambio (mudança resistencial), conforme
apontam Grinberg e Grinberg (1984, p.32). De forma contraditória, a resistência e a mudança
são migrações de pessoas que se sentem ameaçadas, têm medo de perder os valores, suas
condições de vida e partes do próprio eu e que não conseguem enfrentar seus medos primários.
As migrações sedentárias são caracterizadas por pessoas que não querem se separar do velho
conhecido grupo familiar, ir para o novo desconhecido, tentando permanecer numa condição
inalterada, sem modificações.

Às vezes, paradoxalmente, certas mudanças sociais importantes podem


determinar migrações por ‘resistência à mudança’ e o temor à ameaça de perda
de valores, de condições de vida e, em última instância, das partes do self que
esse indivíduo, que essa mudança poderia envolver. Nesses casos, o indivíduo
não se atreve a enfrentar medos primários, tais como o medo da perda de
estruturas estabelecidas, a perda de acomodação a diretrizes prescritas no
campo social, os que geram intensos sentimentos de insegurança, aumentando
o isolamento, a solidão e enfraquecendo, fundamentalmente, o sentimento de
pertencimento a um grupo social estabelecido. Muitos dos que emigram por

103
esta razão, frequentemente buscam lugares que, embora possam ser distantes
geograficamente, apresentam condições e características similares a do lugar
de origem, anterior a mudança. Nesses casos poderiam falar de ‘ migrações
sedentárias’, já que se busca esquivar se do novo ou do diferente, para recriar
e manter sem modificações o familiar e conhecido. Esse sair de um lugar para
poder seguir ficando-se no mesmo: É sair para não mudar (GRINBERG;
GRINBERG 1984, p. 32, tradução nossa). 16

Alguns autores se preocuparam com aspectos psicológicos da “emigrabilidade”,


tentando construir uma tipologia psicológica dos emigrantes mediante levantamentos de
características da personalidade que lhes seriam próprias.

Menges (1959) define o conceito de ‘emigrabilidade’ como a


capacidade potencial do emigrante de adquirir no novo ambiente, de
forma gradual e relativamente rápida, certa medida de equilíbrio
interno que é normal para ele – desde quando o novo ambiente o faça
razoavelmente possível – e que, ao mesmo tempo, possa integrar-se
no novo contexto sem um elemento perturbado ou perturbador
dentro do mesmo (MENGES, 1959, apud GRINBERG; GRINBERG 1984,
p. 32, tradução nossa). 17

Calvo (1977, apud GRINBERG; GRINBERG 1984, p.32) enfatiza que as migrações, hoje,
estão bastante incorporadas às formas e condições de vida contemporâneas profundamente
marcadas pela mobilidade geográfica, social e psicológica. Não são apenas as motivações
econômicas que impulsionam as migrações, mas, sim, todo um conjunto de dispositivos
cinéticos que se estabelece no ser humano e o lança para a busca de outros lugares para viver,
ainda que temporariamente.
Podemos dizer que os desafios do imigrante dekassegui são inumeráveis na transição de

16
A veces, paradójicamente, ciertos câmbios sociales importantes pueden determinar migraciones por
‘resistência al cambio’ y el temor a la amenaza de pérdida de valores, de condiciones de vida y, em última
instancia, de las partes del self que ese individuo que ese cambio podría involucrar. En estos casos, el
individuo no se atreve a enfrentar miedos primários, como ser el miedo a la pérdida de estructuras
establecidas, la pérdida de acomodación a pautas prescritas en el âmbito social, los que generan intensos
sentimientos de inseguridad, incrementando el aislamiento, la soledad y debilitando, fundamentalmente,
el sentimiento de pertenencia a un grupo social establecido. Muchos de los que emigran por este motivo
suelen buscar sítios que, aunque puedan ser lejanos geograficamente, presentan condiciones y
características similares a las del lugar de origen, previas al cambio. En estos casos podría hablar de
‘migraciones sedentárias’, ya que se busca rehuir lo nuevo o lo distinto, para recrear y mantener sin
modificaciones lo familiar y conocido. Ese irse de um sitio para poder seguir quedándose en lo mismo: es
irse para no cambiar (GRINBERG; GRINBERG 1984, p. 32).

17
Menges (1959) define el concepto de ‘emigrabilidad’ como la capacidad potencial del emigrante de
adquirir en el nuevo ambiente, en forma gradual y comparativamente rápido, una cierta medida de
equilíbrio interno que es normal para el – siempre y cuando el nuevo ambiente lo haga razonablemente
posible – y que, al mismo tiempo, pueda integrarse en el nuevo contexto sin ser un elemento perturbado
o perturbador dentro del mismo (MENGES, 1959, apud GRINBERG; GRINBERG 1984, p.32).

104
um lugar conhecido para outro desconhecido. Justo (2008, p.100) faz uma importante citação
em seu texto “A Chegada dos Imigrantes Japoneses e a Partida dos Decasséguis: Dois lados da
mesma viagem”:

São muitos os sentimentos que brotam na saga dos migrantes: medo,


angústia, culpa, alegria, esperança, prazer e dor. Além dos próprios
sentimentos, existem ainda os dos outros que também o afetam, tanto
daqueles que ficaram como daqueles que o recebem. Da parte dos que
ficaram carregam imagens ambivalentes, talvez de admiração, respeito
e reconhecimento, mas quiçá também de inveja e recriminação por
terem desertado. Daqueles com os quais passam a conviver são alvo
de olhares dúbios, nos quais mesclam sentimentos de simpatia,
confiança, compaixão e solidariedade, por exemplo, com sentimento
de cobiça, rejeição e escárnio.

Para Justo (2008, p.100), os migrantes, ao cruzarem fronteiras e realizarem conexões


entre povos e terras distantes, contribuíram para o desenvolvimento econômico, político e
cultural da humanidade, além do enriquecimento psicológico possibilitado pelas experiências de
enfrentamento de desejos, afetos, sentimentos e cognições candentes que brotam no contato
com o estranho, com o não familiar. Acrescenta Justo que talvez esta tarefa tenha sido a mais
importante e difícil do imigrante: enfrentar o fantasma do desconhecido, do diferente, do outro,
radicalmente encarnado na figura do estrangeiro. Morar em outras terras é enfrentar o novo e
desconhecido, ademais, é construir outra “subjetividade”, “formas diferentes de pensar, sentir,
perceber e falar, exigem transformações pessoais profundas que beiram a uma
despersonalização ou a um desmanche da identidade pessoal, difícil de ser suportada”.

A chegada dos dekasseguis ao Japão

A primeira migração se remeteria, a Adão e Eva. Estes impulsionados


pela curiosidade (simbolizada pela serpente), se mudaram para à zona
proibida do Paraíso, onde se encontrava a árvore... ‘ que era boa para
comer, agradável aos olhos e cobiçada para alcançar a sabedoria [...]
Eva comeu de seu fruto e deu a seu marido [...] e foram abertos os
olhos de ambos [...] Conheceram o bem e o mal [...]’ o que lhes deu a
expulsão do Paraíso, perdendo todas suas regalias e condições de
segurança e prazer (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p. 15, tradução
nossa). 18

18
La primera migración se remontaria, pues, a Adán y Eva. Estos, impulsados por la curiosidad
(simbolizada por la serpiente), se trasladaron a la zona prohibida del Paraíso, donde se encontraba el
árbol... ‘que era Bueno para comer, agradable a los ojos y codiciable para alcanzar la sabiduria [...] Eva
comió de su fruto y dio a su marido [...] y fueron abiertos los ojos de entrambos [...] Conocieron el bien y

105
Na década de 1980, ocorre o fenômeno denominado dekassegui. Desta feita, na direção
contrária à da imigração de japoneses para o Brasil, são seus descendentes, aqui nascidos, que
se deslocam para o Japão para trabalhar nas fábricas visando a melhores salários e à formação
de uma poupança. O Brasil passava por um período de crise econômica e política.
Segundo Sasaki (2004), o Brasil era considerado país de destino, país receptor, mas, nas
últimas duas décadas, vem ocorrendo o processo inverso. Além de receber trabalhadores
migrantes de outros países, passou também a enviar, se transformando concomitantemente em
emissor. Em 1990, o governo japonês restringiu a entrada dos trabalhadores estrangeiros ilegais,
medida que facilitou a entrada dos descendentes de japoneses no país.
Vários autores, logo no início de seus trabalhos, mencionam o significado da palavra
dekassegui (SASAKI 2004 apud AMARAL; CORES; MATSUO, 1999, p.243), como forma de abordar
as primeiras compreensões desse fenômeno. Enfatizam que, etimologicamente, dekassegui
significa “trabalhar fora de casa”. No Japão, o termo dekassegui referia-se especificamente aos
trabalhadores que saíam das suas regiões de origem e iam para outras, como os japoneses
nortistas e nordestinos que fugiam do inverno rigoroso e improdutivo (SASAKI, 2004).

Dekassegui refere-se ao termo que designava, originalmente, o


japonês que, nos invernos rigorosos, migrava para a cidade grande em
busca de trabalho temporário nas indústrias, retornando para o campo
após o inverno. Com o tempo, o termo passou a compreender
qualquer trabalhador migrante que alimenta o desejo de voltar à terra
natal. Nos anos oitentas a expressão dekassegui assumiu conotação
pejorativa, por estar associada diretamente à mão-de-obra sem
qualificação (MIURA, 2004, p.192).

Portanto, é o indivíduo que trabalha fora, vindo de outras regiões ou de outros países.
Esses trabalhadores, a maioria braçal, são contratados, tradicionalmente, para fazer o serviço
sujo, penoso, perigoso, estafante ou mal renumerado, recusado pelos próprios japoneses. Os
dekasseguis atuais, como aqueles provenientes da América Latina, percorreram o caminho
inverso do caminho de seus pais e avós imigrantes japoneses. Foram à terra do sol nascente,
bem longe de seu país natal, atravessaram oceanos e continentes movidos pelo desejo de
concretizar seus sonhos, sobretudo, o sonho do enriquecimento, tal como ocorreu com seus
avôs quando emigraram do Japão.
Em meados da década de 1980, Sasaki (2004) relata as primeiras notícias dos filhos e

el mal [...]’, lo que lês valió la expulsión-exilio del Paraíso, perdiéndolo com todas sus gratificaciones y
condiciones de seguridad y placer (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p. 15).

106
netos de japoneses que moravam no Brasil e saíram para a terra do sol nascente, ou seja,
chegaram ao Japão os dekasseguis como trabalhadores temporários. Não tiveram problemas
burocráticos, visto que muitos tinham dupla nacionalidade. Como ressalta Sasaki, o fenômeno
dekassegui nessa época era caracterizado “como movimento tímido em termos de volume”.
Nesse mesmo período, o Brasil vivia uma intensa recessão econômica, marcada pela inflação e
desemprego no país, enquanto no Japão os mais jovens buscavam empregos promissores, que
não eram aqueles oferecidos pelas pequenas e médias empresas. Tudo isso se agravava com o
baixo índice de natalidade dos japoneses, que produzia o envelhecimento da população e a
queda na força de trabalho. Em decorrência da falta de mão de obra japonesa, muitas empresas
faliram, tendo que contar com trabalhadores estrangeiros. Entre 1986 a 1991, o Japão vivia uma
boa situação econômica, atraindo muito trabalhadores estrangeiros, inclusive muitos ilegais,
sendo a maioria proveniente de países asiáticos.
Segundo Yamanka e Komai (1996; 1990, apud SASAKI, 2004, p.212), o Japão foi
substituindo os trabalhadores ilegais por trabalhadores descendentes de japoneses, dando
ênfase à consanguinidade, com aval para exercer as atividades no Japão, por tempo
indeterminado, podendo residir permanentemente no país.

A política de imigração favorável aos latino-americanos de origem


japonesa é vista pelas autoridades japonesas como um meio de baixo
custo político para ajudar a resolver a falta de mão-de-obra, com a
vantagem adicional de que os imigrantes de ancestralidade japonesa
não perturbariam a homogeneidade étnica mítica do país (CORNELIUS,
1995, apud SASAKI, 2004, p. 213).

Em virtude da descendência japonesa, os dekasseguis foram aceitos no Japão, uma vez


que o parentesco facilitaria a sua adaptação no país, sem questionar a nacionalidade.
Para Miura (2004), o fluxo migratório dos descendentes para o Japão, como país de
destino, traz em sua peculiaridade o encontro com as suas origens étnicas e novos significados
daquilo que era passado pelos pais e avós.
Ocada (2002), em sua dissertação de mestrado intitulada Nos Subterrâneos do Modelo
Japonês, menciona a figura dos 3 ks: Kitanai (sujo), Kiken (perigoso) e Kitsui (pesado), utilizada
para caracterizar o tipo de trabalho destinado aos estrangeiros, e pergunta pelas razões que
levam o migrante dekassegui a ir para o Japão e submeter-se a tais condições de trabalhos
desqualificados. A conclusão da sua pesquisa foi que os entrevistados buscam altos salários e
por trabalhos temporários.
Kawamura (2001, apud SASAKI, 2004, p.219) apresenta “os 5Ks: Kitanai (sujo), Kiken
(perigoso), Kitsui (pesado), Kibishi (exigente) e Kirai (detestável)”, que designam postos de

107
trabalhos de baixa qualificação, corroborando o significado pejorativo do termo dekassegui.
Conforme Sasaki (2004), no período dos anos oitenta, logo no início do movimento
dekassegui, os descendentes de japoneses que saíam do Brasil para trabalhar no Japão não eram
bem-vistos. Como nomeia Sasaki, era “um mal necessário”, e havia uma imagem negativa
daquele indivíduo que deixava o seu país de origem, porém, o Japão precisava de mão-de-obra
não qualificada e barata, ou seja, de imigrantes que fizessem o trabalho sujo, perigoso e penoso
que os japoneses se recusavam a fazer. Com o passar do tempo, foi se construindo uma imagem
mais positiva do trabalhador dekassasegui entre os nikkeis, ligando-os à ideia de ancestralidade,
consanguinidade e de busca pelo conhecimento da cultura japonesa, aproximando-os das suas
raízes.
Yamanaka (1996, apud SASAKI, 2004, p.221) classifica esse movimento dos
descendentes de japoneses como uma “migração de retorno”. Para conseguir trabalhar no
Japão, o requisito exigido é ser de origem japonesa, os chamados nikkeyjin, ou estrangeiros.
Kawamura (2008) faz uma citação em seu texto Brasileiros no Japão: Direitos e Cidadania,
referindo o termo nikkey aos japoneses e descendentes que moram fora do Japão.
Podemos dizer que os descendentes de japoneses, voltando ao Japão, estão repetindo
o mesmo trajeto dos seus pais e avós, numa forma de elaboração?
Na psicanálise, Freud (1911-1913, p.165-166), em seu texto Recordar, repetir e elaborar
(Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II), argumenta “que o paciente não recorda
coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas o expressa pela atuação ou atua-o (acts it out)”.
Em seguida, diz que a compulsão à repetição tem relação com a transferência e com a
resistência. Comenta ainda que a transferência “é, ela própria, apenas um fragmento da
repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o
médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual”. Freud coloca que o
paciente repete em vez de recordar. Assim, o manejo da transferência é de extrema importância
para a superação da compulsão à repetição do paciente, podendo desencadear a recordação, a
tomada de consciência, desse modo libertando-o da resistência. (FREUD, 1911-1913, p. 165-
166).

Lembramo-nos de Eliade (1972), segundo o qual, na tentativa de abolir


o tempo, de dominá-lo diante do tormento de passagem e da finitude
humana, o homem utiliza da técnica de ‘voltar atrás’ ou de ‘retornar
às origens’, ou seja, ‘para curar-se da obra do tempo é preciso ‘voltar
atrás’ e chegar ao princípio do mundo (HIGA, 2006, p. 34).

Segundo Higa (2006), o “voltar atrás” não é no sentido da cura, mas no sentido da

108
elaboração, ou seja, o retorno ao passado é vivenciado como meio de libertação.

A migração é a reedição dos desafios fundantes da vida e, por isso


mesmo, Roaunet (1993) afirma que ninguém mais do que o migrante
realiza de maneira integral as experiências fundamentais da vida, as
experiências básicas da humanidade. O migrante refaz as experiências
fundadoras da humanidade, aquelas que permitiram ao homem
constituir-se como tal, desbravando o planeta e refaz também a difícil
e delicada experiência ontogenética da grande viagem rumo ao total
desconhecido, deflagrada como nascimento. Refaz ao mesmo tempo a
experiência filogenética do deslocamento humano pela terra e a
experiência ontogenética de exploração pelo recém-nascido. Da
mesma forma que, filogeneticamente, o ser humano em suas
incursões por regiões desabitadas do planeta explorava e tateava a
terra-mãe e o bebê, por sua vez, tateia o mundo para reencontrar a
mãe perdida, o migrante também tem que buscar outras paragens
para reaver um solo perdido, um solo que abandou ou do qual foi
expulso. Ao partir em busca de algo que não conseguiu no lugar de
origem, mas que gostaria de tê-lo ali, já engatilha seu retorno,
imaginando trazer de volta aquilo que falta e, assim, viver a satisfação
de uma vida plena assentada no solo natal (JUSTO, 2008, p. 108).

O imigrante dekassegui volta à terra dos seus avôs, retorna ao passado e às suas origens.
Ao nascer, o bebê se desloca do mundo interno representado pelo útero materno, considerado
como sua casa até seu nascimento (o lugar de sua morada), para o mundo externo, ou seja, parte
rumo ao mundo desconhecido.
Diante de novos costumes, as dificuldades dekasseguis são várias, tal como as dos
recém-nascidos: o idioma japonês, a comida, o ritmo de trabalho, a moradia, a própria
adaptação dos filhos, a distância do Brasil e tantas outras. No turbilhão de estranhamentos e
dificuldades, diante do choque cultural, é comum surgir o sentimento de desamparo. Segundo
Ferreira e Garcia (2002), o dekassegui considera o Brasil a sua casa e o Japão é sentido como
lugar de destino por um tempo definido, ainda que possa ser longo.
De acordo com Hashimoto (1995), quando o migrante chega a um país desconhecido,
surge uma tensão por não saber qual é o seu lugar. Aproximam-se uns dos outros com a
finalidade de se apoiarem, buscando sentimentos comuns para elaborarem as crises que
irrompem com frequência. Assim, a força do grupo coopera para atenuar o efeito impactante do
mundo novo e do desconhecido, permitindo que a negação da nova realidade possa ser
superada.
Le Bon (1855, apud FREUD, 1920-1922, p. 85) afirma que, quando o indivíduo se compõe
num grupo psicológico, qualquer diferença que esse tenha fica submergida, surgindo uma mente

109
coletiva. Seus pensamentos, seus sentimentos, e ações passam a ser grupais.

Le Bon pensa que os dotes particulares dos indivíduos se apagam num


grupo e que, dessa maneira, sua distintividade se desvanece. O
inconsciente racial emerge; o que é heterogêneo submerge no que é
homogêneo. [...] tais dessemelhanças, é removida, e as funções
inconscientes, que são semelhantes em todos, ficam expostas à vista
(LE BOM, 1855, apud FREUD, 1920-1922, p. 85).

Os imigrantes agem psicologicamente como as massas diluídas num inconsciente


comum e apegam-se aos conterrâneos como forma de provimento de segurança e proteção.
Segundo Hashimoto (1995, p. 103), o trabalho também aparece como mecanismo de
ajuda para elaboração da separação e proteção do ego. “A necessidade de trabalhar, trabalhar
para esquecer a dor nas atividades árduas e transformá-la em uma sensação boa, de produção”.

O anseio por trabalhar – socialmente valorizado – proporciona


satisfações secundárias. Mas, como a nossa estrutura social aliena o
indivíduo do seu trabalho (em função do princípio do desempenho),
somos levados a crer que, no fundo desse anseio de trabalhar, existe
na verdade uma forma de suicídio velada e vagamente reconhecível
(CARUSO, 1986, apud HASHIMOTO, 1995, p. 103).

Os dekasseguis, após algum tempo no Japão, costumam desvalorizar o Brasil,


comparando-o, por exemplo, com o esgoto do rio Tiete – um lugar de dejetos, poluído de
sujeiras.

A desvalorização do ausente, que significa a negação dos aspectos


positivos da terra natal, enquanto busca do seu próprio caminho, é
dificultada pela rejeição da terra presente. Apesar da única tentativa
de solução do impasse ser a desvalorização, mesmo que agressiva,
torna-se difícil a passagem para a idealização do ausente. É a vivência
da perda, através do desgaste da imagem ideal, o mecanismo usado
para possibilitar o engrandecimento desse ideal perdido, num
processo de reparação e de projeção para o passado (HASHIMOTO,
1995, p. 93).

As dificuldades que os imigrantes têm em se fixar na terra nova aparecem na idealização


de retorno, pois pensar em voltar é a forma que o ego encontrou para não se desvincular da
terra-mãe. A distância da terra-mãe gera conflito com a nova realidade. A própria partida para
outro país surge da negação do tempo. “Viver o tempo na presença do objeto amado é muito
diferente de vivê-lo na ausência. Consequentemente, o viver um tempo vivo é diferente de um
tempo morto” (HASHIMOTO, 1995, p.95).

110
A chegada/retorno do dekassegui ao Brasil

O homo viator está na origem do homo sapiens... Só os homens viajam,


pois os animais se limitam a migrar... só os viajantes são inteiramente
humanos, pois enquanto os que ficam não se distinguem das plantas,
que têm raízes num certo húmus, e dos bichos, que não podem
sobreviver fora do ecossistema em que nasceram, os viajantes
exercem, em sua plenitude, a prerrogativa máxima da espécie, a de
cortar, consciente e voluntariamente, por algum tempo ou para
sempre, os vínculos com o país de origem (ROUANET, 1993, apud
JUSTO, 2008, p. 104).

Sasaki (2004) menciona que há relatos de trabalhadores dekassegui apontando muitas


dificuldades para retornarem ao Brasil. Dentre elas, mencionam a falta de condições financeiras
e os baixos salários brasileiros comparados com aqueles pagos no Japão. Depois de idas e vindas
entre um e outro país, sentem viver entre os dois lugares ao mesmo tempo: Japão e Brasil.
“Voltar é muito mais difícil que partir”, é assim que os emigrantes dizem sentir o retorno
para o solo natal, o retorno para a casa. O problema do retorno é muito mais complexo do que
se imagina. Depois de uma temporada de vida e trabalho em outro país, com uma cultura tão
diferente da brasileira, mesmo para os descendentes, os emigrantes são profundamente
afetados, passando a assumir ou a aprofundar uma identidade híbrida, incrustada na sua história
familiar – uma identidade transnacional (ASSIS; CAMPOS, 2009).
Conforme Sasaki (2004), os descendentes de japoneses vêm ganhando visto de
permanência no Japão, comprando sua casa de morada, porém, muitos se sentem divididos
entre dois países, não sabendo qual é o seu lugar.
Sasaki (2004) mostra que a realidade japonesa atual é muito diferente daquela das
lembranças contadas pelos avós imigrantes. Essa imagem do Japão passado permanece como
uma cena congelada, em que a noção temporal se perde nos anos de trabalho árduo. Os
migrantes sentem saudades daquilo que ficou em suas lembranças, preservadas como
sentimento de pertencimento.
Lembra Hashimoto (1995) que o migrante, depois de algum tempo longe da terra-natal,
pode perceber a diferença entre o que é idealizado e o que é real. Assim, essa desilusão faz o
processo de luto se concretizar com o processo de diferenciação. O migrante passa a perceber a
nova terra e começa a se separar da terra-mãe. No entanto, tal separação não implica o
esquecimento total, senão o ego se sucumbiria.

111
Na separação, a pessoa deve desligar-se da imagem idealizada do
ausente e procurar substituí-la por outros ideais. Além disso, precisa
continuar desenvolvendo as suas atividades normais para possibilitar
a continuidade do ego. A separação consiste, portanto, na tentativa de
vencer os sentimentos de ambivalência entre a lembrança idealizada e
o frágil compromisso com o objeto atual. A forma mais adequada de
solucionar tais conflitos é lançar mão de defesas. São esses
mecanismos que vão possibilitar o desenvolvimento e adaptação à
situação nova [...] e controlar essa ambivalência (HASHIMOTO, 1995,
p. 96).

Justo (2008) corrobora que o desejo de retornar ao país de origem se mantém vivo e
forte no imigrante. Esse retorno não difere de outras experiências de voltar ao lugar de origem,
para o lugar que se conhece, marcadas pela história de sua infância que representam em suas
memórias o passado.

Como se sabe, ocorre aí um temor maior do que aquele que assalta o


viajante ao aventurar-se pelo desconhecido. Enquanto o viajante teme
o que não conhece, aquele que retorna teme o que já conheceu, teme
não reencontrar o que foi deixado ali, aquelas imagens fortemente
registradas na memória. É como se uma parte do sujeito, de repente,
desaparecesse, morresse, deixasse de existir. Como que se ele sofresse
uma amputação, um corte com sua origem e não conseguisse mais
reconhecer suas filiações primárias; como se os marcos de sua origem
tivessem sido removidos e ele ficasse à deriva, sem ancoradouros
(JUSTO, 2008, p. 110).

Segundo Justo (2008), o partir e retornar estão intrinsecamente relacionados. Cita o


exemplo do viajante que na despedida já manifesta o desejo de voltar. Portanto, se despedir
dizendo “até a volta”, “volte sempre” ou “volte logo”, faz parte do vocabulário do cotidiano
alimentado pela ânsia do retorno.

A miragem do retorno não acompanha apenas viajantes e imigrantes.


Freud (1926) chegou a atribuir o movimento do retorno a uma tendência
geral do funcionamento psicológico. Segundo ele, o organismo tende a
restabelecer um estado de equilíbrio anterior perdido. O objetivo do
psiquismo seria, na sua base mais elementar, retornar a um estado
anterior de ausência de qualquer estimulação ou de qualquer
perturbação da quietude do gozo absoluto. O objetivo maior da vida
seria o retorno ao estado inanimado. A impossibilidade de manutenção
de um estado nirvânico é que poria o aparelho psíquico em
funcionamento, no entanto, procurando resgatar o “paraíso perdido”,
tarefa essa fadada ao fracasso (JUSTO, 2008, p.110).

112
O imigrante vive a busca pela figura materna que não foi interditada. Espera dar a seus
filhos a realização plena dos seus desejos malogrados. Conforme Justo (2008, p.111), essa busca
do imigrante o levaria a retroceder fantasmaticamente a um estado anterior de gozo absoluto e
de plena felicidade. Quanto mais intenso o desejo pelo objeto, maior a idealização e mais
longínqua fica sua realização, tornando o imigrante um ser incansável e desejante. “Por isso
mesmo, a realização plena dos desejos dos migrantes está fadada ao fracasso, tornando-os
eternos aventureiros em busca de um tesouro perdido”.
Se aquilo que se busca na partida vai se tornando mais distante e inatingível, o mesmo
ocorre com o retorno. O que foi deixado para trás também não está mais lá aguardando a
chegada daquele que, um dia, partiu. De fato, o imigrante vive um estranhamento quando
retorna ao seu próprio país de origem. Justo (2008) ressalta que esse estranhamento pode ser
até maior do que aquele vivenciado no país estrangeiro. O sentimento é de se sentir um
estrangeiro em seu próprio país.

A ‘Readaptação dos dekasseguis no Brasil’ foi tema da 4ª Reunião


Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisadores Nikkeis (SBPN), evento
marcado pela criação do documento: ‘Carta de São-Carlos – Moção de
Apoio aos trabalhadores Brasileiros na Rota Brasil – Japão’. Trata-se de
um diagnóstico da situação atual desses trabalhadores, evidenciando
as dificuldades enfrentadas principalmente no âmbito dos direitos
trabalhistas, na deterioração das condições físicas e psicológicas dos
trabalhadores, bem como na dificuldade de readaptação das crianças
às escolas brasileiras; apresenta ainda sugestões ao governo brasileiro
no sentido de uma maior mobilização para a solução dos problemas.
Feita esta análise da situação atual dos dekasseguis no Japão, pode-se
dizer que o fenômeno da migração poderá trazer, a médio e longo
prazos, consequências para a vida física, social e psíquica do
trabalhador (MIURA, 2004, p. 196).

Mas não são apenas as condições objetivas, como a readaptação a leis trabalhistas e ao
sistema escolar que representam obstáculos e desafios ao retorno. Existem também os entraves
subjetivos que, inclusive, podem ultrapassar os fantasmas emergentes das experiências
individuais imediatas e ontogenéticas.
Justo (2008, p.112) considera a imigração uma saga familiar dos dekasseguis. Nesse
sentido, o imigrante porta heranças familiares que se perdem na sua linhagem, dentre elas, estão
legados construídos pelas gerações anteriores, dos quais se apropria, e também dívidas
(conflitos) que recaem sobre ele como fardos que tem que carregar. Assim, o desejo de migrar,
de ir para longe em busca do almejado, no caso da imigração de retorno, carrega consigo,
inevitavelmente, o desejo de reaver legados dos antepassados deixados na terra natal, como se

113
fossem tesouros soterrados.
Justo ressalta que o retorno dos dekasseguis ao solo natal de seus antepassados pode
ser entendido como um movimento psicológico de repetição, uma tentativa de elaboração:
“Grosso modo, diríamos que o imigrante vai e volta sempre buscando algo que jamais
conquistará, tal como um garimpeiro ou um apostador que acredita numa sorte maior”(JUSTO,
2008, p. 112).

Considerações finais
Grinberg e Grinberg (1984, p. 15) mencionam que o mito do Éden representa o símbolo
do nascimento, no qual o bem supera o mal. Considera que “[...] o símbolo do nascimento, a
primeira migração da história individual, com a dissociação conseqcutiva ao mesmo (‘sabiam do
19
bem e do mal’)” (tradução nossa). As primeiras experiências primitivas de ansiedades
paranóides e depressivas são sentidas pela perda do objeto idealizado e desencadeiam a
vivência da angústia de desamparo, ficando o bebê com sua própria força. Essas experiências
são consideradas migratórias e fazem parte da evolução do homem que se distancia do seu
objeto original materno.

Parir com dor’: a dor do próprio nascimento; da separação; e ‘ganhar-


se o pão com o próprio suor’ perder o fornecimento contínuo e
incondicional do cordão umbilical, ter que buscar o próprio alimento
(peito), sofrer pela perda de objeto (desmame) e esforçar-se por sua
reparação e recuperação (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p.16, tradução
nossa). 20

Podemos dizer que o nascimento é uma experiência migratória. O bebê se desloca de


um mundo bastante protegido para outro mundo no qual terá que se defrontar com
experiências de acolhimento, mas também de desamparo. O feto salta da barriga da mãe para
renascer numa outra condição, deixando a total dependência, caminhando para a chegada em
um mundo diferente e desconhecido, tendo que lidar com a dor da separação e com o processo
de adaptação. O feto, ao se deslocar para fora, passa a ser representado pela figura de um bebê,

19
“el símbolo del nacimiento, la primera migración de la historia individual, con la disociación consecutiva
al mismo (‘supieron del bien y del mal’)”( GRINBERG e GRINBERG(1984, p.15).
20
‘Parir con dolor’: el dolor del proprio nacimiento; del desprendimiento; y ‘ganarse el pan con el sudor
de la frente’ perder el suministro continuo e incondicional del cordón umbilical, tener que buscar el
proprio alimento (pecho), sufrir por la perdida de objeto (destete) y esforzarse por su reparación y
recuperación (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p.16).

114
trazendo formas primitivas e rudimentares de comunicação. Há uma mudança fundamental logo
ao nascer: o feto sai de uma condição passiva e passa à condição ativa no seu novo ambiente.
À semelhança do recém-nascido, o imigrante não sai propriamente de uma situação
inteiramente passiva, mas abandona uma situação de relativa segurança e familiaridade para
enfrentar o desconhecido, um outro mundo.

A imigração, frequentemente, não é uma experiência traumática


isolada, que se manifesta no momento da partida-separação do lugar
de origem, ou no de chegada ao lugar novo, desconhecido, onde se
radicará o indivíduo. Inclui, pelo contrário, uma constelação de fatores
determinantes de ansiedade e de tristeza (GRINBERG; GRINBERG,
1984, p. 23, tradução nossa). 21

Os autores prosseguem (op.cit. p.24), ponderando que o imigrante poderá ou não viver
como um trauma a experiência de deixar o solo natal e buscar outro país, porque dependerá da
sua constituição psíquica e do conjunto das suas vivências dadas no momento da imigração.
O período inicial de adaptação do imigrante pode ser considerado como um período de
latência porque nele são mobilizados os traumas acumulados e os chamados “duelos
postergados”.

Acreditamos, portanto, que a migração em quanto experiência


traumática, poderia entrar na categoria dos chamados traumas
‘acumulativos’ e de ‘tensão’ com reações nem sempre turbulentas e
visíveis, mas de efeitos profundos e duradouros(GRINBERG;
GRINBERG, 1984, p. 24, tradução nossa).22

Os traumas ressuscitados na experiência do imigrante podem ser comparados aos da


adolescência ou entendidos como uma crise evolutiva. Nas crises de desenvolvimento, há
momentos de privações e perdas, como ocorre no nascimento e em todas as fases da vida. Essas
transições são sentidas como perigos, aumento da vulnerabilidade e de doenças psíquicas.
Winnicott (1971, apud GRINBERG; GRINBERG, 1984, p.25) sustenta que a herança cultural

21
La imigración, justamente, no es una experiencia traumática aislada, que se manifesta en el momento
de la partida-separación del lugar de origen, o en el de llegada al sitio nuevo, desconocido, donde se
radicará el individuo. Incluye, por el contrario, una constelación de factores determinantes de ansiedad y
de pena (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p. 23).

22
Creemos , entonces, que la migración, en cuanto experiência traumática, podría entrar en la categoria
de los así llamados traumatismos ‘acumulativos’ y de ‘tensión’ con reacciones no siempre ruidosas y
aparentes, pero de efectos profundos y duraderos (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p.24).

115
assegura a continuidade do homem em suas crises, ou rupturas. Grinberg e Grinberg acreditam
que, quando ocorrem rupturas, a herança cultural não pode segurar sozinha a continuidade, tal
como pode acontecer com os migrantes que passam a viver em outro lugar.

Winnicott considera ‘a herança cultural’ como uma extensão do


‘espaço potencial’ entre o indivíduo e seu ambiente. O uso do ‘espaço
potencial’ está, pois, sujeito a formação de ‘um espaço entre dois’,
entre o eu e o não eu ‘dentro’ (grupo de pertencimento) e o ‘fora’
(grupo de recepção), entre o passado e o futuro. [...] O imigrante
precisa de um ‘potencial’ que lhe sirva de ‘lugar de transição’ e ‘tempo
de transição’, entre o país-objeto materno, e o novo mundo externo;
‘espaço potencial’ que dá a possibilidade de viver a migração como
‘jogo’, com toda a seriedade e implicações que este tem para as
crianças (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p. 26, tradução nossa). 23

Ao fracassar a criatividade nesse espaço potencial, é produzida a ruptura na


continuidade do “entorno y del self” (ambiente e eu). De acordo com Grinberg e Grinberg (1984,
25), a ruptura que ocorre no sujeito é sentida como longas ausências do objeto cuidador. A
criança perde a capacidade de simbolização e usa de defesas primitivas arcaicas.
Então, a migração é um estado de desorganização que posteriormente pode ou não se
reorganizar. Essa desintegração, considerada transitória, é ocasionada pelas angústias que
irrompem em situações de estresse. Trata-se de uma experiência marcada por agitações e
tormentos, na qual o migrante caminha entre as tempestades, na transição de um momento de
vida a outro, tal como acontece com os adolescentes na passagem da infância para a vida adulta.
Os migrantes, à semelhança dos adolescentes, deixam o mundo velho infantil para chegar ao
mundo novo e desconhecido. Levará muito tempo até chegarem à terra firme, na qual poderão
se sentir realmente seguros num novo mundo.

Referências

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dekasseguis na década de 1990. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 33., 2010, Caxambu. Anais.

23
Winnicott considera ‘la herancia cultural’ como una extensión del ‘espacio potencial’ entre el individuo
y su ambiente. El uso del ‘espacio potencial’ está, pues, supeditado a la formación de un ‘espacio entre
dos’, entre el yo y el no-yo, entre el ‘adentro’ (grupo de pertenencia) y el ‘afuera’ (grupo de recepción),
entre el pasado y el porvenir. [...] El inmigrante necesita un ‘potencial’ que le sirva de ‘lugar de transición’
y ‘tiempo de transición’, entre el país-objeto materno, y el nuevo mundo externo; ‘espacio potencial’ que
otorgue la possibilidad de vivir la migración como ‘juego’, com toda la seriedad e implicaciones que este
tiene para los niños (GRINBERG; GRINBERG, 1984, p.26).

116
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117
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118
Capítulo 6

Meandros intrapsíquicos da escolha profissional: uma abordagem psicanalítica


freudiana

Kelly Cristina Pereira Puertas

Parte integrante da vida cotidiana dos indivíduos, a esfera do trabalho ocupa uma
porção significativa em termos de tempo despendido e de investimentos cognitivos, bem como
financeiros, para que a ocupação laboral seja alcançada. A entrada nesta dimensão social, que
é o universo do trabalho, ocorreria cedo na vida do indivíduo e o primeiro passo seria a escolha
da profissão a seguir (GOMES, 2006; SOARES, 1991).

Neiva (2007) apresenta a escolha profissional como um processo. Para a autora, a


escolha profissional poderia assim ser caracterizada:

A escolha profissional não é uma decisão isolada, e sim um processo


contínuo, composto de uma série de decisões tomadas ao longo de
vários anos da vida. [...] Escolher uma profissão não é somente decidir
o que fazer, mas principalmente, decidir quem ser. Escolher uma
ocupação é escolher um estilo de vida, um modo de viver. [...] Quando
escolhemos uma ocupação, escolhemos não só uma atividade de
trabalho, mas também o tipo de lugar onde trabalharemos, a rotina
diária à qual vamos estar sujeitos, o ambiente de trabalho do qual
faremos parte, os companheiros de trabalho com os quais nos
relacionaremos, os retornos que poderemos ter: salário, prestígio,
promoção, etc. (NEIVA, 2007, p.37-38, grifos no original).

Do exposto, podemos deduzir que as implicações da escolha da profissão para a vida


do indivíduo são inúmeras. Tal escolha teria sérias consequências para o indivíduo, pois, em
tese, determinaria seu futuro. Os elementos apresentados por Neiva (2007, p. 38) seriam fatores
a serem analisados para uma tomada de “decisão madura e consciente”. Para que a escolha
profissional seja realizada nestes parâmetros, diz a autora, dois tipos de conhecimento seriam
importantes para o indivíduo: a respeito de seus aspectos internos e pessoais e a respeito dos
fatores externos a ele. Desta forma, fica-nos cada vez mais evidente que a tomada de decisão

119
por uma ocupação que, em tese, seria para toda a vida, é uma tarefa bastante complexa. Além
da complexidade da escolha e toda a angústia subjacente a ela, há o risco de escolher ‘mal’, o
que poderia acarretar dissabores para a vida do indivíduo. As dificuldades advindas de uma
escolha profissional não acertada são ressaltadas por Gomes (2006, p. 13):

É sabido que, na nossa sociedade, a escolha de uma profissão ocorre


numa etapa muito prematura da vida dos adolescentes, podendo
acarretar sérias consequências para o futuro profissional do indivíduo,
como desistência ou abandono do curso escolhido, insatisfação
profissional, falta de conhecimento suficiente para tal escolha, várias
mudanças de cursos, prática profissional diversa do diploma
alcançado, etc.

Soares (1991) destaca que a escolha profissional não é tarefa fácil, haja vista a
quantidade de desistências de cursos, abandonos de empregos. Simone Harnik (2005), em artigo
para a Folha Online, aponta para um estudo realizado por uma pesquisadora da USP, a
professora Yvette Piha Lehman, a respeito das causas de evasão no ensino superior. De acordo
com a pesquisa, metade dos alunos que abandonam o curso de graduação tiveram problemas
no momento da escolha, sendo que 44,5% dos alunos desistiram do curso de graduação por
pressões dos pais, por falta de informações sobre a faculdade ou sobre o mercado de trabalho;
quando a desistência do curso ocorre no início, está diretamente relacionada à escolha.

Visto ser um tema com profundas consequências para a vida do indivíduo, a questão da
escolha profissional é incitadora de diversas pesquisas. “Há uma vasta literatura e pesquisas que
tentam explicar e caracterizar esse fenômeno manifesta e racionalmente...” (GOMES, 2006,
p.14, grifo nosso). Corroborando tal afirmação, Abreu Filho (2006, p.18) declara que, ao efetuar
um levantamento bibliográfico sobre a escolha da profissão de psicólogo, encontrou literatura
que abordava o tema “em termos manifesto, consciente e social”.

Ancorados na abordagem psicanalítica, consideramos que a escolha profissional teria,


para além dos aspectos racionais, manifestos e conscientes, dimensões inconscientes.
Entendida desta forma, o que se presentifica como escolha profissional teria aportes
intrapsíquicos de camadas mais profundas; estamos inferindo processos inconscientes incidindo
sobre a eleição da profissão a seguir. Para darmos corpo às inquietações que os processos
relativos à escolha profissional nos suscitam e para pensarmos sobre o tema de maneira a

120
explicitá-lo adequadamente, a partir da inferência de que tal escolha esteja subjacente, faremos
uma retomada de alguns posicionamentos de escolas de pensamento psicológico para,
posteriormente, apresentarmos nosso entendimento a respeito do assunto, a saber, o
processamento de mecanismos inconscientes segundo uma vertente psicanalítica freudiana.

1 Um breve histórico da Psicologia Vocacional

Acompanharemos Neiva (2007) em um retrospecto a respeito da história da


Psicologia Vocacional bem como de algumas correntes teóricas que se dedicaram ao
estudo do tema. Segundo a autora, a questão da possibilidade bem como da
necessidade de escolha da profissão a seguir é relativamente recente. Em fins do século
XIX, passou-se da determinação da ocupação pelo clã, casta, camada social ou família
para um período de acelerados processos de industrialização e de intercâmbio
comercial. Tais progressos diversificaram as formas e as frentes de trabalho e novos
ofícios foram criados, o que conduziu à “necessidade de escolher entre diversas
alternativas ocupacionais oferecidas pela nova realidade socioeconômica” (NEIVA,
2007, p.15). É dentro deste panorama que, em 1902, foi instalado em Munique o
primeiro escritório de Orientação Profissional, marco do nascimento da Psicologia
Vocacional. Outros escritórios mais são inaugurados em diversos países, o que
contribuiu para que surgissem novas teorias com vistas a elucidar e “circunscrever a
questão vocacional” (NEIVA, 2007, p.16).
O período entre 1900 e 1950, afirma Neiva (2007), foi dominado pela
Psicometria. A busca era por encontrar e colocar o homem certo no lugar certo. Para
tanto, objetivava-se “acoplar as aptidões e os interesses dos indivíduos às
oportunidades profissionais” (NEIVA, 2007, p.16). Testes foram desenvolvidos para
atingir o objetivo de medir as aptidões e interesses e, a partir destes dados, determinar
a vocação do indivíduo e alocá-lo no posto de trabalho adequado. O período que se
estende de 1950 até os dias atuais presenciou o surgimento/desenvolvimento de
diversas teorias que tentaram elucidar o problema da escolha profissional. A autora
destaca três correntes teóricas: decisional, desenvolvimental e psicodinâmica.
Dentro da corrente decisional, são elencados por Neiva (2007) como autores
principais: Gelatt, Hilton e Hershenson e Roth. A proposição de Gelatt é de que haveria
um processo de decisão sequencial, ou seja, uma série de decisões experimentais
conduziria a uma tomada de decisão terminal. É necessário, no decorrer do processo,

121
que o indivíduo avalie as possibilidades ofertadas, as consequências das decisões a
serem tomadas e, finalmente, fixe sua decisão. A vertente defendida por Hilton é que
podem ocorrer dissonâncias entre fatores, como, por exemplo, a percepção de diversas
possibilidades de oferta ocupacional e as pressões sociais para que a decisão seja
tomada; trata-se da chamada dissonância cognitiva. Hershenson e Roth apontam que
duas tendências determinariam a escolha profissional: a progressiva eliminação das
alternativas e o reforçamento das alternativas não excluídas.
Surgida em 1952 com Ginzberg e colaboradores, a corrente desenvolvimental
entende a escolha profissional como um processo de desenvolvimento, o qual teria seu
início na infância, passaria por estágios e se estenderia por um longo período da vida. O
conceito de si mesmo seria determinante neste processo por influenciar as aquisições e
contribuir para a escolha profissional. Um dos representantes desta corrente, Super,
considera o processo de desenvolvimento vocacional dentro das seguintes etapas que
se seguiriam durante toda a vida do indivíduo: 1) crescimento (infância); 2) exploração
(adolescência); 3) estabelecimento (idade adulta); 4) permanência (maturidade) e 5)
declínio (velhice). Pelletier, Bujold e Noiseux apontam para o desenvolvimento de
habilidades intelectuais e atitudes cognitivas em direção ao amadurecimento
vocacional: o Modelo de Ativação do Desenvolvimento Vocacional (NEIVA, 2007).
A terceira corrente teórica apresentada por Neiva (2007), a psicodinâmica, pode
ser dividida em dois grupos. O primeiro grupo, representado por Roe, destaca que são
as primeiras experiências de satisfação e frustração de necessidades básicas vivenciadas
pelo indivíduo no seio da família que modelariam suas escolhas futuras e determinariam
seus objetivos e preferências vocacionais. O segundo grupo seria o das teorias
psicanalíticas. Autores como Meadow, Bordin, Nachmann e Segall consideram que toda
atividade ou vocação seria uma forma de sublimação. Bohoslavsky (1998; ABREU FILHO,
2006; NEIVA, 2007) apoia-se no conceito de reparação para explicar o processo de
escolha profissional.
Com vistas a ampliarmos o entendimento dos meandros da escolha profissional
dentro do enfoque psicanalítico, na seção posterior apresentaremos a concepção de
Bohoslavsky e seus sucessores.

2 A escolha profissional segundo a abordagem psicanalítica kleiniana

Bohoslavsky é um autor elencado e de monta, quando apontamos o tema da escolha


profissional dentro de um viés psicanalítico. Apesar de não ser nossa abordagem de acesso ao

122
tema, consideramos ser de valia a apresentação de tal concepção em razão da importância da
teoria que o suporta bem como do tradicional recurso a Bohoslavsky quando se trata da questão
da escolha profissional/vocacional. Para sermos mais específicos, Bohoslavsky utiliza-se de um
referencial teórico psicanalítico kleiniano, mas busca apoio ainda em autores como Freud,
Erikson, Hartmann e Aberastury (BOHOSLAVSKY, 1998). Dentro da perspectiva kleiniana,
“quando se escolhe uma profissão, está se reparando um objeto destruído em fantasia, ou
realidade” (ABREU FILHO, 2006, p. 23). Esta é a premissa apresentada por Bohoslavsky (1998) e
utilizada como abordagem privilegiada por Abreu Filho (2006) no livro Escolha profissional:
consciente e/ou inconsciente?, resultado de sua dissertação de mestrado defendida no IP-USP,
em 2005, intitulada Um estudo sobre as motivações inconscientes presentes na escolha
profissional do estudante de Psicologia. Vejamos algumas constatações levantadas via
referencial psicanalítico kleiniano.

Segundo a teoria kleiniana, as relações objetais que vão se


desenvolvendo desde o início de nossas vidas desencadearão por si
fantasias inconscientes e ansiedades, além de gerar defesas; assim,
durante toda a vida, vamos oscilar entre as posições esquizoparanóide
e depressiva, de acordo com as condições momentâneas que o ego vai
se encontrar em maior ou menor capacidade de integração (ABREU
FILHO, 2006, p. 25).

As posições esquizoparanoide e depressiva seriam modos de relação com os objetos


originais da criança e se dariam em momentos muito precoces do desenvolvimento. Cada
‘posição’ apresentaria tipos específicos de angústias e de defesas. Na posição esquizoparanoide,
a ansiedade específica é a persecutória de aniquilamento, e a defesa empregada ante tal
ansiedade é a cisão do ego, na qual haverá a projeção de parte dos aspectos persecutórios para
o exterior, para o seio materno que frustra – o seio mau. A outra parcela dos aspectos
persecutórios será mantida no interior do aparelho psíquico do bebê, sob a forma de
agressividade, e servirá para empreender combate aos objetos internos perseguidores. Também
são mantidos aspectos gratificantes dos objetos no interior do psiquismo bem como projetados
sobre o seio bom, o seio que gratifica. Deste modo, na posição esquizoparanoide os objetos são
tidos como parciais: objetos bons e objetos maus. Na posição depressiva, há uma convergência
entre os objetos que até o momento eram vivenciados como distintos. O bebê terá um objeto
total, mas este objeto agora englobará tanto características frustradoras como gratificadoras. O

123
objeto/seio que fora atacado pelo bebê é agora percebido como uma totalidade; o seio mau é
também o seio bom. Podendo integrar os objetos parciais, a destruição (fantasística ou real) do
objeto gera culpa. Será engendrado o mecanismo de reparação como forma de reconstituir o
objeto danificado e, portanto, mitigar a culpa. “Possivelmente a reparação seja uma
manifestação do instinto de vida” (BOHOSLAVSKY, 1998, p. 50). Assim, a reparação:

É um mecanismo pelo qual o indivíduo procura reparar os efeitos


provocados no seu objeto de amor pelas suas fantasias de destruição,
e isso ocorre em resposta à angústia e culpabilidade inerentes à
posição depressiva em que o indivíduo tenta manter ou restabelecer
a integridade com o corpo materno (ABREU FILHO, 2006, p. 47).

Dentro deste contexto teórico, Bohoslavsky (1998) e Abreu Filho (2006) destacam a
reparação como mecanismo intrapsíquico explicativo do processo de escolha profissional. Diz-
nos Abreu Filho (2006, p.47) que “a escolha profissional vai buscar a reparação dos objetos
danificados em fantasia”. Mais que isso, a escolha profissional seria realizada pautada na escolha
pelo objeto interno a ser reparado (BOHOSLAVSKY, 1998). Abreu Filho (2006, p.48) resume o
que expressaria a escolha profissional: “o indivíduo busca uma profissão, na realidade busca um
reencontro, tentando restituir e reencontrar o objeto que imaginara ter destruído”.

Como já destacamos em seção anterior, a compreensão de Bohoslavsky para o tema da


escolha profissional não é a única possível dentro do panorama das teorias psicanalíticas. Na
seção seguinte apresentaremos as possibilidades de pensar o processo de escolha da ocupação
nos moldes da psicanálise freudiana.

3 Possibilidades do aporte psicanalítico freudiano ao tema da escolha profissional

Nossa intenção a partir desta seção é descortinar possibilidades outras de entendimento


da escolha profissional, embasadas nas premissas freudianas. Utilizar-nos-emos da obra
Orientação Profissional Clínica: uma interlocução com conceitos psicanalíticos, de autoria de
Maria Luíza Torres, como primeira aproximação ao tema dentro dos pressupostos freudianos. A
partir das indicações da autora, retornaremos aos textos freudianos de maneira a explicitar os
mecanismos subjacentes à escolha profissional.

124
Segundo Torres (2001), quatro conceitos psicanalíticos seriam centrais para a
compreensão do processo de orientação profissional clínica, os quais pensamos estar, também,
relacionados à questão da escolha profissional: a noção de objeto, a noção de escolha, o
processo de identificação e a sobredeterminação. Cremos que estes quatro conceitos poderiam
ser entendidos dentro da esfera pertinente ao complexo de Édipo, bem como com as
complexificações intrapsíquicas decorrentes de sua derribada, ou seja, a repressão das pulsões,
a constituição do ideal do eu e a possibilidade de sublimação. Empreenderemos o estudo desta
rede conceitual de maneira a promover-lhe contornos descritivos e, na medida das limitações
deste trabalho, metapsicológicos.

O conceito de sobredeterminação foi utilizado por Freud quando dos estudos


empreendidos pelo autor a propósito da origem traumática da neurose. Tais estudos foram
apresentados, principalmente, nos seguintes textos do autor: Sobre o mecanismo psíquico dos
fenômenos histéricos: comunicação preliminar, obra escrita e publicada em parceria com Joseph
Breuer, em 1893, As neuropsicoses de defesa, de 1894, Projeto de uma psicologia, de 1895,
Novos detalhamentos sobre as neuropsicoses de defesa, de 1896, e A etiologia da Histeria, de
1896. Nestes textos, Freud destaca que a etiologia da neurose não se deveria a apenas um
acontecimento, mas a uma série de fatores desencadeantes que, combinados, poderiam
fornecer um quadro em que várias cenas com conteúdo traumático concorreriam para a
formação dos sintomas. Em A interpretação dos sonhos, obra publicada em 1900, Freud explicita
que o sonho seria um fenômeno psíquico que teria seu conteúdo manifesto sobredeterminado.

Podemos considerar que o conceito de sobredeterminação está enlaçado às formações


do inconsciente. Primeiramente Freud (1893/2003, 1895/1995, 1896/2003, 1897/2003) elenca
a formação de sintomas como derivado não de um, mas de uma série de eventos, e a seguir
trata os sonhos, uma das formações do inconsciente, como também sobredeterminado. Nesta
trajetória de estudos, o autor aproxima-se cada vez mais dos processos inconscientes. É neste
sentido de deslindamento dos mecanismos e formações inconscientes que Laplanche e Pontalis
(1992) apontam para um segundo sentido do termo sobredeterminação. As formações
inconscientes, das quais poderíamos destacar os sonhos, os atos falhos, os sintomas, ocorreriam
por elementos inconscientes múltiplos e não por um conteúdo inconsciente único. Desta forma,
não se trataria apenas de eventos múltiplos atuando como fatores etiológicos, mas conteúdos
inconscientes múltiplos que estariam atrelados na base das formações inconscientes.

125
Assim, podemos compreender a sobredeterminação como um
mecanismo capaz de remeter para uma formação do inconsciente
uma variedade de fatores determinantes. Isso não quer dizer que
esses fatores sejam de número infinito. Para Freud, um sintoma
neurótico é chamado sobredeterminado porque é resultante de uma
conjunção da predisposição constitucional e também dos inúmeros
outros fatores que lhe são associados. O sintoma tem vestígios da
interação das diversas significações às quais está relacionado (TORRES,
2001, p. 123, grifo no original).

O conceito de sobredeterminação abre-nos um gancho para tratarmos de outro


conceito destacado por Torres (2001): a escolha. Para a autora, “uma escolha é sempre
multideterminada [sobredeterminada]” (p. 124). Empreendamos curso ao entendimento do
conceito de escolha com fulcro nos pressupostos psicanalíticos.

O termo escolha, em psicanálise, estaria diretamente relacionado a duas


questões/temáticas centrais: escolha do objeto de amor e escolha da neurose. Laplanche e
Pontalis (1992) alertam para o uso do termo ‘escolha’ como não podendo ser utilizado num
sentido intelectualista, ou seja, não se trata de uma “escolha entre diversos possíveis igualmente
presentes” (p. 154). Escolha objetal tem o sentido de “irreversibilidade e determinação na
eleição pelo sujeito, do seu tipo de amor objetal, num dado momento de sua história” (TORRES,
2001, p. 111). A autora destaca que a escolha não estaria orientada por uma opção racional ou
consciente, portanto faz-se necessário perscrutá-la em processos inconscientes. Freud
(1905/2003, 1914/2003) trata da escolha de objeto no qual o indivíduo investirá sua libido.
Detalharemos o tema da escolha objetal em seção posterior, quando fizermos o percurso desde
os primórdios da existência do indivíduo até a derribada do Édipo e a instauração do ideal do eu
no aparato psíquico.

Por escolha da neurose pode-se entender o “conjunto de processos pelos quais um


sujeito se implica na formação de determinado tipo de psiconeurose de preferência a outro”
(LAPLANCHE; PONTALIS, 1992, p. 153). Os autores levantam um questionamento a respeito do
uso do termo escolha, assinalando que, para uma teoria na qual a sobredeterminação ocupa um
papel central, o termo escolha poderia sugerir que “seja necessário um ato do sujeito para que
os diferentes fatores históricos e constitucionais evidenciados pela psicanálise assumam o seu
sentido e o seu valor motivante” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1992, p. 154). Do que já destacamos
até o momento a respeito da escolha e da sobredeterminação das formações inconscientes,
fica-nos claro que ambos conceitos estão entrelaçados. A escolha estaria previamente

126
demarcada por fatores pertinentes à história do indivíduo, que atuariam como elementos
determinantes, ou melhor dizendo, sobredeterminantes da eleição.

Faz-se necessários incluir um adendo à questão da escolha, seja de objeto seja da


neurose. Com a descoberta freudiana da fantasia – as cenas às quais eram remetidas os traumas
que causavam neuroses não estariam necessariamente ligados a eventos concretos/reais
ocorridos na história do indivíduo –, erige-se na teoria psicanalítica uma nova postulação: o
complexo de Édipo e toda a trama conceitual estruturada ao redor dele, o qual assume o centro
da estruturação psíquica do indivíduo.

A noção de objeto também se inscreve num contexto bastante singular em termos


psicanalíticos. Um objeto seria um complexo, uma representação estabelecida no aparelho
psíquico a partir do seu contato com o outro. O outro primordial do indivíduo, no caso a mãe ou
quem quer que exerça sua função de nutrição e cuidado, formará uma complexificação no
aparelho psíquico, formação esta que será evocada com vistas a suprir as carências ordinárias
do bebê e promover a satisfação. O primeiro objeto a quem o bebê endereçará seu amor, seus
investimentos libidinais, será o protótipo para as demais figuras que ocuparão o lugar de objeto
de investimento erótico. (FREUD, 1895/1995, 1905/2003, 1914/2003, 1923/2003a)

No Vocabulário da psicanálise, Laplanche e Pontalis (1992) apresentam três acepções


de objeto, dos quais os dois primeiros nos interessam e serão aqui transcritos:

A) Enquanto correlativo da pulsão, ele é aquilo em que e porque esta


procura atingir o seu alvo, isto é, um certo tipo de satisfação. Pode
tratar-se de uma pessoa, ou de um objeto parcial, de um objeto
real ou um tipo de objeto fantasmático.
B) Enquanto correlativo do amor (ou do ódio), a relação em causa é
então a da pessoa total, ou da instância do ego, com um objeto
visado também como totalidade (pessoa, entidade, ideal etc)...
(LAPLANCHE; PONTALIS, 1992, p. 407)

Vemos então outro elo da cadeia conceitual ser agregado: o objeto, como aquele que
se enlaça ao amor e que é eleito como tal por suas características de atender à demanda da
pulsão, no sentido de possibilitar satisfação. Retomaremos este termo quando tratarmos sobre
o percurso e derribada do Édipo.

Também nesta série incluiremos o mecanismo de identificação. Segundo Freud


(1921/2003, 1923/2003), em linhas gerais, identificação seria o mecanismo pelo qual um eu
seria assemelhado a outro. O processo de identificação é constituinte do psiquismo humano, na
medida em que o eu se constrói pelo contato com o outro e pelas alterações/complicações

127
intrapsíquicas decorrentes de tal encontro. Dir-nos-á Freud (1921/2003) que a identificação
seria a forma mais precoce, mais arcaica de laço afetivo. Desta forma estaria inexoravelmente
ligada à noção de objeto.

Na seção subsequente colocaremos estes quatro conceitos aqui abordados em tela, os


quais terão como viés o percurso desde o nascimento, passando pelos períodos pré-edípico,
edípico e a demolição do Édipo, com a consequente instauração do ideal do eu.

4 Alinhavando conceitos: a trama conceitual do complexo de Édipo

Com vista a darmos contornos minimamente metapsicológicos ao tema da


escolha profissional como um evento sobredeterminado, necessitaremos realizar uma
retomada do percurso que conduz do nascimento, escolha do objeto de amor, a
tramitação edípica e sua superação. Para tanto, destacamos que trataremos da instância
que faz a mediação mundo interno/mundo externo – o eu –, suas complexificações e
diferenciações. Entendemos que é por meio das complexificações na estrutura do eu,
que se processariam no decorrer das etapas pelas quais o indivíduo atravessa, que o ser
pode inserir-se no seio social, meio do qual a esfera do trabalho é parte integrante. Tais
aquisições ao patrimônio do eu se processariam por mecanismos identificatórios,
permitindo a internalização das normas sociais e, consequentemente, a inserção no
social.
O eu seria a instância encarregada de exercer a mediação entre meio interno e
meio externo (FREUD, 1923/2003a). Mas esta instância não estaria delimitada quando
do nascimento. Segundo Freud (1914/2003, 1923/2003a, 1940/2004), ao nascer, o eu
seria pusilânime em suas funções. Poderíamos dizer que no início da vida a estrutura (se
é que seria lícito assim denominá-la) do eu seria fragmentária. Nos termos do autor, “ao
princípio [...] o eu se encontra todavia em formação ou é débil” (FREUD, 1923/2003a, p.
47). Ressaltamos que, de acordo com as teses apresentadas por Freud (1895/1995) em
Projeto de uma Psicologia, no nascimento haveria um eu minimamente constituído no
aparato anímico, mas não poderíamos pensar ainda em uma estrutura bem delimitada,
uma instância tal qual apresentada em 1923, em O Eu e o Isso. Nos momentos iniciais
de vida, o eu teria por função mediar entre as demandas internas, as carências
ordinárias e a realidade concreta, o que serviria para manter o ser vivo. Corrobora com
esta tese a declaração de Freud (1914/2003) no texto Introdução do Narcisismo, de que
no princípio da vida não haveria uma unidade, uma estrutura relativa ao eu, e que esta

128
deveria ser constituída. Podemos então inferir que ocorreria um desenvolvimento, uma
complexificação gradativa na estrutura do eu ou, em outros termos, uma condução à
unicidade. Tal estruturação dar-se-ia com o desenrolar dos eventos que se sucedem na
experiência do indivíduo via contato com o meio externo.
O que – poderíamos questionar – concorreria para a complexificação na
estrutura do eu? Para Freud (1895/2995, 1905/2003, 1914/2003), as necessidades vitais
promoveriam novas aquisições ao patrimônio do eu. Seriam as limitações que o meio
impõe à saciação das carências do bebê que desencadeariam mudanças na estrutura
inicialmente pouco complexificada, débil, do eu, com vistas à manutenção da vida. Por
intermédio da Teoria do Apoio descrita por Freud (1905/2003) no texto Três Ensaios de
Teoria Sexual, explicitaremos a forma por meio da qual o eu dá curso a seu processo de
complexificação. De acordo com Freud (1895/1995), o bebê nasce em estado de
desvalimento ou, para usar o termo do autor, desamparado. Isto significa que ele não
pode subsistir por si mesmo, por seus próprios esforços, pois a imaturidade biológica,
quando do nascimento, impede que o bebê sobreviva se deixado à própria sorte. Assim
sendo, ele precisa de um agente externo a ele que propicie a saciação dos carecimentos
– no caso a mãe ou quem quer que cumpra tal função. Esse agente prestativo, por sua
atuação recorrente no meio que circunscreve o bebê, ficará registrado no psiquismo sob
a forma de uma representação, a qual denominamos objeto. Quando a premência da
necessidade se impuser ao bebê, o objeto será ansiado como forma de obter saciação.
Brevemente, além da saciação, o bebê buscará obter deste outro (do agente prestativo)
algo mais: atingir a sensação prazerosa que a eliminação do desconforto gerado pela
necessidade lhe ocasionava. Esse a mais – o plus obtido via satisfação – passará a ser
almejado mesmo na ausência da necessidade. O objeto passa a exercer uma dupla
função: saciação das necessidades vitais e satisfação dos impulsos eróticos do bebê24.
Vemos então dois domínios sendo dissociados: o conservativo e o erótico. Para sermos
mais exatos, por meio da Teoria do Apoio, Freud (1905/2003) esclarece a maneira pela
qual as pulsões sexuais emergem arrimadas nas pulsões de autoconservação, ou seja,
como, da necessidade da vida, desprega-se o erótico, o libidinal. Libido pode ser definida
como “uma força quantitativamente variável que poderia medir os processos e
transformações ocorrentes no âmbito da excitação sexual” (FREUD, 1905/2003, p. 205).
A libido seria uma quantidade proveniente da excitação de todo o corpo (não apenas

24
Esclarecemos que distinguiremos os termos saciação e satisfação. Por saciação nos referimos ao
aplacamento das necessidades da vida, relativas ao conservativo. Já com o termo satisfação nos referimos
ao rebaixamento da urgência relativa ao plus que emergiu arrimado no conservativo, o sexual.

129
dos órgãos genitais) e poderia ser investida em objetos (o próprio eu ou outra
representação inscrita no aparato anímico). No caso descrito, a mãe é a figura
representada intrapsiquicamente que será a destinatária dos investimentos eróticos do
bebê, em razão de ser o ente almejado como aquele capaz de promover a satisfação.
Estamos tratando da escolha do objeto de amor, a representação anímica a ser
evocada/investida quando da urgência da pulsão erótica. Como nos fica explicitado, a
escolha objetal estaria sobredeterminada pela representação inscrita
intrapsiquicamente como correspondente a um caminho privilegiado de eliminação
quantitativa, de libido. Esta primeira eleição libidinal estaria sob uma configuração
diádica mãe-criança25.
E o pai, estaria ele ausente de tal configuração? Não estaria ele presente no
meio circundante do bebê desde o nascimento? A teoria psicanalítica desconsideraria a
presença paterna para o bebê? Vejamos como podemos esclarecer esta aparente
omissão da figura paterna nos primórdios da vida da criança. No texto de 1923, A
organização genital infantil (uma interpolação na teoria da sexualidade), Freud destaca
que o pai, de modo análogo à mãe, também seria uma figura que orbitaria o meio que
circunscrevia o bebê desde seu nascimento. Haveria, no início da vida, uma
indiferenciação entre as figuras parentais. Este dado apresentado por Freud
(1923/2003b) implicaria que é possível que ambas as figuras fizessem parte do
complexo representativo que seria tido como o primeiro objeto de amor do bebê. O
autor acrescenta que, conforme a criança cresce e a complexificação na estrutura do eu
vai sendo ampliada, a diferença de gênero seria reconhecida, mas não poderia ser
atribuída, ainda, a uma diferenciação de ordem sexual. Mas dentro em breve a
diferenciação entre os sexos tornar-se-á fator crucial para a continuidade da ampliação
nos domínios pertencentes ao eu. A valorização do pênis, que caracteriza a entrada no
período fálico, será determinante para a transposição que conduzirá o desenrolar dos
eventos do pré-Édipo até o Édipo. A valoração do pênis seria decorrente da capacidade
deste órgão como fonte de satisfação, a qual é obtida por meio de manobras
masturbatórias. O pênis, na fantasia da criança, é atribuído a todos os indivíduos,
independente de serem homens ou mulheres – a já citada indiferenciação sexual entre
os gêneros. A imposição da realidade se coloca frente à criança quando da visualização

25
Salientamos que para os objetivos deste trabalho bastar-nos-á a descrição dos eventos pré-edípicos e
edípicos no menino. Estamos cientes de que a partir de 1924 Freud não considera mais como análoga a
tramitação edípica masculina e feminina, entretanto manteremos este posicionamento para fins de
simplificação.

130
da ausência de pênis nas mulheres. Em sua fantasia, o menino crê que as mulheres
possuem pênis, mas que o órgão lhes fora extraído como forma de punição por algum
ato indevido; trata-se, pois, da castração. Os homens seriam seres dotados de pênis,
portanto, valorizados pelo menino. Por ser o portador daquilo que o menino tanto
valoriza, o pai passa a ser considerado um modelo a ser atingido. O menino quer ser
como o pai para também possuir um pênis tão poderoso quanto julga que ele tenha.
Podemos agora considerar a interposição de outra figura quebrando a estrutura diádica,
figura esta que se tornará passível de investimento: o pai. A configuração torna-se
triangular: pai – mãe – criança. A mãe, como primeiro objeto de desejo do menino,
mantém-se, mas o pai está agora configurado como uma figura de valência para ele.
Neste período, pai, mãe e criança convivem sem maiores divergências. Com o
desdobramento dos eventos edípicos, essa triangulação galgará nova dimensão, onde
se estabelecerá um conflito.
Adentramos os domínios da tramitação edipiana. Segundo apresenta-nos Freud
(1923/2003a, 1923/2003b, 1924/2003), a mãe continuará a ser o objeto privilegiado de
investimentos eróticos. O pai torna-se um obstáculo às intenções eróticas do menino,
um empecilho à obtenção da satisfação via acesso irrestrito à mãe, o que desencadeará
rivalidade. O menino direcionará sua hostilidade à figura paterna, o qual será entendido
como um rival a quem eliminar. Agora, em sua fantasia, o menino compreende a
existência das mulheres e temerá por si mesmo: o castigo imposto pelo crime de
parricídio seria a castração. Nas palavras do autor, “em certo momento o menino
compreende que o intento de eliminar o pai como rival será castigado por ele mediante
a castração” (FREUD, 1928/2004, p. 181).
Descrevemos até o momento a conflitiva edipiana simples, mas temos de
considerar que os eventos do período são mais complexos. O pai também é uma figura
valorizada pelo menino, tomado como modelo a atingir, portanto é passível de
investimento libidinal. Por ser possuidor de um pênis, o menino acredita que poderia
obter do pai algum tipo de satisfação. Aqui reside a complicação que configura o Édipo
completo: tanto a mãe quanto o pai são figuras amadas. Pelo estabelecimento da
ambivalência, também são figuras odiadas. Haveria um câmbio entre amor e ódio
endereçado às figuras parentais. Dentro desta perspectiva, é possível pensar, com Freud
(1923/2003a; 1924/2003), que haveria duas possibilidades de satisfação para o menino
nos domínios do Édipo completo: 1) assumir o lugar do pai e ter uma atitude ativa em
relação à mãe; ou 2) assumir o lugar da mãe e ter uma atitude passiva em relação ao
pai. Independentemente da opção do menino, esta lhe custará o pênis, pois para possuir

131
a mãe correrá o risco de ser castrado como forma de punição; para ter o pai, precisará
assumir a forma feminina, igualmente castrada. Portanto, para alcançar o intento de
satisfação erótica, com qualquer que seja dos objetos parentais, o custo será a perda de
uma parte de sua anatomia altamente investida – o pênis.

Se a satisfação amorosa no terreno do complexo de Édipo deve custar


o pênis, então produz-se o conflito entre o interesse narcisista nessa
parte do corpo e o investimento libidinal dos objetos parentais. Neste
conflito triunfa normalmente o primeiro destes poderes: o eu do
menino abandona o complexo de Édipo (FREUD, 1924/2003, p. 184).

Freud (1923/2003a e 1924/2003) considera como desfecho esperado para o


conflito edípico que o menino desista de seus objetos de amor parentais em prol de seu
pênis, escapando da castração. Seria uma atitude coerente, se não necessitássemos
compreender, juntamente com Freud (1914/2003), a dificuldade em deixar tais objetos.
O eu, afirma o autor, é incapaz de renunciar a uma satisfação outrora experimentada.
Assim sendo, que manobra intrapsíquica realizar para não abandonar, ou ainda, abdicar
dos objetos de amor tão caros ao menino?
Para que os intentos eróticos com relação aos objetos primordiais do menino
sejam abandonados, será necessário que as representações intrapsíquicas destes
objetos sejam desinvestidas ou, em outros termos, que elas sofram um processo de
dessexualização. O processo de dessexualização pode ser entendido como uma
usurpação pelo eu dos domínios do isso; o eu se apoderaria das representações de
objeto, tornando-as aquisições à sua estrutura. Este é o mecanismo de identificação,
por meio do qual ocorre um empreendimento intrapsíquico de “[...] configurar o próprio
eu a semelhança do outro, tomado como ‘modelo’” (FREUD, 1921/2004, p. 100). As
representações de objeto são resignadas ao eu sob a forma de identificações, a partir
de quando os progenitores tornar-se-ão instalados, via mecanismos identificatórios, no
aparelho psíquico do menino.
O que conduz o menino a desinvestir seus objetos amados seria uma imposição
externa a ele, uma proibição da satisfação por meio de seus objetos, portanto, uma lei
anti-incesto. Por intermédio da imposição do pai, a mãe seria um objeto ilícito ao
menino e a pena pelo descumprimento de tal lei paterna seria a castração. De acordo
com as teses defendidas por Freud (1915/2003) no texto A repressão, só faz sentido
conceber o abandono de uma satisfação por uma ameaça de desprazer de magnitude

132
maior que a satisfação poderia produzir. Assim, a ameaça de castração adquiriria maior
força como produtora de desprazer do que a satisfação erótica a ser alcançada via
objeto de amor. A manobra intrapsíquica de resignar os objetos de amor,
internalizando-os via processos identificatórios, salvaguarda tais figuras, mantendo-as
em uma diferenciação na estrutura do eu. Doravante, a interdição do incesto não
carecerá de imposição externa – do pai –, pois estará inscrita no psiquismo do menino.
O menino assemelhou seu eu ao do pai, ele é [como] o pai, portanto, a lei anti-incesto,
que era a lei do pai, é agora a sua própria lei.
O desfecho do Édipo, com a resignação dos objetos de amor como uma
aquisição ao patrimônio do eu, constituirá uma diferenciação em sua estrutura: o ideal
do eu (FREUD, 1914/2003; 1923/2003a; 1933/2003). Ocorre que os objetos de amor
primordiais da criança são representações constituídas em momentos arcaicos do
desenvolvimento/complexificação do eu, período no qual o eu ainda é débil em suas
funções. As figuras que permeiam o meio externo da criança e que a saciam e satisfazem
seriam tidas como portadoras de total perfeição, seriam figuras grandiosas, idealizadas.
Segundo Freud (1914/2003), essas figuras não seriam além de uma projeção da própria
onipotência do bebê, de sua grandiosidade e perfeição. Deste modo, quando no
desenlace da tramitação edípica o eu se identifica com seus objetos de amor, ele está
se identificando com figuras idealizadas (e não com características realistas das figuras
parentais). Usando os termos do autor, “o ideal do eu é o precipitado da velha
representação dos progenitores, expressa a admiração por aquela perfeição que o
menino lhes atribuía nesse tempo” (FREUD, 1933/2003, p. 60). Com a emergência e
constituição de um ideal do eu, a satisfação a ser buscada não necessitará mais ser via
acesso aos objetos primordiais, mas a busca incessante de equivalência entre o eu e os
modelos instalados no ideal do eu. Entende-se, com Freud (1914/2003, 1933/2003), que
as representações que ali orbitam são figuras idealizadas, portanto, intangíveis, o que
tornará a almejada equivalência um objetivo utópico.
Com a constituição do ideal do eu, é possível que o menino trafegue pelo meio
social, visto que as figuras que orbitavam este meio estão inscritas em seu aparato
anímico. Destacamos que esta diferenciação do eu – o ideal do eu – é a condição para
que o social inscreva-se no psiquismo, pois é com a internalização das figuras parentais
e das normas de conduta por elas impostas que as diretrizes sociais nortearão o
indivíduo.
Para Freud (1914/2003), é apenas com a instauração do ideal do eu que as
condições para a repressão estão dadas. Nas palavras do autor, “a formação de ideal

133
seria, da parte do eu, a condição da repressão” (FREUD, 1914/2003, p. 90). A partir da
aquisição do ideal do eu, as normas para a escolha de objetos lícitos para a obtenção de
satisfação estarão demarcados, e todo e qualquer objeto que não corresponda ao
balizamento ali imposto sucumbirá à repressão. Dessa forma, as figuras parentais, tidas
como ilícitas pela internalização da lei anti-incesto, sofrerão repressão enquanto objetos
a investir eroticamente. A opção do menino será buscar em seu entorno outras figuras
nas quais investir libidinalmente, mas outras que estejam ligadas associativamente às
primeiras. A eleição dos novos objetos será balizada pelo modelo instalado no ideal do
eu.
Entendemos, amparados nas teses freudianas (1914/2003; 1923/2003a;
1933/2003), o ideal do eu como um núcleo ao qual serão agregadas, por associação,
outras figuras que povoam o meio social do menino. “No posterior circuito de
desenvolvimento [após a constituição de um Ideal no Eu], professores e autoridades
foram retomando o papel do pai” (FREUD, 1923/2003a, p. 38). Tais figuras de
autoridade, que estarão ligadas associativamente às primeiras representações da
criança, tornar-se-ão figuras de valência – tanto quanto as figuras primordiais – e serão
agregadas/inscritas no ideal, formando uma estrutura maior: o supereu. O curso normal
do desenvolvimento conduz o supereu a distanciar-se cada vez mais dos indivíduos
parentais originários, que se tornam, por assim dizer, mais e mais impessoais (FREUD,
1933/2003, p. 60).

5 A propósito da escolha profissional

Na seção anterior, realizamos um percurso desde o nascimento até o


soterramento do Édipo com a instauração do ideal do eu no aparelho psíquico. Mas o
que teria toda esta trajetória a ver com a escolha profissional de cada indivíduo?
Tentemos dar corpo a este questionamento que impulsionou o empreendimento deste
trabalho.
O processo de escolha, diz-nos Torres (2001), é multideterminado. Cremos
haver explicitado alguns dos meandros que demarcam tal sobredeterminação e
elegemos o constructo ideal do eu como possibilidade explicativa para o processo de
escolha profissional dentro de uma ancoragem psicanalítica freudiana. Nesta
perspectiva, destacamos a estrutura do supereu, o qual carrega em seu bojo o ideal do
eu. Assim, o supereu “é também o portador do ideal do eu com que o eu se mede, ao
que aspira alcançar e cuja exigência por uma perfeição cada vez mais vasta se empenha

134
em cumprir” (FREUD, 1933/2003, p. 60, grifo nosso). Portanto, o eu se esforçará por
atingir o que está posto como ideal, pois quanto mais se aproximar do modelo ali
inscrito, mais haverá a sensação de adequação de si, pela possibilidade de obter
satisfação, a qual pode ser alcançada por cumprir o que se encontra no ideal (FREUD,
1933/2003; HORNSTEIN, 1989; BOHOSLAVSKY, 1998). Isto implica que o ideal do eu
balizará a valoração vislumbrada nos objetos. Além dos objetos primordiais – inscritos
no ideal do eu –, os objetos ligados associativamente a eles também serão valorizados:

[...] o valor dos objetos, do eu e suas atividades têm a ver não só com
sua possibilidade de prazer, mas também com o ideal. O ideal, por sua
vez, não está gerado por realidades transcendentais, nem sequer é
reflexo direto dos valores sociais (o que seria um reducionismo
sociologista), porém são internalizados a partir de vínculos com os
objetos primordiais (HORNSTEIN, 1989, p. 207).

Hornstein (1989) declara que o valor atribuído a algo também tem a ver com o ideal. Se
o que está inscrito no ideal são os objetos primordiais idealizados, os quais eram tidos como
fonte inesgotável de satisfação, atingir o que está no ideal equivaleria a obter satisfação. Mas –
já dissemos isso – a equiparação entre eu e ideal do eu é inalcançável pela grandiosidade das
representações que foram resignadas pelo mecanismo de identificação. Por haverem
sucumbido à forma de atuação do eu, ou seja, dessexualizada em seus fins, meios alternativos
de satisfação têm de ser buscados. Se a satisfação obtida nos primórdios da existência, via
objetos, poderia ocorrer à maneira de funcionamento do livre escoamento de quantidades,
portanto, um funcionamento primário, ao serem transmutados em domínios do eu pelo
mecanismo de identificação – uma energia ligada, represada, um funcionamento secundário,
portanto –, as representações resignadas sob a forma de ideal necessitam de formas outras de
satisfação, afastadas dos objetos primordiais (FREUD, 1895/1995). De modo análogo ao que
ocorre com a satisfação alcançada com os objetos primeiros de amor, após a constituição do
ideal, as formas de satisfação lícitas continuam paliativas, pois a urgência do incremento
quantitativo no aparato anímico, a pulsão que tem força e pressão constante, impelirá o
organismo a buscar repetidas vezes apaziguar o acúmulo de quantidade. Em Projeto de uma
Psicologia, de 1895, Freud defende a tese de que o que moveria as ações do ser humano seria a
evitação do desprazer e a busca pelo prazer. Desta maneira, acreditamos que as escolhas que o
indivíduo faz tenham a ver diretamente com a busca pela satisfação e/ou a evitação do
desprazer. A escolha profissional – poderíamos inferir – seria um indício de que determinada

135
atividade teria conotação prazerosa. Há aqui um paradoxo para a existência do indivíduo: sua
busca incessante residiria na satisfação erótica, mas para que ele esteja apto para a convivência
em sociedade é necessário abrir mão de modos de satisfação não aceitos pelo meio social, o que
implicaria no afastamento de finalidades eróticas. A maneira de resolver tal paradoxo seria forjar
novas configurações para as antigas formas de satisfação, de modo a metamorfosear uma
satisfação ilícita em uma forma socialmente aceitável. A essas novas configurações Freud
(1914/2003, 1923/2003a) denomina sublimação. No processo de sublimação, a meta, o objetivo
de satisfação sexual é deslocado para algo que não possua [aparentemente] a conotação
erótica; a libido direcionada aos objetos é retirada e investida no eu, sendo reorientada para
uma finalidade não sexual e para um objeto não sexual. Dessa maneira, pela via sublimatória, o
indivíduo substitui uma satisfação erótica por outra forma de satisfação correlata, ligada
associativamente à primeira, mas dessexualizada – portanto, englobada/encampada pelos
domínios do eu. (FREUD, 1923/2003a).

Ao ressaltar a influência do ideal do eu no quesito sublimação, declara-nos Hornstein:

A partir da constituição do ideal do eu, pode haver coisas prazerosas


mas não valorizadas, que serão objeto de recalcamento [repressão] ou
condenação (consciente), assim como o ideal pode valorizar atividades
que não são prazerosas. Poderíamos acrescentar que o campo
sublimatório é o da realização que conjugaria o prazeroso com o
valorizado (1989, p. 208, grifo nosso).

Laplanche e Pontalis (1992) corroboram a afirmação de Hornstein (1989) ao declararem


que “a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não sexual e
em que visa objetos socialmente valorizados” (p. 495). Freud (1930/2004), em O Mal-estar na
Cultura, aponta a atividade profissional como uma forma de sublimação, portanto, uma maneira
de obtenção de satisfação socialmente lícita.

A atividade profissional proporciona uma satisfação particular quando


tenha sido elegida [preferida] livremente, ou seja, quando permite
tornar utilizáveis mediante sublimação inclinações existentes, moções
pulsionais prosseguidas [continuadas] ou reforçadas
constitucionalmente (FREUD, 1930/2004, p. 80).

136
Para Hornstein (1989), o valor é atribuído aos objetos “por sua capacidade de oferecer
ou não satisfação” (p. 206). Nestes moldes, o que imprimiria valor ao trabalho, seria a
possibilidade de alcançar satisfação por seu intermédio, visto estar a atividade profissional
enlaçada aos objetos primeiros da criança, os quais eram fontes de satisfação, portanto, figuras
valorizadas. Inferimos o valor atribuído socialmente ao trabalho como uma satisfação angariada
pela via dessexualizada, dominada pelo modo de funcionamento secundário do eu, ou seja,
sublimada. Tal forma de satisfação estaria em acordo com as normas sociais vigentes e seria
uma maneira de integrar o indivíduo numa fração da realidade, entendida aqui como meio
externo. Nos termos de Freud (1930/2004): “Nenhuma outra técnica de condução da vida liga
o indivíduo tão firmemente à realidade como a insistência no trabalho, que ao menos o insere
em forma segura num fragmento da realidade, a saber, a comunidade humana” (p. 80).
Sintetizando, a escolha profissional estaria balizada pelo que está no ideal do eu, será
um reflexo das figuras primordiais, idealizadas, que o constituem. Quanto mais próxima a
escolha profissional conduzir o eu a realizar (mesmo que parcialmente) o que está no ideal,
maior a possibilidade de obtenção de satisfação pela via do trabalho. Portanto, para que a
atividade profissional eleita possa ser entendida como sendo da ordem de uma sublimação, ela
tem de estar atrelada ao que está no ideal do eu.

Considerações finais

Se tomarmos as abordagens kleiniana e freudiana como parâmetros para a escolha


profissional, temos de considerar uma decisiva diferenciação: de acordo com a teoria kleiniana,
a escolha profissional estaria vinculada ao mecanismo de reparação, portanto localizada na
posição depressiva (em geral no segundo semestre do primeiro ano de vida); de acordo com
nosso entendimento, apoiado nos pressupostos freudianos, seria necessário transpor o
complexo de Édipo para que a escolha profissional possa ser efetuada de maneira adequada.

As implicações entre as duas propostas psicanalíticas em relação ao tema são


consideráveis. Nossa compreensão é de que apenas com a derrocada do Édipo as figuras
parentais seriam resignadas sob a forma de identificações e formariam estruturas psíquicas –
ideal do eu/supereu. Tornando-se constituintes da estrutura do eu, os objetos primordiais
resignados dão contornos que serão seguidos como modelos a atingir. A dimensão de ter o
objeto assume a dimensão do ser o objeto, via mecanismos identificatórios. Mais ainda, é
apenas com a dissolução do complexo edípico que podemos dizer que o indivíduo está apto a
transitar pelos meandros da cultura, pois é pela constituição do ideal do eu que os aspectos

137
sociais, as normas que balizam as relações entre os indivíduos, são internalizados. Se
entendermos que a escolha profissional – mais especificamente o trabalho – possui uma
dimensão social tal qual Freud (1930/2003) aponta, somente com a instauração intrapsíquica
do social e tudo que ela representa em termos de ditames, modelos e normas sociais/culturais
a seguir, podemos pensar a questão da eleição de uma profissão. Mais ainda, é a partir da
instauração do ideal do eu que o mecanismo de repressão estará atuante no aparelho psíquico,
pois serão os ditames impostos via ideal que demarcarão as formas lícitas e as ilícitas de
satisfação. Estando as formas ilícitas barradas, o mecanismo sublimatório será engendrado com
vistas a apaziguar a urgência pulsional. Mas as bordas para a eleição das atividades valorizadas
socialmente estarão sobredeterminadas pelo que está no ideal. Dentro deste panorama, é
possível vislumbrar a satisfação versus sofrimento que o trabalho pode desencadear no
indivíduo: atendendo os ditames, o modelamento demarcado pelo ideal, a profissão a
empreender poderá ser um processo sublimatório que conduzirá a uma forma de satisfação
socialmente aceitável. Diametralmente oposto seria o caso da execução de uma profissão fora
dos padrões estabelecidos pelo ideal, portanto, possível fonte de frustração, de insatisfação, por
não atender aos requisitos a que se encontra sobredeterminado.

Apesar do que discutimos neste texto, temos de considerar que o trabalho exercido por
um indivíduo não está, necessariamente, relacionado à sua escolha profissional. Pensamos estar
tratando de duas esferas distintas: a do possível e a do viável. Levantamos teoricamente a
possibilidade de o trabalho ser uma fonte se satisfação pela via da sublimação. Apesar deste
feito, estamos cientes dos efeitos dos modos de produção, da realidade socioeconômica
vigente, que atravessam o processo de escolha profissional e empurram o indivíduo a submeter-
se a uma atividade produtiva distante do que lhe estaria sobredeterminado. São as necessidades
da vida que conduzem o indivíduo a realizar atividades profissionais que não são valorizadas,
que não estão balizadas pelo ideal, mas que lhe garantem a subsistência. Parece-nos que a
escolha profissional, dentro dos parâmetros aqui apresentados, não se torna viável quando
entra em xeque a manutenção da vida. Entre busca pela satisfação e sobrevivência, acaba
prevalecendo, para muitos, a necessidade ordinária da vida. E, inferimos, muitas vezes como
consequência de tal impossibilidade de escolha, sobrevém o sofrimento psíquico.

Referências

ABREU FILHO, A. G.. Escolha profissional: consciente e/ou inconsciente? São Paulo: Vetor, 2006.

138
BOHOSLAVSKY, R. Orientação vocacional: a estratégia clínica. (J. Bojart, Trad.) São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
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preliminar. In: FREUD, S. Estudios sobre la histeria. Obras Completas. (Tradução de José Luis
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1895-1995.
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GOMES, I. C. Prefácio a Escolha profissional: consciente e/ou inconsciente? In: ABREU FILHO,
Antônio Geraldo de. Escolha profissional: consciente e/ou inconsciente? São Paulo: Vetor, 2006.
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HARNIK, S. Má escolha é a maior causa de evasão. 2005. Folha Online Educação. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/educação/ult305ul17930.shtml. Acessado em
07/02/2012.

139
HORNSTEIN, L. Introdução à Psicanálise. (Tradução de Maria Angela Santa Cruz). São Paulo:
Escuta, 1989.
NEIVA, K. M. C. Processos de escolha e orientação profissional. São Paulo: Vetor, 2007.
SOARES, D. H. O que é escolha profissional. São Paulo: Brasiliense, 1991.
TORRES, M. L. Orientação Profissional Clínica: uma interlocução com conceitos psicanalíticos.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

140
Capítulo 7

O Sentido do Trabalho e a Escolha Profissional: uma visão da Logoterapia

Danielle Cristina Ferrarezi Barboza

Nos casos em que a profissão concreta não traz consigo


nenhuma sensação de plena satisfação, a culpa é do
homem que a exerce, não da profissão. A profissão, em
si, não é ainda suficiente para tornar o homem
insubstituível; o que a profissão faz é simplesmente dar-
lhe a oportunidade para vir a sê-lo.

Viktor Emil Frankl

Discutir sobre o trabalho e a sua importância na vida dos indivíduos parece recorrente,
mas continua sendo essencial para se compreender o homem e suas escolhas. Em um mundo
marcado por grandes e rápidas transformações, o trabalho tem um papel de realização de
valores incontestável e, muitas vezes, ele não pode nem ser escolhido. Perante a necessidade
de sobrevivência, as pessoas acabam por aceitar as oportunidades de trabalho que lhes são
oferecidas, que reconhecem ser capazes de desenvolver, sem grandes pretensões de realizações
de valores, desejos ou até mesmo de ser bem sucedido. Com o tempo, se apresentam
insatisfeitas com o trabalho que realizam e, não encontrando um sentido verdadeiro para
executá-lo, acabam se frustrando e se entediando. Refletir sobre a importância que o encontro
com o sentido do trabalho pode ter nas escolhas profissionais e suas realizações, por meio do
olhar analítico-existencial, é o que pretende este texto.

Uma breve Introdução à Logoterapia

Reconhecida como a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia (após a Psicanálise de


Freud e a Psicologia Individual de Adler), a Logoterapia – ou Análise existencial – foi fundada
depois da Segunda Guerra Mundial pelo médico psiquiatra Viktor Emil Frankl (1905-1997). Seus
estudos trouxeram uma orientação teórica e prática para as perguntas do porquê e para quê da
vida, apresentando a estes questionamentos um possível conteúdo de sentido (LÄNGLE, 1992).
Portanto, o centro de sua pesquisa é o sentido que o homem busca e precisa encontrar diante
de todas as situações que a vida lhe apresenta.

141
Por meio da conscientização espiritual do homem, a Logoterapia busca um
reconhecimento da responsabilidade que cada um tem com a vida e suas escolhas. Concentra-
se no futuro do indivíduo, nos sentidos a serem realizados e tira de foco os ciclos viciosos e os
mecanismos de defesa que têm tanta importância em outras formas de psicoterapia. Assim, o
homem entra em confronto com o seu sentido e se reorienta. (FRANKL, 2008).
Essa abordagem psicoterapêutica nos mostra que não há aspectos negativos da
existência que, enfrentados com uma atitude otimista, não possam ser transformados em
conquistas positivas. Percebe, então, o homem por meio de três pilares: a liberdade de vontade,
a vontade de sentido e o sentido da vida, com capacidade de autotranscedência e
autodistanciamento, ou seja, capaz de se abrir para o mundo e questioná-lo além de si mesmo
(FRANKL, 2011). O homem é visto como um ser que não se consome com a complexidade da
alma, que é difícil de entender, mas se preocupa com um mundo espiritual objetivo de valores,
onde é possível o encontro com o sentido, sem apreensão de condicionantes genéticos,
psíquicos ou sociais (BÖSCHEMEYER, 1992).

A Busca e a Vontade de Sentido


O sentido aqui discutido, que só é possível depois de uma maturação da consciência, é
a significação que o indivíduo dá a cada vivência, ou seja, o entendimento do verdadeiro intento
de viver aquela situação, de realizar aquele papel. Este sentido só pode ser realizado pela pessoa
que o vivencia, sendo então, intransferível. Diante do sentido, o homem busca dar forma a sua
vida, vê uma direção a ser seguida, em uniformidade com o ambiente físico e social em que se
encontra (LANGLË, 1992).
Na análise existencial, o homem é um ser único e irrepetível, isto é, não existe e nem
existirá outro igual, com características e histórias iguais. Sendo assim, singular também é em
relação ao sentido, que se torna impossível de objetivação e de construção. O sentido, então,
só pode ser encontrado por um processo de descoberta, como se diante das situações, de
repente, emergisse à frente dos olhos uma significação (BÖSCHEMEYER, 1992).
A busca pelo sentido é uma motivação primária do homem, que deve ser realizada
constantemente, e a vontade de sentido é o motivo principal de sua existência. Aberto ao
mundo, o homem é capaz de derrubar qualquer barreira imposta para conseguir realizar seus
valores e em defesa de seus ideais. Assim, acaba por atingir o mundo e os outros indivíduos com
que se depara pela vida. Portador de intencionalidades, está sempre com o propósito de prover
a vida de sentido e de realizar seus valores (FRANKL, 2011).
Sendo assim, viver com sentido significa o homem, com todas as suas peculiaridades
individuais, se dispor ao propósito de cada hora, em confronto criativo com ela, numa troca,

142
dando e recebendo (LANGLË, 1992). Todos os homens, em algum momento, consciente ou
inconscientemente, se interroga sobre o sentido e o percebe de maneiras diferentes em cada
situação.
O esforço do homem em direção ao seu sentido é a vontade de sentido, que não pode
ser controlada, dominada nem exigida; ela vem à tona de acordo com o reconhecimento do
sentido, podendo ser frustrada quando este sentido não é percebido (FRANKL, 2011).
O questionamento sobre o sentido de sua existência é importante para o homem, pois
abre um campo de tensão entre ele e o sentido – conhecido na Logoterapia como noodinâmica
– que o faz se posicionar de maneira consciente diante das condições impostas pela vida, dando
vazão aos seus valores. Hoje, essa tensão, numa dose saudável, é essencial para retirar o homem
do estado homeostático em que se encontra. Antigamente, as repressões constantes colocavam
o homem em uma situação de tensão frequente e o faziam buscar a homeostase (equilíbrio
entre o interno e o externo) para conseguir sobreviver psiquicamente. Na atualidade, o homem
é poupado de tensão, não sendo mais reprimido pelo seu comportamento, tendo conquistado
sua tão sonhada liberdade de expressão. O que acaba aparecendo é um vazio existencial, uma
frustração da vontade de sentido pelas faltas de demandas, mais do que pelo excesso delas
(FRANKL, 1989).
A ausência de sentido é o vácuo existencial, a vulnerabilidade do homem diante do
sofrimento. Na busca de um sentido, o homem pode ser bem sucedido e encontrar a felicidade,
como pode também não encontrar o sentido e se entregar à infelicidade (FRANKL, 1992). A
infelicidade pela ausência de sentido parece ser o grande mal da contemporaneidade.
Questionar o sentido da vida pode e ocorre em qualquer fase do desenvolvimento do
homem, até mesmo na velhice, quando se pensa ter vivido tudo que a vida poderia oferecer.
Esse questionamento sempre será importante para as decisões a serem tomadas e para as
realizações de valores. Algumas pessoas evitam esse questionamento e vivem de forma
presentista (uma expressão utilizada por Erwin Straus, no seu livro Acontecimento e vivência,
para se referir a um comportamento que nem se funda no passado nem no futuro, aplicando-
se apenas ao puro presente da história), passam a beber, fumar e se entregar aos prazeres
momentâneos da vida, para não ter que se questionar sobre o verdadeiro motivo para estar
vivo, sua verdadeira missão de vida (FRANKL, 1989).
O homem é um ser histórico, está inserido num contexto histórico que não se pode
alterar, que é concreto e que foi de alguma forma determinado por um sentido. Se o sentido
desaparece, junto com ele desaparece o histórico, pois não se pode isolar o histórico da sua
realidade de vida, mesmo quando o homem, doente de neurose, deforma essa realidade
(FRANKL, 1989).

143
Diante de cada situação, o homem terá que atingir e captar o sentido que se esconde,
apreendê-lo e realizá-lo. Só a consciência pode mostrar, pela capacidade intuitiva que todo
homem possui, qual o sentido, irrepetível e único, por trás da situação a ser enfrentada,
realizada. A consciência poderia ser chamada de “órgão-sentido”. Em alguns momentos, a
consciência pode até levar o homem a enganar-se e este passar a vida sem ter certeza. Como
também o homem pode, em determinadas circunstâncias, não compreender o sentido, tendo
que interpretá-lo para então realizá-lo. Não se atribui um sentido à vida, se acha; não se dá um
sentido, se encontra (FRANKL, 1989).
Além do sentido vinculado a uma situação única e irrepetível, existem os sentidos
universais, que estão presos à condição humana como tal, que são possibilidades de sentidos,
chamadas de valores.
Sempre que se acha o sentido único de uma situação ou se afirma a
sua concordância com um valor universal, o papel da consciência
parece desembocar numa captação de configurações; isto é em
virtude do que chamamos de vontade de sentido (FRANKL, 1989,
p.79).

O Sentido do Trabalho
O sentido difere de homem para homem, de situação para situação, de data para data,
e até de hora para hora. Isso significa que duas pessoas podem estar vivenciando a mesma
situação, num mesmo momento, mas para cada uma será um sentido diferente. O homem
diante dele e da vida é único, sua vida é singular, ninguém pode repeti-la nem viver a vida de
ninguém. Quando o homem morre, com ele também morrem todas as possibilidades de sentido
(FRANKL, 2011).
O trabalho pode revelar a unicidade do homem ao se relacionar com a comunidade,
obtendo assim sentido e valor. Porém, esse sentido e valor não são inerentes à profissão, mas à
forma que ele contribui com a comunidade. Não é a profissão, ou um determinado tipo de
profissão, que dá ao homem a plenitude de sentido, mas sim o que por ela o homem tem a
possibilidade de realizar (FRANKL, 1989). Muitas profissões diferentes poderiam dar ao mesmo
homem a possibilidade de realizar os mesmos valores. Por exemplo, um homem que se depara
com um acidente de automóvel pode se ver ajudando os acidentados por sentir que a vida do
próximo depende da sua, mesmo não sendo um médico, enfermeiro ou bombeiro.
Portanto, o sentido do trabalho não está na profissão, mas no que se cria por meio dela,
no que é possível realizar com ela. Sendo assim, para o homem se sentir pleno de sentido no
trabalho, ele precisa ir além das normas exclusivas da profissão, daquilo que está apenas

144
regulamentado; ele precisa conferir ao trabalho a sua existência, o seu “caráter de algo único”,
aquilo que nele há de pessoal. Na verdade, é esse “caráter de algo único”, essa irrepetibilidade
e unicidade de cada homem que o tornam insubstituível naquilo que faz e em como faz, e não
sua profissão (FRANKL, 1989). Afinal, quantos médicos, psicólogos, mecânicos, professores
existem? Todos os médicos realizam suas atividades da mesma forma? Lidam com os seus
pacientes da mesma forma? Dão às mesmas situações as mesmas respostas? Não. Cada
profissional, apesar de ter os mesmos preceitos profissionais, escolhe, a sua maneira, diante do
sentido que encontra em cada fato, a melhor resposta a dar, a melhor forma de agir. Outros
ainda, não percebendo o sentido do momento, podem agir só por agir, para cumprir a obrigação
da profissão.
Da mesma forma, as realizações de valores que o trabalho oferece ao homem por meio
de seu sentido podem ser desviadas a partir do momento em que o homem se vê obrigado a
fazer suas atividades e responder às situações de acordo com o que a empresa, instituição, líder
ou patrão lhe confere. Perdendo a sua unicidade na situação, o trabalho torna-se um “simples
meio para um fim, o fim de ganhar a vida, de ganhar os meios necessários para viver a vida
propriamente dita” (FRANKL, 1989, p.162). Frustrada a realização do sentido, o homem pode
deixar de focar suas ações nos valores e passar a desejar o poder, a querer ocupar um lugar que
ele julga privilegiado. Aqui o ter torna-se mais importante que o ser ou fazer.
Como Albert Einstein (citado por FRANKL, 2011, p.67) disse, “o homem que considera a
própria existência desprovida de sentido, não só é infeliz, como também dificilmente consegue
adaptar-se à vida”.
O que se percebe é que as experiências mais nobres do sentido acabam se conservando
para aquelas pessoas que, desprovidas da possibilidade do trabalho ou do amor, livremente,
optam por uma atitude positiva para a vida, levantando-se por si mesmas e avançando além de
si. O importante aqui é a forma como a pessoa se posiciona diante da situação; com heroísmo,
decide transformar a lástima de seu pesar inevitável numa vitória, num triunfo (FRANKL, 2011).
Quando o homem não consegue superar as dificuldades que a vida lhe apresenta, diante
da frustração existencial é que pode ocorrer a substituição da vontade de sentido pela vontade
de poder, como se ele pudesse fugir dos seus problemas, passando, então, a dedicar seus
esforços à vontade de dinheiro, apresentando uma “hiperatividade profissional” (FANKL, 2011,
p.121). Mas, que fique claro: o retorno financeiro ou a segurança social não são suficientes. O
homem não consegue viver só de bem estar material, ou seja, mesmo substituindo a vontade
de sentido pela vontade de prazer ou dinheiro, ele vai se deparar, mais cedo ou mais tarde, com
o questionamento “para quê?” e, assim, quem sabe redescobrir a vontade de sentido ou, então,
cair profundamente num vácuo existencial.

145
A motivação do homem para o trabalho, ou para qualquer ação em sua vida, vai além
de uma reação aos estímulos ou obediência aos desejos. O homem dá respostas às situações
que lhe aparecem, realizando os significados que a vida acaba por lhe oferecer (FRANKL, 2005).
O sentido do trabalho vai além da profissão, pois está relacionado à missão de vida de
cada um, o que de mais íntimo traz sua dimensão espiritual; envolve a realização de valores
criadores, da possibilidade de fazer o que mais nobre a tarefa pode oferecer.

A Escolha Profissional
O homem é um ser livre para escolher suas ações, embora essa liberdade possa não se
limitar a algo, nem às condições que lhe são impostas, sejam elas biológicas, psíquicas ou sociais.
Trata-se de uma liberdade “para” algo, para uma tomada de decisão diante de todas as
condições. O homem, assim, não é livre dos condicionantes da vida, mas livre para escolher a
melhor atitude a realizar diante de qualquer circunstância que lhe seja apresentada. Apesar de
livre, o homem é responsável e sua liberdade é finita, visto não ser ele onipotente, como a
consciência não é onisciente (FRANKL, 2011).
Desta forma, é pelo distanciamento de si mesmo e das situações que o homem se torna
apto para realizar uma escolha de atitude que respeite a si mesmo, tomando posição,
colocando-se diante dos condicionantes psíquicos, sociais e biológicos. Portanto, as pessoas são
livres para fazer o que quiser da vida, mas não podem esquecer que, ao mesmo tempo, são
responsáveis pelas consequências que essas escolhas possam trazer.
Para conseguir distanciar-se da situação e de si mesmo, é preciso ser consciente do que
se é. Aprender a fazer o julgamento e a avaliação dos próprios comportamentos, da própria
realidade, tanto em termos éticos como morais, para, então, conseguir ser responsável pelas
próprias atitudes. Afinal, a liberdade pode corromper as pessoas por puro capricho e, neste
sentido, a consciência nada mais é do que a habilidade humana de descobrir o sentido que existe
por trás de cada singular situação e, assim, permitir que o homem faça uma escolha mais
adequada (FRANKL, 2011).
A consciência não é perfeita, é sujeita a erros, mas devemos ser fiéis a ela e obedecê-la,
ainda que haja a possibilidade de estarmos errados, pois esta possibilidade não dispensa a
“necessidade de tentar”. Assim sendo, não será possível saber com certeza se dedicamos nossos
esforços ao sentido verdadeiro; porém, diante da dúvida de ter realizado uma escolha errada –
e no caso da culpa – o homem pode se posicionar e fazer uma nova escolha. Porque, na verdade,
é privilégio do homem, parte essencial da sua existência, a “capacidade de definir-se e redefinir-
se” (FRANKL, 2011, p.95).

146
É importante destacar que uma escolha feita não pode ser desfeita, como também não
podem ser evitadas suas consequências. Por essa razão, o homem precisa ser bem consciente
de sua responsabilidade em usar as oportunidades que aparecem a sua frente e levar em
consideração seus princípios e valores na tomada de decisão. De fato, é preciso enxergar o
sentido existente diante de cada situação, pois ele sempre será responsável por suas ações, por
quem amar e até mesmo por como sofrer (FRANKL, 2011). Apesar da impossibilidade de
desfazer uma escolha, o homem sente-se seguro em realizá-las, porque consegue ver nos erros
a aprendizagem e a possibilidade de redirecionar sua vida em novas escolhas, escolhas
melhores, baseadas nas vivências boas e ruins. O fato de ter feito uma escolha ruim não impede,
então, o homem de realizar outras escolhas, porém, sempre será uma questão de ousadia.
Considerando as escolhas de maneira consciente e responsável, é possível afirmar que
a escolha de uma profissão tem uma relação muito forte com a missão que a pessoa sente que
precisa realizar na vida, algo que faz parte da sua dimensão espiritual e que supera qualquer
influência dos pais, das mídias, da sociedade e até financeira. Não é vocação, não é divino; é
uma exigência que se percebe a cada dia, diante de cada momento vivido, com a intuição lhe
mostrando a melhor resposta a dar.
Os valores são, então, as principais vias de acesso humano aos sentidos e são divididos
na Logoterapia em três categorias: os valores de criação, que são aqueles que o homem oferece
ao mundo em forma de realizações, construções, inovações; os valores de experiência, que se
referem àqueles que o homem recebe do mundo, por meio do que vive, da integração com o
meio; e os valores de atitude, que envolvem a postura que se toma diante dos acontecimentos
da vida, quando se enfrenta o destino que não pode ser alterado (FRANKL, 1989; 2011).
Portanto, haverá situações em que o homem se encontrará diante de alternativas de
valores, tendo que escolher entre princípios contrários, colocando em dúvida se deve ou não se
reportar à consciência, que lhe impõe decidir livremente com responsabilidade. Esses
momentos, geralmente, são aqueles que envolvem os desempregados, o pai de família que não
quer ver o filho passando necessidades, ou até mesmo aquelas mulheres que julgam não poder
ter melhores oportunidades. Nesta dúvida, muitas vezes os homens ignoram a consciência e
sufocam seus valores, optando por realizar funções que não darão vazão às suas missões, mas
que os ajudarão a dar continuidade à vida, apenas sobrevivendo. Passado um tempo, porém,
diante das consequências de suas escolhas, se veem tendo que apresentar à vida uma satisfação
do vazio em que se encontram, na falta de sentido que aquelas tarefas rotineiras e diárias lhes
mostram. Mais uma vez, então, se veem tendo que tomar uma nova decisão: ou passam a vida
a sofrer uma escolha sem sentido, ou se posicionam diante das circunstâncias que lhes são
impostas, com ousadia e coragem para fazer o que sua missão orienta (FRANKL, 1989 e 2011).

147
Como coloca muito bem Frankl (2011, p. 84):

Vivemos uma era de afluência, em muitos aspectos. Os meios de


comunicação em massa nos bombardeiam com muita informação, de
modo que devemos nos proteger de tais estímulos, filtrando-os, por
assim dizer. Muitas possibilidades nos são oferecidas, e devemos
decidir sobre o que é ou não essencial. [...] Vivemos a era da pílula.
Possibilidades sem precedentes se apresentam a nós, e, a menos que
queiramos afundar-nos em promiscuidade, devemos ser seletivos.
Seletividade, contudo, baseia-se na responsabilidade, isto é, na
tomada de decisões de acordo com a consciência.

O que podemos concluir até aqui é que escolher uma profissão nada mais é do que dar
a oportunidade à vida de realizar valores, de cumprir a missão que o sentido daquele momento
nos confere. Por isso, a escolha profissional dependerá do momento em que se vive e o sentido
que a situação apresenta. A felicidade não está atrelada à profissão, mas aos valores que são
possíveis de realizar por meio dela. Concretizar um objetivo traz felicidade ao homem e este
objetivo é de vida, da missão de sua vida, dos valores que defende e deseja realizar.

Considerações Finais

O trabalho sempre será algo de suma importância na vida de todos os homens, seja para
sobrevivência, para se ter uma vida social, para melhorar a autoestima, para realizações
pessoais, seja até mesmo para obter poder e realizar desejos. Quando este trabalho é percebido
como uma oportunidade de realizar valores, o homem vê um sentido para trabalhar e consegue
ser feliz naquilo que faz, caso contrário, na falta de sentido, acaba se frustrando e passa a realizar
suas tarefas por obrigação, chegando ao ponto de sentir um vazio existencial.
A Logoterapia nos mostra que o homem é livre para fazer suas escolhas, mesmo diante
dos seus condicionantes, podendo se posicionar e ter uma atitude otimista mesmo quando os
obstáculos parecem muito difíceis de serem ultrapassados. É por meio de uma conscientização
espiritual que o homem consegue se posicionar perante seu destino e realizar seus valores,
transcendendo as situações e a si mesmo.
O homem é um ser em busca de um sentido, e seu sucesso, sua felicidade e sua
autorrealização estão atrelados à concretização deste sentido. Nessa busca por um sentido, ele
se questiona sobre o “para que” de sua vida e de cada ação realizada diante dela. Esse
questionamento é importante para que reflita sobre sua missão e se conscientize do papel de

148
cada hora em cada acontecimento. O questionar sobre o sentido não é em nada doentio no
homem, mas é o que de mais humano ele pode demonstrar. Porém, neste questionamento, ele
pode se frustrar, não encontrando um sentido para a vida ou situação, descobrindo-se assim
num vazio existencial, podendo, então, adoecer.
O trabalho dá ao homem a chance de mostrar seu “caráter de algo único” e a
possibilidade de concretizar sua missão. Assim sendo, a escolha de uma profissão deve estar
relacionada a essa missão de cada hora, cuja consciência é responsável em apresentar. Não é a
profissão em si que irá tornar o homem feliz, realizado, mas o que realizará por meio dela, em
benefício de si mesmo e da comunidade.

Referências

FRANKL, V. E. Psicoterapia e Sentido da Vida: fundamentos da Logoterapia e Análise Existencial.


3.ed. São Paulo: Quadrante, 1989.
FRANKL, V. E. Um Sentido para a Vida: Psicoterapia e Humanismo. 16.ed. São Paulo: Ideias e
Letra, 2005.
FRANKL, V. E. Em Busca de Sentido: um psicólogo no campo de concentração. 25.ed. Petrópolis
RJ: Vozes, 2008.
FRANKL, V. E. A Vontade de Sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. 1.ed. São Paulo:
Paulus, 2011.
FRANKL, V. E. et al. Dar Sentido à Vida: a Logoterapia de Viktor Frankl. 2.ed. Vozes: Petrópolis
RJ, 1992.
LACOMBE, F. J. M. Administração: princípios e tendências. 2.ed. rev. e atualizada. São Paulo:
Saraiva, 2008.
LANGLE, A. Viver com sentido: análise existencial aplicada: guia para viver. Tradução de Helda
Hinkenickel Reinhold. Petrópolis: Vozes, 1992.
LUKAS, E. S., EBERLE, M. M. Tudo tem seu sentido: reflexões logoterapêuticas. Tradução de Helda
Hinkenickel Reinhold. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

149
Parte 2

Psicologia: Atuação Profissional e Pesquisa

150
Capítulo 8

Diálogos entre Foucault e a Pragmática do Desejo sobre música e subjetividade: Alguns


relatos de experiência de trabalho em Centro de Atenção Psicossocial

Tânya Marques Cardoso

Este trabalho é baseado no relatório de um semestre de estudo das obras referentes à


música, relacionadas ao pensamento da filosofia contemporânea, nas obras de Guattari e
Deleuze2627, somadas a um breve relato de uma experiência de trabalho como psicóloga,
utilizando da música como proposta de atuação profissional numa instituição de saúde aliada à
possibilidade de fazer uma oferta de produção de modos de subjetivação aos sujeitos que se
utilizavam do serviço de saúde. Entre cada exposição teórica, serão explicitados breves trechos
de uma experiência de trabalho com música, realizado num Centro de Atenção Psicossocial III
(Caps 24 horas) de uma cidade de grande porte do estado de São Paulo, a fim de refletir sobre
a utilização da música no contexto da atuação em Psicologia numa instituição de saúde, além de
servir de vislumbre para os aportes teóricos em discussão.
Serão comentados os conceitos de devir liso e estriado, importantes na teoria rítmica
da música e na referida filosofia, como espaços de nomadismo e sedentarismo. Também será
contextualizado, de forma introdutória, o conceito de ritornelo, um conceito complexo que
relaciona o agenciamento territorial com a produção de sonoridades a partir de forças não
audíveis do cosmos.
A problemática do rizoma e da música rizomática, alguns exemplos de seus caracteres
intrínsecos e extrínsecos e sua aproximação com os conceitos de princípios de conexão e
heterogeneidade serão pensados a partir de uma escuta nômade que, ao mesmo tempo em que
frui as sonoridades, é uma escuta compositora da música. Posteriormente, utilizaremos alguns
conceitos formulados por Foucault para pensar a questão do poder e de como ele constitui os
sujeitos, quais são suas estratégias biopolíticas e de quais ferramentas faz uso para se exercer,
como é o caso da música produzida para manter os sujeitos dentro dos interesses do poder, o
que ocorre a partir dos saberes que dizem das formas “adequadas” de ser sujeito e existir no

27
Refere-se ao Relatório Parcial de Pesquisa de Iniciação Científica, financiada pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), intitulada A música como expressão da biopotência nos
modos de subjetivação da contemporaneidade: um estudo dos conceitos de resistência ao biopoder, por
meio da estética da existência relacionada à música, sob a orientação de Hélio Rebello Cardoso Jr. (2009).

151
mundo. O poder, que se transformou historicamente no poder soberano de decidir a vida dos
sujeitos, em poder sobre a vida, que visa prolongar e controlar as formas de existir, chamado de
biopoder. Uma vez que, em todo exercício de poder, coexiste uma resistência a esse poder, foi
necessário resgatar o conceito de biopotência, que equivale à resistência, para explicitar essa
produção do novo. Tanto o poder quanto a resistência refletem no modo como o sujeito se
subjetiva e como o sujeito se singulariza pelos modos de subjetivação, respectivamente. A
música está ativa nesses processos, tanto da produção do sujeito sujeitado ao poder e que se
estabiliza numa identidade, quanto na produção do sujeito de subjetivação, que dá passagem
ao devir por meio da experiência estética com a música.
Por fim, a música na contemporaneidade é brevemente apresentada. Nesse item,
notamos como o mercado torna a escuta um objeto de consumo com suas tecnologias
sofisticadas, a serviço de uma escuta com finalidades previamente estabelecidas, que
obedecem, na maioria das vezes, a uma lógica identificatória, que dificulta, mas não anula, a
capacidade de a música, mesmo que personalizada, produzir novos modos de subjetivação.

Um breve histórico da “instituição” Caps e o trabalho em Psicologia e Saúde Mental numa


Oficina de Música

A saúde é campo de diversas práticas, muitas delas atravessadas por interesses do


Estado de gerir, manter e prolongar a vida dos sujeitos que se sujeitam a tais práticas, que
ultrapassam a tradição da clínica como ação privilegiada em saúde, estabelecendo diálogos com
a educação, a cultura, a assistência social, a arte e outras dimensões, a fim de ampliar sua
intervenção a favor do bem-estar populacional (IORI-GARCIA et al., 2007, p.203). Nessa
ampliação estratégica da atuação em saúde, as oficinas terapêuticas, artísticas, “protegidas”,
dentre outras, podem tornar-se pretexto para intervenções clínicas, pedagógicas e assistenciais,
assumindo o lugar de prática em saúde mental extensivamente ofertada por psicólogos, bem
como por outros profissionais nas instituições de atenção à saúde mental. Todavia, até se chegar
aos atuais serviços de saúde mental, far-se-á um resgate sucinto do histórico da loucura e das
instituições que respondem a ela.
As transformações ocorridas na configuração social da “loucura” nos últimos séculos,
desde a abolição da manicomialização em países europeus até as experiências de Reforma
Psiquiátrica Brasileira, situam e constituem, no atual contexto histórico, os sujeitos e as
instituições de Atenção Psicossocial com certa formatação e saberes específicos. Observem-se,
por exemplo, as normativas ministeriais de como se organizam as instituições brasileiras de
“saúde mental”, ou, ainda antes, a criação de ciências inteligentes que respondem à demanda

152
social de dar conta da loucura, como é o caso da Psicologia. No caso específico das instituições
brasileiras de “saúde mental”, há certo conflito na dicotomia entre o paradigma da estratégia
da Atenção Psicossocial, que requer ações instituintes (COSTA-ROSA, LUZIO e YASUI, 2003) e as
práticas e intervenções instituídas, que dependem de recursos desejantes, políticos, humanos e
financeiros, por muitas vezes escassos. As instituições e a concepção de “loucura” percorreram
um caminho com relevos e declives, até chegar ao que se concebe como as instituições de
“saúde mental” hodiernamente. Estas são resultado de profundas transformações nos modelos
anteriores de tratamento ao público considerado “louco”, alienado, com transtorno ou “doente
mental”, que deram lugar ao nome “usuário” do serviço de “Saúde Mental”, menos excludente
do ponto de vista do pensamento vigente que se queria transformar, antes calcado nas ideias
de desiquilíbrio das paixões e ilusões, cura pelo retorno à realidade e outros tipos de tratamento
moral (AMARANTE, 2003). No entanto, a própria nomenclatura “usuário” vem sido discutida por
alguns teóricos da área, como Tavares e Souza (2009).
O trajeto da história da loucura mostra uma ruptura entre a anormalidade e
normalidade, sendo que, para a loucura, restou o status de anormal, de disparidade da norma
e, por consequência, o isolamento social (FOUCAULT, 1997). Desta forma, instituições nos
moldes das instituições totais (GOFFMAN, 2001) foram criadas para “tratar” o considerado
doente e afastá-lo dos “normais”, por meio de redução completa da sociabilidade e uso de
controle e punição. Houve mudanças significativas nos modernos modelos europeus de atenção
ao sofrimento “mental” e no pensamento da época a partir das premissas advindas da
Revolução Francesa. Já no Brasil do final dos anos setenta, instituições como essas estavam em
pleno funcionamento, conhecidas como Hospitais Psiquiátricos, mas tiveram seu
funcionamento interrompido pelas denúncias de maus tratos, que consequentemente deram
origem a um movimento de luta contra a manicomialização e por uma reforma do modelo
psiquiátrico de assistência, isso no período porvindouro da redemocratização brasileira e pós-
ditadura militar. O Movimento dos trabalhadores, familiares e usuários da Saúde Mental
(MTSM) requeria, além das modificações do modelo assistencial – o maior objetivo era o de
superar a segregação social daqueles sujeitos – alterar a relação social com os “diferentes”
(FURTADO e ONOCKO CAMPOS, 2005). Simultaneamente à Reforma Sanitária e à construção do
Sistema Único de Saúde – SUS – uma rede substitutiva de saúde mental e alternativa ao modo
asilar (COSTA-ROSA, 2011) foi constituída como possibilidade de oferecer acolhimento aos
egressos de internações, como uma parte do SUS. Isso permitiria um amplo acesso ao público
em sofrimento psíquico e exigiria a criação de outras formas de trabalho, junto a essa população,
que estivessem amparadas no paradigma da atenção psicossocial (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI,
2003; AMARANTE, 2003).

153
A partir desse paradigma, instituem-se no Brasil, por portarias ministeriais iniciadas nos
anos 1990 até a atualidade, novos serviços de atenção psicossocial substitutos dos manicômios,
com vários formatos e ofertas: Hospitais-dia, leitos de saúde mental em hospitais gerais,
Serviços Residenciais Terapêuticos, Oficinas Protegidas, Centros de Atenção Psicossocial - Caps
I (segunda a sexta-feira, 12 horas, população pequena), Caps II (segunda a sexta-feira, 12 horas,
população média) e Caps III (segunda a sexta e finais de semana, 24 horas, grande população),
Caps i (específico para público infanto-juvenil) e Caps ad (específico para público usuário de
álcool e outras drogas), com o mesmo modelo do Caps II; Centros de Convivência e Cooperativas
e Equipes de Saúde Mental na Atenção Primária (psicólogo, psiquiatra, terapeuta ocupacional,
dentre outros). Nessas novas instituições, a Atenção Psicossocial é uma estratégia de ação nos
campos teórico-técnico, ético-político e social (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2003; AMARANTE,
2003), que almeja modificações assistenciais e paradigmáticas no tratamento e cuidado em
saúde mental a partir de articulações e alterações complexas (Ibid.), pautadas na
desinstitucionalização (de inspiração italiana) como intervenção, na interdisciplinaridade do
trabalho e na assunção do sujeito como cidadão. O próprio conceito de “Atenção Psicossocial”
vem sendo densamente estudado por autores como Costa-Rosa (2011), não somente como um
paradigma político e assistencial em saúde mental, mas também como uma ética de trabalho,
de produção teórica e técnica e de posicionamento diante dos sujeitos em sofrimento psíquico
(COSTA-ROSA, 2011).
Entretanto, vamos nos limitar a tratar de uma única estratégia de intervenção em uma
instituição para confecção deste trabalho, referente a um Centro de Atenção Psicossocial III, que
conta com leitos de “internação” para os casos que estejam em situação de “crise” psíquica e
com diversos mecanismos de ação e produção de um “projeto terapêutico individual/singular”
para os chamados “usuários”, que inclui: medicação assistida, participação em grupos de
referência (atendimento em grupo formado a partir do território em que vivem), refeição
(café/lanche e almoço/jantar) no Caps, participação em oficinas e atividades dentro e fora do
Caps, dentre outros.
Essa proposta de trabalho contém uma ideia revolucionária de ação para instituições,
profissionais e público atendido, pautada em modelos de atenção que, além de “soterrar
práticas autoritárias e coercitivas” (IORI-GARCIA et al., 2007, p.220), propõe desconfinar o
sujeito e partir para o diálogo e a singularização (Ibid.). No entanto, é preciso não deixar de
interrogar essas práticas dentro de suas estratégias de gestão das vidas, de controle das
subjetividades e de sujeição (Ibid.). Por isso, serão trazidas, em meio à explanação teórica, cenas
de uma experiência de trabalho como psicóloga contratada, para um trabalho temporário, por
um Centro de Atenção Psicossocial III de uma cidade de grande porte do estado de São Paulo,

154
especificamente numa “Oficina de Música”, como proposta de produção de convivência social
e de ambiência, segundo a definição da diretriz da Política Nacional de Humanização do Sistema
Único de Saúde (SUS), sendo um dos eixos o da criação de um espaço que produza encontros
entre os sujeitos.
É preciso ressaltar que as rápidas experiências aqui expostas não têm a pretensão de
ilustrar conceitos ou mesmo servir de exemplos a serem adotados como modelo de certo
referencial teórico adotado na presente discussão, pois os construtos de Foucault e da chamada
“Esquizoanálise” não visam à constituição de um método de intervenção. Trazemos este
arcabouço teórico como munição crítica para problematizar as práticas que se fazem, e as
experiências relatadas servem como um alvo. As experiências da psicóloga com a “Oficina de
Música”, brevemente apresentadas neste texto, se realizaram de acordo com a proposta da
“Atenção Psicossocial” (COSTA-ROSA, 2011), cuja atividade ocorria da seguinte forma: era um
grupo aberto, era possível entrar e sair quem quisesse na hora que desejassem, além de cantar,
tocar e falar sobre qualquer música e instrumento ou mesmo não cantar/tocar. Não obstante, a
Pragmática do Desejo serviu como aparato teórico para reflexão sobre a prática e para
permanecer numa atitude de cautela no trabalho, tentando romper ao máximo com a lógica do
exercício de controle sobre as subjetividades, mesmo com a noção de que se poderia exercê-lo
de qualquer modo. Faz-se necessário, neste momento, introduzir o tema da Pragmática do
Desejo, a fim de compreender quais conceitos nos serviram para reflexão crítica do trabalho da
Oficina.

A presença da música na obra de Guattari e Deleuze


Guattari e Deleuze valem-se da música para nomear alguns conceitos de sua Filosofia
com certo vampirismo próprio de sua escrita, utilizando significantes de outras obras. Isso pode
ser aplicado ao contexto do bloco de devir liso e estriado, que na música é conceituado por
Boulez como espaços em que o liso caracteriza-se pela ausência de pulsação, enquanto o
estriado dá a ideia de tempo pulsado (DELEUZE e GUATTARI apud SANTOS, 2008).
O espaço estriado funciona quando “entrecruza fixos e variáveis, ordena e faz
sucederem-se formas distintas, organiza as linhas melódicas horizontais e os planos harmônicos
verticais” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 184). Já o liso faz variar continuamente a forma de
modo que ela se desenvolva, e assim funde harmonia e melodia “em favor de um
desprendimento de valores propriamente rítmicos, o puro traçado de uma diagonal através da
vertical e horizontal” (id., p. 184). O liso é espaço nômade, atravessado por devires, enquanto o
estriado é sedentário, entretanto, esses espaços não são separados binariamente; o espaço
estriado pode tornar-se liso e o contrário também (id. p. 180).

155
O liso como espaço do nomadismo teria a favor de sua lógica de variação o instrumento
da repetição, o que na música seria, por exemplo, um trecho que se repete diferentemente do
anterior, mas sem um pulso que o ordene sistemática e rigidamente, e que se liga ao ritornelo
pelo seu ato de conexão cósmica territorialmente agenciada, não para fixar-se a um território,
estilo próprio do espaço estriado, mas para criar através da repetição. Outro conceito seria o
conceito de ritornelo, que na música indica a repetição de um trecho específico, enquanto, na
obra referida, menciona o agenciamento no território que faz ouvir as forças inaudíveis do
universo, instaurado como repetição que sai do caos, possibilitando enquadramento de formas
para o desenquadramento de forças cósmicas, processo intitulado de modo menor (CARDOSO
JR., 2005a).
É preciso ressaltar que a ideia de repetição, explorada na Filosofia da Diferença, não se
coloca como contrária à diferença, mas oposta à representação. É comum que se faça essa
contraposição entre repetição e diferença, o que não procede teoricamente, pois o que confere
à diferença um caráter de “ser do sensível” é a sua impossibilidade de ser representada, uma
vez que só pode ser sentida. A representação, por sua vez, enrijece, torna fixa, identifica as
coisas com as quais interage. Distintamente, a repetição diz respeito a um retorno ao que difere,
uma afirmação da diferença. Assim, apenas a repetição libera a diferença, a partir do seu girar,
não em torno de si mesma ou em torno de um círculo delimitado, mas em torno do Outro. Essa
repetição como produtora interroga uma cena da oficina de música do CAPS III. Esta oficina, que
já estava desativada por algum tempo em razão da licença da profissional que conduzia a
atividade, foi retomada pela psicóloga. Diferentemente da profissional anterior, que levava a
cada encontro uma determinada pasta com as letras das músicas mais cantadas e repetidas em
cada oficina, numa proposta de organizar a atividade, correlata à produção de uma suposta
“organização psíquica”, a psicóloga abandonou a pasta. Os participantes da oficina queixavam-
se de que precisariam da pasta para lembrar “corretamente” as músicas cantadas “preferidas”.
Ao ser aberta a possibilidade de cantar qualquer música, uma vez que não tinham a pasta em
mãos, contudo, vários optaram por cantar as mesmas músicas dos encontros anteriores, porém,
em algumas frases, ocorriam “erros” ou improvisações, já que não contavam com a letra para
cantar o que consideravam “certo” e “organizado”. Então, só retorna o que pode voltar como
transformação, como potência de produzir diferenças. Essa concepção está precisamente
demonstrada na interpretação deleuzeana do “eterno retorno” de Nietzsche (PELBART, p.233).
Também podemos vislumbrar como a música pode se apropriar da pragmática do desejo
deleuzeguattariana para se produzir como filosofia, ou mesmo para novas composições com
conexões diversas (CARDOSO JR., 2005a). Podemos explicitar a multiplicidade que, como
seguidora da lógica do rizoma, poderia, por exemplo, negar a sequência do tempo em música,

156
como na obra de Xenakis, e em Messiaen, na desconstrução da tão impregnada forma nos
modelos composicionais de sucessão, introdução e fim (PELBART, 2003, p. 231). O próprio Sílvio
Ferraz compôs uma música intitulada Ritornelo, para flauta e percussão, e descreve28 com
detalhes cada parte de sua composição, inspirada diretamente no conceito de ritornelo de
Guattari e Deleuze. O conceito de devir é considerado na música como obscurecido, pois se
considera que:

Trazer para a composição um ato criativo é quase um caso de


indisciplina ou mesmo de raridade, pelo menos se tivermos o peso das
determinações na cabeça, sobrecodificação do código. [...] Por outro
lado, a intransigência de qualquer sistematização assume as feições de
um brinquedo, quando o compositor desfaz sua crueza em nome de
um jogo facultativo. [...] As regras, estando sujeitas às trapaças, logo a
forma se libera, as progressões tornam-se imprevistas, as cadências
deceptivas, as dissonâncias emancipam-se, as texturas espremem,
saturam ou rarefazem-se; logo as repetições são indefinidas ou o
acaso se introduz: a forma deixou de ser “fôrma” (RIBEIRO, 2006,
p.103 e 104).

Um estudo de Sílvio Ferraz, não obstante, se refere à obra musical de Varèse, que se
pode exemplificar como espaço de “ato criativo”. Ferraz relata o modo como essas composições
intencionalmente produziam imagens, como se a música se destacasse de si mesma e se
projetasse no espaço (FERRAZ, 2002, p.16), fenômeno que se poderia descrever pelo caráter
intrínseco da música rizomática, a saber, a multissensorialidade (DELEUZE; GUATTARI, 1992),
que permitiu, nesse caso, uma escuta que vê ou que produz a imagem de um som. Como meio
de fazer um som ser ouvido, Varèse mantinha um som por algum tempo, usando do estatismo,
inspirando-se na premissa de que a harmonia que dura mais tempo tem maiores possibilidades
de “atingir a alma e afetá-la no ponto em que se propõe” (VARÈSE apud FERRAZ, 2002, p.8), o
pode estar próximo ao conceito do caráter extrínseco da música, da definição de acordes como
sensações, que permite a autoconservação das sonoridades como arte e fruição (DELEUZE;
GUATTARI, 1992). Essa forma de compor diz respeito a um tipo de organização dos sons
relacionado mais à criação de espaços de invenção que a uma hierarquia sonora que seja
completamente gerida. Em estreita ligação com essa proposta, Deleuze (apud FERRAZ, 2002,
p.19) distingue o plano de organização, “que estaria relacionado a modos de ordenação e

28
A descrição da obra composta está detalhada em FERRAZ, S. Ritornelo: composição passo a passo.
Campinas. Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música – ANPPOM issn –
0103-7412, [p.63], Opus, 10 – dez. de 2004. Disponível em:
http://paginas.terra.com.br/arte/silvioferraz/passoapasso.pdf, acesso em out. 2007.

157
hierarquização”, do plano de composição, “que estaria mais próximo à ideia de um plano
complexo de relações não totalmente previsíveis” (ibid.). Este último aproxima-se da ideia
composicional vareseana e, conceitualmente, na filosofia da diferença, é o plano relacionado às
criações que se contrapõem aos sistemas rígidos de produção, que é o caso das artes, ciências
e filosofia. O plano de organização mostra-se aversivo por dirigir-se a modelos de controle e
gerência, que captura as criações do plano de composição (ibid.).
Os princípios de conexão e heterogeneidade são aproximativos do conceito de rizoma.
O próprio conceito de rizoma é amplamente utilizado por estudiosos de música para se referir
a uma escuta nômade, uma escuta que compõe com a música. Essa “escuta compositora” é uma
contribuição importante para se compreender o espaço liso, anteriormente explicitado.
A música rizomática não é uma classificação da música, não se refere a um estilo de
composição, mas de percepção, de escuta que admite o entendimento como capaz de “captar
forças não audíveis do universo” (CARDOSO JR., 2005a), o que pode ser melhor compreendido
com a exposição do conceito de ritornelo, que será feita posteriormente. A música não
permanece limitada como mera reprodução sonora multidirecional ou como material de
comunicação, finalidades rígidas comumente atribuídas a ela, mas sua maneira de se deslocar é
própria do rizoma que, para a botânica, é a raiz que não possui uma lei de organização, é um
emaranhado de linhas (CARDOSO JR., 2005a) que não se define para onde vai e como se
desenvolve.
A escuta da música em forma de rizoma, a partir de certo nomadismo, não se pauta no
conhecimento da obra enquanto seu significado, na percepção sonora, na composição como
algo a ser decifrado e entendido; essas esferas acabariam por direcionar e restringir a escuta,
que deixaria de ser rizomática. Entretanto, é possível que se produzam, ao acaso, esses saberes
pela escuta rizomática da música, como a produção de pensamento das sensações, uma das
características rizomáticas extrínsecas da música (ibid.). O desequilíbrio provocado por um
composto melódico pode originar alterações na escuta como parte da composição, na
subjetividade em afetação, descentralizando modos de ser e pensar, e faz com que o
pensamento seja perpetrado por meio das sensações da arte (ibid.). O rizoma e a multiplicidade
são as propostas para substituir a “lógica da árvore” ou a binariedade, que constitui as relações,
mentes, afetos, limita as escolhas e institucionaliza a vida sob ação do poder (DELEUZE;
GUATTARI, 1995). É necessário recapitular nesse momento o que é poder, quais suas alterações
no tempo e história, quais seus efeitos nos sujeitos e como se pode escapar a ele.

Do poder soberano ao biopoder, do biopoder à biopotência

158
A música pode ser entendida como mecanismo de exercício e ação do poder, pois o
poder se exerce em diferentes níveis sociais, com domínios e extensões variados e variáveis, de
modo que seus efeitos, relações, dispositivos sejam difíceis de ser vistos e apontados. Uma vez
que a música funcione dentro de um discurso hegemônico que visa à modulação e modelização
do pensamento e atitudes dos sujeitos, ela atua como instrumento do poder, como o caso do
uso da música como instrumento de saber-poder por parte da saúde mental, psicologia, terapia
ocupacional, musicoterapia, dentre outras ciências, ou ainda a música produzida para produzir
influências psíquicas e de conduta. A música pode agir como instrumento do biopoder, por sua
incisão direta sobre as vidas. Mas como é que o poder se desenvolveu historicamente e se
transformou em biopoder?
O poder, na teoria jurídica clássica, é pensado como a posse de um bem que se pode
transferir e/ou ceder uma parte ou totalmente, um poder concreto com a finalidade de
constituir um poder político – “a constituição do poder político se faz segundo o modelo de uma
operação jurídica que seria da ordem da troca contratual” (FOUCAULT, 1992, p.99). O poder
político se pautou historicamente na economia e funcionou sob este princípio concretamente
até a atualidade. Mas o poder não é suporte/base da economia e nem é modelado pela
mercadoria que se adquire em relação ao sujeito que não a possui. Embora estejam íntima e
politicamente ligadas à economia, as relações de poder não se subordinam a ela, mesmo que
seja o instrumento de análise do poder mais visível. Porém, acima disso está o poder fundado
nas relações de força. O poder, em essência, é exercido pela repressão e por seus mecanismos,
que atuam sobre a natureza, os instintos, uma classe. Relação de força implica combate,
confronto, “guerra prolongada por outros meios” (ibid.). As relações de força estão inseridas na
realidade por silenciosos conflitos, como na desigualdade social e econômica, nas instituições e,
por conseguinte, nos corpos geridos por essas problemáticas.
As relações de poder lançam mão da circulação de discursos de verdade para produzir
efeitos no corpo social (id., p.102). O poder nos submete a produzir verdade para que o
exerçamos por meio dela. O poder nos interroga, nos obrigando a confessar ou encontrar a
verdade e a torna um registro, uma profissão e nos recompensa por respondermos com ela. A
verdade é lei e seu discurso é decisivo, transmissor e reprodutor dos efeitos do poder. As
relações entre poder, direito e verdade são organizadores da sociedade, das vidas. As regras de
direito, os mecanismos de poder e efeitos da verdade constituem o destino de certos modos de
viver e morrer em função do que regulamentam, nesse tipo de poder descrito. Quem “tem o
poder e o que pretende, ou o que procura aquele que tem o poder” (id., p.102) não é o que
Foucault privilegia em seus estudos, sua preocupação está voltada para as práticas reais e
efetivas, em que o poder está relacionado com o que escolhe por objeto de aplicação provisória,

159
em que produz efeitos. Sua questão é a de como ocorre o processo de sujeição contínuo dos
corpos, dos seus gestos e atos. Ele procura captar a instância da sujeição em sua materialidade
constituinte dos sujeitos, entendendo, a partir da multiplicidade das vontades e dos sujeitos,
como se faz possível formar uma vontade e um corpo únicos. Contudo, é preciso ter o cuidado
de não se tomar o poder como um fenômeno de dominação homogêneo de um indivíduo, grupo
ou classe sobre os outros, mas que não é dividido entre quem o possui/exerce e quem se
submete. O poder circula, funciona em cadeia, não é localizado, não permanece nas mãos de
alguns, não é apropriado como bem ou riqueza:

[...] o poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os


indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer
este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido
do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o
poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. [...] O poder passa
através do indivíduo que ele constituiu (FOUCAULT, 1992, p.103).

Para atingir o indivíduo e a população, o poder fez uso dos aparelhos de saber como
técnicas de dominação, como a psiquiatria, o controle da sexualidade e os sistemas políticos. No
curso do Collège de France “Segurança, território e população”, Foucault trabalhou com as
gêneses do saber político que se ocupam da população e de mecanismos que a regulem. Para
tal, a noção de “governo” foi utilizada como norteadora (FOUCAULT, 1997, p.81). No contexto
histórico inicial greco-romano, o poder político não implicava direito, autoridade de um governo
sobre as vidas, pois essa ideia de um rei-soberano ou magistrado-pastor apenas apareceu no
período imperial. A metáfora do pastor que se ocupa de suas ovelhas passou a caracterizar a
atividade pedagógica, médica, enfim, alguns campos do saber (id., p.81-82). O poder pastoral
amplia-se na sociedade hebraica, de modo que a população não precisa estar fixa num território,
mas atribui um alvo a ser alcançado, pois sua tarefa é a de cuidar do rebanho para que viva e se
salve; é um poder que individualiza (uma ovelha) e valoriza o coletivo (o rebanho, o povo)
simultaneamente: salva a todos e a cada um (id. p. 82).
O cristianismo introduziu esse tipo de poder no Ocidente e institucionalizou-o no
pastorado eclesiástico. Com uma crise no pastorado, foi preciso buscar novas formas de
“direção espiritual e de novas relações entre pastor e rebanho” (ibid., p.82). Da mesma maneira,
o pastorado teve que formular novas formas de governo, isso no fim do feudalismo e início de
novas relações econômicas, comerciais, sociais e políticas pós-idade média. Posteriormente,
surgiu uma forma de “governamentabilidade” política, que exercitava o poder soberano, a partir
da conduta de um conjunto de indivíduos. Isso modificou as “artes de governar”, entre os
séculos XVI e metade do XVII, que adotou como princípios as virtudes tradicionais (sabedoria,

160
justiça, liberalidade) ou habilidades comuns (prudência, decisões sob reflexão, cuidado com os
conselheiros escolhidos), (FOUCAULT, 1997, p.83).
Tudo isso contribuiu para afirmar e aumentar a potência do Estado para manutenção
das vidas, sob a ordem e disciplina com “regulamentos que tendem a lhes tornar a vida cômoda
e a lhes dar aquilo que necessitam para a subsistência” (ibid., p. 85). Esses regulamentos eram
“fiscalizados” pelas tecnologias diplomático-militares e pela “polícia” (id., p.83). A população,
ocupação principal dessas tecnologias, é alvo das “preocupações” do mercantilismo, uma vez
que depende da população o seu enriquecimento e, para tal, é preciso que haja uma política de
saúde que diminua a mortalidade infantil, previna doenças e intervenha nas condições de vida,
impondo normas que as organizem. O que se desenvolveu a partir daí (aproximadamente, o que
se chamou de “Polícia Médica”, “Higiene Pública”, “Medicina Social”), é inscrição de uma
biopolítica que trata a população como “um conjunto de seres vivos e coexistentes, que
apresentem traços biológicos e patológicos particulares, e que, por conseguinte, dizem respeito
a técnicas e saberes específicos. E a própria “biopolítica” deve ser compreendida a partir de um
tema desenvolvido desde o século XVII: a gestão das forças estatais” (id., p.86).
Foucault cunha o termo “biopolítica” na conferência “O nascimento da medicina social”,
relatando que o que ocorreu com o advento capitalista não foi a privatização da
medicina, mas uma socialização do corpo (PELBART, 2003, p.55). Em “A vontade de saber”,
biopolítica é usada diferentemente, para conceituar algo mais amplo, como se a biopolítica
agora fosse situada no interior de uma estratégia chamada de biopoder. Foucault distingue
então o biopoder do poder de soberania – enquanto este “faz morrer e deixa viver, o biopoder
faz viver e deixa morrer” (id.). O poder da espada do soberano, historicamente no século XVII e
início do XVIII, exercia um direito deste sobre a vida dos súditos, posteriormente, o interesse
principal do poder sobre a vida é o de fazer viver (ibid., p.56). Enquanto na soberania se exercia
um poder negativo sobre a vida, subtraindo da vida o que fosse de interesse do reinante, no
biopoder, se faz a gestão da vida para que ela se prolongue, se organize e garanta a
sobrevivência de uma população (PELBART, 2003, p.57).
O fazer viver refere-se à disciplina e à biopolítica. As disciplinas, que datam do século
XVII, concebem o corpo como uma máquina a ser acelerada, melhorada, controlada, como é
demonstrado em Vigiar e punir. Já a biopolítica não incide sobre uma gestão populacional da
vida, não somente sobre indivíduos, mas numa população como corpo-espécie. Então, o que
caracteriza o biopoder são as regulações anátomo-políticas das disciplinas somadas aos
processos de vida e do corpo sob controle da biopolítica, de modo a atingir a todos (ibid.). Os
corpos sujeitados por diversas instituições e políticas públicas passam a funcionar de forma
ajustada ao capitalismo e acomodada na sua produção de multiplicidade. A vida toma a forma

161
de objeto de saber e o biológico intervém sobre o político, fazendo com que o poder se
encarregue dos seres vivos. Na tecnologia política da vida, encontra-se a sexualidade como
ponte entre corpo e população (id., p.58), que posteriormente, na obra foucaultiana, apontará
para uma saída do poder pelas práticas de si eticamente reguladas em relação ao uso com
temperança dos prazeres (ROUANET, 1987, p.225).
O Império, como cartografaram Negri e Hardt, possui uma noção coincidente com a
sociedade de controle, como pensou Deleuze a partir de Foucault, e substitui os dispositivos
disciplinares que formatavam as subjetividades anteriormente (PELBART, 2003, p.81). O espaço
balizado pela família, hospital, fábrica, prisão, característico do período moderno que compunha
a sociedade disciplinar, dá lugar a uma forma de poder mais flexível, imanente, dirigida para
corpos e mentes com o “apoio” das instituições. O poder torna-se então não mais um aparelho
de repressão ou punição, mas atua positivamente na vida como produção e reprodução, o que
constitui “a dimensão biopolítica da sociedade de controle” (id. p.82). É neste tipo de sociedade
que o contexto biopolítico pode ser adotado como lugar privilegiado de referência, já que a
sociedade disciplinar não chegava ao ponto de organizar as atividades e os pensamentos dos
corpos, como se tornou possível na sociedade de controle. Neste tipo de sociedade, há invasão
na profundidade das consciências, das relações sociais e das mentes da população, a partir de
uma forma de poder que não unifica, mas cria meios de singularização não domesticáveis, o que
parece à primeira vista um paradoxo. Contudo, para a biopolítica, o corpo da população não é
tomado por objeto passivo, ele está aquém da divisão corpo/mente, individual/coletivo,
humano/inumano, o corpo agora é visto como da ordem molecular e simultaneamente
totalizante. Se há espaço para o corpo como ativo, então há possibilidade de se reagir ao
exercício de poder; já que o poder afeta, ele poderia também ser afetado. Portanto, a vida em
que o poder investia, poderia inevitavelmente resistir: ao “poder sobre a vida deveria responder
o poder da vida, a biopotência, potência ‘política’ da vida na medida em que ela faz variar suas
formas e reinventa suas coordenadas de enunciação” (PELBART, 2003, p.83). A isso, apregoa-se
a ideia de multidão, que dribla estratégias imperiais que limitam a potência transformadora da
subjetividade, partindo do espaço de uma biopolítica da multidão diferente de público, que
considera o desejo, a produção, o coletivo humano em ação. A multidão aqui deve ser entendida
não como massa, mas como plural, heterogênea; que une multiplicidade e singularidade, fonte
de criação política cujo trabalho é imanente.
Essa potência da vida, resistência ao poder/biopoder é uma virtualidade desmedida,
poder expansivo de construção ontológica em que vida e produção tornam-se a mesma coisa. A
invenção, por isso, é vista como inerente ao homem e não como privilégio de gênios ou grandes
indústrias, e pode ocorrer por meio de qualquer relação e associação (ibid.). Da relação social

162
dos sujeitos com o diálogo, com a cidade, com as artes, com a música, com quaisquer objetos e
sujeitos, o efeito da biopotência seria então possível. Esse efeito seria então produtor de novos
modos de subjetivação, de vida enquanto afirmação de diferença que extrapola a rigidez
identitária.

Sobre a subjetividade/subjetivação como produção a partir da arte e da música


A resistência, como modo de subjetivação, é imanente ao plano em que se vive, e se dá
no plano molecular, numa atividade política, num encontro com o outro. Também a arte, em
especial, a música, é uma possibilidade de subjetivação, por meio de uma escuta que não
produza identificação, e sim uma falta de sentido, que desestabiliza identidades e descentra o
sujeito de sua subjetividade cristalizada. Análoga a essa temática, em certo encontro da oficina
de música no Caps III, alguns participantes questionam se eles podem inventar músicas na
oficina ou se teriam que cantar somente músicas conhecidas por todos, pois estava ficando
“bagunçado”, segundo alguns participantes: enquanto um cantava, outro queria cantar junto e
criar frases e sons novos. Problematiza-se como os participantes acham que deveria funcionar
a oficina, e o grupo fica dividido entre a reprodução do sabido e a produção do desconhecido.
Aí se percebe que, entre o movimento em relação a um território da identidade e a ação
desterritorializadora, está o sujeito e seu modo de se subjetivar. Portanto, para a compreensão
desse percurso, é necessário pôr em discussão o problema da subjetividade.
Uma mudança importante na nossa sociedade contemporânea foi anunciada por
Deleuze, a partir de Foucault, em que a sociedade passou a ser menos disciplinar e mais de
controle (VEIGA-NETO apud HENNINGEN, 2006, p.47). Isso se manifesta na maneira como nos
subjetivamos – a subjetividade torna-se mais aberta aos fluxos permanentes que controlam.
Portanto, a subjetividade não é formatada somente pelas instituições, mas por “dispositivos
dispersos no tecido social” (id.). A sutileza e pluralidade com que as estratégias de governo
atuam sobre as pessoas faz com que não seja percebida sua ação direta sobre a subjetividade.
Rolnik nos fala de subjetividade, como sendo o perfil de um modo de ser, pensar, agir,
sonhar, amar, “que recorta o espaço, formando um interior e um exterior” (ROLNIK, 2009, p.1).
Subjetividade diz do sujeito que, na sugestão deste aparato teórico, se reconhece, entretanto,
é capaz de estranhar-se, pois não estaria aprisionado a um eu, a uma identidade que o reduz e
o impossibilita de diferir de si mesmo. Subjetividade, para Foucault, está ligada ao tempo e ao
corpo, definida como “uma expressão de nossa relação com as coisas, através da história”
(CARDOSO JR., 2005b p.345), sendo um desses modos históricos a sexualidade (id., p. 343). Essa
relação seria imediatamente expressa pelo corpo, não somente o orgânico, mas o corpo que se
constituiu nas conexões com ideias, imagens, sons ou outros corpos, com quem se estabeleceu

163
durante sua existência. Ou seja, ela é mutável, se transforma de acordo com o que se relaciona,
ela não é fixa ou pré-estabelecida.
Um dos objetos com as quais a subjetividade contemporânea relaciona-se é a cultura
que, articulada pelo discurso, propõe uma prática de significação do mundo social. Esses
discursos são adotados como regime de verdade pelos sujeitos para se explicarem, para se
reconhecerem e para produzir sentidos sobre si que os identifiquem. Esses sentidos impostos
pelos discursos nas disputas de poder são expressados pela cultura, mídia, artes, música –
instâncias sociais que produzem e veiculam cultura, construindo representações e verdades
sobre o indivíduo e o mundo, que devem ser consumidas, adquiridas ou ouvidas (HENNINGEN,
2006, p.47).
As epistemes das formações discursivas da modernidade, para Foucault, constituem a
subjetividade a partir dos dispositivos de poder da sociedade em que se vive, e os modos que
nos subjetivam ou que nos tornam sujeitos são historicamente desenvolvidos e emergem como
práticas de si, em vigor nas práticas de saber e poder, que correspondem a problematizações de
natureza sexual, que atravessam as supostas oposições entre a “filosofia pagã, a ética cristã e a
moral das sociedades europeias modernas” (CARDOSO JR., 2005b, p.344). O sujeito, para se
formar, passa por “um processo de subjetivação”, tomando por referência toda experiência que
torna concreta uma subjetividade, portanto, envolve “modos historicamente peculiares de se
fazer a experiência do si”, o que remete à ideia deleuzeana de que “a subjetividade é um efeito
massivo que provém de um processo singular” (Ibid.). Os processos de subjetivação, em parte
domados pelos saberes e poderes antigos e atuais, deixam escapar o que resiste e o que se
choca com o poder. A subjetividade em Foucault poderia ser equacionada, segundo Cardoso Jr.
(2005b), pelas seguintes premissas – “toda subjetividade é uma forma, mas essa forma é
simultaneamente desfeita por processos de subjetivação; enquanto a forma-sujeito é captada
pelos saberes e poderes, a subjetivação é um excesso pelo qual a subjetividade mantém uma
reserva de resistência ou de fuga à captação de sua forma”.
A forma-sujeito, embora possua destinos naturalizados pela cultura, pode resistir ao que
lhe é imposto como comum e homogêneo, logo, o poder não anularia o sujeito (HENNINGEN,
2006, p.48). Porém, essa capacidade de subjetivação ou de produzir diferença não é só da
subjetividade; o mercado também possui essa competência e recria a si e a seus objetos para
vender de acordo com as novas subjetividades que surgem. Seus produtos de venda são variados
e sempre aprimorados, modificados rapidamente, para que atinjam o gosto e satisfação do
máximo de subjetividades dentro de um plano de previsibilidade de mercado, a fim de que seu
controle se desloque para muitos domínios, inclusive que torne consumidores os focos de
resistência. Como o poder pode ser tão flexível quanto a resistência? O poder não se exerce

164
apenas por meio de técnicas de dominação e a resistência não se limita à reação contra o poder
– o poder atua também nos processos de subjetivação autônomos, já a resistência pode se dar,
individual ou coletivamente, pela via da criação que produz diferença. Contudo, na questão da
resistência, não se pode desconsiderar a realidade em que os sujeitos estão inseridos. Essa
realidade diz de uma constante tentativa de captura capitalística dos processos de subjetivação
e sempre busca a produção de sujeitos consumidores. Isso faz refletir sobre certo modo de
funcionamento da oficina de música do Caps, em que os participantes traziam, por diversas
vezes, as músicas mais difundidas pela mídia sonora e visual; mesmo que na Oficina se pudessem
cantar quaisquer músicas, optavam pelas que, reproduzidas incansavelmente nos meios de
comunicação, são as mais absorvidas pelo público e por ele consumidas intensivamente e até
mesmo descartadas de forma rápida.
Especificamente para a música, como parte da arte e do “espetáculo” dentro da
sociedade contemporânea, como afirmam Hardt e Negri, a essa forma generalizada pretendida
pela ação do biopoder – sobre quem é partidário do poder e sobre quem resiste – chamou-se
de “biopoder globalizado”, que se serve do espetáculo para promover experiências não só de
fruição e escapismo, mas também reiterando e legitimando ideias, ações, valores e códigos
sociais. Entretanto, esses autores ressaltam ainda que o espetáculo pode também ser agenciado
pelas minorias e usado como estratégia para se alcançar mobilização social e realizar
“resistências”, mobilizando diferentes públicos em torno de um conjunto de questões lançadas
na cena midiática (HERSCHMANN, 2007, p.82-83).
As formas de resistências se reinventam e fazem surgir movimentos sociais, artísticos,
culturais, a partir dos grupos e indivíduos em processo de subjetivação. Entretanto, algumas
subjetividades teriam mais facilidade em resistir, em dar passagem a essa produção de si, como
propõe e exemplifica Rolnik (2009) com a subjetividade do artista.

Notamos que efetivamente os grandes criadores culturais, seja qual


for o âmbito de sua produção, tendem a ser especialmente capazes de
suportar a vertigem da desestabilização provocada por uma relação de
forças inusitada [...]. É na obra que o artista materializa o diagrama que
sente vibrar em sua pele, sem por isso corporificá-lo necessariamente
em alguma nova figura de sua subjetividade, a qual diga-se de
passagem pode ser das mais travadas. Ao que parece é primeiro em
microuniversos culturais e artísticos que relações de força inéditas
ganham corpo e, junto com um corpo, sentido e valor (id. p.3).

A autora fala da relevância desses microuniversos culturais como cartografias artísticas


que ficam à disposição do coletivo afetável e afetado por este ambiente sensível proporcionado

165
pela música, cinema, teatro, literatura, filosofia e outras, que guiam e propõem a aventura por
paisagens desconhecidas, e afirma que: “Não há subjetividade sem uma cartografia cultural que
lhe sirva de guia; e, reciprocamente, não há cultura sem um certo modo de subjetivação que
funcione segundo seu perfil”. Percebemos, então, a estreita ligação e a difícil dissociação entre
subjetividade como produção do novo e cartografias culturais, que dizem respeito diretamente
às artes. Existem também subjetividades com mais dificuldade de suportar os efeitos do devir,
denominados pela autora de toxicômanos de identidade. Seu vício os anestesia das intensidades
possíveis pela alteridade, só permitindo os efeitos que não coloquem em risco a suposta
identidade. Contudo, os movimentos de força do fora com o dentro, do exterior com o “mundo
interno” ou do encontro com o outro não podem ser impedidos e, do mesmo modo, acabam
por provocar um estado de estranhamento no(s) sujeito(s) que se permite(m) um encontro com
a alteridade – e o viciado em identidade responde rapidamente a isso comprando a “droga” que
mantenha sua miragem. Essa droga é licita e fácil de adotar por já possuir todo o traçado da
vida, sendo todos previsíveis; sua propaganda se sustenta pela mídia, pelos saberes
disciplinares, pelas ciências e pela música que serve ao consumo, por exemplo. O território que
os viciados em identidade frequentam não está na ética, que diz respeito à condição trágica da
vida como finita, que se relaciona com as desestabilizações que ocorrem ao longo da existência,
cuja decorrência é o processo de subjetivação. Somente nessa relação a vida pode “afirmar-se
em sua potência criadora” e, em especial, na sua relação com a arte:

Nesta empreitada, é imprescindível estarmos antenados com a


produção cultural, para nos prover de recursos cartográficos que nos
ajudem a inventar formas mais de acordo com o que os novos diagramas
nos exigem. Senão nossas cartografias correm o risco de passar ao largo
das mudanças já ocorridas na paisagem subjetiva contemporânea [...].
Quanto mais investimos esta transversalidade, havendo-nos eticamente
com o trágico e envolvendo-nos sensivelmente com a produção cultural,
maior o rigor e o vigor de nossa própria produção (ibid. p.6-7).

Foucault vai mais adiante, quando acredita que toda a vida é, ou deveria ser,
considerada uma obra de arte, o que se daria pelas práticas de si, que podem assumir uma forma
cultural, como o prazer pela música e pelas artes de si mesmo, que poderiam se encontrar nos
meios artístico-críticos, chamadas por ele de “vida artista” (FOUCAULT apud BRANCO, 2008,
p.9). Esse pensamento se refere à fase ético-política de sua obra.
Se a obra de arte é a própria vida, e a vida só tem espaço de produção de
resistência/biopotência pelos modos de subjetivação, onde entra a arte nesse espaço de
resistência? Deleuze nos diz que há “uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de

166
resistência” (DELEUZE, 1999). A questão que se coloca é que, possivelmente, os homens não
dispõem de tempo e cultura suficientes para relacionar-se com a arte mais intensamente.
Deleuze cita André Malraux para definir a arte – “que ela é a única coisa que resiste à morte”
(ibid.), e Deleuze (1999) especifica sua concepção de arte dizendo que arte é aquilo que resiste,
embora não seja a única forma de resistência em que as subjetividades se baseiam para a
subjetivação. A obra de arte, como única coisa que se conserva, torna-se nessa perspectiva um
monumento do devir, prolongando o encontro com algo que está em contração, fazendo dos
traços destes encontros uma inscrição que torna audíveis forças não-sonoras (RIBEIRO, 2006;
CARDOSO JR., 2005a). O que se conserva é como o “registro de um devir, em que as forças de
uma territorialidade se emancipam na auto-objetivação das matérias de expressão, agindo
como uma vetorização do espaço sensível: formatividade numérica de uma multiplicidade
intensiva, acontecimental” (RIBEIRO, 2006, p.107). Essa conservação sensível da arte na
subjetividade é capaz de singularizá-la, produzindo resistência/biopotência. E Deleuze compara
o próprio ato de resistência à obra de arte:

Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa
maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de
resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo
[...].O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também
um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob
a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os
homens (DELEUZE, 1999).

É preciso recordar que a resistência está no plano de imanência, interagindo


microfisicamente com a realidade e a vida. A arte como meio de singularização se faz por meio
de uma descentralização do sujeito de seu eu ou de sua interioridade, e, no caso da música, isso
é possível pela escuta de sonoridades que produzam efeitos para além da identificação e da
projeção de si. Na música, podemos exemplificar com a música polifônica, cujas ressonâncias
harmônicas revolucionaram a monofonia e a homofonia que antes predominavam (GROUT;
PALISCA, 2001). A reação primeira do grande público foi a de denunciar os exageros dessa nova
forma de compor música “profana”, devido ao estranhamento da escuta, antes viciada na
música de uma voz (instrumental ou voz humana), diante de tamanha perturbação sonora com
a intensa exploração de harmonias e vozes nunca antes feita. Em menor dimensão disso e mais
localizada, é na oficina de música do Caps que alguns participantes tinham o intento de produzir
música bonita, agradável, que cantasse do começo ao fim uma letra sem “erros”; já outros
participantes não se importavam com esse “padrão de beleza” musical, desejavam apenas
experimentar tocar instrumentos dos quais não dominavam a execução, inventar letras e “fazer

167
barulho”. Outro exemplo é o da música dodecafônica, conhecida vulgarmente por música
atonal, que se arquiteta como crítica à harmonia vigente, (SCHÖNBERG apud FERNANDES,
2009), de escalas de sete notas – configura-se como sem começo e fim próprios para guiar o
ouvido, e suas notas não se repetem até que toda a escala de doze semitons tenha sido tocada,
o que lhe confere uma sonoridade ruidosa, difícil de ser escutada, se comparada à harmonia
convencional. A escuta se pauta em princípios de começo e fim, harmonias em grande parte
consonantes e melodias logicamente construídas, como pergunta e resposta. Uma vez que a
dodecafonia se destitui dessas premissas, bases da música da época, com partes melódicas não
estruturadas por dependência entre si, harmonias altamente dissonantes e como música
conceitual em detrimento da música para apreciação descompromissada, incomoda aos ouvidos
como barulhenta e desaprazível ao público.
Que tipo de sensibilidade esse “barulho” toca e que sentidos ele produz? Infinitos, se
confrontados com músicas de letras conhecidas, melodias e harmonias familiares, que aludem
a imagens prontas, a interpretações previsíveis ou a um passado identificatório. Pode-se notar,
por exemplo, que alguns participantes da oficina de música do Caps III escolhiam as mesmas
músicas a cada encontro e diziam gostar dessas músicas por elas estarem relacionadas às suas
vidas e, em alguns momentos, quando não cantavam “a música de sempre”, outros
participantes cantavam “aquela música” para estimular os “donos da música” a cantá-la. Estas
músicas possuem maior dificuldade de desenraizar-se de identificações e inventar novas
experiências para além do egocentrismo, uma vez que já fazem menção a um estado acabado
das coisas, o que pode se tornar um obstáculo para novas produções a partir delas.
Afinal, deve-se cuidar dos devires, como dizem Guattari e Deleuze, para que eles não
sejam carregados “por nossas percepções ou memórias, que estão nos assediando a todo
momento, queiramos ou não”(DOREA, 2002, p.105). A música, como se considera nesse
trabalho, é:

[...] um campo de encontros com um fora que a habita. [...] Conceituar


a música envolve uma distinção de planos: saímos do plano de
composição dos agregados sensíveis e entramos num plano de
instauração filosófica, dito de imanência. Um conceito, no entanto, é
inseparável dos afectos e perceptos que o atravessam – intercessores
artísticos, estéticos, éticos e acontecimentais – elevando-o ao estatuto
de uma multiplicidade aberta, com dimensões sempre crescentes
(RIBEIRO, 2006, p. 89-90).

Se o fora, no pensamento deleuzeano (apud Ribeiro, p.87), é um “interior projetado” e


o dentro diz de um “exterior selecionado”, pois a subjetividade em contato com a música
estabelece uma relação que reproduz essa imagem de inseparabilidade do sujeito com o mundo

168
ou com a realidade. Encontra-se uma questão problemática: essa relação da subjetividade
supostamente poderia ser com qualquer coisa para produzir subjetivação, e não apenas com a
música. Além disso, não há o que seja absolutamente da música “ainda que ao menos
pudéssemos dizer que se destine aos ouvidos” (FERRAZ apud RIBEIRO, 2006, p.87). A não ser
pelo fato de a música ser “forçosamente heterogênea, haja vista que nada pareça qualificá-la de
modo a lhe determinar uma homogeneização” (RIBEIRO, 2006, p.87). A música, como
heterogênese, é inseparável de uma exterioridade coextensiva, mesmo que sua sistematização
reduza os efeitos do fora (id. p.91). Há, todavia, na música e na musicalidade, uma pulsação de
vida impassível de ser sistematizada, inesgotável fonte de composição de nervuras do sensível
(ibid., p.93).
Em Wisnik, a música é considerada uma expressão ao mesmo tempo do “horizonte da
sociedade” e do “vértice subjetivo de cada um, sem se deixar reduzir às outras linguagens”. E
prossegue: “a música ensaia e antecipa aquelas transformações que estão se dando, que vão se
dar, ou que deveriam se dar, na sociedade” (apud GUAZINA; TITTONI, 2009, p.110). A música,
entretanto, não pode ser compreendida aqui como algo natural e universal, mas como práticas
musicais de:

[...] diferentes formas pelas quais os seres humanos organizam o


exercício do trabalho acústico [...] contextualizadas dentro do campo
de forças de cada sociedade ou grupo humano, uma vez que as formas
de exercer essas práticas, seus sentidos e implicações são diferentes e
se inter-relacionam com as diferentes esferas da vida de uma
sociedade e de cada indivíduo, conjuntamente (ibid.).

A música é comumente percebida como “boa para tudo”, portadora de um “valor


positivo universal”, não desconsiderando que ela também é recurso usado como forma de
violência, coerção, influências políticas e manutenção do controle. É possível se aperceber disso
em alguns momentos da referida oficina, em que alguns usuários do Caps, que estavam em uso
do “leito-noite” para sujeitos “em crise”, pediam energicamente que os participantes do grupo
parassem de cantar e tocar, pois estavam incomodados com o “barulho”, ou até mesmo
associavam as músicas e as pessoas aos delírios e alucinações que sentiam em seus corpos.
O saber psi almeja ser uma empresa que se alicerça na razão e no método, para explicar
objetivamente o ser humano por seus construtos e generalizá-los como verdade social, de modo
a facilitar a coordenação de um modelo de tratamento para as subjetividades desorganizadas
segundo seus parâmetros.

169
Contudo, é preciso considerar que a ciência e suas práticas são forças
que constituem realidades humanas, logo, não existem verdades a
serem reveladas, essências latentes a serem descobertas e usadas
universalmente como referências. Toda ciência é uma criação de um
tempo, um dispositivo de poder-saber que, articulado a outros
dispositivos, institui e regula práticas sociais. Neste sentido, é preciso
desnaturalizar a ciência, seus métodos e conhecimentos (HENNINGEN,
2006, p.51).

A razão da ciência, para se legitimar como discurso de saber e exercer poder, se propõe
ordenar e significar a realidade e a vida segundo parâmetros que atendem a diversos interesses
– do capital, do governo, das instituições. Os saberes que sistematizam a subjetividade e passam
a determiná-la, invalidam as diferenças (ou a diferença) para viabilizar os dados estatísticos
esperados, ou até encomendados. As ciências psi se prestam a essa tarefa com diversas formas
de atuação, pautadas em distintas explicações e intervenções terapêuticas, para alcançar o
máximo de pessoas, com o objetivo de reduzir os conflitos para adaptar o homem à vida social
(ibid.).
Outra forma de fazer Psicologia que se utiliza da música seria pela noção de liberdade
proposta por Foucault (1992), cujas ciências teriam participação essencial. É impossível colocar-
se fora do poder e da verdade, mas é possível desvincular um do outro e desalojá-los do lugar
de hegemonia. Essa liberdade não é uma utopia conseguida apenas por uma grande revolução,
mas se trata de uma liberdade concreta exequível em microrrevoluções, presentes nas
pequenas problematizações sobre o ser, o fazer, o pensar; capazes de mudar as práticas que
constituem os sujeitos (VEIGA-NETO apud HENNINGEN, 2006, p.52). Fazer outra terapêutica,
outra prática musical e/ou oficina a partir inclusive da psicologia, terapia ocupacional ou da
musicoterapia, implicaria:

[...] em vez de propor nova rede conceitual, problematizar suas


práticas, inclusive a que nós próprios/as produzimos. [...] Como
assinala Warde (1999), nenhuma disciplina constitui-se de uma vez
para sempre ou mantém intocadas referências, problemas e
orientações. No percurso de uma disciplina, é produtivo atentar para
as relações (de lutas, aliança, etc.) que se travam com as disciplinas
associadas e contemporâneas (id.).

Atentando para a música:

Se a música, como aponta Tragtenberg (1999), há muito aprendeu que


pode transformar uma mesma cena bucólica e opressiva em nostálgica
e futurista, por que esses potenciais não poderiam ser objeto de
produção de saúde, de outros modos de trabalhar e mesmo outros
modos de existir? (GUASINA; TITTONI, 2009, p.114-115).

170
O envolvimento com uma arte ou uma obra que promova o acontecimento estético abre
um campo de existência, de criação de novos modos de subjetivação e de se produzir “saúde”
que não é o da identidade e da formatação dos modos homogêneos de se viver no mundo e
apreender a música, mas da presença de uma perspectiva em outra, de uma dobra em outra,
de um campo singular em outro, operando uma mútua redistribuição e um limiar de
indiscernibilidade entre os termos que se atravessam. Seria preciso esta evidência no próprio
movimento da sensibilidade; assistir à percepção em devir, aceder à realidade do percepto
(RIBEIRO, p.107). Quanto a isso, consentimos que o aqui exposto é quase que inexplicável, talvez
porque não possa ser escrito, mas cantado ou soado.

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173
Capítulo 9

Quando o corpo fala primeiro: Uma ilustração clínica a partir da psicoterapia


psicanalítica proposta por Joyce McDougall

Fatima Itsue Watanabe Simões

Podemos considerar que a constituição do sujeito dá-se a partir da dimensão relacional


que estabelece com outra pessoa que investe em seu desenvolvimento. É nessa interação que
a subjetividade se constitui. Segundo Oliveira (2002), é por meio de um determinado círculo
familiar que se transmite à criança a cultura e o seu sistema de significações e representações.

A figura materna, ao se oferecer como objeto de investimento pulsional, acolhendo,


nomeando e interpretando os estados afetivos de seu filho, tende a protegê-lo das tensões do
mundo exterior, criando condições para que ele seja capaz de elaborar psiquicamente as
tensões e conflitos da vida diária e, assim, inseri-lo em um código linguístico, além de favorecer
o reconhecimento e a integração de seus próprios sentimentos e dos demais com quem convive.

Questões relativas à constituição do psiquismo e às suas origens, as relações que são


estabelecidas entre a díade mãe-filho, o relacionamento familiar e as relações afetivas entre
seus membros apontam para a necessidade de aprofundamento de estudos e busca de
conhecimento acerca dessas relações e a eclosão do sintoma corpóreo, uma vez que o corpo
pode ser a via de expressão para a exteriorização dos conflitos psíquicos.

A formação e o exercício da prática clínica possibilitaram-me um interesse crescente


pelas relações que se estabelecem entre a mente e o corpo; especialmente sobre a forma pela
qual alguns de nossos pacientes utilizam-se do corpo como veículo de expressão dos conflitos
psíquicos inacessíveis à linguagem verbal. Estes pacientes utilizam-se da disfunção somática
como forma de comunicar aquilo que psiquicamente não houve possibilidade de ser elaborado.

Um indivíduo passa a constituir-se em um corpo simbólico na medida em que consegue


traduzir as suas sensações, as emoções e os conflitos em representações psíquicas verbalizadas
de tal forma que esse corpo biológico aos poucos ganhe uma linguagem psicológica para os
afetos. Entretanto, este protótipo do corpo biológico tem origem na vida intrauterina, e cabe ao
corpo materno dar sustentação e prover as condições vitais e necessárias para o seu
desenvolvimento físico e psíquico.

174
No decorrer deste capítulo, procuraremos nos deter em um aspecto particular da
psicoterapia psicanalítica proposta por Joyce McDougall: como ocorre a diferenciação
progressiva entre o corpo de um indivíduo e o corpo materno e, paralelamente, como o aparelho
psíquico distingue o que é psíquico do que é somático. Ressaltamos que esta análise se dará a
partir de uma obra em especial da referida autora, intitulada Teatros do corpo: O psicossoma
em psicanálise.

Para alcançarmos este objetivo, utilizaremos fragmentos de material clínico de uma


paciente, que passaremos a denominar de Raquel. À época das sessões aqui relatadas, ela estava
com vinte e dois anos. Em um dado momento da psicoterapia, o seu corpo biológico entra em
colapso e começa a manifestar queixas psicossomáticas com o intuito de expressar os seus
conflitos psicológicos, os quais, posteriormente, pudemos relacionar com a dificuldade em
posicionar-se diante da figura materna.

Aspectos teóricos:

Joyce McDougall (1996), ao falar sobre as origens do indivíduo, enunciou o conceito de


um corpo para dois, em artigo intitulado com essa expressão. Segundo esta autora, todo ser
humano tem o desejo de ser como a sua mãe da primeira infância. A relação entre mãe e bebê
inicia-se ainda na vida intrauterina. É função do corpo materno prover as necessidades vitais dos
dois seres. Segundo a referida autora (1996), esta experiência de estar fusionado à mãe leva à
fantasia de que existe apenas um corpo e um psiquismo para as duas pessoas, e que estas
constituem uma unidade indivisível.

No início da vida, quem faz o acolhimento das forças pulsionais do bebê é a mãe (ou a
outra figura substituta). A ausência dessa figura provoca a desorganização pulsional; são os
cuidados maternos que fixam a presença da mãe no psiquismo da criança. É o desligamento das
pulsões de vida e de morte que abre as condições para o surgimento da doença orgânica, entre
outros fenômenos negativos.

Para que a mãe consiga escutar as sensações desprazerosas – como as dores do corpo
da criança – e consiga interpretá-las, nomear as sensações e devolvê-las de forma integrada e
compreensível para o bebê, é necessário que ela consiga fazer um investimento libidinal no
corpo da criança. Isso é obtido na medida em que estabelece contato com o corpo do bebê e
promove o reconhecimento de prazeres parciais que o preparam para os prazeres sexuais da
sexualidade infantil, que são a via de acesso ao autoerotismo e, futuramente, ao amor objetal.

175
Caso a satisfação das primeiras necessidades básicas de sobrevivência não fosse
atendida, o bebê ficaria privado de descobrir esse corpo como objeto do investimento libidinal
da mãe e, em um segundo momento, como fonte de investimento do próprio sujeito.

É a partir dos investimentos libidinais do outro (a figura materna ou substituta) que um


corpo biológico pode transformar-se em corpo erógeno e ter acesso à simbolização
(FERNANDES, 2003). Enfatizando, o outro sempre está na origem da constituição do sujeito.
Vamos verificar em seguida como o acolhimento materno pode contribuir para essa experiência.

O bebê elege a mãe como figura de segurança a partir da maternagem que é dispendida
a ele. No início da vida, ele ainda não distingue seu ego do mundo externo como fonte de
estímulos. A dedicação e a doação maternas são fundamentais para que o bebê integre suas
sensações e tenha representação adequada de si mesma e do mundo.

O processo de desenvolvimento do bebê é construído mediante as relações que se


estabelecem com os pais, especialmente com a mãe. As trocas afetivas que o bebê estabelece
com a mãe desde o nascimento são o motor das relações que a criança estabelecerá com o
mundo ao longo de sua existência.

Joyce McDougall (1996), ao descrever o que considera “as origens do indivíduo”,


demonstra que o outro pode constituir-se subjetivamente por intermédio da relação que
estabelece com os outros seres humanos. O início desta constituição dá-se com a experiência
de fusão com a figura materna, visto que, por ter um ego ainda imaturo, o bebê não distingue o
eu do outro. Em sua fantasia, há um único corpo e um único psiquismo para ele e sua mãe; e
ambos constituiriam uma unidade indivisível.

“A fantasia do corpo único, primordial em todo ser humano, tem certamente seu
protótipo biológico na vida intra-uterina, onde o corpo-mãe deve realmente prover as
necessidades vitais dos dois seres. O prolongamento imaginário dessa experiência vai não
somente representar um papel essencial na vida psíquica do recém-nascido, mas também reger
seu funcionamento somatopsíquico” (McDOUGALL,1996, p.33).

A atitude emocional da mãe e seus afetos servirão para orientar os afetos do bebê e
conferir qualidade de vida à experiência dele. Nesta época da vida, o afeto materno é essencial
para a criança, sendo de importância muito maior do que em qualquer outra época da vida. De
fato, no decorrer de seus primeiros meses, a percepção afetiva e os afetos predominam na
experiência do bebê, pois o aparelho sensorial perceptivo ainda não está suficientemente
desenvolvido.

176
A mãe que consegue cuidar de seu bebê sente-se mais segura ao colaborar para melhor
integração de sua personalidade, pois, ao introjetar a imagem de um “bebê bom”, que se
desenvolve bem, parte de seu ideal de ego é assegurado, o que dá à mãe a sensação de
tranquilidade e segurança, diminuindo a ansiedade, o medo e a frustração. Através destes
cuidados com o bebê, a mãe tem a chance de reviver e elaborar suas experiências e carências
infantis, e enriquecer sua personalidade, favorecendo a boa interação com o bebê, habilitando-
a a compreender adequadamente as necessidades dele.

A mãe, na medida em que atende as necessidades do bebê, através da proximidade de


seu corpo e da maciez de sua voz para acalmá-lo, mantém a ilusão de unidade entre ambos e
possibilita a integração de uma imagem interior. Conforme o bebê se desenvolve, começa a ter
a percepção de que a mãe é um ser separado dele; começa então a surgir no bebê uma
necessidade de separar-se dela e renunciar à sua presença física. Cabe aos pais, gradativamente,
irem frustrando-o e confrontando-o com a realidade.

A dedicação e a doação materna são fundamentais para que o bebê integre suas
sensações e tenha uma representação adequada de si mesmo e do mundo. Isso é obtido através
da relação de confiança estabelecida com a mãe que o atende em suas necessidades. A mãe, na
medida em que decodifica as reações do bebê, transmite-lhe segurança e o acolhe, oferecendo-
lhe condições adequadas para discernir seus próprios sentimentos.

Quando a relação entre mãe-filho é boa o suficiente, desenvolve-se uma diferenciação


progressiva na estruturação psíquica da criança pequena, entre seu próprio corpo e essa
primeira representação, e paralelamente, pouco a pouco, aquilo que é psíquico vai-se
diferenciando, na mente da criança, daquilo que é somático (McDOUGALL, 1996, p.34).

A mãe pode ser considerada como o primeiro objeto da realidade externa, e são os seus
cuidados afetuosos que auxiliam o bebê a discriminar entre uma necessidade física e outra
emocional, entre seu mundo interno e o mundo externo e a introjetar um objeto bondoso e
generoso. A princípio, a mãe funcionaria para o bebê como um “organizador” das emoções e de
suas percepções. Futuramente, essa figura tranquilizadora, capaz de acalmar e modificar seu
sofrimento sem se opor ao seu desejo constante de alcançar a autonomia somática e psíquica,
será a base para uma identificação ulterior no mundo interno da criança. A constituição de seu
eu terá como base uma imagem atenciosa, reconfortante e tranquilizadora.

Nesta fase do desenvolvimento, a criança começa a substituir a presença materna por


outros objetos da realidade externa revestidos das funções protetoras e que deem a ilusão da
presença materna.

177
É também neste momento que as necessidades de contato corporal diminuem e as
formas gestuais mais primitivas utilizadas na comunicação corporal são substituídas pela
linguagem. Dessa forma, a representação mental da figura materna como pessoa pode ser
nomeada e evocada através da palavra. De acordo com McDougall (1996), isso é essencial para
a estruturação do psiquismo e, no final das contas, vai permitir à criança assumir por si mesma
as funções maternas introjetadas.

As relações afetivas vivenciadas pela criança nesta fase estimulam sua capacidade de
interação e aprendizado. O fracasso neste processo, como observa a autora anteriormente
citada, pode vir a comprometer a capacidade de a criança integrar-se e reconhecer como seus
o seu corpo, os seus pensamentos, os seus afetos, ou seja, a aquisição da linguagem e a
comunicação simbólica ficam comprometidas.

No início da vida, portanto, a mãe é o primeiro objeto de amor e de ódio do bebê.


Conforme ocorre o seu desenvolvimento emocional e físico, desenvolve-se também a percepção
de que ela é um ser separado dele. Todo ser humano, mesmo depois de adulto, carrega dentro
de si o desejo de novamente voltar a constituir com a mãe-universo uma unidade indivisível e
novamente habitar um mundo em que não haja responsabilidades ou frustrações. Entretanto,
a realização deste desejo seria o equivalente à morte psíquica ou, ainda, à perda da identidade
pessoal. Esta ilusão de estar fusionado à mãe é de vital importância para o desenvolvimento da
criança, pois é este sentimento que irá reger todo o funcionamento somatopsíquico do indivíduo
ao longo de sua vida (McDOUGALL, 1996).

Na medida em que a mãe consegue compreender e atende o bebê em suas necessidades


físicas e afetivas, transmite-lhe segurança e conforto. Estes cuidados podem ser expressados
através da forma pela qual segura e sustenta o bebê em seu colo, pelo tom de voz com que se
comunica e expressa seus sentimentos, pelo calor de seu corpo etc. Ao mesmo tempo que lhe
dedica atenção, instaura uma sensação de confiança que tende a levar o bebê a ter a ilusão de
que assim será para sempre.

É a partir destes cuidados maternos primários que o bebê desenvolve uma


representação adequada de si mesmo e de seu corpo. Quando a relação com a figura materna
é boa o suficiente, ele encontra as condições necessárias para discernir os seus próprios
sentimentos, integrar a sua personalidade e perceber que ele tem um corpo separado do de sua
mãe. Além disso, reconhece também que ele é um ser separado, diferente e independente dela.
Paralelamente a esse processo de diferenciação, aquilo que é psíquico vai-se diferenciando na
mente do que é somático (McDOUGALL, 1996).

178
Porém, esta fase não transcorre de forma totalmente tranquila. Ela é constituída de
momentos em que se deseja estar fortemente separado da mãe-universo e de outros
momentos, especialmente, os de sofrimento físico ou psicológico, em que se busca conforto
para essa privação psíquica através da ilusão de estar fusionado à unidade corporal e mental do
seio materno.

Lentamente, ocorre um processo denominado de “dessomatização do psiquismo”, que


é caracterizado pela busca de desfusionar-se completamente da mãe e vir a ser uma pessoa
completamente diferente e independente dela. Para McDougall (1996), são as demonstrações
de afeto, atenção e cuidados que servirão de referência para a constituição de uma identificação
da criança com uma imago atenciosa e protetora que irá incorporar-se ao seu self. Esse processo
contribuirá para que a criança adquira sentimentos de confiança e de proteção necessários para
que possa investir em outros objetos da realidade externa, os quais passam a ser os
representantes da ilusão da presença materna.

Esses objetos foram denominados por Winnicott (1975) como objetos transicionais. Eles
podem ser um 'paninho', um 'cheirinho', um bichinho de pelúcia, roupas que compõem as
vestimentas da mãe, um brinquedo... Enfim, são objetos substitutivos, carregados de
lembranças afetuosas que remetam à figura materna. Essas vivências possibilitam à criança
alimentar a ilusão da presença materna.

É também nesta etapa do desenvolvimento evolutivo que a linguagem verbal substitui


as formas mais primitivas de comunicação interpessoal. Esta fase é de fundamental importância
para a estruturação do psiquismo, pois é a possibilidade de expressar-se através de um código
linguístico, ou seja, da fala, que permite à criança nomear a representação mental da figura
materna e exercer por si própria as funções maternas introjetadas. Aos poucos, a necessidade
de contato corporal tende a diminuir e a criança consegue expressar-se gradualmente através
da comunicação simbólica e pela linguagem verbal.

Para McDougall (1996), qualquer falha neste processo irá comprometer a capacidade da
criança de integrar e reconhecer, como sendo seus, o seu corpo, os seus pensamentos e os seus
afetos. Esse método de funcionamento mental, quando bem sucedido, permite à criança
separar os seus pensamentos dos de outras pessoas e desenvolve a sua própria concepção e
representação de mundo externo.

Em seus estudos, McDougall (1996) destaca que a qualidade da relação entre mãe e
bebê pode desmoronar precocemente não só em função da sensibilidade particular de alguma
criança, mas também em virtude da maior ou menor capacidade que a mãe tem de interpretar

179
as necessidades da criança e os modos primitivos de comunicação dessa dependência. Quando
a figura materna, por razões inconscientes, não consegue modificar o sofrimento físico ou
psíquico de seu filho – e protegê-lo das tensões provenientes do mundo externo – resulta
situações que podem acarretar no bebê o não desenvolvimento de sua capacidade de conter ou
de recalcar as ideias relacionadas às vivências de uma dor de origem emocional, por isso, trata
de expulsar do campo da consciência qualquer representação carregada de afeto. A
consequência mais imediata desse tipo de conduta para o desenvolvimento do ser humano é a
de que pode gerar uma incapacidade de diferenciação entre a representação de si mesmo e a
do outro.

Assim sendo, a diferenciação entre a constituição do corpo materno e o da criança


permanece confusa, pois o que prevalece para o psiquismo, quanto aos investimentos da libido,
é a representação corporal arcaica. Portanto, a representação mental que a criança tem de seu
corpo é a imagem de um corpo primitivo, arcaico. Dessa forma, como não foi estabelecida uma
representação psíquica materna adequada, a criança não se sente segura para recorrer a ela
como representante de um ambiente maternal e acolhedor. Acontecimentos como separações
e perdas não são concebidos como aquisições psíquicas que podem enriquecer o mundo mental
e conferir sentido à vida pulsional (McDOUGALL,1996, p.44).

Uma vez que não houve a introjeção da representação psíquica materna como figura
acolhedora capaz de aliviar o sofrimento do lactente, a diferenciação e a separação da
representação de si mesmo e do outro fica prejudicada. Em sua fantasia, a criança teme ser
aniquilada ou mesmo deixar de existir caso a identificação primária com sua mãe seja rompida.
Por isso, ela tenta evitar que a separação com a figura materna ocorra.

Discussão a partir do caso clínico

No caso clínico proposto, a paciente tinha a fantasia de que a satisfação e o prazer de


viver poderiam levá-la à morte psíquica, pois estas experiências agradáveis representariam a
separação de seu corpo e de sua vida da de outra pessoa: sua mãe.

Ao conferir linguagem aos seus afetos, poderia evocar e também nomear as suas
diferenças em relação à sua mãe. Para ela, somente a falta de prazer é que seria capaz de
garantir a sobrevivência psíquica, uma vez que este sentimento a manteria ligada a uma unidade
com a mãe. Em seu psiquismo, não ficou registrada a lembrança da figura materna como alguém
acolhedor, dócil e reconfortante. Por isso é que, nos momentos de dificuldade, não pode evocá-

180
la, pois, em sua mente, não há o registro de representações psíquicas de uma pessoa capaz de
aliviar o sofrimento advindo de uma experiência traumática.

Uma das consequências dessa falta de memória para figuras que tenham
desempenhado um papel reconfortante em sua vida é o temor que a paciente carrega, na
atualidade, de perder os limites de seu corpo físico. Dessa forma, há a possibilidade de ter
aumentada a sua vulnerabilidade psicossomática, o que representaria uma ameaça para a sua
própria existência.

O caso clínico que apresentamos ilustra este tipo de funcionamento psíquico. O corpo
serve como local de conflito para proteger o aparelho psíquico da morte psíquica. Cabe assinalar
que esta paciente nunca havia apresentado queixas psicossomáticas anteriores a este episódio.

Raquel morava em uma república com outras colegas de faculdade, enquanto os seus
pais residiam em outro estado. Era a caçula de uma prole de dois filhos.

Eram temas frequentes em sua análise: o bom relacionamento familiar; a união entre
os membros desta família e o esforço de seu pai para alcançar uma carreira profissional bem
sucedida, o que lhes garantia um bom padrão de vida. Mas, em função da severidade da
educação empregada por sua mãe, muito pouco podiam desfrutar do dinheiro que ele ganhava.

Raquel sempre ressaltava a disciplina militar com que sua mãe exigia o cumprimento
das regras e normas de comportamento. Queixava-se, com pesar, do distanciamento afetivo
entre ela e sua mãe. Relatava, com ressentimento, que durante toda a sua infância a mãe nunca
a tomou no colo para acalmá-la ou reconfortá-la após alguma experiência dolorosa, mesmo que,
do seu ponto de vista, tivesse razão. A mãe sempre a julgava e condenava antecipadamente,
pois dizia que, se algo de ruim aconteceu, era porque de alguma forma ela tinha provocado e,
por isso, merecia tal desfecho. Nunca conseguiu uma palavra de aprovação, de solidariedade ou
atitudes afetuosas que demonstrassem compreensão e acolhimento. Na opinião da paciente, a
mãe sempre estava mais preocupada com o julgamento que a sociedade faria a respeito de seu
comportamento ético e moral do que com os sentimentos de seus filhos. Dizia também que não
merecia ser tratada com tanto rigor, porque seguia firmemente os preceitos morais ditados por
sua mãe e sempre fazia um pouco mais do que ela pedia, com a finalidade de ver se ela
reconhecia o quão boa filha ela tentava ser.

Mas a mãe nunca reconhecia seus esforços e exigia dela cada vez mais. Mesmo assim, a
impressão que tinha a respeito desta época é a de que era feliz. Raquel declarava que sua mãe
sempre fora uma pessoa muito presa ao seu mundo, às suas vaidades, sempre atenta à sua
aparência, fazendo-a sentir-se solitária e abandonada afetivamente. Por outro lado, reconhece

181
que a mãe era pessoa dedicada aos filhos, apesar de ter perdido o pai durante a adolescência e
manter um relacionamento muito hostil com a sua mãe. A percepção dessas duas situações a
fazia sentir-se culpada. Por um lado, achava a mãe uma pessoa egoísta e, por outro, tinha muito
dó dela, por conta de sua estória de vida. Como poderia ter um sentimento de crítica e
ambiguidade em relação a uma pessoa que era responsável por sua origem, por sua educação e
que, afinal de contas, era a sua mãe?

Neste compasso, relata que não sente que a mãe seja uma pessoa forte o suficiente, na
qual possa se apoiar nos momentos de dificuldade. Sentia que, algumas vezes, os papéis se
invertiam: era ela, a filha, quem ouvia as lamúrias e inseguranças da mãe. Nestes momentos,
sentia muita raiva da mãe, porque se sentia muito frágil e desprotegida, de forma a nunca poder
recorrer à mãe nos momentos em que tinha algum problema. Mas ela, na qualidade de filha,
tinha de ser submetida às sessões de “choramingos” da mãe. Sentia-se perdida, insegura e
solitária.

Entretanto, nunca demonstrou essa fragilidade. As pessoas ao seu redor, inclusive a sua
mãe, tinham a impressão de que Raquel era uma pessoa forte, decidida, segura e nunca
precisava de ninguém em quem se apoiar. Ela estava sempre pronta a ajudar as pessoas à sua
volta. Aos olhos alheios, era vista como a 'boazinha', a companheira, a amiga e a 'bem resolvida'.
Em seus relacionamentos, nunca se permitiu dizer não a alguém que lhe pedisse ajuda e tinha
uma necessidade muito grande de ser aceita e ser bem quista pelas pessoas.

Raquel convivia com duas imagos internas: uma mãe frágil, má e mortífera que nunca
foi capaz de acolher as suas dores e o seu sofrimento, e uma outra que lhe havia dado origem e
que era idealizada, inacessível e, por isso, persecutória. Raquel nunca seria capaz de atender às
suas expectativas ou de satisfazer os seus ideais.

Raquel tinha uma sexualidade muito arcaica. Sempre tentava disfarçar a sua aparência
delicada e feminina. Escondia-se embaixo de roupas que ocultavam o seu corpo de mulher. Não
demonstrava vaidades ou preocupação com a sua aparência física. Em contrapartida, sua mãe é
uma pessoa extremamente vaidosa, feminina e cobra muito que Raquel se vista melhor ou, para
ser exata, como uma mulher.

Relata que todos os seus namorados eram pessoas que não correspondiam ao seu ideal
de homem: terno, seguro, amável. Nunca se relacionou com alguém que tivesse interesse em
estabelecer um vínculo mais estável.

Em um determinado momento da psicoterapia, começa a questionar sobre a sua


maneira de viver e a forma pela qual vem relacionando-se com as outras pessoas. Começa a

182
querer saber os motivos pelos quais, mesmo morando separada dos pais há mais de cinco anos,
sente-se na obrigação de sempre pedir-lhes autorização para participar de algum evento ou
curso. Necessita pedir a opinião deles até mesmo sobre os seus namoros. A impressão que ela
tem é a de que, mesmo morando em casas separadas, continua agindo como se fosse uma
adolescente morando com os pais. Sente-se muito dependente da autorização e da aprovação
deles.

Raquel entra em conflito consigo mesma, com os seus desejos e com o seu modo de
viver. Inicia um processo de questionamento a respeito da forma pela qual conduz a sua vida e
seus relacionamentos. Conclui, com muito sofrimento, que, em alguns momentos, tem desejos
diferentes dos de sua mãe.

Entretanto, esta percepção vai à contramão da forma pela qual foi educada. Percebe
que foi uma pessoa que sempre concordou com tudo o que lhe diziam, vivia como alguém
desprovido de desejo e vontade própria; nunca questionava nada, sempre considerava tudo
bom e achava natural ser assim. Não tinha desejo próprio e se dispunha a realizar o que seria
bom aos olhos da sociedade. Descobre que vivia num estado de quase alheamento sobre os
fatos que ocorrem à sua volta e que os seus desejos são os de sua mãe. Este fato deixou-a muito
incomodada.

Na tentativa de buscar ser ela mesma e de conseguir discernir os seus interesses dos de
sua mãe, decide que vai viver a sua vida e experimentar coisas novas. Estas novas experiências
começam a ser vividas sem a consulta aos seus pais, ao contrário do que fazia anteriormente.

Estes momentos são experimentados com um misto de prazer e sensação de


independência e com uma culpa imensa: dar vazão ao seu prazer era algo muito egoísta, sobre
o qual não tinha direito. Durante esta tentativa de viver independentemente, sente-se mal
fisicamente, como se um quadro de pânico se instalasse.

O seu corpo começa a dramatizar o conflito psíquico. Adoecer era o preço que pagava
por ter querido viver a sua vida e, portanto, estava traindo os princípios familiares. Por outro
lado, Raquel recorda-se de que tinha a atenção da família quando adoecia. Então, um corpo
doente é a melhor maneira de chamar a atenção sobre si e de estabelecer diálogo com os
familiares.

Ela se lembra da época em que era criança: só era possível ter a atenção de seus pais
através da doença. Raquel adoece fisicamente. Passa a ter crises de medo: medo de ficar
sozinha, medo de morrer, medo de seus próprios pensamentos. Chorava constantemente e não

183
conseguia desligar-se de seu corpo. Observava-o em cada milímetro, temendo que ele se
desintegrasse em partículas. Sentia-se como se o seu corpo não lhe pertencesse.

Por outro lado, a doença psicossomática era uma forma de tentar preservar-lhe a vida;
era uma maneira de garantir a sua sobrevivência psíquica.

Neste período em que adoeceu, os amigos se revezam para fazer-lhe companhia, pois
não conseguia dormir com medo de morrer; passava dias sem sentir necessidade de se
alimentar e apresentava choro fácil e humor lábil.

A família une-se para tentar acalmá-la. Foi um choque muito grande para todos ver
Raquel em um estado de tamanha fragilidade. Todos a viam como uma pessoa forte, equilibrada
e inabalável. Por isso, abrem um espaço de escuta e de acolhimento para o sofrimento psíquico
de Raquel, o que foi de vital importância para o seu restabelecimento físico e emocional.

Foram meses de atenção, dedicação e cuidado que esta família dispensou à filha. A
paciente sentiu-se amada, cuidada e respeitada em seus limites.

O seu corpo biológico começa a torna-se um corpo simbólico quando, na sessão


analítica, permite ao corpo traduzir as mensagens arcaicas e não simbólicas em representações
verbais, de forma a transformar as mensagens corpóreas em representações psíquicas ou, mais
precisamente, em linguagem psicológica.

Para Raquel, falar abertamente com seus pais sobre os seus anseios não lhe era
permitido. A impressão da psicoterapeuta era a de que o que mantinha e alimentava a relação
com os seus pais era a doença. Para a paciente, deixar de adoecer e ao mesmo tempo ter a
atenção de seus pais de outra forma que não fosse pela via da doença era correr o risco de
perder o amor deles.

Sem a doença, ela deixaria de existir. Deixaria de estar cercada de atenção, carinho e
também ficaria exposta ao ódio de sua mãe, mas, em contrapartida, teria de cuidar de si mesma
e de se responsabilizar pelos seus atos.

Raquel desejava, mas também temia mergulhar nesta empreitada rumo à sua
independência, pois viveu toda a sua vida, até então, escondida atrás da fragilidade do corpo.
Esta era a base sobre a qual se assentava o relacionamento familiar. Por isso, temia perder a sua
identidade.

Sente-se encorajada a expressar os seus sentimentos e a querer viver em um corpo


separado do de sua mãe. A relação que estabelecia com a figura materna foi tema de várias
sessões de psicoterapia até o momento em que este vínculo pôde ser interpretado.

184
Na sessão seguinte, ela diz não saber relatar exatamente o que ocorreu, mas o fato é
que estava mais tranquila. Depois de muito tempo, conseguiu dormir sozinha em seu quarto e
foi possível conversar com sua mãe sem tratar de doenças. Contou sobre a sua vida e os seus
novos projetos.

Foi por meio da dor corporal que a paciente sempre esteve ligada à sua mãe. Neste
momento, começa a perceber que pode ser uma pessoa separada de sua mãe, sem que isso
ofereça perigo para ela ou para a sua mãe. Para Raquel, viver sem os sintomas físicos e conversar
com os seus pais sem falar em doenças, sem ser infantil, significaria abandono. Ela temia não
poder viver sem este apego fusional com a figura materna. Sentia muita culpa por tomar as
rédeas de sua existência e por não conseguir dar conta de sobreviver sozinha.

Apesar de vislumbrar para si novas perspectivas de vida, Raquel ainda sente que a sua
mãe espera ser cuidada por ela. Esta percepção sobre uma necessidade materna a entristece,
mas não a impede de continuar a sua jornada rumo à sua independência. Sente que é possível
conversar com ela sobre esta expectativa; dar-lhe atenção, ao mesmo tempo em que caminha
em direção à tomada de responsabilidade pelo cuidado com a sua vida. Raquel questiona,
também, o motivo pelo qual quis cursar faculdade de Psicologia: para ela, ser psicóloga
representava que, ao cuidar dos outros, poderia cuidar da criança sofrida e lastimada nela
mesma.

A partir deste momento, demonstra necessidade de construir outros projetos de vida:


o que antes estava preso a uma sexualidade infantil e arcaica, emerge como uma mulher mais
madura, desejando arrumar-se; escolhe roupas que marcam e delineiam o contorno de seu
corpo. Interessa-se sexualmente pelos rapazes.

Enfim, procura dar sentido a sua vida não mais através da doença, mas compreende que
o seu corpo pode construir a sua história e pode exprimir os afetos conflitantes por meio de
representantes psíquicos verbalizáveis e inscritos em um código linguístico universal: a palavra.

Referências

FERNANDES, M. H. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. (Clínica psicanalítica).


McDOUGALL, J. Teatros do corpo: O psicossoma em Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
OLIVEIRA, A. Função materna e fenômenos psicossomáticos: reflexões a partir da asma infantil.
2002. Tese (Mestrado) – Instituto de Psicologia – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2002.
WINNICOTT, D. D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

185
186
Capítulo 10

A transdisciplinaridade em pesquisa: Relato de um percurso metodológico errático em


uma dissertação de mestrado em Psicologia29

Mateus Pranzetti Paul Gruda

Harvey (1992) faz uma análise do tempo contemporâneo, chamado por ele de Pós-
moderno, como um período composto por um desdobramento radical de características da
modernidade – total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico; da
exacerbação da velocidade, dentre outras. O autor ainda assinala que a pós-modernidade
fortalece aspectos opostos àqueles que se fincaram na cultura moderna, tais como: a anarquia,
a dispersão, a intertextualidade, a combinação, a indeterminação, entre outros.

A partir destas pontuações iniciais, não pretendemos sugerir ou defender que haja no
contemporâneo a completa substituição e descarte daquilo que está relacionado à
Modernidade; ao contrário disto, as ideias de um mundo Pós-moderno indicariam a
incorporação e mistura dos elementos de ambos os tempos. Inclusive, faz-se importante a
ressalva de Hassan (1985) de que tais oposições formuladas entre modernismo e pós-
modernismo sejam seguras e inequívocas. Ou seja, estas serviriam tão somente para nos guiar
quando refletimos acerca da contemporaneidade.

Posto isto, gostaríamos de pensar um pouco nas páginas que se seguem acerca do fazer
acadêmico na atualidade, sobretudo no que diz respeito aos aparatos teórico-metodológicos.
Pois, ao fazermos uma breve e aleatória busca em anais de congressos, artigos publicados em
revistas científicas, dissertações e teses defendidas, podemos notar que boa parte dos estudos,
se não a imensa maioria, é recortada principalmente e por apenas um referencial teórico-
metodológico específico, o qual, preferencialmente, está ancorado nos cânones tradicionais da
área/disciplina em que se insere(m) o(s) pesquisador(es), embora, como dito anteriormente, o
contexto atual sugira a possibilidade “da intertextualidade, da combinação e da
indeterminação”.

Todavia, estes “especifismos” encontrados na maioria das pesquisas não nos espantam,
uma vez que o saber científico-acadêmico hegemônico se pauta, especialmente, pela busca de
resultados precisos e objetivos. Assim, é impingido aos pesquisadores que, para tal intento, um

29
O escrito fora publicado originalmente na Revista Vozes dos Vales: Publicações Acadêmicas.
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM. Minas Gerais – Brasil. Reg.:
120.2.095–2011 – UFVJM. ISSN: 2238-6424. QUALIS/CAPES – LATINDEX. Nº. 02 – Ano I – 10/2012.
Disponível em: http://www.ufvjm.edu.br/vozes

187
estudo só será sério, respeitável e, acima de tudo, aceitável pela comunidade acadêmica, se
seguir uma metodologia exata e específica – e, acresceríamos nós, cerrada.

Assim, trabalhos que se proponham mergulhar em diversos campos de saber, utilizando-


se ora de instrumentos metodológicos e conceituais taxados como exclusivos de uma área, ora
de instrumentos metodológicos e conceituais taxados como exclusivos de outra área,
fatalmente terão dificuldades em serem aceitos, bem como estarão sujeitos a muito mais
questionamentos do que os chamados estudos convencionais, clássicos e/ou tradicionais.

Transdisciplinaridade

Ao falarmos da utilização por um único trabalho de pesquisa de instrumentos e


referenciais metodológicos de diversas disciplinas e áreas, estamos, inevitavelmente, fazendo
referência à transdisciplinaridade, à interdisciplinaridade e à pluridisciplinaridade.

O físico teórico Basarab Nicolescu (1999) diz, em seu importante texto O Manifesto da
Transdisciplinaridade, que a linguagem disciplinar ergue barreiras que impossibilitam e
inviabilizam diálogos entre os saberes das diversas áreas do conhecimento. O autor atribui a
este obstáculo o epíteto de “Torre de Babel”, afirmando, em seguida, que tal processo de
“Babelização” nos torna cada vez mais incompetentes. Pois, ainda segundo Nicolescu, a soma
de competências não resulta em uma competência maior, ao contrário disso, a somatória destas
acaba gerando uma incompetência generalizada, uma vez que “[...] no plano técnico, a [mera]
intersecção entre os diferentes campos do saber é um conjunto vazio.” (NICOLESCU, 1999, p.21).
Em outros termos, o autor crítica que o conhecimento seja separado em e pelas disciplinas e, ao
mesmo tempo, questiona que este seja unido mecanicamente ao seguir pura e simplesmente a
própria lógica compartimentalizada das mesmas (disciplinas). Aprofundando em cada um dos
termos elencados em nosso primeiro parágrafo desta seção, veremos que em alguns deles esta
transposição artificial ocorre plenamente, enquanto noutros nem tanto.

Nicolescu (1999) diz que a necessidade de se criarem laços entre as disciplinas surgiu na
metade do século XX, com o surgimento da transdisciplinaridade e da pluridisciplinaridade.
Segundo esta última, um objeto é pesquisado por meio de diversas disciplinas
concomitantemente. O autor nos dá como um exemplo disto estudar a filosofia marxista pelos
vieses da filosofia, da física, da economia, da psicanálise etc. “Com isso, o objeto sairá assim
enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas. O conhecimento do objeto em sua própria
disciplina é aprofundado por uma fecunda contribuição pluridisciplinar.” (NICOLESCU, 1999,
p.21).

Entretanto, tudo que for incorporado estará somente a serviço da disciplina primeira
relacionada ao objeto (no caso do exemplo, a filosofia marxista). “Em outras palavras, a pesquisa
pluridisciplinar ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade continua inscrita na estrutura da
pesquisa disciplinar.” (NICOLESCU, 1999, p.22). Além disso, o físico pontua que a
interdisciplinaridade se aproxima muito da pluridisciplinaridade, uma vez que, ao pretender
transpor métodos de uma disciplina para a outra, “[...] a interdisciplinaridade ultrapassa as

188
disciplinas, mas sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar.”
(NICOLESCU, 1999, p.22, grifos do autor).

Já a transdisciplinaridade detém uma forma diferente de relacionar o objeto de estudo


às disciplinas. Um primeiro indício disto reside em seu prefixo trans-, o qual faz o termo
transdisciplinar apontar para aquilo que está entre as disciplinas, através das diferentes
disciplinas e além de qualquer disciplina. Portanto, de uma forma geral, podemos dizer que a
transdisciplinaridade tem por meta “[...] a compreensão do mundo presente, para o qual um
dos imperativos é a unidade do conhecimento.” (NICOLESCU, 1999, p.23).

Para o pensamento clássico, a transdisciplinaridade, consequentemente, é um


equívoco, já que segundo tal modelo não existe nada entre as diferentes disciplinas. Além disso,
nesta perspectiva científica clássica, a pertinência de um campo disciplinar é inesgotável, pois,
colocando em outras palavras, cada disciplina seria capaz de sozinha e dentro de seu próprio
campo teórico, explicar, compreender e conceituar os fenômenos, não necessitando, assim, de
recorrer a outros saberes que pudessem auxiliá-la na construção dos conhecimentos.

Dessa forma, os contrapontos primordiais entre pesquisas de cunho disciplinar e as de


cunho transdisciplinar se relacionam ao fato de que, enquanto as primeiras dizem respeito
somente a uma única dimensão da realidade, as segundas se interessam “[...] pela dinâmica
gerada pela ação de vários níveis de Realidade ao mesmo tempo.” (NICOLESCU, 1999, p.23). E,
além disso, enquanto a pesquisa disciplinar se encerra em si mesma, por meio de seus
referencias e instrumentos teórico-metodológicos específicos, a pesquisa transdisciplinar visa
conhecer, valendo-se de tudo aquilo que possa auxiliá-la em tal empreitada.

Seguindo o raciocínio desenvolvido em nossas considerações iniciais, podemos inferir


que a transdisciplinaridade expressa e se coaduna às configurações do contemporâneo. O que,
vale frisar, de maneira alguma a credencia como melhor ou pior do que a pesquisa disciplinar.
De nosso ponto de vista, isto apenas sugere que, por vivermos em um tempo em que há uma
tendência à flexibilidade, à transposição das fronteiras e à mutabilidade (HARVEY, 1992),
pesquisas que se permitem o uso de aparatos teórico-metodológicos para além da sua disciplina
de partida não apenas são pertinentes como deveriam ser recepcionadas sem tanta resistência,
pré-conceitos e desqualificação pela comunidade científico-acadêmica.

Um relato de um percurso metodológico errático

Feita toda esta exposição, pedimos licença ao leitor, uma vez que a partir daqui seremos
um tanto quanto autorreferentes. Nas páginas que se seguirão procuraremos descrever como
se constituiu o percurso metodológico – para o qual atribuímos o aposto errático, ao longo da
confecção de nossa dissertação de mestrado. Esta, intitulada O discurso do humor politicamente
incorreto e do escracho em South Park (GRUDA, 2011). Trataremos de nosso caso específico,
primeiro por conhecermos o que fizemos, mas, sobretudo, por de alguma forma termos
realizado um trabalho permeado por características inerentes àquilo que denominamos
anteriormente como pesquisa transdisciplinar.

189
Antes de nos aprofundarmos nos meandros da interdisciplinaridade presente em nosso
trabalho de mestrado, justificamos o porquê da utilização do adjetivo errático para se referir à
metodologia que utilizamos/desenvolvemos durante a pesquisa. Recorrendo a um dicionário da
língua portuguesa, temos que errático, dentre outros significados, refere-se àquilo que não é
fixo (MICHAELIS, 2000). Como se verá a seguir, nosso referencial metodológico acabou não
sendo completamente rígido (fixo), tanto em termos da disciplina em que estamos inscritos, a
Psicologia, quanto ao referencial teórico-metodológico que adotamos, a Análise do Discurso, a
qual está vinculada ao campo de conhecimento da Linguística.

Neste aspecto, a única solidez em nosso trabalho diz respeito à inserção deste no campo
das chamadas ciências humanas. Em outros termos, do ponto de vista metodológico, nossa
dissertação buscou se utilizar de instrumentos conceituais de mais de um campo de saber,
encarando-os como: pertinentes ao nosso intento; possíveis de se entrecruzar; e,
principalmente, pelo “simples” fato (não tão singelo assim, por isso as aspas) de estarem
relacionados a fenômenos humanos. Saíamos, então, das afirmações abstratas e explanemos
um pouco mais concretamente do que se tratou nossa pesquisa, para que assim o nosso leitor
possa compreender as conexões pretendidas entre o que expusemos até aqui.

Em linhas gerais, estudamos o discurso do humor politicamente incorreto vinculado pelo


desenho animado South Park. Para tal, nos debruçamos sobre dois fenômenos genuinamente
humanos: a linguagem e o humor. Vejamos, de uma forma mais formal – e, talvez, mais usual
para a academia –, como se desenrolaram nossos raciocínios acerca destas duas dimensões.

Discurso: linguagem em funcionamento

Linguagem e cultura são constituintes básicos do homem e do seu mundo (BAKHTIN,


1992; BENVENISTE, 1989; BLIKSTEIN, 1995; SAUSSURE, 2000). O processo de hominização é
indissociável da linguagem, quer o tomemos no seu desenrolar filo ou ontogenético. Ao produzir
linguagem, o homem é capaz de se desprender da imediaticidade das determinações que
recaem sobre ele e operar, não mais com reações automáticas, mas com condutas mediadas
pelo sentido das coisas que o afetam. Assim, quanto mais desenvolvida for a linguagem, mais
fecundos serão as ações de significar, interpretar, atribuir sentido, representar, comunicar,
compartilhar significação e leituras de si e do mundo.

O homem é o ser falante por excelência, significando isso que ele se constitui na e pela
linguagem, como enfatizaram muitos autores em campos diferentes da ciência, como o da
antropologia, da linguística, da filosofia, da sociologia e da própria psicologia.

No “cipoal” das teorias da linguagem, como se refere Blikstein (1995) ao emaranhado


de correntes teóricas e estudos que a tomaram como objeto principal, rumamos, em nossa
pesquisa de mestrado, por uma corrente de estudos que entende a linguagem não apenas como
constituinte fundamental do homem e do seu mundo, mas também como produção social, de
cultura e de subjetividade. Nesta perspectiva, a linguagem deixa de ser vista tão somente como
instrumento de comunicação, em sua função expressiva, ou como instrumento de

190
representação pelo qual o homem substitui vantajosamente o tateio direto dos objetos do
mundo por um signo capaz de intermediar sua relação com a natureza e com outros homens.
Passa a ser vista, também, como produtora de realidade, produtora de relações sociais e
produtora do sujeito (TRAVERSO-YEPEZ, 1999).

Quando pensamos a linguagem humana como instrumento de comunicação, de


interação e produção social, estamos nos referindo à sua estruturação em forma de discurso
(BRANDÃO, 1995), podendo se apresentar de forma verbal ou não verbal. O discurso pode se
manifestar de várias maneiras, pretendendo comunicar inúmeros sentidos e significações
conforme o contexto em que se insere, segundo as condições nas quais é produzido e,
sobretudo, conforme a ideologia à qual se vincula.

Uma forma de se tentar compreender os sentidos do discurso, sejam aqueles


produzidos e contidos implicitamente na linguagem ou aqueles dados explicitamente em sua
superfície, é pela Análise do Discurso. Segundo Orlandi (1999, p.15), “[...] o discurso é assim
palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem
falando [...]”; – portanto, a análise discursiva é feita se debruçando sobre os efeitos de sentidos
produzidos pelos artifícios da linguagem utilizados na construção do texto (material tomado
para análise) e pelas suas relações com a exterioridade que o “emoldura”, ou seja, o contexto
em que está inserido e que é também tomado como produtor de sentido. Além do que,

[...] para a análise de discursos, todo texto é hibrido ou heterogêneo


quanto à sua enunciação, no sentido de que ele é sempre um tecido
de “vozes” ou citações, cuja autoria fica marcada ou não, vindas de
outros textos preexistentes, contemporâneos ou do passado (PINTO,
2002, p.31).

Linguagem em funcionamento é a linguagem praticada, em circulação, veiculada por


instituições como a mídia, a educação, a ciência, a religião, a arte ou por práticas conversacionais
diversas espalhadas pelo cotidiano.

O fundamental neste entendimento da linguagem é que:

[...] não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no


funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos
afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de
constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente
transmissão de informação (ORLANDI, 1999, p.21).

Assim, o discurso é entendido como construído coletivamente. Destarte, a nossa Análise


do Discurso levou em conta não o discurso de um sujeito isolado, imutável, mas sim um tipo de
discurso que tem suas significações de ordem coletiva, “[...] o signo, que é social por natureza
[...]”, lembrando Saussure (2000, p.25) em seu Curso de Linguística Geral. Isto não significa, a

191
priori, dar uma supraimportância ao processo sócio-histórico em si, embora haja uma
consideração especial pelo que é descrito por Maingueneau (1997) como os conflitos históricos,
sociais, entre outros, que se cristalizam nos discursos.

Além disso, “[...] somente a língua torna possível a sociedade.” (BENVENISTE, 1989,
p.63); logo, os sentidos propagados pela e na linguagem são concebidos e construídos
socialmente. Contudo, há dúvidas quanto às significações pré-concebidas e naturalmente
aceitas. O filme “O enigma de Kasper Hauser” (1974), de Werner Herzog, e o livro de Blikstein
que analisa esta obra nos levam a várias indagações quanto à representação do que é real pela
linguagem. Blikstein escreve:

Conhecer o mundo pela linguagem, por signos lingüísticos, parece não


bastar para dissolver o permanente mistério e a perplexidade do olhar
de Kasper Hauser. Talvez porque a significação do mundo deve
irromper antes mesmo da codificação lingüística com o que
recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria
percepção/cognição da realidade (BLIKSTEIN, 1994, p.17).

O discurso é uma forma articulada e estruturada da linguagem, pelo qual há a


constituição dos sujeitos e a produção dos sentidos (ORLANDI, 1999). Contudo, na sua
construção social, o discurso é impregnado pelas ideologias. Assim, um de nossos pressupostos
foi o de que há discursos articulados a grandes enunciados ou máximas sociais amplamente
reconhecidos, compartilhados e instalados no corpo social. Tal instalação e enraizamento se dão
pela repetição, muitas vezes exaustiva, transfigurados em diferentes textos e por matrizes
psicológicas que, desde um solo cognitivo ou emocional-afetivo, constituem um território
subjetivo e reforçam seu sentido de veracidade.

Outro pressuposto foi o de que a linguagem é, enquanto produção social, parte das
relações de poder e se presta como instrumento de dominação, controlada pelas forças
hegemônicas. Foucault (1987) destaca com bastante veemência o efeito homogeneizador que
os agenciamentos de enunciação, articulados com poderes constituídos, produzem ao alinhar,
por classificação ou domesticação, discursos dispersos e heterogêneos. Barthes (1988, p.13), de
maneira bastante radical, denunciou o efeito dominador da linguagem ao afirmar
categoricamente que “toda a linguagem é fascista”, não exatamente por interditar, mas por
“obrigar a dizer” dentro do convencionalismo e de uma dada gramática da língua. Mas ele
próprio, no mesmo texto, também reconhece que não há como viver fora da língua e que a
alternativa possível para o sujeito é trapacear com ela, tal como faz a literatura e a poesia.

Discurso do humor

192
Em nosso trabalho de mestrado, o discurso do humor politicamente incorreto e do
escracho produzido e difundido pelo desenho animado estadunidense South Park foi
compreendido como possibilidade de “trapacear com a língua” e como forma ou tipo de
discurso que possibilita uma produção de sentido contra hegemônica ou diferenciada dos
discursos dominantes. O humor foi tomado por nós como um discurso à deriva, caracterizado
pela busca de inversão e a deformação do que é sério e/ou é instituído.

Por fim, a premissa que consideramos mais relevante à nossa pesquisa realizada é a de
que o discurso do humor politicamente incorreto pode ser considerado como constituinte da
subjetividade atual, ao adentrar na seara daquilo que não se poderia dizer abertamente.
Julgamos, ainda, que ele é um possibilitador de reflexão não apenas dos discursos sérios e
oficiais, mas também dos contra discursos, pois escrachando ambos, ao seu modo mordaz,
convida o leitor, telespectador ou ouvinte a encará-los (os discursos hegemônicos e os discursos
contra hegemônicos) como sendo falíveis e questionáveis, em vez de acreditar que tais discursos
sejam detentores de verdades absolutas, rígidas e providas de completa certeza.

Cruzamentos teórico-metodológicos

O pesquisador que se guiar pelo referencial da Análise do Discurso é responsável pela


formulação do problema que desencadeará sua análise já quando escolhe o “tipo” de discurso
(o corpus) que estudará (ORLANDI, 1999). Para a Análise do Discurso, o objeto teórico é o
discurso e o objeto a ser analisado é o texto, sendo que este não necessariamente estará
disposto na forma escrita, podendo ser “[...] uma palavra, um sintagma, um conjunto de frases
(escrito ou oral), o que importa é que funciona como unidade de significação em relação à
situação.” (ORLANDI, 2001, p.22). A delimitação do corpus, ao contrário de outros referenciais
que se guiam por pressupostos empíricos e positivistas, segue critérios teóricos da Análise do
Discurso.

Assim, a construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas;


decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca das propriedades
discursivas. Atualmente, considera-se que a melhor maneira de
atender à constituição do corpus é construir montagens discursivas
que obedeçam a critérios que decorrem de princípios teóricos da
análise de discurso, face aos objetivos de análise, e que permitam
chegar a sua compreensão. Esses objetivos, em consonância com o
método e os procedimentos, não visa à demonstração, mas a mostrar
como um discurso funciona produzindo (efeitos de) sentidos
(ORLANDI, 1999, p.63, grifo nosso).

Uma característica singular da Análise do Discurso é a de que “[...] cada material exige
que seu analista, de acordo com a questão que formula, mobilize conceitos que outro analista

193
não mobilizaria [...]” (ORLANDI, 1999, p.27). Em outros termos, embora o dispositivo teórico e
os conceitos à disposição do pesquisador sejam os mesmos, o dispositivo analítico será
particular para cada investigação, pois aquele dispositivo analítico estará moldado partindo da
“[...] questão posta pelo analista, a natureza do material que analisa e a finalidade da análise.”
(ORLANDI, 1999, p.27).

Como explicitamos anteriormente, nosso material de pesquisa foi o discurso do humor


politicamente incorreto propagado por um desenho animado e a nossa análise visou
compreender que, quando o texto de South Park (episódios compostos por narrativas, diálogos
e imagens) inverte os discursos hegemônicos pela via do humor, a inversão proposta
possibilitaria reflexões acerca dos discursos hegemônicos. Destacamos também o fato de que
tanto os discursos contra hegemônicos, quanto os discursos hegemônicos são falíveis, não
sendo estritamente corretos e/ou verdadeiros.

Além disso, a análise é guiada tanto pelos princípios teórico-metodológicos da Análise


do Discurso como pelos princípios do campo de conhecimento ao qual o pesquisador está
vinculado. Isto significa que a Análise do Discurso não é um referencial de uso exclusivo do
campo da Linguística, podendo também ser utilizado em outras áreas das ciências humanas,
como a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia.

Os resultados encontrados serão fruto do trabalho de análise e leitura do corpus (texto),


estando assim “[...] disponíveis para que o analista os interprete de acordo com os diferentes
instrumentais teóricos dos campos disciplinares nos quais se inscreve e de que partiu.”
(ORLANDI, 1999, p.28). Em nosso caso, os referenciais teórico-metodológicos estiveram
vinculados, sobretudo, à Psicologia Social, uma vez que mobilizamos concepções acerca da
linguagem como produtora do social, da cultura e de subjetividade.

Considerações finais

Imaginamos que, a partir destas explanações, é possível depreender, logo de saída, que
o referencial teórico adotado em nossa pesquisa favorece, e muito, o fazer transdisciplinar, já
que convida o pesquisador a entrelaçar os conceitos formulados por ele (referencial teórico da
Análise do Discurso) aos conceitos da área ou disciplina a que o estudioso pertence. Além disso,
se faz presente, até mesmo, a possibilidade do uso de ideias, instrumentos e referenciais
metodológicos de quaisquer outras disciplinas que contribuam para a análise e para a
construção do trabalho de pesquisa.

Referências

BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método


sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 6. ed.
São Paulo: Hucitec, 1992.
BARTHES, R. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1988.
194
BENVENISTE, É. Problemas de lingüística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al.
Campinas, SP: Pontes, 1989.
BLIKSTEIN, I. Kaspar Hauser ou A fabricação da realidade. 4.ed. São Paulo: Cutrix, 1995.
BRANDÃO, H. N. Introdução à Análise do Discurso. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1995.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1987.
GRUDA, M. P. P. O discurso do humor politicamente incorreto e do escracho em South Park. 2011.
127 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade
Estadual Paulista, Assis, 2011.
HARVEY, D. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1992.
HASSAN, I. The culture of postmodernism. Theory, Culture and Society, n.3, v.2, Londres, p.119-
132, 1985.
MICHAELIS. Minidicionário escolar da língua portuguesa. São Paulo: Companhia
Melhoramentos, 2000.
NICOLESCU, B. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Tradução de Lucia Pereira de Souza. São
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ORLANDI, E. P. Análise de discurso – Princípios & Procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.
ORLANDI, E. P. Linguagem e Método: Uma questão da Análise de Discurso. In: ORLANDI, E. P.
Discurso e leitura. São Paulo: Cortez; Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001. p.15-28.
PINTO, M. J. Comunicação & Discurso: Introdução à análise de discursos. São Paulo: Hacker
Editores, 2002.
SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro
Blikstein. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000.
TRAVERSO-YEPEZ, M. Os discursos e a dimensão simbólica: uma forma de abordagem à
Psicologia Social. Estudos de Psicolgia, Natal, n. 1, v. 4, p. 39-59, 1999.

195
Organizadores

Guilherme Elias da Silva


Psicólogo graduado pela Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho - UNESP -
Campus Assis (2008). Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista, Júlio de
Mesquita Filho - UNESP - Campus Assis na área de conhecimento: Subjetividade e Saúde Coletiva
(2010). Doutor em Psicologia pela mesma instituição. Professor do Departamento de Psicologia
e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Estadual de Maringá - UEM.

Francisco Hashimoto
Psicólogo graduado pela Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho - UNESP -
Campus Assis (1977). Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita
Filho - UNESP - Campus Assis (1991). Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano pela Universidade de São Paulo (1997). Livre Docente em Orientação Profissional pela
Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho - UNESP - Campus Assis (2005). Professor
Adjunto da Universidade Estadual Paulista, Júlio de Mesquita Filho - UNESP - Campus Assis.

Autores

Ana Céli Pavão


Possui graduação em Psicologia pelo Centro Universitário Filadélfia de Londrina/ PR (UNIFIL) -
conclusão em 2004. Especialista em Gestão e Práticas de Recursos Humanos pela Pontifícia
Universidade Católica de Londrina/ PR (PUC) - conclusão em 2009. Mestre em Psicologia pela
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Atua como Professora Colaboradora na Universidade
Estadual de Londrina (UEL) e como Docente da Universidade Norte do Paraná (UNOPAR) de
Londrina/ PR.

Ariana Campana Rodrigues


Possui graduação em Psicologia (bacharelado, licenciatura e formação de psicólogo) pela
UNESP/ Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/FCL Assis) (2002),
Aprimoramento em Saúde Mental pela FCM/UNICAMP- Universidade de Campinas (2003) e
mestrado em Psicologia pela UNESP/FCL- Assis. Atua principalmente nos seguintes temas: SUS,
saúde mental e atenção psicossocial, produção de saúde e processos de subjetividade.

Cizina Célia Fernandes Pereira Resstel

196
Graduada em Psicologia (Formação de Psicólogo e Licenciatura) pela UNIMAR- Universidade de
Marília. Mestre em Psicologia pela UNESP/ASSIS (2014), na área de conhecimento: Psicologia e
Sociedade e linha de pesquisa: Subjetividade e Saúde Coletiva. Especialista em Psicoterapias de
Orientação Psicanalítica pela FAMEMA-Faculdade de Medicina de Marília (2007).

Cristina Amélia Luzio


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho-
UNESP (1975), mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (1989), doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas
(2003) e Livre-Docência em Saúde Mental e Saúde Coletiva na UNESP de Assis (2010).
Atualmente é Professor Adjunto aposentada da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho e professora voluntaria junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
faculdade de Ciência e Letras de Assis - UNESP-Assis.

Danielle Cristina Ferrarezi Barboza


Possui graduação em Licenciatura e Formação de Psicólogo pela Universidade do Sagrado
Coração – Bauru-SP (2001). Especialização em “Gestão em Direção e Desenvolvimento de
Pessoas” pelo Centro Universitário Álvares Penteado - FECAP - Integrale - Bauru (2007).
Certificada como Coach, Mentor e Holomentor pelo Instituto Holos e ICF - International Coach
Federation. Professora no curso de Administração das Fundações Gammon em Paraguaçu
Paulista - SP e Professora nos cursos de Administração e Publicidade e Propaganda da Fundação
Educacional do Município de Assis-SP.

Ednéia José Martins Zaniani


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (2000), Especialização
em Psicologia Aplicada à Educação pela Universidade Estadual de Londrina (2004) e Mestrado
em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (2008). Atualmente é aluna do Programa
de Pós-Graduação - Doutora em Psicologia e Sociedade da UNESP-Assis/SP (2015). Professora
do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.

Fatima Itsue Watanabe Simões


Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/FCL-
UNESP (2008 e 2012). Graduada em Psicologia (Bacharelado, Licenciatura e Formação de
Psicólogo) pela mesma Instituição (1993), integra o Grupo de Pesquisa “Figuras e Modos de
Subjetivação no Contemporâneo”-CNPQ. É psicóloga da Prefeitura Municipal de Assis e
professora da Universidade Paulista desde 2009.

José Sterza Justo

197
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(1975), mestrado em Psicologia Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1981), doutorado em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1989) e Livre-Docência em Psicologia do Desenvolvimento pela UNESP-Campus de Assis.
Atualmente é professor Livre-Docente do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP-
Campus de Assis).

Kelly Cristina Pereira Puertas


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (1995), Pós-Graduação
em Psicanálise e Civilização, em nível de Especialização (2000) pela Universidade Estadual de
Maringá. Pós-Graduação em nível de Mestrado (2010) pela mesma Universidade. Atualmente é
doutoranda do programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista
Julio de Mesquita Filho, campus Assis.

Luciana Codognoto da Silva


Graduação em Psicologia (2007) e especialização em Metodologia do Ensino Superior pelo
Centro Universitário da Grande Dourados (2008). Mestre pelo Programa de Mestrado em
História, oferecido pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), na linha de pesquisa
Movimentos Sociais e Instituições (2011). Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, oferecido pela Universidade Estadual Paulista - Júlio de Mesquita - UNESP/Assis, na
linha de pesquisa “Processos Psicossociais e de Subjetivação na Contemporaneidade”.

Mateus Pranzetti Paul Gruda


Possui graduação em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis/UNESP (2008),
mestrado em Psicologia (2011) e é Doutor pelo Programa de Pós Graduação da mesma
Universidade, com período sanduíche no “Centre for Comedy Studies Research” (CCSR) da
Brunel University London/Reino Unido.

Silvio Yasui
Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Mogi das Cruzes (1979), mestrado em
Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1999) e doutorado em
Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (2006). Atualmente é Professor Assistente Doutor
da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

Tânya Marques Cardoso

198
Psicóloga, Mestre em Psicologia e Sociedade, ambas pela Universidade Estadual Paulista - Júlio
de Mesquita Filho, Campus de Assis, SP. Fez Aprimoramento em Planejamento e Administração
de Serviços de Saúde, na área de Saúde Mental e Coletiva, pela Universidade Estadual de
Campinas - Faculdade de Ciências Médicas, Campinas, SP. Tem experiências de trabalho como
psicóloga em diversas modalidades de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e na Assistência
Social.

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