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Literatura Portuguesa I


Salma Ferraz

Período

Florianópolis - 2008
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Ficha Catalográfica
F381l Ferraz, Salma
Literatura Portuguesa I / Salma Ferraz. – Florianópolis : LLV/CCE/
UFSC, 2008.

181p. : 28cm
ISBN 978-85-61482-09-1

1. Literatura portuguesa. 2. Trovas. 3. Novela de cavalaria. I. Título.

CDU: 869.0

Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca da UFSC


Sumário
Apresentação....................................................................................... 7

Unidade A............................................................................................. 9
1  Trovadorismo. ...............................................................................................11
1.1 Trovadorismo.......................................................................................................11
1.2 Cantigas de Amigo............................................................................................12
1.3 Cantigas de Amor..............................................................................................16
1.4 Cantigas de Escárnio.........................................................................................19
1.5 Cantigas de Maldizer........................................................................................21
1.6 Amor cortesão....................................................................................................23

Unidade B............................................................................................27
2  Amadis de Gaula – uma novela de cavaleria
portuguesa com certeza?...........................................................................29
2.1 Idade das Trevas?...............................................................................................29
2.2 As Novelas de Cavalaria...................................................................................36
2.3 Amadis de Gaula................................................................................................40
2.4 Dom Quixote de la Mancha...........................................................................50

3  O Teatro de Gil Vicente................................................................................55


3.1 A Farsa de Inês Pereira ....................................................................................60

4  A Lírica de Camões.......................................................................................69
4.1 O Classicismo.......................................................................................................70
4.2 Biografia de Camões.........................................................................................75
4.3 Os Sonetos...........................................................................................................77
4.4 Camões: um poeta concretista?...................................................................89

5  Os Lusíadas. ....................................................................................................95
5.1 Contexto Histórico............................................................................................95
5.2 Epopéia..................................................................................................................95
5.3 Os Lusíadas: estrutura......................................................................................96
5.4 Temas.....................................................................................................................99
5.5 Os Narradores e os seus Discursos............................................................102
5.6 Os Lusíadas: o poema épico.........................................................................103

Unidade C......................................................................................... 145


6  Os Sermões do Padre Vieira. .................................................................. 147
6.1 Biografia..............................................................................................................147
6.2 Os Sermões e a Literatura.............................................................................151
6.3 O Movimento Barroco....................................................................................154
6.4 Cultismo e Conceptismo...............................................................................157

Unidade D........................................................................................ 159


7  Os Sonetos de Bocage............................................................................ 161
7.1 Biografia..............................................................................................................161
7.2 Bocage, o Lírico.................................................................................................165
 7.3 Bocage: poesia satírica e erótica...............................................................170
7.4 Erotismo, Sadismo e Masoquismona Literatura...................................172

Considerações Finais.................................................................... 175

Bibliografia Geral........................................................................... 177

Sites Consultados.......................................................................... 181


Apresentação

A
disciplina de Literatura Portuguesa I tem como objetivos princi-
pais identificar as principais manifestações literárias do período de
formação da literatura portuguesa, tanto na lírica como na prosa, e
conhecer os textos mais representativos do período medieval, do renascimen-
to e do barroco português.

Num primeiro momento estudaremos o Trovadorismo português com suas


Cantigas de Amigos, Cantigas de Amor e Cantigas de Escárnio e Maldizer. Em
seguida estudaremos alguns itens sobre a Novela de Cavalaria, dentro da qual
está incluída a primeira manifestação em prosa em Portugal: a novela de cava-
laria intitulada Amadis de Gaula.

Num segundo momento analisaremos alguns aspectos sobre o teatrólogo Gil


Vicente e a composição do teatro medieval português, especialmente a peça O
Auto da Barca do Inferno e A Farsa de Inês Pereira.

Na seqüência, analisaremos a importância de Camões, com sua obra lírica e


sua obra épica Os Lusíadas, na composição da cultura portuguesa e no amadu-
recimento do português clássico.

Após essas unidades, estudaremos alguns Sermões do Padre Vieira e, para fi-
nalizarmos esta disciplina, analisaremos a poesia do poeta português Bocage.

Optamos por um enfoque historiográfico para que os alunos possam ter uma
melhor compreensão do período formativo da Literatura Portuguesa. Cremos
ser interessante que o aluno conheça esse momento importante da literatura e
cultura portuguesas para entender a importância destas na cultura brasileira.

Os alunos do EAD Letras-Português terão a oportunidade de estudar e co-


nhecer esses autores e textos representativos da cultura portuguesa porque
esse conhecimento é importante para a formação intelectual do professor de
Língua Portuguesa. O ensino desta disciplina terá três etapas: a leitura deste
livro-texto, as atividades que estão no AVEA e as atividades que você deverá
entregar no decorrer do semestre, as quais constam no final de cada Capítulo.
Sugerimos a você que procure adquirir e montar sua própria biblioteca virtual,
adquirindo livros fundamentais para esta disciplina como Os Lusíadas e os
Sonetos de Camões, O teatro ou Os Autos de Gil Vicente e os Sermões do Padre
Vieira. Esses livros podem ser encontrados por um bom preço nas livrarias,
ou então você poderá adquiri-los num sebo virtual por um preço mais que
em conta. Recomendamos a você o sebo virtual disponível em <http://www.
estantevirtual.com.br>, bem como a biblioteca digital do Núcleo de Pesquisa
em Informática, Literatura e Lingüística (NUPILL), da Universidade Federal
de Santa Catarina, disponível no site <http://www.nupill.org> e que apresenta
para acesso gratuito várias obras da literatura brasileira, como textos de Ma-
chado de Assis, Padre Antônio Vieira e Camões.

Contamos e apostamos em você, querido(a) aluno(a), para que leia o livro-


texto, consulte o AVEA, compre os livros mais importantes e faça as atividades
propostas no final de cada Capítulo.

Temos certeza que você fará da melhor forma possível! Mãos à obra...

Salma Ferraz
Unidade A
Séc. XII
Trovadorismo Capítulo 01
1 Trovadorismo
No mundo nom me sei parelha,
mentre me for’ como me vai,
ca ja moiro por vos–e ai
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mao dia que me levantei,
que vos enton nom vi fea!
Paio Soares de Taveirós

1.1 Trovadorismo
A Língua Portuguesa é uma língua muito rica e é falada em países
como Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné–Bissau, Moçambique,
São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Na Idade Média ela contabilizava
apenas 15.000 palavras. No século XVI, período marcado pelas grandes
navegações, esse número dobrou. No fim do século XIX, os dicionários
já registravam 90.000 vocábulos. Hoje, a Academia Brasileira de Letras
calcula em 400.000 o total de palavras da Língua Portuguesa. A origem
dos vocábulos incorporados ao português ao longo dos séculos variou
conforme o tipo de contato mantido com outros povos. Entre os séculos
VIII e XV, o idioma absorveu muitos termos de origem árabe por causa da
ocupação moura na Península Ibérica. Durante o Renascimento, a arte e
a arquitetura italiana universalizaram várias palavras relacionadas a elas.
No século XX, a França ditava a moda no Ocidente, e várias palavras de
origem francesa foram incorporadas ao português. Nos interessa neste
Capítulo a formação da Língua Portuguesa durante a Idade Média.

As primeiras manifestações encontradas em Portugal são em verso


(séc. XII). Há três principais coletâneas: 1) Cancioneiro da Ajuda (310
canções, cujos manuscritos datam da época trovadoresca); 2) Cancio-
neiro da Vaticana (1.205 canções); 3) Cancioneiro da Biblioteca Nacio-
nal (1.647 canções).

O Trovadorismo foi a primeira escola literária portuguesa, surgiu e


desenvolveu–se entre 1198 a 1418. Paio Soares de Taveirós foi o autor da

11
Unidade A – Séc. XII

Canção da Ribeirinha, também conhecida como Cantiga da Guarvaia


(1198), uma das cantigas mais antigas que se conhece em nossa língua.
Os poemas eram cantados por poetas e músicos com instrumentos de
corda e sopro. Podemos classificá–los nas seguintes categorias:

TROVADOR: poeta, em geral era uma pessoa culta que compunha a


letra e a música de canções sem preocupações financeiras;

MENESTREL: músicos–poetas sedentários que viviam na casa de


um fidalgo, enquanto o jogral andava de terra em terra;

JOGRAL: cantores e tangedores ambulantes;

SEGREL: trovadores profissionais que iam de castelo em castelo,


acompanhados por um jogral.

Eram esses músicos que compunham e divulgavam as cantigas que


veremos em seguida.

1.2 Cantigas de Amigo


Com relação à poesia lírica, lembre–se que ela exprime as vivên-
cias íntimas da primeira pessoa do discurso. São vivências, sobretudo,
afetivas e amorosas. O eu do poeta (eu lírico) pode aparecer explicitado
ou subentendido. De origem galego–portuguesa, as Cantigas de Ami-
go exprimem o sentimento feminino, embora escritas por homens. O
poeta assume o que denominamos de eu lírico feminino, e então, por
meio desse estratagema, a mulher faz confidências de seu amor.

A mulher sofre pelo amigo ausente (esse termo é aqui usado no


sentido de amante): é um ser mais real e concreto. Apresenta estrutura
muito simples, chamada paralelística: repetições de versos semelhantes,
com alterações nas palavras finais.

As cantigas de amigo ambientam–se em lugares mais simples e co-


tidianos, como bosques, meio rural, meio campesino ou perto do mar.
A seguir citamos um site que nos auxilia nesta explicação:

12
Trovadorismo Capítulo 01
Na lírica medieval galego–portuguesa uma Cantiga de Amigo é uma
composição breve e singela cantada por uma melhor enamorada. De-
ve–se o seu nome ao fato de que na maior parte delas aparece a termo
amigo no primeiro verso da cantiga.

As cantigas de amigo procedem de uma reelaboração culta da lírica popu-


lar anterior. São, portanto, de origem autóctone, a partir do contato da lírica
pré–trovadoresca popular, já reelaborada nas cortes, com a lírica cortesã
occitana. A primeira contribuiu com o feminismo, trazendo a estrutura do
paralelismo e do refrão; a segunda, com o formalismo e o esteticismo.

Ainda que todos os poetas medievais fossem homens, utilizavam às ve-


zes o ponto de vista feminino e, como tema, o erotismo feminino, quase
sempre isento de amor físico. Mostram variantes dos conflitos resultan-
tes da ausência do amigo. Caracterizam–se formalmente pela repetição
(paralelismo, leixa–pren e refrão, termos explicados mais a seguir).

Manuscrito das cantigas de amigo de Martin Codax

O tema fundamental das cantigas de amigo é o sofrimento por amor (às


vezes, até mesmo a morte por amor), motivado normalmente pela au-
sência do amigo. Outras vezes apresentam–se formas em que se enga-
na a mãe vigilante, ou se mostra alegria no regresso do amigo e, outras
vezes, ciúmes ou ansiedade. A voz poética é a de uma rapariga jovem
que relata as suas vivências amorosas, ora em um monólogo, ora em um

13
Unidade A – Séc. XII

diálogo com suas amigas, irmãs ou inclusive com a mãe, as quais rara-
mente tomam a palavra. Os estados de ânimo são diversos e incluem a
alegria pela chegada do amigo, a tristeza pela sua ausência ou a ansie-
dade pelo seu regresso, o desejo de vingança, ciúmes etc. Os ambientes
nos quais decorrem são o campo, o mar, o rio, a fonte ou a casa.

As personagens que intervêm são:

1) a amiga, que é com freqüência a voz poética. Por vezes é ingênua e,


em outras, é narcisista, ou ainda comporta–se de maneira esquiva ou
é vingativa;

2) a mãe, que representa geralmente o código social proibitivo;

3) as confidentes: a mãe, uma amiga, a irmã, outras noivas, a natureza


(as flores, as ondas do mar) etc;

4) o amigo (namorado), freqüentemente ausente.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cantiga_de_Amigo
consultado em 10/06/2008

Vamos ler agora um exemplo de uma cantiga de amigo da autoria


do rei D. Dinis:

“Ai flores, ai flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo!
ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado!
ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,


aquel que mentiu do que pôs comigo!
ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,


aquel que mentiu do que mi há jurado!
ai Deus, e u é?”

Observe que o poeta assume a voz feminina num lamento de des-


consolo e tristeza. Você pode constatar que se trata de um português

14
Trovadorismo Capítulo 01
arcaico, também denominado de galego–português. A estrutura para-
lelística pode ser observada nas frases em negrito e itálico retomadas ao
longo da cantiga, sempre no verso seguinte de cada estrofe, com peque-
na alteração no final: verde pino/verde ramo–meu amigo/meu amado.

Os dois primeiros versos da primeira e terceira estrofe são retoma-


dos respectivamente na segunda e quarta estrofes, com pequenas modi-
ficações. Há um verso que finaliza cada estrofe e que não é modificado,
sua estrutura mantém–se a mesma: ai Deus, e u é? Isso é o que chama-
mos de refrão e que você conhece muito bem nas músicas da atualida-
de. Certas músicas tornam–se famosas pelo seu refrão interessante e
fácil de ser decorado.

Para as Cantigas de Amigo temos várias classificações, de acordo


com o lugar onde elas se desenvolvem:

1) Barcarolas ou marinhas: ocorrem na presença do mar, que adquire


certa personalização ao se dirigir à amiga como seu confidente;

2) Cantigas da peregrinação: a amiga está em um santuário, ermita ou


capela, lugar de reunião que serve de pretexto para o encontro dos apai-
xonados. Esse contexto é exclusivo da literatura galego–portuguesa;

3) Dançadas: composições alegres e festivas nas quais se realiza um con-


vite à dança;

4) Alvas ou alvoradas: faz–se referência ao amanhecer; nas “alvas” pro-


vençais os amantes separavam–se após terem pernoitado juntos.

As cantigas de amigo têm uma estrutura muito formalizada e rígida, ba-


seada na repetição. Os elementos característicos são:

1) Paralelismo: repetição da mesma idéia em duas estrofes sucessivas,


nas quais só mudam as palavras finais de cada verso ou a ordem
delas, com o que varia a rima;

2) Leixa–pren: repetição dos segundos versos de um par de estrofes


como primeiros versos do par seguinte, o que acentua o paralelismo
entre as estrofes que o possuem;

3) Refrão: verso ou versos repetidos ao final de cada estrofe.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cantiga_de_Amigo
consultado em 10/06/2008

15
Unidade A – Séc. XII

Os trovadores mais notáveis que compuseram cantigas foram: Pe-


dro da Ponte, Joan Garcia de Guilhade, Martin Codax, D. Afonso X–Rei
de Castela e de Leão, D. Dinis–Rei de Portugal.

1.3 Cantigas de Amor


De origem provençal, as cantigas de amor exprimem o sentimento
masculino e ambientam–se em palácios. Louvam–se as virtudes da dama
por meio do termo mia senhor, que significa minha senhora, minha dama
ou minha dona, ou trata da coita d’amor, expressão que pode ser traduzi-
da como sofrimento por amor. Eis aqui a origem do termo coitado.
No chamado amor cortês, o homem presta vassalagem amorosa
sem citar nomes. O amor é uma forma de aprimoramento espiritual. A
mulher é idealizada, perfeita, sem nenhum defeito, paira acima de tudo
e de todos. Desenvolve–se geralmente em ambiente de cidades, em pa-
lácios, festas, torneios.
A seguir você lerá a Cantiga da Ribeirinha, também conhecida
como Cantiga da Guarvaia, escrita aproximadamente em 1198, em um
português arcaico, pois a língua portuguesa ainda estava em formação.

Cantiga da Ribeirinha
Paio Soares de Taveirós

No mundo non me sei parelha


mentre me for como me vai,
ca já moiro por vós–e ai!
Mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia!
Mau dia me levantei,
que vos entom non vi fea!

E, mia senhor, des aquel di’, ai!


Me foi a mi muin mal,
e vós, filha de don Paai
Moniz, e bem vos semelha
d’haver eu por vós guarvaia,

16
Trovadorismo Capítulo 01
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós houve nem ei
Corre d’ûa Correa.

Agora você lerá uma tradução, ou melhor, uma transcriação para o


português moderno que você conhece, feita pelo professor Stélio Furlan
e utilizada em uma de suas aulas na UFSC:

Cantiga da Ribeirinha
Stélio Furlan

No mundo ninguém se assemelha a mim


enquanto a minha continuar como vai,
porque morro por vós, e ai!
minha senhora de pele alva e faces rosadas,
quereis que vos retrate (que me afaste)
quando vos vi sem manto! (na intimidade)
Maldito dia! me levantei
que não vos vi feia!

E, minha senhora, desde aquele dia, ai!


Tudo me foi muito mal,
e vós, filha de don Pai
Moniz, e bem vos parece
de ter eu por vós guarvaia,
pois eu, minha senhora, como mimo
de vós nunca recebi
algo, mesmo sem valor.

Em 2001, o poeta e professor da nossa universidade, Stélio Furlan,


tomou a liberdade de incluir ao final dessa cantiga uma estrofe que não
havia na versão original da Cantiga da Ribeirinha de Paio de Taveirós:

E só teu odor, oh dor! me anima.


Somente teu ser me resume
Suspenso entre o riso e o siso,
sois toda o que não preciso.
Minha esperança não se adere

17
Unidade A – Séc. XII

à tua espera, minha Senhora.


Resta a lembrança do teu hálito,
tua cor: senhas para o sonho.

Em seguida temos outro exemplo de cantiga de amor também es-


crita no português arcaico, com um pequeno vocabulário numerado,
1) porque; 2) desde então;
para facilitar sua compreensão:
3) vós sois; 4) trovo pelo; 5)
vede a hora; 6) bom senso;
7) se cumpra; 8) nada; 9) Tam grave dia que vos conhoci,
isso; 10) porém; 11) ele.
por quanto mal me vem por vós, senhor!
ca (1) me ven coita, nunca vi mayor,
sen outro ben, por vós, senhor, des i (2)
por este mal que mh’a mim por vós ven,
come se fosse bem, ven–me por em
gran mal a quem nunca o mereci.

Ca, mha senhor, porque vos eu servi,


sempre digo que sode’la (3) milhor
do mund’e trobo polo (4) vosso amor,
que me fazedes gram ben e assy
veed’ora (5) mha senhor do bon sen, (6)
este bem tal se compre (7) en mi rrem (8),
senon, se valedes vós mays per y (9).
Mais eu, senhor, en mal dia naci.
del que non tem, nem é conhecedor
do vosso bem, a que non fez valor
Deus de lho dar, que lhy fezo bem y,
per, (10) senhor, assy me venha bem,
deste gram bem, que el (11) por ben non tem,
muy pouco del seria grand’a mi.

Poys, mha senhor, razon é, quand’alguen


serv’e non pede, já que rem lhi den;
eu servi sempr’e nunca vos pedi.”

(D. Afonso Sanches)

  Nessa cantiga, temos um típico exemplo do amor cortês, com o


trovador confessando o seu amor pela mulher amada, assumindo que

18
Trovadorismo Capítulo 01
ela é superior a ele, afirmando que nada quer, a não ser viver o seu pró-
prio sentimento, sem interesse. No entanto, fica sentido por que ela não
corresponde aos seus amores.

1.4 Cantigas de Escárnio


No gênero satírico o objetivo é criticar alguém, ridicularizando essa
pessoa de forma sutil ou grosseira; a esse gênero pertencem as Cantigas
de Escárnio e as Cantigas de Maldizer. As Cantigas de Escárnio são in-
diretas e há o uso e abuso do equívoco e da ironia, enquanto as Cantigas
de Maldizer são diretas, sem equívocos, com intenção difamatória, com
o uso de palavrões e xingamentos. A diferença entre esses dois tipos de
cantiga é, portanto, apenas relativa, já que freqüentemente encontramos
ambigüidade na classificação das mesmas. O próprio significado das pa-
lavras escárnio e maldizer pode deixar mais clara essa diferença entre
os dois tipos de sátira. Podemos pensar em cantigas de escárnio como
zombaria, menosprezo, desprezo, desdém, e em cantigas de maldizer
como uma espécie de praga proferida contra alguém específico para
provocar maledicência e difamação.

As cantigas satíricas apresentam interesse sobretudo histórico.


São verdadeiros documentos da vida social, principalmente da cor-
te. Fazem ecoar as reações públicas a certos fatos políticos: revelam
detalhes da vida íntima da aristocracia, dos trovadores e dos jograis,
trazendo até nós os mexericos e os vícios ocultos da fidalguia medieval
portuguesa.

Essas composições satíricas (Escárnio e Maldizer) circulavam por


lugares públicos como feiras, colheitas, tabernas, periferias urbanas, ca-
racterizando uma literatura marginal e, por isso mesmo, de importância
histórica bastante razoável, a exemplo das Cantigas de Amigo, pelo re-
gistro social ali contido.

As Cantigas de Escárnio são sátiras indiretas com uso de expres-


sões irônicas: não se revela o nome da pessoa satirizada e não há uso
exagerado de palavrões. A seguir, da autoria de João Garcia de Ghilha-
de, um exemplo de cantiga em que a pessoa satirizada não é nomeada:

19
Unidade A – Séc. XII

Cantiga de escárnio
João Garcia de Ghilhade

Ai, dona fea, fostes–vos queixar


que vos nunca louv[o] em meu trobar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi perdon!


pois avedes [a]tam gram coraçon
que vos eu loe, em esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei


em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já um bon cantar farei,
em que vos loarei toda via;
e direi–vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!

Observe que esse português, em formação, lembra um pouco do


espanhol e do francês. Em uma tradução, ou melhor, transcriação para
o português moderno, teríamos o seguinte:

Transcriação

Ai, dona feia, foste–vos queixar


que nunca vos louvo em meu cantar;
mas agora quero fazer um cantar
em que vos louvares de qualquer modo;
e vede como quero vos louvar
dona feia, velha e louca!

20
Trovadorismo Capítulo 01
Dona feia, que Deus me perdoe,
pois tendes tão grande desejo
de que eu vos louve, por este motivo
quero vos louvar já de qualquer modo;
e vede qual será a louvação:
dona feia, velha e louca!

Dona feia, eu nunca vos louvei


em meu trovar, embora tenha trovado muito;
mas agora já farei um bom cantar;
em que vos louvarei de qualquer modo;
e vos direi como vos louvarei:
dona feia, velha e louca!

Ou como já dizia o poeta Vinícius de Moraes, as feias que me des-


culpem, mas beleza é fundamental…

1.5 Cantigas de Maldizer


Trata–se de sátiras diretas, com a citação explícita dos nomes das
pessoas envolvidas. A temática central é o adultério, o amor interesseiro
ou ilícito. São composições que expressam melhor a psicologia do tempo,
na qual observamos a presença de assuntos que despertam grandes co-
mentários na época, nas relações sociais dos trovadores. São sátiras que
atingem a vida social e política da época, sempre em um tom de irreverên-
cia e grande riqueza, uma vez que se apresentam em considerável vocabu-
lário, observando–se muitas vezes o uso de trocadilhos; fogem às normas
rígidas das cantigas de amor e oferecem novos recursos poéticos.

Enquanto as cantigas de escárnio utilizam a ironia e o equívoco


1) em troca de; 2) como se
para realizar mais indiretamente essas zombarias, as cantigas de maldi- diz; 3) suficiente; 4) sairei;
zer são sátiras diretas. Eis o porquê de sua maior virulência, o emprego 5) antes me algo; 6) pois;
7) hei, há; 8) de graça; 9)
mais freqüente de palavrões (em geral os mesmos utilizados até hoje) e
tiverdes; 10) vestido; 11)
a abordagem mais desabusada dos vícios sexuais atribuídos aos satiri- novamente; 12) na; 13)
vossa casa; 14) tendes; 15)
zados. Observe, a seguir, uma cantiga de maldizer típica, de autoria de
nenhum; 16) graças;
Afonso Eanes do Coton, seguida de um pequeno dicionário das palavras 17) salvo.
desconhecidas, que facilitará o entendimento da cantiga de escárnio:

21
Unidade A – Séc. XII

Ben me cuidei eu, Maria Garcia,


en outro dia, quando vos fodi,
que me non partiss’eu de vós assi
como me parti já, mão vazia,
vel (1) por serviço muito que vos fiz;
que me non deste, como x’omen diz (2),
sequer um soldo que ceass’ (3) um dia.

Mais desta seerei (4) eu escarmentado


de nunca foder já outra tal molher,
se m’ant’algo (5) na mão non poser,
ca (6)  non ei  (7)  porque foda endoado (8);
sabedes como: ide–o fazer
con quen teverdes (9) vistid’e (10) calçado.

Ca me non vistides nem me calçades


nem ar (11) sel’eu eno (12) vosso casal (13),
nen avedes (14) sobre min non pagades;
ante mui ben e mais vos en direi:
nulho (15) medo, grad’a (16) Deus, e a el–Rei,
non ei de força que me vós façades.

E, mia dona, quen pregunta non erra;


e vós, por Deus, mandade preguntar
polos naturaes deste logar
se foderan nunca en paz nen en guerra,
ergo (17) se foi por alg’ou por amor.
Id’adubar vossa prol, ai, senhor,
c’avedes, grad’a Deus, renda na terra.

Observe que essa cantiga traz o nome da pessoa satirizada, Ma-


ria Garcia, e o uso do palavrão é constante. Se vivêssemos na época de
Afonso Eanes, certamente ele seria uma pessoa que jamais gostaríamos
de ter como inimigo…

22
Trovadorismo Capítulo 01
1.6 Amor cortesão
O termo amor cortesão surgiu em 1883 e foi criado por Gaston Paris
Os dois casos aqui citados
em seus escritos sobre Lancelot e Guinevere. O amor cortesão significava podem ser vistos em diver-
uma espécie de fino amor, um amor perfeito, depurado como ouro mais sos vídeos, dos quais cita-
mos Excalibur; As Brumas
fino, digno de nobres e finos amantes. Geralmente tratava–se de um amor de Avalon; Lancelot: o pri-
platônico, impossível de ser realizado, e também adúltero, já que a dama na meiro cavaleiro; e Tristão e
Isolda. Se você preferir, e é
maior parte das vezes era casada. Citamos aqui dois exemplos: no primeiro, o que aconselhamos, pode
Tristão apaixona–se por Isolda, que é casada com o Rei Marcos; no segun- ler diretamente as obras.

do, e talvez o mais famoso triângulo adúltero de todos os tempos: Arthur


amava Guinevere, que amava Lancelot, o primeiro cavaleiro de Arthur.

Cabe esclarecer que o fino amor não está relacionado ao casamento,


já que quase sempre se desenvolve fora deste. O fino amor envolve cor-
tesia e é um grande canto do amor.
Em 1184 André Capelão
escreveu um tratado sobre
A cortesia é um ideal de comportamento aristocrático, uma arte o amor.
de viver que implica polidez, refinamento de costumes, elegância, e o
sentido de honra cavalheiresca. O amor cortesão, no sentido de amor
platônico, aquele que nunca se efetiva no plano real, é um amor virtual-
mente adúltero, porque dificilmente chega a se concretizar: repetimos, a
dama casada e o os poemas são os mensageiros do fino amor.

O amor cortesão é calcado no modelo feudo–vassálico, o cavalheiro


e cavaleiro coloca–se diante da mulher como se estivesse diante de um rei
ou um senhor feudal ao qual ele deve prestar vassalagem amorosa, por
isso é constante o uso de minha senhora, minha dona. Como cavalheiro
e cavaleiro nobre, deve ser homem de um único Senhor e uma única
Senhora, e manter segredo absoluto sobre seus avanços na conquista. Ele
deve encarar as diversas fases e dificuldades da conquista como se fossem
pequenas batalhas de guerra. O amor deve ser conquistado aos poucos,
até que o inimigo (a amada) se renda. O fino amor é a maior guerra que
um homem pode travar, portanto requer paciência: só se conquista ao
fim de um longo percurso. Na realidade trata–se de um jogo perigoso
e excitante, o homem sempre deve ser o conquistador, o galanteador, e
a mulher o objeto de desejo que deve, mesmo amando e desejando o
amante, manter distância e apresentar todas as negativas possíveis. Ela
não pode se render de imediato, sob pena de ser considerada vulgar.

23
Unidade A – Séc. XII

O cavaleiro deve render homenagem, fazer um juramento de amor


e conquistar a mulher progressivamente por meio de um olhar, de um
beijo, declarar seu amor, e muito raramente algo a mais. Na realidade
o algo a mais, o finalmente, excepcionalmente, ocorre. O homem deve
ser leal, cortês, participar de combates e torneios, ser virial e digno de
diversas proezas.

Na ética amorosa não é só a vassalagem amorosa que importa, mas


o amor deve se transformar numa religião, a mulher deve ser cultuada.
O amador deve viver e respirar pela amada, fazer disso o centro de sua
vida, viver em estado de dorveille (torpor), permanecer cativo pela ima-
gem da amada, fascinado por ela, quase que em um estado que beira a
depressão. Lembre–se, porém, que o fino amor é uma erótica do contro-
le do desejo. Esse controle pode ser observado nas várias denominações
dos vários estágios do enamorado/amante virtual. Cada estágio recebe
um nome, como você poderá observar:

1) Ser provado em sua castidade (extraordinário domínio do


desejo)–assag;
2) Suspirar/desejar–fenhador;
3) Suplicar–precador;
4) Se for aceito–entendedor (língua d´oc);
5) Amante carnal–drut;
6) Alegria final–joy–a força do desejo;
7) Tomar cuidado com o losengier–o bajulador invejoso que destrói
os amantes–espião;
8) Muito raramente após a conquista e a devoção, o cavaleiro, o
poeta terá direito à recompensa: guerredon.

Por tudo que você já leu, deve ter percebido que o amor cortesão
é uma arte de amar inacessível aos pobres e comum aos mortais, já que
transforma algo simples e natural em algo extremamente disciplinado,
uma paixão que deve ser controlada, transforma o amor em uma religião
e a mulher em um ser angelical e inacessível. O enamorado deve obe-
decer regras de etiquetas claras, uma delas (e a mais importante) é que
ele deve cultuar a mulher amada secretamente — jamais revelar o nome

24
Trovadorismo Capítulo 01
da dama. Esse amor, logicamente, é proibido aos clérigos e aos plebeus.
O amor cortesão apresenta um paradoxo: mantém certa aproximação
com a moral cristã, no sentido de que transforma a mulher amada em
um ser angelical, inacessível, e o amor é transformado em uma religião.
No entanto, trata–se de um amor adúltero, o que de certa forma anula a
moral cristã nesse aspecto. A chamada erótica cortesã é vista como uma
técnica sutil de não amar, uma maneira de não realizar o amor, uma vez
que o homem tem medo da mulher diante do qual ele teme sua própria
sexualidade. O amor cortês revela uma mulher completamente superior
e inacessível e mostra as relações entre o feminino e o masculino, mas o
homem é na verdade o dono desse jogo. O ideal é uma coisa, o real é ou-
tra. O público a quem se dirigiam poetas e romancistas era constituído
de machos celibatários dos quais a cavalaria estava cheia. Alimentando–
lhes o ardor, a literatura cortesã torna–se instrumento pedagógico.

O amor apresenta–se como o extremo refinamento da cortesia. Esse


fino amor é cantado em canções de amor e em romances de amor. A pro-
dução lírica demonstra bem essa arte poética e hermética, muito compli-
cada e paradoxal de amar. O amor cortesão pode ser visto como sinôni-
mo de galanteria, mezura, autocontrole, domínio. Sua grande lição é que
a vida sem amor não vale nada. O amor cortesão tem origem na poesia
latina de Ovídio (A arte de Amar), na poesia árabe–andalusa e na chama-
da matéria da Bretanha — as narrativas de amor do ciclo arthuriano.

Na realidade, o amor cortesão não apresenta um conceito unâni-


me entre os estudiosos. O amor é uma loucura, uma bela loucura, pois,
cativo de desejo, o poeta morre de amor, mas, como a Fênix, renasce
das cinzas. O tormento causado pelo amor é simultaneamente prazer
e morte. A dama, a mulher amada, tem o poder da vida e da morte do
amado. No sul da França, os trovadores serão chamados de troubadour
e, no norte da França, de trouvère.

Essa ideologia cortesã, o chamado modelo cortesão, permanece


até o final do século XV e depois migra para o gênero romance. No cha-
mado romance romântico teremos a retomada desse modelo cortesão: a
mulher idealizada, o amor platônico, sofrimentos e final infeliz.

As principais causas da decadência do trovadorismo em Portugal


foram as seguintes: 1) Decadência do mecenatismo real: até a metade do

25
Unidade A – Séc. XII

século XIV, os reis portugueses mantinham os jograis, os menestréis e os


soldados. Por volta de 1366, D. Pedro I foi o responsável pela extinção
do lirismo trovadoresco que, aliás, já entrara em decadência na França;
2) Aburguesamento de Portugal: com a Revolução de Avis, no final do
século XIV, Portugal apresentou uma profunda modificação em sua es-
trutura econômico–social, tornando a arte trovadoresca essencialmente
palaciana, incompatível com a nova realidade portuguesa; 3) Conflitos
entre Portugal e Espanha: a partir do reinado de Afonso IV, as tensões nas
relações entre as duas nações ocasionaram uma separação literária e lin-
güística, abandonando o que era feito em comum por esses dois países.

Faça aqui o seu resumo!

26
Unidade B
Séc. XVI
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
2 Amadis de Gaula – uma
novela de cavaleria
portuguesa com certeza?
“Com os cotovelos fincados no macio chão da ribeira, o rosto encostado
nas mãos, gozando o fresco repouso após tão ásperos dias, ia Amadis olhando
a bem–amada, serena dormindo sob a guarda adoradora dos seus olhos.
Oriana, acordando, sorri.
E, então, mais por ela o querer que por ele o ousar, a donzela se fez dona
sobre aquela cama verde.
Bem abraçados se tinham, e de amor o amor crescia–puro amor, amor sem fim”.

2.1 Idade das Trevas?


Quando falamos e pensamos em Idade Média, o que nos vem pri-
meiramente à mente é o estereótipo consagrado: Idade das Trevas, da
escuridão. Pensamos que talvez a única luz a arder teria sido a das fo-
gueiras acesas. Entender a Idade Média, porém, é algo muito complexo,
pois as coisas não foram bem assim. Os pensadores da Idade Média her- Se você puder ler o livro
daram a cultura dos gregos e romanos. Muitas dessas obras da chama- terá uma boa visão da
contradição entre o pensa-
da Antiguidade Clássica ficaram em poder dos padres católicos, que as mento e as obras clássicas
esconderam em mosteiros para preservar os cristãos de obras conside- e o pensamento medieval.
Se não tiver tempo, suge-
radas hereges, é o que chamamos de cultura de mosteiro. Um excelente rimos que assista ao filme,
livro que retrata essa situação é O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Na de mesmo nome.
Idade Média tivemos grandes pensadores como Santo Agostinho–que
fez uma releitura de Platão –, Boécio (480–524), Cassidoro (477–570),
Isidoro de Servilha (560–636), Avicena (980–1037), João Escoto de
Erígena (810–877), Abelardo (1079–1142), Roger Bacon (1214–1294)
e Tomás de Aquino (1225–1274), este último cristianizou o pensamen-
to de Aristóteles. Assim, como podemos observar, a Idade Média não
foi uma época de esterilidade de produção, mentes brilhantes contra-
puseram–se às fogueiras. Bernardo de Chartres, um pensador do século
XIII, afirmou o seguinte: “Somos como anões empoleirados nos ombros
de gigantes, pois podemos ver mais coisas do que eles e mais distantes,
não devido à acuidade da nossa vista ou à altura do nosso corpo, mas

29
Unidade B – Séc. XVI

porque somos mantidos e elevados pela estatura de gigantes.” (INÁCIO;


DE LUCA, 1991, p. 45). Ou seja, os pensadores da Idade Média pode-
riam ser anões, em uma análise bem crítica, se comparados a Aristó-
teles e Platão, grandes filósofos da Antiguidade Clássica. Esses anões,
entretanto, viam melhor que os gigantes, porque analisavam o mundo
empoleirados nos ombros de gigantes.

Quando pensamos sobre essa época, logo vem à mente: persegui-


ção religiosa, pessoas torturadas, cavaleiros, fogueiras acesas, reis pode-
rosos e a igreja controlando a vida das pessoas. Além dessa visão desa-
gradável dos fatos, porém, houve outras coisas muito importantes para a
História e que ocorreram na Idade Média, como por exemplo: o avanço
do cristianismo como força unificadora da Europa; o desenvolvimento
das línguas e da literatura européia; a criação de universidades, o apare-
cimento da arte gótica, entre muitas outras coisas.

Durante o reinado dos merovíngios, não havia tantos locais para


Você pode ler mais sobre instrução escolar, a não ser as escolas episcopais, mantidas pelos bispos
a dinastia merovíngia com o objetivo de garantir a continuação de novos clérigos, e os mostei-
no endereço <http://
www.dec.ufcg.edu.br/ ros, locais onde os monges dedicavam–se, entre outras coisas, a copiar
biografias/MVTextos. manuscritos antigos, guardando assim o saber dos escritores e filósofos
html> e, sobre a dinastia
carolíngia, no endereço gregos e romanos. Com isso a Igreja conseguiu deter e armazenar boa
<http://pt.wikipedia. parte do conhecimento. Dessa forma, o clero transformou–se em elite
org/wiki/Dinastia_
carol%C3%Adngia>. Aces- intelectual e suas escolas passaram a ser fontes exclusivas do saber na
so em março de 2008. Europa Ocidental.

A grande influência da Igreja sobre a cultura e o pensamento das


pessoas teve bases sólidas e materiais. Ao longo dos séculos, a Igreja orga-
nizou–se politicamente e territorialmente, pois tinha muitos feudos, além
de ter prestígio com a classe dominante constituída por reis e nobres. Logo
a cultura medieval passou a espelhar o pensamento da Igreja cristã, cons-
tituindo aquilo que passou a ser conhecido como teocentrismo cultural,
ou seja, o mundo era subordinado às leis de Deus, ao Cristianismo.

A Igreja ainda passou, por meio de suas ordens, a direcionar a pro-


dução cultural, mas as cidades começaram a se desenvolver e tornaram–
se centros de novos valores culturais e, assim, as pessoas foram, aos pou-
cos, se afastando dos dogmas da Igreja.

30
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
Como já mencionamos, quem controlava a educação era o clero
católico e, no séc. IX, fundaram–se escolas junto às catedrais. Logo em
seguida, vieram as universidades, sendo que algumas delas são conhe-
cidas até hoje, como a Universidade de Oxford e a de Cambridge. No
entanto, em todas as faculdades da época a influência da Igreja era forte.
As aulas eram ministradas em latim, e algumas das matérias de estudo
eram: teologia, filosofia, ciências, letras, direito e medicina.

As universidades tinham vários privilégios e deveres, entre eles cita-


mos: ensinar seus graduandos, isenção de impostos, isenção do serviço mi-
litar, além do direito de julgamento especial em foro acadêmico para seus
membros. Essas vantagens eram sempre garantidas ou pelo imperador ou
pelo Papa, os quais na época eram as maiores autoridades existentes.

No geral, a Idade Média revela a preocupação religiosa do homem


de retratar sua época. Na poesia, procurou–se mostrar os valores e as
virtudes do cavaleiro, entre elas a justiça, o amor e a cortesia. Destaca–se
a poesia épica, ou seja, que retrata as ações corajosas dos cavaleiros, e
a poesia lírica, que fala do amor cortês, dos sentimentos dos cavaleiros
em relação às suas amadas damas.

Um destaque da literatura desse período foi Dante Alighieri, autor da


magistral A Divina Comédia, que influenciou todo o pensamento cristão
ocidental pela sua descrição detalhada do Paraíso, Inferno e Purgatório.

A pintura medieval também foi dominada por temas religiosos. A


atenção do pintor não era tanto nas paisagens, mais sim na represen-
tação de Santos e divindades. Também surge nessa época a pintura de
murais, vitrais e miniaturas. Dentre os grandes pintores citamos Giotto
di Bondonne (1266–1337). Destacamos também as pinturas de Hié-
ronymus Bosch (1450–1516), cujos trabalhos estão repletos de cenas
de pecado e tentação.

A música da Idade Média está dividida entre música sacra e músi-


ca popular, e é entre o povo que surgem os trovadores e menestréis, os
quais já foram mencionados anteriormente. Na música sacra o destaque
ficou com o Papa Gregório Magno, que introduziu o Canto Gregoria-
no, caracterizado por uma melodia simples e suave cantada por várias
vozes em um único tom.

31
Unidade B – Séc. XVI

Como já afirmamos, é muito difícil conceituar a Idade Média, pois


ela pode parecer (e é) paradoxal. Se de um lado a influência religiosa fez
com que muitos trabalhos científicos (que apresentassem resultados di-
ferentes dos que a Igreja ensinava) fossem considerados como heresia e,
assim, fossem proibidos, por outro lado a ciência e a filosofia estavam de
certa forma entrelaçadas. As influências árabe e grega foram muito fortes
para o progresso da matemática, astronomia, biologia e medicina durante
esse período. Também houve o aperfeiçoamento na navegação, com a uti-
lização da bússola, dos mapas de navegação e do astrolábio, além de outros
instrumentos.

Na filosofia, destacaram–se Santo Agostinho e São Tomás  de Aqui-


no. A principal preocupação deles era tentar harmonizar a fé cristã com
a razão. Santo Agostinho era de uma corrente filosófica denominada pa-
trística, já São Tomás de Aquino conseguiu fazer uma releitura, dentro da
visão cristã, de boa parte das teorias de Aristóteles.

Santo Agostinho fez a síntese da filosofia clássica com a platônica acres-


centando a fé cristã. Segundo a teologia agostiniana, a natureza humana é
por essência corrompida. A remissão estava na fé em Deus e na salvação
eterna. As principais obras dele foram: Confissões e Cidade de Deus.

Essa visão pessimista em relação à natureza humana foi substituída na


Baixa Idade Média por uma concepção mais otimista e empreendedora do
homem, com a filosofia denominada escolástica, que procurou harmoni-
zar a razão e a fé partindo do fato que o progresso do ser humano dependia
não só da vontade divina, mas do esforço do próprio homem. Essa atitude
refletia a tendência de valorizar os atributos racionais do homem, não de-
vendo existir conflito entre fé e razão, pois ambas auxiliavam o homem na
busca do conhecimento.

Se por um lado a escolástica valorizou a razão e substituiu a idéia agosti-


niana de predestinação pela concepção de livre arbítrio, isto é, a capacidade
de escolha que todo ser humano tem, por outro lado, o clero desempenhou
o papel de orientar moral e espiritualmente a sociedade, condicionando a
liberdade de escolha às vontades da Igreja. Desse modo o clero, ao mesmo
tempo em que buscava assimilar as transformações sociais, tentava preser-
var os valores do mundo feudal decadente, assegurando a supremacia de
sua mais poderosa instituição — a Igreja.

32
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
São Tomás de Aquino (1225–1274) deu aulas na universidade de
Paris e foi o mais influente filósofo escolástico inspirado nas idéias cris-
tãs e no pensamento de Aristóteles, e elaborou a Suma Teológica, obra
em que discorreu sobre os mais diversos assuntos, como religião, eco-
nomia e política. O pensamento de São Tomás constituiu um poderoso
instrumento de ação do clero durante a Baixa Idade Média.

Se você quer saber mais sobre Idade Média poderá consultar obras
do historiador francês Jacques le Goff, especialista em Idade Média,
das quais indicamos: A Civilização do Ocidente Medieval (1964);
Para um Novo Conceito da Idade Média (1977); O Imaginário Me-
dieval (1985); e Em Busca da Idade Média (2003). Dos pesquisadores
brasileiros indicamos a obra O Pensamento Medieval, de Inês C. Iná-
cio e Tânia Regina de Luca, da qual citamos:

Ao lado dessa visão trágica–A idade das trevas, coexiste e frutifica


outro mito tão prejudicial como aquele [aquele no sentido de idade
das trevas, da ignorância, desordem, destruição, fogueiras, Inquisi-
ção], embora de tonalidades mais róseas: é a idealização dos tempos
medievais, povoados de heróis cuja vida se desenrola numa mescla
de aventura e romance; cavaleiros investidos em suas armaduras,
que, montados em seus corcéis, percorrem o mundo batalhando
pela justiça e pela fé, pela honra e pelo amor de sua my lady. (INÁ-
CIO; LUCA, 1991, p. 10, comentário nosso).

Ao lado da visão da Idade Média como uma Idade em que só se enxer-


gavam as fogueiras da Inquisição, prevalece outra idealização igualmente
prejudicial: a visão romanceada de cavaleiros em seus lindos cavalos de-
fendendo a honra de sua amada e reparando as injustiças do mundo.

O historiador Johan Huizinga, em seu livro O Declínio da Idade


Média (1978) esclarece que:

Na Idade Média a escolha reside, em princípio, apenas entre Deus


e mundo, entre o desprezo e a aceitação veemente, com perigo
para alma de cada um, de tudo o que constitui a beleza e o en-
canto da vida terrena. Toda beleza terrestre traz consigo o peca-

33
Unidade B – Séc. XVI

do […] Os exercícios de cavalaria e modas cortesãs com sua


adoração de força corporal; as honras e as dignidades com
suas vaidades e pompas, e especialmente o amor — o que era
isso senão orgulho, inveja, avareza, luxúria, tudo condenado
pela religião? Para serem admitidas como elementos da mais
alta cultura, todas essas coisas teriam de ser enobrecidas e
elevadas à categoria de virtudes. (HUIZINGA, 1978, p. 39)

Dentro desta visão que opunha o bem contra o mal própria do Cris-
tianismo, tudo o que era belo e viril constituía uma ameaça à alma. As
modas da corte, as reuniões nos salões, as disputas entre os cavaleiros
nas justas e nos torneios, o predomínio da força corporal nessas batalhas
com armas verdadeiras (justas) ou simuladas (torneiros), tudo isso aca-
bava por ser mostrar extremamente ameaçador para a salvação da alma.

http://pt.wikipedia.org/ As Cruzadas
wiki/Primeira_Cru
zada, consultado em
30/04/2008 Chama–se Cruzada a qualquer um dos movimentos militares, de caráter
parcialmente cristão, que partiram da Europa Ocidental e cujo objetivo
era conseguir que a Terra Santa (nome pelo qual os cristãos denomi-
navam a Palestina) e a cidade de Jerusalém ficassem sob a soberania
dos cristãos. Esses movimentos estenderam–se entre os séculos XI e XIII,
época em que a Palestina estava sob controle dos turcos muçulmanos.

34
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
Os ricos e poderosos cavaleiros Hospitalários, também conhecidos como
Cavaleiros da Ordem de São João de Jerusalém, e os Cavaleiros Templá-
rios, também conhecidos como Pobres Cavaleiros de Cristo ou Cavaleiros
do Templo de Salomão, foram criados durante as Cruzadas. Esse termo é
também usado, por extensão, para descrever, de forma geral, qualquer
guerra religiosa ou mesmo um movimento político ou moral.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruzada,
acesso em 15/05/2008

Dama e a cerimônia de investidura de um cavaleiro

A Primeira Cruzada (1096–1099) foi também chamada de Cru-


zada dos Nobres, dos Cavaleiros ou dos Barões, pois nenhum rei dela
participou. O Concílio de Clermont, inaugurado pelo Papa Urbano II
em novembro de 1095, incluiu entre suas decisões a de conceder o per-
dão de todos os pecados–isto é, a indulgência plena–aos que fossem ao
Oriente para defender os peregrinos, cujas viagens tornavam–se cada http://pt.wikipedia.org/
vez mais perigosas. Dessa forma, organiza–se a primeira Cruzada e as- wiki/Primeira_Cruzada,
consultado em
sim estava formada a cavalaria cristã. 30/04/2008

35
Unidade B – Séc. XVI

É nessa época que surgem as Novelas de Cavalaria, e muitas delas


foram inspiradas nas lendas celtas do rei Arthur.

2.2 As Novelas de Cavalaria


Os romances ou novelas de cavalaria são de origem medieval, e consti-
tuem uma das manifestações literárias de ficção em prosa mais ricas da
literatura peninsular, ou seja, em Portugal e Espanha. Podemos conside-
rar, sobretudo, as narrativas baseadas naquilo que chamamos de maté-
ria da Bretanha, ou seja, as que estão ligadas às aventuras da corte do
Rei Artur e da Távola Redonda, como verdadeiros códigos de conduta
medieval e cavalheiresca. Costumam agrupar–se em ciclos, isto é, con-
juntos de novelas que giram em volta do mesmo assunto e movimen-
tam as mesmas personagens. De caráter místico e simbólico, relatam
aventuras perpassadas pela espiritualidade cristã e subordinam–se a um
ideal místico, que sublima o amor profano.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Novela_de_cavalaria,
acesso em 15/04/2008

Tais narrativas, de caráter místico, apresentam o cavaleiro conce-


bido pela Igreja: o herói casto, fiel e dedicado, o escolhido para peregri-
nação mística.

Observamos que essa concepção de cavaleiro medieval contrapõe–


se à do cavaleiro freqüentador da corte, que comumente estava envolvi-
do em amores ilícitos, uma vez que havia poucas mulheres e a maioria
era casada com um rei ou com um senhor. A origem do cavaleiro feudal
está ligada à luta pela defesa da Europa Ocidental contra os sarracenos,
eslavos, magiares e dinamarqueses, que ameaçavam destruir a cristan-
dade. Esses cavaleiros não eram os perfeitos gentis–homens, cheios de
doçura e poesia que por vezes aparecem nas novelas de cavalaria; pelo
contrário, eram animalescos na sua fúria guerreira.

Com as Cruzadas era preciso conceber outro tipo de cavaleiro, mais


condizente com a realidade, menos violento e mais espiritual. As nove-
las tratam da nova versão do cavaleiro: casto, cortês, cristão. As narra-
tivas em torno da Demanda do Graal correspondem precisamente à
reação da Igreja Católica contra o desvirtuamento da Cavalaria. Foram
muitas as lendas em torno do Graal. Recentemente, Dan Brown lançou

36
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
um best–seller que foi um dos maiores sucessos de venda, com aproxi-
madamente 60 milhões de exemplares — O Código da Vinci (BROWN,
2004). Nesse livro, o autor faz uma releitura da lenda do Graal: segundo
o enredo, o cálice sagrado não seria um simples cálice com que Jesus be-
beu em sua última ceia, mas sim Madalena, ou melhor, o útero sagrado
de Madalena, que teria gerado um filho de Jesus.

Tanto o Trovadorismo como as Novelas de Cavalaria são dois tipos


de produção que existiram primeiro oralmente, depois foram compila-
dos e migraram para a prosa escrita. O Trovadorismo traz poemas que
relatam a dor do amor, a saudade, enquanto as Novelas de Cavalaria são
biografias de guerreiros lendários que lutam por Deus e por sua Dona.

As Novelas de Cavalaria são divididas em três grandes ciclos. O


primeiro é o Carolíngio, da época de Carlos Magno: relata as lutas en-
tre muçulmanos e saxões, entre a cruz e a espada. São textos desse ciclo
Chanson de Roland e Crônica de Turpin–gesta: poema ou prosa guerreira.
O segundo ciclo é o Clássico, da época de Alexandre Magno e os Doze
Pares de França. Apresenta releituras das tradições históricas da Grécia
e de Roma. Aqui falta um pouco do que em literatura denominamos
verossimilhança, já que aparecem heróis gregos ambientados na Idade
Média. Por fim, o ciclo Bretão, o terceiro ciclo, que nos interessa de ime-
diato porque vai influenciar a composição da novela Amadis de Gaula.

CICLOS ÉPOCA CARACTERÍSTICAS OBRAS


Relata lutas entre muçulmanos
Canção de Rolando (Chan-
Carolíngio ou Império de e saxões, versando sobre as
son de Roland), Crônica
Matéria da França Carlos Magno aventuras de Carlos Magno e
de Turpin e Maynete.
Os Doze Pares da França.
Romance de Tebas,
Império de Releitura de heróis da
Clássico Romance de Tróia,
Alexandre Magno época greco–romana.
Romance de Enéas.
José de Arimatéia, História
Bretão ou Matéria A partir do Repleto de imaginação mística
de Merlim e A Demanda
da Bretanha Século XII e exaltação religiosa.
do Santo Graal.

O ciclo Bretão, já denominado anteriormente de matéria da Bre-


tanha, é repleto de imaginação mística, devoção amorosa, ardente liris-
mo, sonhos, imaginação, sentimentalismo e exaltação religiosa. A temá-

37
Unidade B – Séc. XVI

tica central é o amor, a prostração e a fascinação passional, a divinização


da mulher, tudo isso misturado ao espírito bélico. Tem origem nas po-
pulações célticas da Grã Bretanha que se fixaram no norte da França.

As narrativas do ciclo Bretão relatam as lendas do Rei Artur e os ca-


valeiros da Távola Redonda. O Rei Arthur, que tentará reunir sobre seu
governo cristãos e celtas, tem um reino real e palpável — Camelot — e
ali os cavaleiros reúnem–se em torno da Távola Redonda, a qual, por ser
redonda, não tem um lugar principal, revelando a igualdade entre seus
membros. Os principais cavaleiros seriam em número de doze. A Távola
Redonda lembra a mesa em volta da qual Jesus reuniu–se com seus doze
discípulos, e o Rei Athur, assim como Jesus, representaria o que é bom,
belo e santo. Esse era o lado cristão dessas narrativas. O reino de Camelot
opunha–se a Avalon, um lugar desconhecido pela maioria das pessoas.
Só as Sacerdotisas celtas e o Mago Merlim tinham acesso a esse reino,
que ficava escondido atrás de uma parte do mar, coberto por brumas que

O casamento da Rainha Guinevere (esposa do Rei Arthur)

38
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
só se levantavam com a força da mente de um iniciado. Camelot gover-
nado por homens guerreiros e Avalon governada por mulheres iniciadas
nos mistérios da mente, da cura, das ervas e que previam o futuro.

Já a Demanda do Santo Graal narra a lenda de como José de Ari-


matéia recolheu o sangue de Jesus em um cálice. A lenda do Graal surge
associada ao ciclo de aventuras de Arthur. Seu criador, no entanto, foi um
francês, Chrétien de Troyes, autor da A História do Graal, narrativa em
que o cavaleiro Percival vislumbra o cálice sagrado. Chrétien morreu no
fim no século XII, deixando a obra inacabada. Nas cinco décadas que se
seguiram à sua morte foram escritas várias continuações, prólogos, revi-
sões do Graal, incorporando cada vez mais elementos cristãos. Consoli-
da–se então a lenda de que esse cálice era o mesmo com que o Messias
bebera em sua última Ceia, e no qual José de Arimatéia depositara o san-
gue que escorria do corpo Jesus quando este estava agonizando na Cruz.
José de Arimatéia foi preso, depois libertado por Vespasiano, que se curou
de lepra ao ver o sudário em que Verônica enxugou o rosto de Jesus. Após
muitas viagens, José de Arimatéia instalou–se na Inglaterra, escondendo
o Santo Graal na floresta de Corberic. São 150 cavaleiros que procuram o
Graal. Só Galaaz, já personagem das novelas do ciclo arthuriano, conse-
guiu encontrá–lo porque era virgem e puro de coração. A obra tem uma
intenção religiosa e representa uma inversão em relação à moral cortês
das cantigas de amor. Enquanto na lírica cortês o amor é o caminho para
a felicidade, na Demanda o amor é pecaminoso e a virgindade recomen-
dada: Galaaz nunca conheceu “intimamente” uma mulher.
Gênero em verso ou prosa
Tanto o autor francês como os demais autores desses chamados que seria o antepassado
romanças compuseram uma imagem idealizada da cavalaria. A busca do moderno romance.
de relíquias na Terra Santa era parte importante das justificações ideo-
lógicas das Cruzadas, e o Graal competia com outra relíquia: a verda-
deira Cruz, a cruz em que Jesus teria morrido. Essas relíquias eram as
mais importantes para o cristianismo. A busca pelo Graal foi aos pou-
cos ocupando o centro da imaginação cavaleiresca.

A última grande versão medieval da lenda — e talvez a versão de-


finitiva da história do rei Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda
— foi Le morte d’Arthur, concluída em 1470 pelo inglês Tomas Malory.
No século XVI as histórias do Graal saíram de moda, já que a Reforma

39
Unidade B – Séc. XVI

Protestante desconfiava dessas lendas populares cristãs e, principalmen-


te, via o culto às relíquias como uma forma de idolatria.

Nessas narrativas o Rei Arthur apresenta–se sempre como o he-


rói invencível, elas misturam uma brisa de teologia, a busca pelo cálice
sagrado, com a presença do maravilhoso, com fadas, bruxas, prodígios
inexplicáveis, misticismo e gotas do fantástico. Apresentam a força de
uma epopéia contrapondo–se aos ardores da volúpia.

Os principais cavaleiros, além do rei Arthur, são: Tristão, Percival,


Galaaz e Lancelot. Eles possuem virtudes, valentia e devem lutar pela
castidade. O rei Arthur não pode encontrar o cálice porque foi fraco ao
não saber justiçar Guinevere e Lancelot pela traição. Lancelot não pode
encontrar o cálice porque traiu o rei.

2.3 Amadis de Gaula


Na Península Ibérica, surge no século XIV o primeiro texto em prosa co-
nhecido em Portugal, Amadis de Gaula, atribuído a Vasco de Lobeira,
mas cuja autoria é ainda incerta, dado que a primeira versão publicada,
mais tardia, é em castelhano. Esse romance oferece–nos o paradigma do
perfeito cavaleiro: um herói tímido e apaixonado pela donzela Oriana, a
Sem Par, que se deixa possuir antes do casamento e está na origem do
chamado ciclo dos Amadises, um dos de maior sucesso na literatura pe-
ninsular. Esse novo desenvolvimento da matéria da Bretanha foi o ponto
de partida para uma frondosa ramificação do romance de cavalaria no
século XVI, ridicularizada por Miguel de Cervantes em Dom Quixote.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Amadis_de_Gaula,
consultado em 10/06

O crítico Massaud Moisés, em sua obra Pequeno Dicionário de Lite-


ratura Portuguesa, esclarece que:

Ao platonismo amoroso se junta uma sensualidade incontida,


dois pólos de conflito no espírito de Amadis, a transformá–lo em
herói psicologicamente denso, diferente da tradição medieval,
prenúncio do homem renascentista. É a humanização do ca-
valeiro andante, visto em momentos de grandiosa fraqueza…
(MOISÉS, 1981, p. 21–22, negrito nosso)

40
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
A principal diferença entre a narrativa de Amadis de Gaula e as
narrativas em torno do Rei Arthur é que no caso de Amadis não se trata
de um amor adúltero, diferente da história de Arthur, traído por sua
mulher, Guinevere, com seu primeiro e melhor cavaleiro, Lancelot. Na
novela de cavalaria Tristão e Isolda, o Rei Mark, ou Marcos de Cornu-
al, foi traído por sua esposa Isolda com seu sobrinho Tristão. No caso
da novela portuguesa, ou melhor, esclarecendo, da novela peninsular,
diferentemente dos amores adúlteros entre Guinevere e Lancelot e Isol-
da e Tristão, Amadis era solteiro e Oriana também. Como os dois são
livres, o amor sai do idealismo platônico para o plano físico, portanto
Amadis é psicologicamente mais denso que Arthur e Mark. Dessa ma-
neira, Amadis já prenuncia o homem renascentista e suas inquietações.
Amadis apresenta suas contradições, é valente, viril, herói, e, no entanto,
adoece de amor por Oriana.

Observemos mais um comentário de Massaud Moisés em outro


livro seu, intitulado A Literatura Portuguesa:

O cavaleiro humaniza–se, terreniza–se, a ponto de casar–se sa-


cramentalmente para convalidar a antiga relação amorosa com
Oriana. Nascem daí os conflitos que agitam Amadis, não pa-
dronizados pela tradição, mas os do homem complexo, denso
psicologicamente: o homem medieval começava a ceder vez
ao homem concebido segundo os valores renascentistas, que
então entravam a predominar. Amadis anuncia o herói mo-
derno, de largo curso e influência no século XV e XVI, servin-
do de elo de ligação entre um mundo que morria, a Idade Mé-
dia, e outro que despontava, a Renascença. (Moisés, [s/d], p.
47, negrito nosso)

No entanto, em que período os críticos classificam essa novela,


cuja autoria é problemática? Segismundo Spina, em Presença da Litera-
tura Portuguesa I–Era Medieval, enquadra Amadis na 1ª Época Medieval
(1198–1434). Já Massaud Moisés, em sua obra A Literatura Portuguesa,
enquadra o Amadis no Humanismo (1418–1527), juntamente com Fer-
não Lopes e Gil Vicente. Benjamin Abdalla Júnior e Maria Aparecida
Pascoalin, em História Social da Literatura Portuguesa, enquadram o
Amadis como pertencendo à Idade Média–1ª Época: Trovadorismo
(1189/1198–1434), e não ao Humanismo, como Massaud Moisés.

41
Unidade B – Séc. XVI

Podemos afirmar que tanto o Trovadorismo, com uma magnífica


floração lírica, como as Novelas de Cavalaria são produções medievais,
e que Amadis, mesmo sendo uma novela do período medieval, tem tra-
ços humanistas e marca a transição dos conceitos medievais para um
novo período: o Renascimento.
O teatro de Gil Vicente,
como você verá mais à Cabe aqui explicar que os grandes heróis, como Jesus ou Arthur,
frente, marca a transição
da Idade Média para o têm uma paternidade um tanto quanto complicada, e também a ques-
Humanismo. tão da morte desses heróis é misteriosa, pois seus corpos nunca foram
encontrados. O desaparecimento do rei Arthur na Ilha de Ávalon vai
influenciar o Sebastianismo de Bandarra, Padre Vieira e do poeta Fer-
nando Pessoa. El Rei D. Sebastião, o grande Rei português, desapare-
ceu na África, em Alcácer Quibir, no ano de 1578. Em virtude de ser
um herdeiro tão esperado para dar continuidade à Dinastia de Avis,
ficou conhecido como O Desejado e, depois de sua morte, passou a ser
conhecido como O Encoberto ou O Adormecido, devido à lenda que
se criou depois de sua morte: de que ele estaria encantado numa ilha
junto com o Rei Arthur e que de lá voltaria para devolver a Portugal
as glórias passadas. Isso ficou conhecido como Sebastianismo, movi-
mento que você irá estudar mais tarde.

Voltando às novelas de Cavalaria, ressaltamos que o Rei D. Dinis


(1261–1325), também conhecido pelo epíteto de Rei–Trovador, pelas
Cantigas de Amigo e de Amor que compôs, e pelo desenvolvimento da
poesia trovadoresca a que se assistiu no seu reinado, já conhecia as no-
velas do ciclo arthuriano.

Não se esqueça então de que foram as novelas de cavalaria do ciclo


arthuriano que influenciaram o Amadis de Gaula, cuja autoria é polêmi-
ca, mas é importante ressaltar que esse é o primeiro documento em pro-
sa de que se tem notícia em Portugal, e que nessa novela a língua por-
tuguesa já se apresenta bem desenvolvida. A novela Amadis de Gaula
foi o livro de cabeceira do século XVI e gerou aquilo que chamamos de
ciclo dos Amadises, com diversas continuações. São personagens dessa
novela: Florisando, Palmerim de Oliva, Primaleon da Grécia, Floriseo,
Lisuarte da Grécia.

A grande questão que envolve Amadis de Gaula é a questão de sua


autoria. Ela seria, originalmente, escrita em espanhol ou português? O

42
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
original em português teria sido redigido na segunda metade do século
XIII. O problema surgiu pois o suposto original em Português foi per-
dido, o texto que se conhece data de 1508 e está escrito em castelhano
por Garcia Rodrigues Montalvo, tendo sido publicado em Saragoça.

O Amadis de Gaula foi a novela de cavalaria mais importante es-


crita na península Ibérica e a falta do texto original fez com que o mis-
tério de sua autoria suscitasse desde cedo a atenção dos estudiosos, que
a atribuíram a franceses, espanhóis e portugueses. O crítico Benjamin
Abdalla Júnior defende que o texto surgido em 1508 e composto ao
total por doze livros é de autoria peninsular. O crítico José Saraiva tam-
bém fala em “obra peninsular”, cuja autoria seria coletiva. Ou seja, uns
defendem a autoria espanhola, outros a autoria em português, e outros
a autoria peninsular (escrita a duas mãos em português e espanhol).
O crítico Joaquim Ferreira defende a idéia de 3 autores diferentes para
essa novela. Segundo o crítico, essa hipótese é aceitável, ou seja, o Ama-
dis de Gaula poderia sim ter tido três autores, sendo dois portugueses e
um espanhol: João de Lobeira, português, autor do 1º e 2º livros; Vasco
de Lobeira, português, autor do 3º livro; e Garcia Ordonez de Montal-
vo, espanhol, autor do 4º livro.

Temos que levar em conta que até o século XII as relações entre
literatura castelhana e portuguesa eram muito íntimas, que alguns dos
mais notáveis escritores portugueses como Gil Vicente escreveram nas
duas línguas. Eis então o porquê da querela em torno da autoria de
Amadis de Gaula.

Mesmo não tendo sido encontrado o original em português, o im-


portante é que na versão para o português encontramos a forma da lín-
gua portuguesa já amadurecida e pronta.

Agora vamos esclarecer a temática dessa novela de cavalaria. Entre


os principais temas abordados temos: a fidelidade à amada, o platonis-
mo se opondo ao desejo físico, o sentimentalismo e a timidez do herói,
o amor cortês palaciano, as batalhas e o ideal guerreiro, o sensualismo
explícito que ultrapassa a concepção de amor das Cantigas de Amor, o
desejo carnal do homem e principalmente, o desejo carnal presente na
mulher–Oriana. Aqui há uma sensualidade ardente que não encontra-
mos nos textos da Demanda do Graal.

43
Unidade B – Séc. XVI

A tradição do platonismo insiste na existência de dois mundos: o


mundo das idéias – onde repousa todos os modelos eternos de to-
das as coisas, sobretudo os modelos do Bem, do Belo e do Verdadei-
ro – e o mundo em que vivemos – que é o lugar em que se multi-
plicam erraticamente as cópias imperfeitas e degradadas daqueles
modelos. O homem sábio é, pois, aquele que supera, pelo exercício
das idéias, os apelos da matéria e da carne, enfim, o homem sábio é
o que submete o sensível ao inteligível.

Amadis e outros personagens homens representam o ideal cava-


leiresco e sempre estão envolvidos em aventura, defendendo um reino,
uma mulher, uma causa, e também apresentam um ideal cavalheiresco,
pois são gentis homens em suas conquistas amorosas. Aventura e emo-
ção andam sempre juntas.

O cavalheiro deve render vassalagem a uma só mulher e a um só rei


ou Senhor. Amadis rende vassalagem ao Rei Lisuarte e a sua filha Oriana.

Observe como Amadis coloca a amada na posição de deusa e como


ele existe só para cumprir a vontade dela: “[…] Oriana, a minha senho-
ra, nunca errou em cousa nenhuma, e, se eu morro, é com razão; não
porque eu o mereça, mas porque com isso cumpro a sua vontade e o seu
mando.” (LAPA, 1941, p. 65).

A vida e a felicidade de Amadis dependem dele estar bem com a


amada. Quando está doente de amor, se refugia como ermitão e não
luta, mudando seu próprio nome: Beltenebroso. Quando se reconcilia
com Oriana, recomeçam suas aventuras.

Há diversas fases da vida de Amadis e durante essas fases ele usa


diversos nomes, como Cavaleiro da Verde Espada ou Cavaleiro Grego.
Ele defende a justiça e os fracos em suas andanças, aceitando diversas
demandas. Assume outros nomes porque o seu já era muito conhecido
e cheio de glórias. Um só nome não bastava para tanta glória.

Outro fato importante é a nobreza de caráter de Amadis. Mesmo o


herói tendo brigado com D. Lisuarte, por culpa deste, Amadis o defende

44
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
na guerra secretamente. No encontro final, ajoelha–se perante o rei e a
rainha, prova sua nobreza e sua lealdade.

Amadis, como já observamos, apresenta um forte sensualismo que


se opõe ao platonismo das Cantigas de Amor e das Novelas de Cavalaria,
as quais envolvem a busca pelo cálice sagrado. Nesse aspecto, podemos
afirmar que há uma ruptura das convenções morais. Ao contrário da
heroína Guinevere (esposa de Arthur) e de Isolda (esposa do rei Marcos
da Cornualha), Oriana promete entregar–se ao herói com muita natu-
ralidade, e há um forte desejo sexual tanto da parte de Amadis quanto
de Oriana, ambos explicitam isso. Amadis deixa claro o que deseja de
Oriana: “Senhora, doei–vos de mim e lembrai–vos do que me prometes-
tes […]” (LAPA, 1941, p. 51)

Outra coisa importante que devemos destacar é que, nessa nove-


la, a virgindade não é fundamental. Oriana entrega–se ousadamente ao
amado sem maiores questionamentos morais. É a mulher que decide
quando e como quer ser amada:

Pode por isso dizer–se que naquela verde erva, e em cima da-
quele manto, mais por graça e cometimento de Oriana que por
desenvoltura e ousadia de Amadis, foi feita dona a mais formosa
donzela do mundo. (LAPA, 1941, p. 52)

Se nos textos da Demanda do Graal só um cavaleiro virgem e puro


conseguiria encontrar o cálice sagrado, aqui no Amadis de Gaula o celi-
bato é um incidente na vida do herói. Amadis transforma–se em ermi-
tão, em um local chamado Penha Pobre, somente porque fora abando-
nado por Oriana, não por vocação. Assim que Oriana descobre onde ele
está e o manda buscar. Amadis obedece e parte imediatamente, como
que saindo de um pesadelo.

Nessa novela, como em todas do ciclo arthuriano ou influenciadas


por esse ciclo, temos a presença do maravilhoso e do fantástico.

Em Amadis de Gaula temos uma fada feiticeira chamada Urganda,


a desconhecida. Ela encanta o cavaleiro que ama. Trata–se de uma velha
que retira de uma bolsa a eterna aparência jovem. Todos pensam que o
cavaleiro está louco ao dizer que se casou com uma velha.

45
Unidade B – Séc. XVI

Podemos resumidamente afirmar que o maravilhoso está presente


nos contos de fadas: fadas, bruxas, magias, encantamentos. Você não
duvida de mais nada, porque está imerso nesse universo. Você não
precisa pensar no que faz sentido ou não, porque tudo pode aconte-
cer. Já o fantástico apresenta uma pequena diferença em relação ao
maravilhoso. No fantástico, o texto necessariamente não precisa ser
de contos de fadas. Algo que acontece lhe causa um estranhamen-
to. Você duvida se aquilo pode ou não acontecer. O crítico Todorov,
em sua obra As Estruturas Narrativas, afirma que “o fantástico ocupa
o tempo de uma incerteza…” (TODOROV, 1979, p. 148). Ou seja, no
maravilhoso, você não fica em estado de hesitação ou dúvida, mas é
exatamente a hesitação e a dúvida que caracterizam o fantástico. É
a dúvida que dá vida ao fantástico.

Essa novela tem algumas características específicas. Surge na Idade


Média e é a prosificação das canções de gesta. Provavelmente seu con-
teúdo já existia antes, na oralidade. Traz o mistério da paternidade de
Amadis e também do seu filho Esplandiam. Trata–se de filhos de amores
ilegítimos. Nesse caso, filhos tidos antes do casamento e que precisavam
ser escondidos para não macular o nome da mãe.

Amadis tem sua vida marcada por profecias. Urganda profetiza so-
bre o herói um certo messianismo que recorda o messianismo bíblico.
Podemos constatar isso em uma das falas de Urganda:

“[…] ele fará estremecer os fortes; ele começará e acabará com hon-
ra sua, todas as coisas em que os outros fraquejam… ele fará com
que os soberbos sejam mansos… ele será o cavaleiro que no mundo
mais lealmente cumprirá o amor […]” (LAPA, 1941, p. 20)

A novela Amadis de Gaula é uma novela passional. Tanto Amadis


como Oriana, quando estão separados, desejam a morte: “Ai, amigas…
Por Deus, não estorveis a minha morte… que só uma hora viva sem
aquele que, não com minha morte, mas com desejos de mim, não pode-
ria viver tão só uma hora.” (LAPA, 1941, p. 37)

46
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
Tanto para Oriana quanto para Amadis, a vida só tem sentido se
for vivida por amor. Oriana tem vontade de se matar e Amadis, grande
herói invencível nas batalhas, acostumado à guerra e a enfrentar mons-
tros, mostra–se enfraquecido e em depressão quando ama, quando é
desprezado pela sua amada: “Dizendo Amadis, estas palavras, as lágri-
mas caíam–lhe em fio pelas faces, sem que ninguém lhe pudesse dar
remédio.” (LAPA, 1941, p. 37)

Você pode observar o sentimentalismo do herói que chora, desmaia,


cai de joelhos, não consegue nem olhar de frente para Oriana. No Ama-
dis a ação é praticamente consecutiva: demandas e mais demandas, lutas
e mais lutas. Demanda contra Angriote e a dama má, contra os usurpa-
dores do trono de Briolanja, a favor do anão que perdeu seu amo etc.

Como sempre, em toda boa novela há uma antagonista, que é rival


da protagonista. Neste caso, Oriana é a protagonista, e a rival é Briolan-
ja, que também sente um amor passional por Amadis a ponto de trancar
o herói em uma torre para ter um filho dele.

A estrutura dramática da novela é plural, há vários núcleos, além


do central que envolve Amadis e Oriana:

a) Briolanja e a perda do seu trono;

b) O amor de Briolanja por Amadis;

c) A dama que pede a prova de coragem do rei Lisuarte;

d) Um cavaleiro velho que pede Oriana, através de ardis, em ca-


samento;

e) Galaaz que luta com um cavaleiro, sem saber que é Florestam,


um irmão seu bastardo, além das diversas intrigas na corte.

Em Teoria da Literatura você aprenderá a diferenciar conto, novela e


romance. Genericamente podemos esclarecer que o conto tem uma
estrutura menor, com poucos personagens, com um enredo central,
o narrador do conto sabe que não tem muito tempo e espaço, por
isso, tem que ser rápido e preciso nos detalhes.

47
Unidade B – Séc. XVI

A novela, por sua vez, apresenta um espaço maior, pode ter mais per-
sonagens, mais detalhes. O romance tem um fôlego maior que a no-
vela, tem mais de um núcleo, mais personagens, mais detalhes e o en-
redo é mais complicado. Quando autores do Romantismo e Realismo
brasileiros apresentavam seus romances, eles o faziam em jornais que
publicavam semanalmente os romances. Assim, esses textos foram de-
signados de novelas, porque eram um novelo que se desenrolava aos
poucos, em capítulos. O gênero em prosa Novela está desaparecendo.
Aquilo que você assiste à noite, a chamada novela das oito, que não é
às oito, mas às nove da noite, está mal designado. A novela Duas Caras,
na realidade, trata–se de um romance, com vários personagens, vários
núcleos dramáticos. Só é designado de novela porque é um romance
que se desenrola como um novelo: um capítulo por dia.

Nesta estrutura dramática, a novela, tudo tem início, meio e fim, e


os encadeamentos dramáticos estão bem construídos. Há uma sucessi-
vidade no entrelaçamento sistemático das aventuras e uma agregação
de unidades dramáticas, e o ritmo é sempre acelerado com a sucessão
ininterrupta de peripécias, ocorre o deslocamento constante das perso-
nagens, a multiplicação abundante dos episódios, o uso da imaginação
e dos sonhos, diálogos vibrantes, cenas movimentadas, trechos narra-
tivos, exposições, observações psicológicas. Há também muitas digres-
sões: o narrador pára a trama principal várias vezes para contar outras
estórias periféricas, como as de Angriote e Grovenesa, a dona má que
exigia que o cavaleiro guardasse o vale por um ano, dizendo que ela era
a mais formosa da corte do rei Lisuarte. O lirismo está presente nas des-
crições dos encontros amorosos do par romântico. Amadis é o épico e
nobre cavaleiro e cavalheiro que desconhece a traição, afinal ele é a flor e
espelho de toda cavalaria. Amadis é nobre, pois poupa a vida de Angrio-
te (lutaram pela beleza de uma dama) e luta secretamente para defender
o Rei Lisuarte, que o desprezara.

Ocorrem situações excepcionais, patéticas e grotescas, e os detalhes


da guerra são relatados em minúcias: sangue, o inimigo que tem lombo
esfolado etc.

48
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
O narrador é do tipo demiurgo, que usa o resumo e a descrição. Ele
é onisciente intruso, sabe de tudo e de todos, conhece o pensamento de
todos os personagens e intervém constantemente: “Deixemo–los folgar
e descansar e contemos o que aconteceu a D. Galaor em busca de el–rei!”
(LAPA, 1941, p. 58).
Os nomes são metafóricos. Cada nome tem um significado: Briolan-
ja, a menina dos leões; Grovenesa, uma estrela luzente. Temos diversas
personagens centrais: Oriana, Amadis, Galaaz, Briolanja, Rei Lisuarte;
e secundárias: Gandalim, Languines, Angriote, Arcalaus, Brandoíbas,
Grindalaia, Bruneio, Estravaus, Gandandel, Galvães, Agrajes, Madassima,
Leonereta, Salustanquídio, Arbam, Grumedam, Cildadam, Gasquilam.

Constatamos a presença de personagens estereotipadas: Urganda


(a bruxa), Arcalaus (feiticeiro), o anão (que faz intrigas ente Oriana e
Amadis), Mabília (a alcoviteira). Todos esses são personagens planas,
sem aprofundamento psicológico.

O desenlace ocorre por meio do casamento de Oriana com Ama-


dis, para legalizar a situação deles e do filho. A novela deixa uma aber-
tura para possíveis continuações: as aventuras de Esplandiam, filho de
Oriana e Amadis. É uma obra fechada porque tem um fim, mas aberta
porque pode ser continuada.

Afirmamos que Amadis de Gaula é novela de cavalaria, uma novela


sentimental, uma novela picaresca, uma novela policial, uma novela de
mistério, uma novela romântica e uma novela precursora do feminismo.

Talvez o mais importante dessa novela é que ela realça naturalmen-


te o feminino erótico influenciada pelo ciclo arturiano de origem Celta.
Aqui a mulher é motivo e não objeto. Podemos destacar os nomes celtas
das personagens femininas: Oriana, Briolanja, Urganda etc. As mulhe-
res comandam as situações e o jogo amoroso.

Outro exemplo claro do feminismo ocorre quando Urganda e uma


certa donzela disputam o cavaleiro, elas é que partem para a conquista e
não ficam na posição de objeto, aceitando serem conquistadas. O cava-
leiro sofre nas mãos das duas mulheres. Também, como já observamos
em citação anterior, é Oriana quem sutilmente se oferece a Amadis, no
livro I, capítulo 30, e de livre e espontânea vontade entrega–se a ele. Re-

49
Unidade B – Séc. XVI

leia a citação e observe que é Oriana quem parte para a conquista, é ela
quem seduz, o possuído parece ser o cavaleiro e não a dama. A heroína
também é cruel quando necessário: “Nenhuma lágrima pode sair dos
seus olhos; as quais recolhidas dentro de si, a fizeram muito mais cruel e
com mais duradouro rigor…” (LAPA, 1941, p. 57).

Oriana e Briolanja disputam entre si o amor de Amadis. Briolanja


quer ter um filho de Amadis e ele, entre a beleza e a tentação da dama e
seu amor por Oriana, fica atormentado numa torre. Aqui os homens são
tentados pelas mulheres e ficam sem saber, por vezes, o que fazer.

O crítico Menéndez y Pelayo esclarece sobre essa novela:

Sem o delírio amoroso de Tristão, sem a adúltera paixão de Lance-


lote, sem o misticismo equivocado dos heróis do Santo Graal, Ama-
dis é o tipo do cavaleiro perfeito, o reflexo do valor e da cortesia, o
modelo de leais vassalos e de finos fiéis amantes, o escudo e amparo
dos fracos e necessitados, o braço armado posto a serviço da ordem,
moral e da justiça. (PELAYO, [s/d], p. 28, apud VIEIRA, 1922)

2.4 Dom Quixote de la Mancha

D. Quixote e Sancho Pança

50
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
Depois da Demanda do Graal, de Tristão e Isolda, do Rei Arthur e
os Cavaleiros da Távola Redonda, do Amadis de Gaula e de dezenas de
outras novelas de cavalaria, o gênero se esgota, e nesse momento surge
o gênio espanhol chamado Miguel de Cervantes (1547–1616), com sua
magnífica obra intitulada D. Quixote de la Mancha (El ingenioso hidal-
go Don Quixote de La Mancha). Poderíamos escrever mais de mil pá-
ginas só para resumir essa obra e ainda seria pouco. Ela foi considerada
por críticos de todo o mundo como a maior obra do milênio passado.
D. Quixote de la Mancha revela o esgotamento do modelo das novelas
de cavalaria. Trata–se de uma novela de cavalaria que faz uma paródia,
um deboche crítico sobre a própria novela de cavalaria. D. Quixote é o
chamado Cavaleiro da Triste Figura, que depois de tanto ler novelas de
cavalaria perde o juízo e sai pelo mundo afora, enfrentando moinhos,
exércitos, manadas inexistentes, tudo por uma dama feia–Dulcinéia de
Toboso, juntamente com seu escudeiro Sancho Pança. Essa obra cons-
titui–se em um símbolo universal nascido do próprio atraso feudal da
Espanha. Quando todas as outras novelas de cavalaria forem esqueci-
das, certamente ainda restará D.Quixote de la Mancha, porque além de
ser uma novela de cavalaria que critica o próprio gênero que está mor-
rendo, fala sobre os limites da loucura e da razão. Afinal, quem é louco?
D. Quixote? Sancho Pança? O leitor? Eu? Você?

Sobre D. Quixote, o crítico Augusto Meyer, em Textos Críticos, es-


clarece que:

[…] D. Quixote é, no fundo, um mito contra os mitos, ou melhor,


uma sátira, uma paródia, um corretivo a nossa tendência mítica.
A cada acidente, a cada tombo, a cada desacerto, parece advertir
o seu comportamento: segure a sua língua, sofreie a intempe-
rança das paixões, ponha de quarentena a fantasia desregrada,
criadora de fantasmas. (MEYER, 1986, p. 99)

Amadis de Gaula, juntamente com Palmerim de Inglaterra, mere-


ceu a honra de ser poupada da crítica sarcástica de Cervantes em D.
Quixote de la Mancha: no famoso episódio em que o barbeiro e o padre
resolvem queimar a biblioteca do fidalgo para evitar que este enlouque-
cesse de uma vez por causa da leitura nefasta das novelas de cavalaria,
só essas duas obras foram preservadas.

51
Unidade B – Séc. XVI

As novelas de cavalaria influenciaram o romantismo português e


o romantismo brasileiro. Temas como o amor cortês, o cavalheirismo,
o platonismo amoroso, a pureza, a nobreza de caráter, a virtude, a leal-
dade, a religiosidade, o endeusamento da mulher, serão dominantes no
movimento romântico. Em Portugal os românticos inspiraram–se no
cavaleiro e cavalheiro medieval.

Mais à frente, neste curso, você estudará a obra Eurico, o Presbítero,


de Alexandre Herculano, e poderá constatar o que afirmamos. No
Brasil, como não tivemos nem Idade Média, o índio acabou por ser
eleito como um perfeito cavalheiro e cavaleiro à moda dos heróis da
cavalaria: vide o exemplo do índio Peri, personagem de O Guarani,
de José de Alencar. As novelas de cavalaria influenciaram também
toda a Literatura Infantil, com seus príncipes e princesas, mas isso é
assunto para outra matéria.

A modernidade dessa temática poderá ser constatada pelos diversos


livros publicados recentemente sobre o rei Arthur e o Mago Merlim, e
ainda pelos muitos filmes já recomendados, que você pode assistir. Não
poderíamos deixar de recomendar o filme El Cid El Campeador, que trata
da luta de um nobre cavaleiro para salvar a Espanha dos Mouros: é a tra-
ma do cavaleiro que lutou depois de morto. Sua virtude, sua honra, sua
fama fizeram com que ele, mesmo depois de morto, vencesse a guerra.

52
Amadis de Gaula – uma novela de cavalaria portuguesa com certeza? Capítulo 02
Faça aqui o seu resumo!

53
O teatro de Gil Vicente Capítulo 03
3 O Teatro de Gil Vicente
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra todo o mundo
e ninguém busca virtude.
(Todo Mundo e Ninguém, em Auto da Lusitânia,
Gil Vicente–1532)

Gil Vicente

Humanismo é o nome de um movimento intelectual, uma dou-


trina filosófica e uma postura artística que representava a transição en-
tre a cultura européia medieval e a do Renascimento. Teve início na
Itália, entre o fim do século XIII e o início do século XIV, século este
conhecido como o outono da Idade Média. Seus maiores representantes
são os poetas italianos Dante Alighieri (1265–1341), autor da Divina
Comédia, e Francisco Petrarca (1304–1374). O Humanismo tem duas
fontes: a volta às origens do cristianismo e a revalorização do legado

55
Unidade B – Séc. XVI

clássico. Ao pregar a volta ao chamado cristianismo primitivo, critica o


luxo e os desvios da Igreja Romana e, ao revalorizar a cultura clássica
greco–romana com sua filosofia, literatura e história, traz o gosto pela
especulação racional, o chamado racionalismo. Lembremos que a Ida-
de Média era teocêntrica, Deus era o centro de tudo e o homem deveria
só se preocupar com a vida espiritual. Os humanistas adotam outra vi-
são e colocam o homem no centro da História, isto é o gérmen para o
antropocentrismo que viria a caracterizar o Renascimento.

Gil Vicente foi o maior representante do Humanismo em Portugal


(1418–1527), que coincidiu com o absolutismo de reinado de D. João II
(1481–1495) e com a expansão marítima que transformou Portugal em
um grande e rico império. Lisboa transformou–se em uma grande cida-
de, a universidade de Coimbra passou a ser prestigiada e a literatura a
ser divulgada, devido à criação da imprensa por Gutenberg.

A seguir, alguns dados sobre a vida e a obra do dramaturgo portu-


guês Gil Vicente. Sua data de nascimento (1465?) ninguém sabe ao certo,
o mesmo ocorrendo com a data de sua morte. O local de seu nascimento
é apontado como sendo Guimarães, Lisboa ou Barcelos. Em 1502, estreou
no teatro representando para a Rainha O Auto da visitação. Era encarre-
gado da organização de festas palacianas e, por isso, muito prestigiado
pela corte. Alguns historiadores dizem que Gil Vicente teria sido, real-
mente, mestre da balança da Casa da Moeda. Foi dramaturgo e encenador
na corte dos reis D. Manuel e D. João III. Nesse, período produziu mais de
quarenta peças de teatro. Em 1531 ocorreu um terremoto em Lisboa, e os
Padres atribuíram a tragédia à ira de Deus, espalhando o pânico entre as
pessoas. Gil Vicente proferiu um discurso condenando o sensacionalismo
dos padres e a intolerância religiosa que perseguia os judeus.

Seu filho, Luis Vicente, publicou em 1562 a reunião da produção


teatral do pai, intitulada Compilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente,
contendo 44 peças de teatro. É bom acentuar que antes de Gil Vicente
não havia teatro em Portugal, a não ser aquilo que se conhece como Tea-
tro Religioso, com função de fazer catequese, um teatro com fins morais
e éticos. Gil Vicente buscou no teatro espanhol de Juan del Encina su-
gestões iniciais para sua primeira fase dramática, mas logo encontrou o
seu estilo. Esse estilo incluía constante renovação de temas e formas, uma

56
O teatro de Gil Vicente Capítulo 03
vocação poética fora do comum, uma forte religiosidade (já que Gil Vi-
cente era um cristão) e o tratamento de temas universais como a morte, a
vida, a salvação, a luxúria, os pecados, o suborno, a libertinagem.

Algumas de suas peças como O auto da Alma e O Auto da Barca do


Inferno possuem um caráter didático e religioso e objetivam a transmis-
são das doutrinas da Igreja. Também atacou impiedosamente as mazelas
de todas as classes sociais. Possuía vastos conhecimentos teológicos e fi-
losóficos, o que revela sua cultura humanística. Trabalhou com o portu-
guês arcaico, com o latim e incluiu o saiaguês, uma espécie de português
simples e caipira que era falado na região de Saiago, região da província
de Zamorra, na Espanha, fronteiriça às serras da Beira lusitana. O saia-
guês era o falar rústico dos camponeses dessa região e caracterizava–
se pela abundância de regionalismos e arcaísmos, isso dava um efeito
cômico às suas peças. A maioria delas é bilíngüe, já que escreveu tanto
em português como em espanhol. Suas peças são poéticas e este efeito
é conseguido porque as personagens falam em versos de redondilhas
menores e maiores, agrupados em estrofes rimadas.

A origem do teatro vicentino está no teatro medieval cristão, no


chamado teatro litúrgico, ou seja, está vinculado aos rituais e cultos
da religião católica. A ideologia teocêntrica definiu as formas do teatro
medieval, a saber:

ǿǿ Mistérios: encenações de passagens bíblicas do Antigo Testa-


mento, consideradas prefigurações do advento de Cristo; ence-
nações da Natividade; representações da vida e paixão de Jesus,
segundo o Novo Testamento. Os dois primeiros tipos encena-
vam–se por ocasião do Natal, o último era representado na Se-
mana Santa (Ex: Auto dos Reis Magos, de Gil Vicente);

ǿǿ Milagres: dramatização da vida dos santos ou de intervenções


miraculosas da Virgem Maria;

ǿǿ Soties: representações satíricas de origem popular. Tipo de co-


média rudimentar de conteúdo crítico, em que um parvo/tolo/
louco era o protagonista; Mistérios — pintura de Gil Vicente
(o pintor e não o dramaturgo)

ǿǿ Moralidades: peças em que as personagens eram alegorias


(personificação de idéias, de instituições, por exemplo, a Lu-

57
Unidade B – Séc. XVI

xúria, a Avareza, a Guerra, o Trabalho, o Tempo, o Comércio,


a Esperança etc.), que através do jogo dramático serviam de
exemplo moral para os espectadores (Ex.: Todo mundo e Nin-
guém, que faz parte do Auto da Lusitânia, de Gil Vicente);

ǿǿ Farsas: encenações satíricas de gosto popular (Ex.: Farsa de


Inês Pereira, de Gil Vicente);

ǿǿ Autos Pastoris ou Éclogas: diálogo entre pastores simples que


evocavam a vida pura, a qual lembrava o cristianismo primitivo;

ǿǿ Momos: alegorias meramente visuais, sem texto, com cente-


nas de figurantes ricamente vestidos. Gil Vicente procurou
evidenciar não só o espírito aventureiro e cavaleiresco dos mo-
mos como a concepção cenoplástica nos seus autos narrativos
e alegóricos presentes em Cortes de Júpiter, Auto das Fadas e
Triunfo do Inverno;

ǿǿ Laudes: esse gênero de teatro religioso distingue–se de todos os


outros por não ser inicialmente representado em um palco, mas
sim nas ruas, caminhos e campos, por onde o povo e os frades
caminhavam. As laudes derivam dos “tropos”: diálogos, cânticos
e rituais que eram realizados alternadamente entre o padre, o
povo e o coro nas missas das Igrejas. Só que as laudes eram feitas
sob a forma de procissão (uma espécie dos atuais romeiros) ou
eram declamadas, dialogadas e recitadas em degraus, pórticos
e outeiros. As laudes eram cânticos de louvor cujos principais
temas eram as narrações dos Evangelhos, que iam desde o Na-
tal até a Paixão. Em um estado mais avançado, chegaram a ter
acompanhamento musical e até caracterização dos atores, e tro-
caram os seus locais de representação normais por palcos.

Na época Medieval surge uma categoria de atores divididos em:


http://members.fortune
arremedadores (que se especializavam em imitações); cazurros (char-
city.com/rui_nuno_carva
lho/rudiment.html, con- latães acompanhados por bonifrates, cabritos, macacos ou cães); esgri-
sultado em 15/04/2008
midores (jograis que usavam paus e espadas); frasechadores (espécie
de ilusionistas); nigromantes (pessoas que faziam aparecer fantasmas);
titeriteiros (homens que representavam com bonifrates); mascarados
(disfarçados de outras pessoas ou animais).

58
O teatro de Gil Vicente Capítulo 03
Portugal conheceu essas formas de teatro europeu medieval através
de Castela, que era o centro de onde se irradiava o teocentrismo da Igre-
ja Católica para toda a Península Ibérica. Essa tradição, vinda de fora,
constituiu a base do primeiro autor português: Gil Vicente. Ele produziu
Autos pastoris (Auto pastoril castelhano), Autos de Moralidade (Auto da
barca do Inferno, Auto da barca do Purgatório, Auto da barca da Glória,
Auto da Alma) e Farsas, sendo a mais conhecida delas A Farsa de Inês Pe-
reira. São vários os casos em que Gil Vicente misturou em uma só com-
posição a alegoria, a moralidade e a farsa, como no Auto da Lusitânia.
Peças de enredo: Apresen-
O teatro de Gil Vicente identifica–se com o Humanismo uma vez tam início, meio e fim,
com clímax e desfecho
que, mesmo tendo como base o teatro litúrgico, seus textos apresentam (cômico quando há farsa
influência da Antiguidade Clássica, trazendo para suas peças persona- e lírico no caso de auto
cavaleiresco).
gens da mitologia grego–romana como Mercúrio, Apolo, Vênus etc.
Mesmo baseado no teatro litúrgico medieval, Gil Vicente combateu o Peças de ação fragmen-
tada: Não observamos
teocentrismo dogmático criticando em suas peças o clero corrupto e acentuadamente o enredo.
pregando a volta a uma vida simples e sem luxo. Em suas peças, comba- Apresentam–se quadros
fragmentados de ação e
teu a intolerância religiosa, defendendo os judeus. não importa muito a or-
dem da entrada em cena:
Com relação à estrutura podemos dizer que suas peças subdivi- uma cena não prepara
dem–se em peças de enredo e peças de ação fragmentada. Essa divi- a seguinte.
são, porém, é problemática. O Auto da Barca do Inferno é classificado
por muitos críticos como uma peça de ação fragmentada e descontínua.
Discordamos dessa classificação e explicamos o porquê: em nossa con-
cepção, trata–se de uma peça de enredo, pois tem início (entrada do
Diabo e do Anjo), enredo (o julgamento das almas que devem embarcar
em uma das barcas) e fim (só os cavaleiros cruzados entram na barca
que conduz ao céu).

Com relação ao espaço, a peça pode ser representada em vários cená-


rios. Geralmente defende–se a idéia de que o teatro vicentino possui uma
enorme variedade espacial que é muito diferente da unidade de espaço do
teatro clássico. No entanto, no Auto da Barca do Inferno há um só espaço:
o local (um braço de mar ou um rio) onde estão ancoradas as barcas.
Você estudou esse con-
Diz–se que o teatro de Gil Vicente não respeita a regra das três uni- teúdo, na Poética, com a
dades, inspirada em Aristóteles e observada na dramaturgia clássica. No Teoria da Literatura I.
teatro vicentino não haveria unidade de ação (as peças teriam mais de um
núcleo dramático), não haveria unidade de espaço (representações ocu-

59
Unidade B – Séc. XVI

pariam mais de um lugar) e não haveria unidade de tempo (as histórias


transcorreriam em um período superior a um dia). Isso não é um consen-
so entre os críticos. A nosso ver, O Auto da Barca do Inferno apresenta a
regra das três unidades: há unidade de ação (o julgamento das almas que
chegam ao local onde estão ancoradas as barcas); unidade de espaço (o an-
coradouro das barcas: braço de mar ou um rio) e unidade de tempo (a peça
Aquelas que representam é rápida e desenvolve–se em questão de horas ou, no máximo, meio dia).
tipos sociais bem defini-
dos. São estereótipos de
profissionais populares, de
As personagens de Gil Vicente são classificadas como típicas ou
clérigos, de fidalgos. alegóricas. Personagens típicas: Ele cria uma vasta galeria de tipos e
caricaturas que abrange nobres decadentes e pedantes, alcoviteiras,
comerciantes corruptos, agiotas, espertalhões, frades devassos, velhos
ridículos que se apaixonam loucamente por moças jovens, escudeiros,
trambiqueiros, moças casadoiras, esposas infiéis, maridos traídos, alde-
ões caipiras, parvos, loucos e sua forma típica de falar. Personagens ale-
Representam idéias ou góricas: em O Auto da Lusitânia e Todo Mundo e Ninguém representam
instituições.
as idéias que seus nomes sugerem.

Selecionamos neste momento, para você tomar contato com a obra


de Gil Vicente, A Farsa de Inês Pereira e O Auto da Barca do Inferno.

3.1 A Farsa de Inês Pereira


A Farsa de Inês Pereira é uma comédia de costumes e a marca do
auge de seu autor; foi representada pela primeira vez para o rei D. João
III, em 1523, no convento de Tomar. Muitos duvidavam da autenticida-
de das obras de Gil Vicente, e foi com a intenção de provar o contrário
que ele aceitou o desafio de criar, sob um ditado popular, uma nova
representação. Sua imensa obra não nasceu de improviso, é resultado de
um trabalho árduo de estudos e aperfeiçoamentos.

Farsa é uma representação popular com intenções satíricas e, em-


bora Gil Vicente freqüentasse a corte portuguesa, tinha vasto conheci-
mento das tradições populares, utilizando–se de trocadilhos e de falas
regionais. O que realmente lhe interessava era a vida cotidiana, por isso
aprofundou sua crítica à sociedade da época, destacando os males que
corroíam a sociedade portuguesa, na tentativa de reconduzir o povo
português para o caminho do bem e da salvação.

60
O teatro de Gil Vicente Capítulo 03
A farsa é a ilustração do dito popular “mais quero asno que me leve
que cavalo que me derrube”. Gil Vicente põe em cena personagens que
encarnavam os elementos ativos dessa comparação:

Note que o provérbio refere–se a três personagens da farsa: ASNO


— representado por Pêro Marques; ME — Inês, a protagonista que de-
seja se casar; e CAVALO — que é a figura do Escudeiro. Após ter uma
experiência amorosa falida com o primeiro marido — o Escudeiro —,
Inês deseja casar com alguém em quem possa mandar, ou melhor, pla-
neja vingar–se no segundo casamento, desejo expressado nos próprios
versos da protagonista (VICENTE, 1991, p. 55):

Andar! Pero Marques seja!


Quero tomar por esposo
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja.
Por usar de siso mero
Asno que me leve quero,
E não cavalo folão
Antes lebre que leão;
Antes lavrador que Nero.

Essa comparação se dá por meio da exploração de um provérbio


que equipara os dois personagens (Pêro Marques e o Escudeiro) e suas
atitudes na peça a dois animais (asno, cavalo). Enquanto Pêro Marques
tem atitudes de asno, por ser estúpido, ativo, persistente, serviçal e dese-
legante — note que todas as características são comuns ao animal com-
parado —, o escudeiro é o inverso de um cavalo–ou seja, é mentiroso,
desleal, preguiçoso, cínico e perverso —, embora possua algumas carac-
terísticas em comum — elegante e nobre, talvez. Para Soares Amora:

Gil Vicente ofendeu injustamente o cavalo, comparando–o a um


homem que não tinha quaisquer virtudes. Aqui o autor falhou,
não cumpriu o que propusera. Para ilustrar o “que me derru-

61
Unidade B – Séc. XVI

be” bastava a escravização de Inês […] preocupou–se demasia-


damente com vincar a inferioridade do Escudeiro em relação a
Pêro Marques–ou deu largas à má vontade contra estes parasitas
da Corte. (AMORA, 1984, p. 18)

Há uma simetria perfeita nessa comparação de superioridade, pois


o autor tinha necessidade de deixar transparecer que Pêro Marques e
Lianor — comadre casamenteira — eram superiores ao Escudeiro e ju-
deus casamenteiros. No entanto, o provérbio “não afirma que o asno é
melhor que o cavalo” (AMORA, 1984, p. 20, grifos do autor). Ideal seria
que o cavalo não derrubasse. Inês não encontrou, pois, a felicidade no
amor, mas na vingança, devido ao seu desencanto.

Outro ponto que pode ser destacado na farsa é a tradição que nela
se insere, a educação doméstica da Idade Média: as mães muito direcio-
navam suas filhas em relação às possíveis escolhas, podendo a farsa ser
comparada com as primeiras cantigas trovadorescas galaico–portugue-
sas: “Muitas vezes, mal pecado! É melhor boa simpleza” (VICENTE, 1991,
p. 41). Inês, contudo, não aceita conselhos de ninguém, vivendo entre
dois pólos: a ilusão e a desilusão. Segundo Segismundo Spina em Obras
Primas do Teatro Vicentino, Gil Vicente “não perde a oportunidade de
denunciar […] uma classe que devia na altura estar em decadência: a do
escudeiro pobre.” (SPINA, 1970, p. 171). Sua crítica também é aos cléri-
gos amancebados ou que não respeitam até mesmo senhoras. No auto,
essa afirmação é exemplificada pela fala da personagem Leonor:

Vinha agora por ali


Quando viu seus planos
estragados. Aqui, “voda” Ao redor da minha vinha,
é utilizado no sentido de E um clérigo, mana minha,
boda (de casamento) que
não deu certo. Voda é Por Deus! Lançou mão de mim!
usado ironicamente com […]
sentido de ato sexual, já
que lembra um palavrão. Quando viu revolta a voda
Foi, e esfarrapou–me toda
O cabeção da camisa.

(VICENTE, 1991, p. 18–19)

Há uma tendência em se afirmar a possibilidade de preocupações


moralizantes proporcionadas por Gil Vicente nessa sua obra, mas não é
simples decifrar essa questão. Parece “que a lição fundamental da peça,

62
O teatro de Gil Vicente Capítulo 03
mais por imposição do tema do que por vontade do autor, é esta: uma
injustiça (Escudeiro → Inês) provoca injustiças maiores (Inês → Pêro
Marques)” (AMORA, 1984, p. 26).

Vamos agora caracterizar os personagens principais dessa farsa:

ǿǿ Inês Pereira: é a personagem fundamental, elo e eixo central


da peça; a primeira Inês é solteira, preguiçosa, alegre, gosta de
se divertir, um pouco leviana e geniosa, e não se preocupa com
luxos e riquezas; ela quer um homem que lhe proporcione vida
alegre, ainda que pobre e faminta. A segunda face de Inês apa-
rece quando ela está casada em primeiras núpcias e estranha
as imposições do marido, mas está pronta a obedecer–lhe e a
ser–lhe fiel. A terceira face de Inês, a Inês de Pêro Marques, é o
resultado de transformação profunda provocada pelo compor-
tamento desumano, desleal e cínico do Escudeiro. Essa Inês é
mulher má, que já não acredita no amor nem nos homens.

ǿǿ Pêro Marques: é o segundo marido de Inês associado ao asno. É


um homem estúpido, ingênuo e honesto. Quer ser feliz e espa-
lhar felicidade à sua volta. É um trabalhador que ao longo dos
anos juntou alguns cobres. É o personagem cômico da peça;

ǿǿ Escudeiro Brás da Mata Valo: figura importantíssima na peça.


É o primeiro marido de Inês e associado ao cavalo. Ele transfor-
ma Inês em figura vingativa e explora a ingenuidade de Pêro;

ǿǿ Lianor Vaz: faz papel de confidente e ajuda–nos a conhecer os


sentimentos e intenções de Inês e de Pêro, isto é, o enredo da
farsa;

ǿǿ Mãe: luta quanto pode pela felicidade da filha iludida, o que


torna Inês responsável pela sua escolha e seu arrependimento.
É extremamente compreensiva e, mesmo contrariada, aceita
comemorar as bodas de sua filha;

ǿǿ Judeus Casamenteiros (Latão e Vidal): são amorais e conhe-


cem bem os defeitos do Escudeiro, mas também não ignoram
que Inês seja preguiçosa, vaidosa e leviana. Têm externamente
uma atitude bajuladora, mas na verdade as suas afirmações po-

63
Unidade B – Séc. XVI

dem ser entendidas como críticas severas e justas. Inteligentes


e voluntariosos, adaptam–se a todas as atividades e vingam–se
com ironia;

ǿǿ Moço (Ajudante do Escudeiro): por ele conhecemos a vida, os


sentimentos e as intenções do Escudeiro. É um confidente;

ǿǿ Ermitão: eremita, anacoreta ou monge, vive em um ermo para


se dedicar exclusivamente ao serviço de Deus e à salvação das
almas. Gil Vicente aproveitou–se da personagem do Ermitão
para fazer uma crítica aos falsos religiosos. Figura necessária
para ter um motivo de Inês ser carregada pelo “asno”.

Resumo da Peça
ǿǿ Lianor Vaz propõe Pêro Marques para marido de Inês, mas esta
repele a proposta;

ǿǿ A Mãe aconselha Inês sobre o modo como deve comportar–se


em presença de Pêro Marques;

ǿǿ Troça de Inês;

ǿǿ Monólogo de Pêro Marques;

ǿǿ Conversa de Pêro Marques e Inês;

ǿǿ A Mãe aconselha Inês a casar com P. Marques, mas Inês teima


em não casar com ele;

ǿǿ Os judeus casamenteiros propõem o Escudeiro Brás da Mata


para marido de Inês;

ǿǿ Troça do Escudeiro;

ǿǿ Monólogo do Escudeiro;

ǿǿ A Mãe aconselha Inês sobre o modo como deve se comportar


em presença do Escudeiro;

ǿǿ Conversa do Escudeiro e Inês;

ǿǿ A Mãe aconselha Inês a não casar com o Escudeiro, mas Inês


teima em casar com ele;

64
O teatro de Gil Vicente Capítulo 03
ǿǿ Casamento de Inês com o Escudeiro;

ǿǿ O Escudeiro não consente que a mulher cante, fale com alguém


nem saia de casa;

ǿǿ Justificação cínica para esse procedimento;

ǿǿ O Escudeiro exige do Moço que mantenha a mulher enclau-


surada;

ǿǿ Inês fica em perfeita clausura e o Escudeiro parte para Marrocos;

ǿǿ Reflexões de Inês sobre as desvantagens de ter casado com o


Escudeiro;

ǿǿ Inês recebe a carta do irmão comunicando a morte do Escu-


deiro;

ǿǿ Inês finge estar triste com a notícia;

ǿǿ Reflexões de Inês sobre as vantagens de casar com P. Marques;

ǿǿ Casamento de Inês com P. Marques;

ǿǿ P. Marques dá à mulher toda a liberdade e independência;

ǿǿ Justificação simplória desse procedimento;

ǿǿ Inês resolve ir à ermida encontrar–se com um antigo apaixona-


do. O Marido acompanha–a;

ǿǿ P. Marques leva a mulher às costas e transporta ainda duas lou-


sas. Inês leva o marido a confessar alegremente que é por ela
enganado. (AMORA, 1984, p.16)

Resumindo o enredo temos em Inês Pereira uma moça provincia-


na que se casa por capricho com um escudeiro desempregado. Após o
insucesso do primeiro casamento, vendo–se viúva, escolhe para marido
um caipira rico e tolo, que permite a ela fazer o que ela bem queira.

Analisaremos agora algumas características formais da peça. Antes


de Gil Vicente, o teatro clássico seguia o que era chamado Lei das três
unidades, que se iniciou com Aristóteles. Isso pode ser explicado da
seguinte forma:

65
Unidade B – Séc. XVI

Unidade de ação: Apenas uma ação principal;


Unidade de tempo: Um dia ou apenas um pouco mais;
Unidade de lugar: Único ou poucos lugares.

Gil Vicente toma o caminho oposto a essa disciplina clássica. Seus


Autos e Farsas colocam em cena os mais diversos temas, com inúmeras
situações, grande número de atores e figurantes; dão saltos temporais
Sugerimos que você leia o
texto integral da Farsa de em lugares diversos, não demonstrando nenhuma preocupação unitá-
Inês Pereira. Boa leitura! ria. Como já anotamos anteriormente, há divergências sobre esse tópico.
Outra característica também é a mistura de elementos sérios e cômicos,
passando de um tom a outro sem restrições. Seus personagens represen-
tam todas as classes sociais e a linguagem tem papel fundamental para
tornar mais claras e reais as representações.

O autor utiliza o tom coloquial da fala, gírias, palavrões, ditados


populares, frases feitas etc. E mais: concilia a linguagem corrente com
a poética, uma vez que suas personagens falam em versos de redondi-
lhas maiores e menores (7 ou 5 sílabas, respectivamente), agrupados em
estrofes rimadas. Ele inventou uma fala musical que não perde a espon-
taneidade e incorpora a sonoridade da poesia. Em suas peças há a pre-
sença de música: canções populares, folclóricas, religiosas e palacianas.
Mesmo freqüentando a corte, Gil Vicente é um artista profundamente
enraizado nas tradições populares.

Ele retira do repertório bíblico diversos personagens como anjos,


demônios, Abraão, Moisés, David etc. No Auto da Barca do Inferno
temos duas barcas ancoradas em um braço de rio ou mar. Todos que
chegam ali já estão mortos, e estão ali para ser julgados. Após o jul-
gamento serão embarcados ou para o céu ou para o inferno. No Auto
da Compadecida, de Ariano Suassuna, que você já deve conhecer por
meio do filme de mesmo nome, as personagens são realmente julga-
das, e algumas tem uma nova chance, como a figura de Chicó. No Auto
da Barca do Inferno, as personagens, que na realidade não passam de
estereótipos da sociedade portuguesa medieval, já chegam com seu
destino traçado. Nada que falem vai alterar o seu julgamento. Ao mes-

66
O teatro de Gil Vicente Capítulo 03
mo tempo em que se trata de uma peça com propósito doutrinário, ao
mostrar que só os bons (no caso, os cavaleiros medievais, os cruzados)
irão para o céu, enquanto os pecadores (o padre adúltero, a alcoviteira,
o agiota etc.) vão para o inferno, a peça revela um perfeito painel dos
costumes morais e sociais daquela época.

O Auto da Barca do Inferno é uma obra alegórica. A maioria dos Você não deve confiar
muito no retrato que a
personagens entra na barca acompanhado de algum objeto que mate- peça faz dos cruzados
rializa suas culpas: a alcoviteira está acompanhada de moças as quais ela como santos e bons
homens. Se tiver tempo,
desencaminhou na vida; o agiota, com um saco de dinheiro que repre- leia alguns textos sobre os
senta aqueles que ele tanto explorou; o padre, com sua amante etc. Esses cruzados e verifique que
eles não eram esses gentis
apetrechos significam o apego que eles tinham à vida terrena e aponta e santos homens…
para seus pecados. O objetivo do autor não é só divertir, mas mostrar os
vícios de uma sociedade corrupta e materialista.

Você deve lembrar que duas eram as fontes do teatro medieval: a


vida real e diária das pessoas e a doutrina cristã. Lembre–se que Gil
Vicente era cristão. Ele usava o teatro para criticar os defeitos da Igreja
e da doutrina cristã, já que ele queria reformar a Igreja dentro da pró-
pria Igreja.

Carolina Michaëlis de Vasconcelos, autora de Notas Vicentinas:


Preliminares de uma Edição Crítica das Obras de Gil Vicente, assim de-
finiu este: poeta, pensador, cristão de fé medieval que já vislumbrava
ainda que de longe o sopro humanista do Renascimento, tinha sempre
em mente o mundo do além, preocupava–se com salvação das almas e
com uma vida digna nesta terra, simpatizava–se com os humildes, ingê-
nuos e perseguidos, e antipatizava–se com os prevaricadores e os devas-
sos. Teve uma visão teocêntrica da vida e foi fiel aos valores espirituais
cristãos que nortearam sua visão crítica. Luciana Stegagno Picchio, em
Storia del teatro portoghese, afirma que Gil Vicente não é um fenômeno
isolado e nem sequer improvisado, e que a sua cultura é fruto de uma
longa maturação, em que intervêm todos os motivos que formaram a
grande cultura européia da Idade Média; o seu teatro não é um ponto
de partida, mas, como todas as grandes criações, um ponto de chegada,
uma soma na acepção medieval da palavra. Só com Gil Vicente o teatro
em Portugal adquire segurança, mestria e pleno uso da palavra.

67
Unidade B – Séc. XVI

Faça aqui o seu resumo!

68
A Lírica de Camões Capítulo 04
4 A Lírica de Camões
Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

(Ao desconcerto do Mundo, Luís de Camões)

Luís de Camões

69
Unidade B – Séc. XVI

4.1 O Classicismo
Classicismo é o nome da escola artística do Renascimento. Suas
idéias e realizações são frutos da assimilação da cultura greco–romana
decorrentes dos estudos empreendidos pelos Humanistas. O Renasci-
mento foi preparado pelos Humanistas no final da Idade Média e al-
guns historiadores apontam o Humanismo como uma primeira fase do
Renascimento. Iniciado na Itália, no final do século XV, o Classicismo
difundiu–se pela Europa, ao longo do século XVI. A passagem da Idade
Média para a chamada Idade Moderna foi trepidante. Após sete séculos
de predomínio, o feudalismo entra em declínio. O poder político des-
centralizado do feudalismo dá lugar a um poder concentrado nas mãos
de um rei. Monarcas como D. João II (Portugal), Henrique VIII (Ingla-
terra), Luiz XIV (França) e D. Filipe II (Espanha) instituíram aquilo que
se denomina de monarquia absoluta, ou absolutismo, teorizado por
Maquiavel em sua obra O Príncipe. Essa forma de poder predominará
em toda a Europa até a Revolução Francesa (1789).

A decadência política da aristocracia feudal correspondia à ruína


da economia feudal. O feudalismo, com sua economia agrária fechada,
entra em decadência e surgem as cidades, com sua economia dinâmi-
ca, reaparecendo as moedas e o comércio das mercadorias, as quais são
buscadas até no longínquo Oriente.

Essa nova economia é praticada originalmente pela chamada bur-


guesia, nova classe que surge na sociedade européia e passa a ser geren-
ciada pela coroa, tornando–se, pois, expressão da economia política das
monarquias absolutas, conhecida pela expressão “capitalismo mercan-
til”, ou mercantilismo. As grandes navegações e os grandes descobri-
mentos foram decisivos para o estabelecimento da nova economia. O rei
e a burguesia alcançaram uma posição social muito mais elevada do que
seria possível aos plebeus da Idade Média. O sistema de estamentos, que
estratificava rigidamente a sociedade feudal, começou a desagregar–se e
a ser substituído por uma estrutura flexível e móvel, a chamada socieda-
de de classes, que viria a se realizar plenamente após a Revolução Fran-
cesa. Os nobres decadentes, em grande parte, tornaram–se cortesões,
sendo sustentados pela coroa a que serviam.

70
A Lírica de Camões Capítulo 04
A essas transformações históricas devem ser tomadas aquelas que
abalaram a Igreja de Roma. A decadência do feudalismo foi acompa-
nhada pelo declínio do catolicismo. Em 1517, Martim Lutero entrou
em atrito com a Igreja e isso desencadeou a Reforma Protestante. Lute-
ro fundou sua própria Igreja, que não reconhecia a autoridade do papa,
não cultuava ídolos e imagens, nem aceitava a venda de indulgências.
Seu exemplo foi seguido por muitos outros, entre eles Calvino (Suíça)
e Henrique VIII (Inglaterra), e com isso o poder da Igreja Católica foi
sensivelmente abalado. Para aumentar a crise na Igreja, o renascimento
da cultura clássica e o surgimento da ciência moderna foram golpes fa-
tais para a filosofia escolástica e o teocentrismo.

Segundo a Escolástica, o papel da filosofia não seria o da pesquisa da


verdade, uma vez que essa teria sido revelada por Deus e estaria contida
no livro sagrado; à filosofia caberia a tarefa de comentar a revelação divina,
para esclarecê–la. Assim, a razão estaria subordinada ao imperativo da fé.
O Renascimento, ao contrário, estimulou a curiosidade intelectual, abrin-
do caminho para investigações conflitantes com a filosofia escolástica, uma
vez que adotava a liberdade de pensamento como critério, e se dispunha a
examinar as questões sem curvar–se perante os dogmas da Igreja.

Influenciados pelo pensamento do Humanismo, estudiosos renas-


centistas voltaram suas atenções para a natureza. A orientação de suas
investigações era dada pela observação dos fenômenos físicos e a aná-
lise racional dos fatos observados. Os fundadores da ciência moderna
valorizavam o empirismo, submetendo a teoria racional à prova expe-
rimental, isto é, o conhecimento teórico deveria ser confrontado com a
experiência. Considerada a natureza como tal, à luz da razão e da expe-
riência, sem vinculá–la à teologia, a ciência moderna nascia, em conflito
como o teocentrismo da Igreja.

A Igreja teocêntrica, adotando o sistema de Ptolomeu, considera-


va a Terra centro estático do universo (geocentrismo). Quando Nicolau
Copérnico (1473–1543) demonstrou que a Terra não era o centro e que
girava em torno do Sol (heliocentrismo), a cosmologia ptolomaica, acei-
ta pela Igreja, foi abalada irremediavelmente. Assim uma das bases do
teocentrismo ficou inutilizada, por isso a Igreja combateu a nova teoria,
perseguindo adeptos dela, principalmente Galileu Galilei (1564–1642).

71
Unidade B – Séc. XVI

Com tantos e tão graves problemas, a Igreja decidiu passar por


uma enérgica reestruturação, querendo reverter a posição defensi-
va em ofensiva. Para isso foram organizados a Companhia de Jesus, a
Inquisição e o Concílio de Trento (1545–1563), que desencadearam a
Contra–Reforma.

A ação da Contra–Reforma sobre a cultura foi muito forte. É o que


se vê, no fim do século XVI e ao longo do século XVII, na arte barroca
dos países católicos. No entanto, antes disso acontecer, os artistas do Re-
nascimento já haviam realizado uma das grandes revoluções da história
da arte: o Classicismo.

Frisamos também a importância do aperfeiçoamento da impren-


sa para divulgação de novas idéias. Várias obras gregas e latinas, tanto
literárias como filosóficas e científicas, foram traduzidas e difundidas
por meio impresso. A filologia desenvolveu–se e surgiram as primeiras
gramáticas das línguas modernas européias.

Assim como a ciência, a arte do Renascimento voltou–se decidida-


mente para a natureza. Entendia–se que a obra de arte deveria imitar a
Conceito discutido na natureza. Os renascentistas encontraram em Aristóteles esse conceito,
Poética de Aristóteles. que definia a arte como mimese (imitação da natureza; imitação da rea-
lidade; imitação da vida).

O Classicismo do Renascimento é o culto e a prática dos valores


Alguns deles você viu na
disciplina de Teoria da artísticos presentes nos autores da Antiguidade greco–romana. Autores
Literatura I! clássicos gregos como Homero, autor de A Ilíada e A Odisséia, drama-
turgos como Ésquilo, Sófocles, Eurípides, dramaturgos cômicos como
Aristófanes, poetas líricos como Safo e Anacreonte, historiadores como
Heródoto e os latinos Virgílio, autor de Eneida, poetas como Horácio e
Sobre a produção dos Catulo, oradores como Cícero e pensadores como Sêneca, comediógrafos
poetas e pensadores
romanos, você poderá como Plauto e Terêncio, foram retomados e influenciaram o pensamento
acompanhar melhor na renascentista, mas é Platão e Aristóteles que constituem a base teórica do
disciplina de Estudos
Literários I. Renascimento. O pensamento desses dois filósofos constitui a arquitetura
e o arcabouço intelectual do Renascimento (RODRIGUES, 1993, p. 10).

Os escritores e pensadores do Renascimento estudaram e imita-


ram os clássicos da antiguidade, voltando à prática de formas e gêneros
literários antigos, como a epopéia, a ode, a elegia, a tragédia, a comédia

72
A Lírica de Camões Capítulo 04
etc. Se a palavra Classicismo foi criada a partir do século XVIII, o termo
classicus foi empregado pela primeira vez por Aulo Gélio (130–175). O
gramático latino emprega o termo scriptor classicus como aquele que
escreve de maneira exemplar, clara, excelente, e que deve ser estudado
e imitado nas classes de aula. Os renascentistas assimilaram também a
idéia grega de que a arte é expressão de Beleza.

Os gregos antigos definiam Beleza associando–a à idéia de Bem.


Antigamente, quando os adjetivos gregos kalós (belo) e agathós (bom)
eram pronunciados juntos, substantivados na palavra kalokagathia, in-
dicava–se o modelo de perfeição a que o homem deveria aspirar e per-
seguir; uma perfeição simultaneamente estética e ética que a arte busca
expressar: Beleza é bem; Bem é Beleza.

Serenidade, Sobriedade e Racionalismo são três características


do Classicismo, também decorrentes da sabedoria grega, que recomen-
dava: nada em excesso. A razão deveria predominar sobre a emoção.

Esse lema influi ainda em várias outras características clássicas,


particularmente nas formais. A forma clássica aspira ao equilíbrio e à
harmonia da composição; está atenta ao senso de proporções; trabalha
a linguagem com clareza e concisão; enfim, busca o rigor e a perfeição
formal, obedecendo aos tratados de arte poética que consagravam mo-
delos e regras a serem seguidos.

O ideal de perfeição indica mais uma importante característica


clássica: o universalismo. O universalismo, na arte, é observável quan-
do o geral supera o particular e as partes estão subordinadas ao todo.
Na literatura clássica, o universalismo confunde–se com o idealismo, de
inspiração platônica. Segundo Platão, as coisas do mundo sensível são
efêmeras imagens imperfeitas das formas ideais, perfeitas, que vivem
eternamente em um mundo superior ao nosso, o mundo inteligível. As-
sim, o artista clássico valoriza os conceitos gerais (universais), as idéias,
que comumente se expressam em palavras iniciadas por letras maiús-
culas, sem necessidade gramatical (Beleza, Amor, Real etc.). O homem
passa a ser a medida de todas as coisas. Podem ser apontados como
valores e ideais defendidos pelo Renascimento: o Antropocentrismo, o
Hedonismo, o Racionalismo, o Otimismo e o Individualismo.

73
Unidade B – Séc. XVI

O Renascimento e o Classicismo do século XVI revitalizaram a


herança greco–romana, combinando–a com o legado do Cristianismo,
Segundo a visão judaico– de maneira a dar a este e àquela novos significados e perspectivas. Na
cristã, Deus transcende
o mundo material, isto prática literária, a mescla de motivos pagãos com cristãos é chamada
é, está fora e acima dele. de Fusionismo.
Segundo a visão greco–
romana, Deus é imanente
ao mundo, ou seja, Ele é o
Com a combinação de cultura judaico–cristã e greco–romana ca-
próprio universo, identifi- racterizada pelas relações algo contraditórias entre uma visão de mun-
cando–se e revelando–se
na natureza; tudo o que
do transcendentalista (judaico–cristianismo) e uma visão de mundo
existe participa da divin- imanentista (paganismo), o Renascimento forjou o caráter peculiar da
dade (panteísmo).
civilização ocidental.

Citamos em seguida apenas alguns dos grandes pensadores, escri-


tores e pintores renascentistas: Giotto, Dante Alighieri, Boccaccio, Pe-
trarca, Mantegna, Botticelli, Leonardo da Vinci, Rafael, Ariosto, Tor-
quato Tasso, Nicolau Maquiavel, Rafael e Michelangelo.

Em Portugal, o Quinhentismo–Classicismo teve início em 1527,


quando do retorno do poeta Sá de Miranda da Itália, onde vivera vários
anos para estudos. Na bagagem, trazia novas técnicas versificatórias, o
dolce stil nuovo. Além de introduzir no país o decassílabo — medida
nova — em oposição à redondilha medieval (5 ou 7 sílabas), que passou
a ser chamada de medida velha, trouxe uma nova conceituação artística.
Devemos entender, portanto, que Sá de Miranda não trouxe para Portu-
gal apenas um verso de medida diferente, mas um gosto poético refinado.
Juntamente com o decassílabo, passaram a ser cultivadas novas formas
É preciso lembrar que a fixas de poesia, como o soneto, a ode, a écloga, a elegia e a epístola.
substituição do verso re-
dondilha (medida velha), Relacionamos a seguir acontecimentos marcantes da história por-
característico da Idade
Média, pelo decassílabo tuguesa que definiram o Renascimento em Portugal: o desenvolvimento
(medida nova) não se deu da Escola de Sagres, fundada por D. Henrique; a liberdade predominante
de forma imediata, pois
ambas as medidas convi- durante a dinastia de Avis; o absolutismo e o mercantilismo português; as
veram por grande parte grandes navegações; o império colonial ultramarino que se estendia do
do século XV.
Oriente ao Ocidente; Lisboa afirma–se como A Metrópole do Comércio
das Navegações e das Conquistas e Portugal é considerado o cais do mun-
do. Some–se a isso tudo a tomada de Ceuta na África (1415), a descoberta
do Brasil (1500), a conquista do porto de Goa na China (1510), a viagem
de Vasco da Gama às Índias, a viagem de Bartolomeu Dias, que alcançou o
Cabo da Boa Esperança, e a fundação do Colégio Real das Artes (1550).

74
A Lírica de Camões Capítulo 04
Além das questões econômicas (a busca de ouro, riquezas e espe-
ciarias), o que impelia o povo português para o imperialismo colonia-
lista era o objetivo de expandir o cristianismo, lutar contra os mouros e
preservar a fé cristã.

Com relação à literatura, a obra de Gil Vicente já mostrava a im-


portância do teatro português. A estruturação e o uso da língua por-
tuguesa se confirmam com o surgimento ou a reafirmação de autores
de produção regular como João de Barros, Damião de Góis e Fernão
Mendes Pinto nos estudos históricos, e Sá de Miranda, Antônio Ferreira
e Luís de Camões na literatura.

Os maiores representantes do Classicismo em Portugal foram Ber-


nadim Ribeiro (1482–1553), com a publicação da novela sentimental
Menina e Moça, Antônio Ferreira (1528–1569) com a chamada tragédia
clássica e sua peça Castro e, principalmente, Luis Vaz de Camões com
sua obra lírica, composta por centenas de sonetos, e a obra épica Os
Lusíadas. Selecionamos desse período obviamente Camões, porque ele
foi o mais importante poeta do classicismo português, sendo sua maior
obra, Os Lusíadas, a maior epopéia já escrita em português.

4.2 Biografia de Camões


A biografia completa de Camões pode ser consultada no site da
Wikipedia. Abaixo, o resumo de sua vida extraída deste site.
http://pt.wikipedia.org/
Luís Vaz de Camões (c. 1524–10/06/1580) é considerado por muitos wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_
como o maior poeta de língua portuguesa e dos maiores da humanida- de_Cam%C3%B5es. Aces-
sado em 30/3/2008.
de. O seu gênio é comparável ao de Virgílio, Dante, Cervantes ou Shakes-
peare. Das suas obras, destacam–se a epopéia Os Lusíadas e os sonetos
que compõem a parte lírica.

Há mais dúvidas que certezas na vida de Camões, porque naquela épo-


ca só os reis tinham biógrafos, portanto o que se segue é uma das pro-
váveis biografias do poeta. Camões teria nascido em Lisboa, Coimbra
ou Alenquer, de uma família de origem galega que se fixou primeiro
no Norte (Chaves) e depois irradiou para Coimbra e Lisboa. Foi seu pai
Simão Vaz de Camões e a mãe Ana de Sá e Macedo. Por via paterna,
Camões seria trineto do trovador galego Vasco Pires de Camões e, por
via materna, aparentado com o navegador Vasco da Gama. Entre 1542

75
Unidade B – Séc. XVI

e 1545, viveu em Lisboa, trocando os estudos pelo ambiente da corte


de D. João III, conquistando fama de poeta.

Viveu algum tempo em Coimbra, onde teria freqüentado o curso de Hu-


manidades, talvez no Mosteiro de Santa Cruz, onde tinha um tio padre, D.
Bento de Camões. Não há registros da passagem do poeta por Coimbra.
Em todo o caso, a cultura refinada e a sólida formação erudita dos seus
escritos torna a única universidade de Portugal do tempo como o lugar
mais provável de seus estudos. Ligado à casa do Conde de Linhares, D.
Francisco de Noronha, e talvez preceptor do filho D. António, segue para
Ceuta em 1549 e por lá fica até 1551. A aventura era comum na carreira
militar dos jovens. Numa batalha em Ceuta teve um dos olhos vazados
por uma seta, pela fúria rara de Marte, e essa marca vai incorporar–se à
imagem que a História consagrou do poeta. Mesmo cego de um olho,
manteve as suas potencialidades de combate. A carreira das armas era
uma boa oportunidade para fidalgos pobres como ele.

De regresso a Lisboa, não tarda em retomar a vida boêmia, envolven-


do–se em brigas com fidalgos arruaceiros, o que lhe rendeu o apelido
de Trinca–Fortes. A ele são atribuídos vários amores, não só por damas
da corte, mas até pela própria irmã do Rei D. Manuel I. Teria caído em
desgraça, a ponto de ser desterrado para Constância. Não há, porém, o
menor fundamento documental. No dia de Corpus Christi de 1552 en-
tra em rixa e fere um certo Gonçalo Borges. Preso, é libertado por carta
régia de perdão de 7 de Março de 1553, embarcando para a Índia na
armada de Fernão Álvares Cabral, a 24 desse mesmo mês.

Chegando a Goa, Camões toma parte na expedição do vice–rei D. Afon-


so de Noronha contra o Rei de Chembe, conhecido como o rei da pi-
menta. Depois Camões fixa–se em Goa, onde escreve grande parte da
sua obra épica. Considera a cidade como uma madrasta de todos os
homens honestos. Lá estuda os costumes de cristãos e hindus, a geo-
grafia e a história locais. Toma parte em mais expedições militares. Entre
fevereiro e novembro de 1554 vai na armada de D. Fernando de Mene-
ses, constituída por mais de 1000 homens e 30 embarcações, ao Golfo
Pérsico, aí sentindo a amargura expressa na canção Junto de um seco,
fero e estéril monte. No regresso é nomeado “provedor–mor dos defun-
tos nas partes da China”, pelo Governador Francisco Barreto, para quem
escreverá o Auto do Filodemo.

Em 1556 parte para Macau, onde continua seus escritos. Vive numa céle-
bre gruta com o seu nome e por aí escreverá boa parte de Os Lusíadas.
Naufraga na foz do rio Mekong (acontecimento abordado na estrofe

76
A Lírica de Camões Capítulo 04
128 do canto X), onde conserva de forma heróica o manuscrito d’Os
Lusíadas então já adiantados. No naufrágio morre a sua companheira
chinesa Dinamene, celebrada em série de sonetos.

Regressa a Goa antes de agosto de 1560 e pede a proteção do Vice–Rei


D. Constantino de Bragança, num longo poema em oitavas. Aprisiona-
do por dívidas, dirige súplicas em verso ao novo Vice–Rei, D. Francisco
Coutinho, Conde do Redondo, para ser liberto. Em 1568, vai para a Ilha
de Moçambique, onde, passados dois anos, Diogo do Couto o encontra,
como relata na sua obra, acrescentando que o poeta está “tão pobre que
vivia de amigos”. Trabalha então na revisão de Os Lusíadas e na compo-
sição de Um Parnaso de Luís de Camões, com poesia, filosofia e outras
ciências, obra roubada. Diogo do Couto paga–lhe o resto da viagem até
Lisboa, onde Camões aporta em 1570. Em 1580, de regresso a Lisboa,
assiste à partida do exército português para o norte de África e morre
em uma casa de Santana, em Lisboa, sendo enterrado em campa rasa
numa das igrejas das proximidades. O espólio de Camões é constituído
de 126 redondilhas, 204 Sonetos, 8 éclogas, 13 odes, 1 sextina, 5 oitavas,
10 elegias, 11 canções, além de Os Lusíadas. Falta mencionar ainda o
teatro de Camões: Filodemo, El–Rei Seleuco e Os Anfitriões.

4.3 Os Sonetos
Muito antes de compor seus sonetos, Camões também chegou a
compor na chamada Medida Velha. Essas composições caracteriza-
vam–se pelo uso de cinco sílabas (redondilha menor) e de sete sílabas
(redondilha maior). Você poderá observar a seguir que Camões foi in-
fluenciado pela tradição popular do Trovadorismo, o qual você já co-
nhece. Ele apreciava a musicalidade e a temática das Cantigas. Observe
a influência da lírica trovadoresca na composição chamada vilancete:

MOTE
Descalça vai pera a fonte
Lianor, pela verdura;
vai fermosa e não segura.

VOLTE
Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,

77
Unidade B – Séc. XVI

cinta de fina escarlata,


sainho de chamalote;
traz a vasquinha de cote,

mais branca que a neve pura;


vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,


cabelos d’ ouro o trançado,
fita de cor d’ encarnado…
Tão linda que o mundo espanta!
Chove nela graça tanta
que dá graça à fermosura;
vai fermosa, e não segura.

(CAMÕES, 1980a, p. 26)

Observe que o mote representa uma espécie de chamamento, de mo-


tivação para o que será desenvolvido nas voltas. Isso é muito utilizado
pelos repentistas nordestinos e pelos desafios dos cantores gaúchos acom-
panhados de suas sanfonas. É a partir do mote que o poeta cria o poema.

Camões trabalhou com os mais variados formatos de composição:


odes, éclogas, elegias e sonetos. Em 1527, Sá de Miranda traz da Itália a
chamada Medida Nova, que refletia a tendência da recuperação da esté-
tica clássica. Retomava o uso de formas da poesia greco–latina, conser-
vando as rígidas regras que estabeleciam um modo específico de se criar
com cada forma. Petrarca fez o soneto tornar–se a composição lírica mais
famosa do ocidente, a qual sobrevive há 700 anos. É dessa maneira que
Camões se volta para a composição chamada Soneto e a leva à perfeição.

O soneto resistiu ao desprezo dos iluministas e foi cultivado no sé-


culo XIX por românticos, parnasianos e simbolistas. No século XX
sobreviveu à revolução do verso livre modernista e destacou–se na
obra de modernistas radicais como Apollinaire e Fernando Pessoa.
No Brasil tivemos grandes sonetistas, como Cláudio Manuel da Cos-
ta, Alphonsus de Guimarães e Cruz e Souza.

78
A Lírica de Camões Capítulo 04
O soneto tem uma sonoridade toda especial. Na realidade um so-
neto é uma obra curta criada para transmitir uma mensagem em seus
14 versos, em geral rimados e divididos em dois quartetos (grupos de
quatro versos) e dois tercetos (três versos). Admite número restrito de
variações quanto à forma, e segue normas rigorosas quanto ao conteúdo
e desenvolvimento do tema. A rigidez de seus traços possibilitou que
atingisse o fim do século XX intacto, tal como o praticaram os grandes
sonetistas que o fixaram: Dante, Petrarca, Shakespeare e Camões.

Com relação à métrica, em primeiro lugar, os versos devem pos-


suir a mesma métrica, ou seja, o mesmo número de sílabas poéticas.
Uma sílaba poética é bem diferente de uma sílaba comum. É possível
unir duas ou mais palavras em apenas uma sílaba poética. Observe a
seguir um dos sonetos de Camões:

Busque Amor novas artes, novo engenho


Pera matar–me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar–me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!


Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto


Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto


Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.

(RODRIGUES, 1993, p. 45)

Busque ler o primeiro verso devagar, como se fosse uma só palavra,


e conte quantas pausas existem até a última sílaba tônica:

79
Unidade B – Séc. XVI

Você encontrou as dez sílabas poéticas, certo? Repare que a expres-


são “busque amor”, ao invés das quatro sílabas comuns (bus–que–a–
mor), tem na poesia apenas três sílabas. Costuma–se contar as sílabas
poéticas como sendo a forma em que são “ouvidos” os versos, por isso a
sonoridade é importante em um soneto. Observe também que a última
sílaba poética não é contada, porque as sílabas de um verso só são con-
tadas até a última sílaba tônica presente na linha.

A idéia do amor cantada por Camões é a que você já conhece dos


trovadores e que fora renovada por Dante e por Petrarca: o amor é uma
inspiração que engrandece e apura o espírito do amante, e não pode con-
sumar–se, sob pena de se extinguir; tem que haver sempre um sofrimen-
to e um desejo insatisfeito. O amor deve ser prolongado e não consuma-
do. Tudo isso e muito mais pode ser observado no soneto a seguir:

Amor é fogo que arde sem se ver,


é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer:


é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar–se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;


é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor


nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

(RODRIGUES, 1993, p. 43)

Nesse soneto, você observou uma série de antíteses, as oposições: con-


tentamento x descontente, dor x sem dor. Lembre–se sempre que a antítese
é a figura principal dos sonetos camonianos, porque revela as contradições
inerentes ao ser humano. Observe como esse soneto é retomado por Rena-
to Russo na letra da música Monte Castelo, do grupo Legião Urbana:

80
A Lírica de Camões Capítulo 04
Monte Castelo

Ainda que eu falasse


A língua dos homens
E falasse a língua do anjos
Sem amor, eu nada seria…

É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja
Ou se envaidece…

O amor é o fogo
Que arde sem se ver
É ferida que dói
E não se sente
É um contentamento
Descontente
É dor que desatina sem doer…

Ainda que eu falasse


A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria…

É um não querer
Mais que bem querer
É solitário andar
Por entre a gente
É um não contentar–se
De contente
É cuidar que se ganha
Em se perder…

É um estar–se preso
Por vontade
É servir a quem vence

81
Unidade B – Séc. XVI

O vencedor
É um ter com quem nos mata
A lealdade
Tão contrário a si
É o mesmo amor…

Estou acordado
E todos dormem, todos dormem
Todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade…

Ainda que eu falasse


A língua dos homens
E falasse a língua do anjos
Sem amor, eu nada seria…

(RUSSO, 1989, faixa 2)

Renato Russo faz uma genial mistura do soneto camoniano Amor é


um fogo que arde sem se ver com o texto do Apóstolo Paulo, retirado do
capítulo 13 da Primeira carta aos Coríntios:

O texto de 1Co 13.1–13 é o seguinte: “Ainda que eu falasse as lín-


guas dos homens e dos anjos e não tivesse caridade, seria como o
metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom
de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda
que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes,
e não tivesse caridade, nada seria. E ainda que distribuísse toda a
minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o
meu corpo para ser queimado, se não tivesse caridade, nada disso
me aproveitaria.

82
A Lírica de Camões Capítulo 04
A caridade é sofredora, é benigna; a caridade não é invejosa, a carida-
de não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com
indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita
mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre,
tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade nunca falha; mas,
havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; ha-
vendo ciência, desaparecerá; porque, em parte conhecemos e, em
parte profetizamos. Mas, quando vier o que é perfeito, então o que
o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como
menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que
cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque, ago-
ra, vemos por espelho em enigma; mas, então, veremos face a face;
agora, conheço em parte, mas, então, conhecerei como também sou
conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade,
estas três; mas a maior destas é a caridade.” (ALMEIDA, 2000, p. 243)

O soneto a seguir revela que o amador pode transformar–se na coi-


sa amada, a fusão de quem ama com quem é amado. Camões escreve o
soneto baseado no conhecido verso L’amante nell’amato si transforma,
do poeta Petrarca:

Transforma–se o amador na cousa amada,


Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,


Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e pura semidéia,


Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Está no pensamento como idéia;

83
Unidade B – Séc. XVI

E o vivo e puro amor de que sou feito,


Como a matéria simples, busca a forma.

(RODRIGUES, 1993, p. 44)

Esse soneto é sempre apontado como exemplo máximo do plato-


nismo em Camões. De tanto pensar na amada, o amante se esquece de
si, a ponto de transformar–se na própria imagem obsessiva da amada,
que o habita tiranicamente. Como conseqüência, aquele que ama não
precisa desejar mais nada, pois no amado está a parte desejada.

O próximo soneto é uma recriação do episódio do livro de Gênesis


29:9–31. Você poderá ler o texto bíblico que narra como Jacó trabalhou
7 anos para seu sogro em troca de se casar com Raquel. Foi enganado
por Labão, que na noite de núpcias lhe deu a filha mais velha, a Lia.
Assim, Jacó trabalha mais 7 anos, totalizando 14 anos, por amor a sua
pastora Raquel, e o soneto celebra a fidelidade e a constância do amor:

Sete anos de pastor Jacob servia


Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,


Passava, contentando–se com vê–la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos


Lhe fora assi negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;
Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: — Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

(RODRIGUES, 1993, p. 17)

Não se esqueça que o Renascimento também valorizou as tradições


judaicas e cristãs: o Antigo e o Novo Testamento. Grandes obras do Renas-

84
A Lírica de Camões Capítulo 04
cimento enfatizaram a vida de Cristo e episódios bíblicos. O fato de que os
renascentistas não acatavam mais a ideologia clerical não quer dizer que
não tenham tido religiosidade. O fato de que a antiguidade grega e latina
foi retomada não quer dizer que a antiguidade bíblica tenha sido rejeitada.
Ocorre que os episódios bíblicos em Camões sofreram uma releitura, o
que interessava era o amor, o sofrimento, e não o aspecto religioso em si.

O soneto a seguir foi um dos inúmeros dedicados à Dinamene,


a chinesa amada por Camões e que morreu em um naufrágio. Aqui o
platonismo consiste em ver a mulher amada como um ser que passou
a pertencer, com a morte, a um universo mais puro e verdadeiro, não
mais rebaixado pelos sentidos e pela matéria deste mundo. O ser amado
possui uma verdade a que o amante não pode ter acesso, a formosura
suprema só é possível em outra vida, num mundo de idéias:

1/ 2 / 3/ 4 / 5 / 6/ 7 / 8/ 9 /10

Alma minha gentil, que te partiste


Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,


Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer–te


Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder–te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver–te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

(RODRIGUES, 1993, p. 17)

O soneto a seguir aborda a questão da efemeridade das coisas e o


desconcerto do mundo, ou seja, o contraste entre o mundo tal como de-
veria ser e o mundo tal como é, o efeito do tempo que causa mudanças:

85
Unidade B – Séc. XVI

Mudam–se os tempos, mudam–se as vontades,


Muda–se o ser, muda–se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,


Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,


Que já coberto foi de neve fria,
E enfim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar–se cada dia,


Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

(RODRIGUES, 1993, p. 31)

A lírica camoniana está marcada por uma visão de mundo dinâ-


mica. A natureza e o homem, com seus sentimentos e afetos estão su-
jeitos a mudanças. Essa mudança é a essência das coisas. Para o ho-
mem, contudo, parece que as mudanças são sempre para pior e de nada
adianta estar prevenido, pois a mudança é imprevisível, uma vez que ela
própria muda também. Foi Heráclito, filósofo grego, quem afirmou que
nada permanece o que é, tudo muda, tudo entra em contradição com o
que era antes. Para ele o mundo não passava de uma eterna guerra de
contradições e mudanças. Camões foi influenciado pelas idéias desse
filósofo. Para Camões as mudanças implicam em uma degeneração do
mundo, em um desconcerto do mundo. Como você notou no verso final
do soneto anterior, até a mudança é instável.

Desde o início deste Capítulo vimos apontando Camões como um


escritor clássico, e ele efetivamente o é. No entanto, a maior parte das
composições líricas apresenta uma inquietude, um desequilíbrio, uma
imperfeição, dúvidas, contradições, perplexidade, um dinamismo tur-
bulento, um pessimismo que contrasta com a sobriedade clássica. As ca-

86
A Lírica de Camões Capítulo 04
racterísticas clássicas como equilíbrio, perfeição, otimismo, continuam
presentes em alguns sonetos, mas às vezes sentimos instabilidade, quase
uma iminência de ruptura com os padrões clássicos. Essa instabilidade
é sugerida pelo tom apaixonado dos temas e dos sonetos, uso de troca-
dilhos, paradoxos, antíteses, oxímoros, hipérboles, sintaxe sinuosa, tudo
isso destoando da serenidade clássica. Quando isso se verifica é porque
Camões adota um estilo que chamamos Maneirismo. Esse estilo de-
riva do Classicismo e vigora paralelamente a ele. O estilo Maneirista
corresponde à contradição entre o ideal de equilíbrio e a realidade de-
sequilibrada. O Maneirismo aponta para uma idéia de crise dentro do
Classicismo e marca a crise da fase final do Renascimento, a transição
do Renascimento para o Barroco. Alguns historiadores preferem ver o
Maneirismo não como uma fase, mas sim como um estilo de arte; seu
início é evidente quando o Renascimento entra em decadência.

A efemeridade das coisas, o desconcerto do mundo, o passar do


tempo, o pessimismo, são temas maneiristas. A seguir, mais um soneto
de inspiração maneirista:

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,


A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora


Qualquer ingratidão, qualquer dureza,
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro


E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança;

Mas de abrandar o tempo estou seguro


O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

(CAMÕES, 1980a, p. 78)

87
Unidade B – Séc. XVI

Na lírica maneirista portuguesa, o tema da fuga do tempo e das


suas conseqüências manifesta–se tão reiteradamente nos sonetos camo-
nianos que revela uma obsessão por esta temática, a esse respeito suge-
rimos consultar a obra Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa
(1971), de Vítor M. de Aguiar e Silva. Você pode comparar isso pelos
dois sonetos aqui analisados: Mudam–se os tempos, mudam–se as von-
tades e O tempo acaba o ano, o mês e a hora, além de dezenas de outros
que você encontrará em qualquer boa antologia da lírica do poeta.

Outro tema sempre abordado pelo poeta é o pessimismo de quem


chega ao final da vida, faz um balanço e vê que errou em tudo:

Erros meus, má fortuna, amor ardente


Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente


A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;


Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.


Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

(RODRIGUES, 1993, p. 26)

Como você pode ter notado classificar o estilo dos sonetos de Ca-
mões não é tarefa fácil. Camões mescla, assimila, transforma as influ-
ências que recebe, tentando acomodá–las e expressá–las por meio de
seus dramas íntimos, em nada otimista. Afirmar, portanto que os sone-
tos camonianos são em sua maioria maneiristas é a classificação mais
acertada, já que os traços maneiristas revelam os sinais de uma crise,
em que o pessimismo e o desencanto começam a minar o otimismo do

88
A Lírica de Camões Capítulo 04
Renascimento. Sobre este assunto, a terminologia é um pouco delicada,
pois é comum o termo clássico, humanista, renascentista, maneirista
serem costumeiramente usados, sem muito rigor, talvez por causa da
Posição defendida por
semelhança dos temas tratados, um termo, às vezes, é usado no lugar de
Antonio Medina Rodri-
outro. A classificação geral é que os sonetos camonianos são clássico–re- gues (1993) em sua obra
Sonetos de Camões, p. 21,
nascentistas, para o conjunto dos sonetos de Camões, e isto não é, afinal,
de onde retiramos parte
basicamente errada, contudo é um tanto imprecisa. do parágrafo.

4.4 Camões: um poeta concretista?


Você já deve ter ouvido falar no movimento literário intitulado
Concretismo, que surgiu no Brasil em torno de 1950. Resumidamente,
podemos afirmar que se trata de um movimento que procurava acabar
com a distinção entre forma e conteúdo e criar uma nova linguagem que
priorizasse o uso de recursos visuais com a disposição geométrica das
palavras sobre a página, usando diversas cores e diversos tipos de letras.
No Brasil os principais representantes da chamada Poesia Concreta são
Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. Sobre a poesia concre-
tista consulte os endere-
ços <http://educaterra.
Pois Camões foi quase quinhentos anos antes, à sua maneira, um terra.com.br/literatura/
concretista. Quando uma dama chamou o poeta de cara sem olhos, litcont/2003/04/22/001.
htm> e <http://www.
ele responde com estes versos galanteadores, poema intitulado A Uma revista.agulha.nom.br/
Dama que lhe Chamou Cara sem Olhos: com.html>

Sem olhos vi o mal claro


que dos olhos se seguiu,
pois cara–sem–olhos viu
olhos que lhe custam caro.
De olhos não faço menção,
pois quereis que olhos não sejam;
vendo–vos, olhos sobejam,
não vos vendo, olhos não são.

(CAMÕES, 1980a, p.50)

Bem, a dama o chama de cara sem olhos, provavelmente porque


Camões não tinha o olho direito que perdeu em batalha de 1549, em
uma escaramuça contra os Mouros, em Ceuta. Observe como o poeta
arranja/diagramatiza cuidadosamente a palavra olhos, deslocando–a da

89
Unidade B – Séc. XVI

direita para a esquerda, de tal forma que obriga o leitor a mover os seus
olhos acompanhando visualmente o deslocamento da palavra olhos.
Está querendo responder ao desafio da desaforada dama, mostrando o
movimento do olhar, que os olhos sobejam. O crítico Antônio José Sarai-
va denomina esse estilo de composição como estilo engenhoso, ou seja,
um virtuosismo visual, preterindo a imagem sensorial, que caracteriza
a maioria dos seus sonetos, pelo aspecto geométrico da composição, o
brincar com as palavras, a utilização da palavra como um objeto car-
regado de virtualidade. A esse respeito, sugerimos consultar, dentre as
publicações de Saraiva, a obra Luís de Camões (1959).

Observemos agora outro soneto, em que Camões se preocupa em


distribuir as palavras, pensando nas múltiplas possibilidades de leitura.
Primeiramente vamos ler o soneto como ele se apresenta:

– Que esperais, Esperança?–Desespero.


– Quem disso a causa foi?–Uma mudança.
– Vós, vida, como estais?–Sem esperança.
–Que dizeis, coração?–Que muito quero.

– Que sentis, alma, vós?–Que amor é fero.


– E enfim, como viveis?–Sem confiança.
– Quem vos sustenta, logo?– Uma lembrança.
– E só nela esperais?– Só nela espero.

– Em que podeis parar?–Nisto em que estou.


– E em que estais vós?–Em acabar a vida.
– E tende–lo por bem?– Amor o quer.

– Quem vos obriga assi m?–Saber que sou.


E quem sois?– Quem de todo está rendida.
– A quem rendida estais?– A um só querer.

(CAMÕES, 1980a, p. 79)

Em um primeiro e rápido exame, notamos que se trata de um sone-


to, com dois quartetos e dois tercetos, versos decassílabos. No entanto, se
aprofundarmos nossa análise, constataremos que se trata de um soneto
diferente dos demais, porque possui um diálogo. Alguém pergunta: Que

90
A Lírica de Camões Capítulo 04
esperais, Esperança? E outra pessoa responde: Desespero. O virtuosismo
visual da poesia concreta pode ser observado nas diversas maneiras que
podemos ler o soneto. Vamos para a primeira possibilidade:

– Que esperais, Esperança? – Desespero.


– Quem disso a causa foi? – Uma mudança.
– Vós, vida, como estais? – Sem esperança.
– Que dizeis, coração? – Que muito quero.

– Que sentis, alma, vós? – Que amor é fero.


– E enfim, como viveis? – Sem confiança.
– Quem vos sustenta, logo? – Uma lembrança.
– E só nela esperais? – Só nela espero.

– Em que podeis parar? – Nisto em que estou.


– E em que estais vós? – Em acabar a vida.
– E tende–lo por bem? – Amor o quer.

– Quem vos obriga assim? – Saber que sou.


– E quem sois? – Quem de todo está rendida.
– A quem rendida estais? – A um só querer.

A primeira possibilidade de leitura é essa. Você pode ler toda a pri-


meira parte em destaque como uma poesia separada da segunda parte
que, mesmo assim, ela fará sentido, e então você terá um poema só de
perguntas. E pode ler só a segunda parte, como um poema indepen-
dente, que também fará sentido, um poema só de respostas. A outra
possibilidade de leitura é fazer um cruzamento alternado das perguntas
com respostas de outra linha:

– Que esperais, Esperança? – Desespero.


– Quem disso a causa foi? – Uma mudança.
– Vós, vida, como estais? – Sem esperança.
– Que dizeis, coração? – Que muito quero.

– Que sentis, alma, vós? – Que amor é fero.


– E enfim, como viveis? – Sem confiança.
– Quem vos sustenta, logo? – Uma lembrança.
– E só nela esperais? – Só nela espero.

91
Unidade B – Séc. XVI

– Em que podeis parar? – Nisto em que estou.


– E em que estais vós? – Em acabar a vida.
– E tende–lo por bem? – Amor o quer.

– Quem vos obriga assim? – Saber que sou.


E quem sois? – Quem de todo está rendida.
– A quem rendida estais? – A um só querer.

Às perguntas em itálico responda com as respostas em itálico, às


perguntas em negrito, responda com as respostas em negrito. Eis aí a
riqueza, o virtuosismo visual e a genialidade de Camões, que compôs
um soneto concretista, sem sequer imaginar que muitos séculos depois
alguém o definiria como um soneto concretista.

Os principais temas da lírica camoniana e que revelam a densi-


dade da poesia de Camões, a sua mundividência ou cosmovisão são:
constante reflexão sobre a vida humana, a análise do contraditório sen-
timento chamado Amor, o amor platônico, o sofrimento amoroso, a
contradição entre o amor carnal e imperfeito e o perfeito amor espi-
ritual, a chegada da velhice e da morte, fingimento e realidade, dor e
delicadeza ou saudosismo, visão idealizada da mulher, o ardor erótico,
a passagem do tempo e as mudanças provocadas em razão disso, o pes-
simismo, a instabilidade do amor, os erros e a condição de todo ser
humano, a angustiada reflexão sobre os desencontrados sentimentos
humanos e o chamado desconcerto do mundo, na busca incessante por
um significado para a existência do homem, esse bicho de terra tão pe-
queno. O poeta utiliza em seus sonetos diversas figuras de linguagem
como o paradoxo, a antítese, o hipérbato etc.

Um capítulo é pouco para Camões. No próximo Capítulo analisa-


remos Os Lusíadas.

92
A Lírica de Camões Capítulo 04
Faça aqui o seu resumo!

93
Os Lusíadas Capítulo 05
5 Os Lusíadas
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
(Os Lusíadas, Camões)

5.1 Contexto Histórico


Agora que você já entrou em contato com os sonetos de Ca-
mões, chegou o momento de conhecer um pouco sobre Os Lusía-
das, obra poética escrita por Camões que é considerada a epopéia
portuguesa por excelência. Provavelmente concluída em 1556, foi
publicada pela primeira vez em 1572 no período literário chamado
Classicismo, três anos após o regresso do autor do Oriente.

Reiteremos que Camões é freqüentemente considerado o maior


Os Lusíadas
poeta de língua portuguesa e um dos maiores da Humanidade. Das
suas obras, a epopéia Os Lusíadas é uma das mais significativas.

5.2 Epopéia
Você já deve ter ouvido falar na palavra Epopéia. Um poema épi-
co, ou Epopéia, é um poema que relata uma série de feitos heróicos em
forma narrativa e é extenso. Pode relatar fatos históricos, de um ou de
vários indivíduos, ou mesmo de uma nação. Os fatos narrados podem
ser reais, lendários ou baseados na mitologia. A Epopéia eterniza lendas
seculares e tradições ancestrais, preservadas ao longo dos tempos pela
tradição oral ou escritas. Os primeiros grandes modelos ocidentais de
epopéia são os poemas homéricos A Ilíada e A Odisséia, os quais têm a
sua origem nas lendas sobre a guerra de Tróia.

A Ilíada e a Odisséia são atribuídas ao poeta Homero, que viveu


por volta do século VIII a.C. na Jônia (lugar que hoje é uma região da
Turquia) e constituem os mais antigos documentos literários gregos (e
ocidentais) que chegaram nos nossos dias. A Epopéia pertence ao gêne-
ro épico, mas embora tenha fundamentos históricos, não representa os
acontecimentos com fidelidade, geralmente apresentando uma mescla

95
Unidade B – Séc. XVI

entre fatos históricos e ficção, revestindo os acontecimentos relatados


com conceitos morais e atos exemplares que funcionam como modelos
de comportamento.

Primeira página da Odisséia

Os Lusíadas é considerada a principal epopéia da época moderna


devido à sua grandeza e universalidade. As realizações de Portugal des-
de o Infante D. Henrique até a união dinástica com a Espanha, em 1580,
são um marco na História, constrastando a transição da Idade Média
ΟΔΥΣΣΕΙΑ
para a Época Moderna.

A epopéia narra a história de Vasco da Gama e dos heróis ῎Ανδρα μοι ἔννεπε, Μ
portugue-
ses que navegaram em torno do Cabo da Boa Esperança e abriram πλάγχθη,uma ἐπεὶ Τροίη
πολλῶν δ' ἀνθρώπω
nova rota para a Índia. É uma epopéia humanista, mesmo nas suas con-
πολλὰ δ' ὅ γ' ἐν πόντ
tradições, na associação da mitologia pagã à visão cristã, nos sentimentos
ἀρνύμενοζ ἥν τε ψυχὴ
opostos sobre a guerra e o império, no gosto do repouso e no desejo
ἀλλ' οὐδ'deὧζ ἑτάρουζ
Fonte original
aventura, na apreciação do prazer e nas exigências de uma visãoαὐτῶν γὰρ σφετέρησ
heróica.
(new athena unicode) νήπιοι, οἳ κατα βοῦζ
ἤσθιον· αὐτὰρ ὁ τοῖσ
5.3 Os Lusíadas: estrutura
Nas considerações que faremos a seguir partimos do pressuposto
que você está lendo Os Lusíadas. Realize a sua epopéia particular, en-
frente o desafio e leia o livro para acompanhar nossa análise.

A obra é composta de dez cantos, 1102 estrofes que são oitavas em


formato decassílabo, sujeitas ao esquema fixo de rimas AB AB AB CC

96
Os Lusíadas Capítulo 05
— oitava de rima camoniana. A estrutura externa refere–se à análise
formal do poema: número de estrofes, número de versos por estrofe,
número de sílabas métricas, tipos de rimas, ritmo, figuras de estilo etc.
A seguir, alguns esclarecimentos importantes:

ǿǿ Os Lusíadas é constituído por dez partes, liricamente chamadas


de cantos;

ǿǿ Cada canto possui um número variável de estrofes (em mé-


dia, 110);

ǿǿ Cada verso é constituído por dez sílabas métricas (decassilábico),


na sua maioria heróicas (acentuadas nas sextas e décimas sílabas).

ǿǿ As estrofes são oitavas, tendo portanto oito versos; a rima é


cruzada nos seis primeiros versos e emparelhada nos dois últi-
mos (AB AB AB CC). Segue um exemplo para você conferir o
tipo de rima:

As armas e os barões assinalados A


Que, da ocidental praia lusitana, B
Por mares nunca dantes navegados A
Passaram ainda além da Taprobana, B
Em perigos e guerras esforçados, A
Mais do que prometia a força humana, B
E entre gente remota edificaram C
Novo reino, que tanto sublimaram. C

(CAMÕES, 1980b)

Sendo Os Lusíadas um texto renascentista, não poderia deixar de


seguir a estética grega que dava particular importância ao número de
ouro. Assim, o clímax da narrativa (a chegada à Índia) foi colocado no
ponto que divide a obra na proporção áurea (início do Canto VII).

A estrutura interna diz respeito ao conteúdo do texto. Essa obra


mostra ser uma epopéia clássica ao dividir–se em quatro partes:

97
Unidade B – Séc. XVI

ǿǿ Proposição: introdução, apresentação do assunto e dos heróis


(estrofes 1 a 3 do Canto I);

ǿǿ Invocação: o poeta invoca as ninfas do Tejo e pede–lhes a ins-


piração para escrever (estrofes 4 e 5 do Canto I);

ǿǿ Dedicatória: o poeta dedica a obra ao rei D. Sebastião (estrofes


6 a 18 do Canto I);

ǿǿ Narração: a narrativa da viagem, que parte do meio da ação


para voltar atrás no tempo e explica o que aconteceu até o mo-
mento da viagem de Vasco de Gama e da história de Portugal.
Depois prossegue na linha temporal.

Por fim, há um epílogo a concluir a obra (estrofes 145 a 156 do


Canto X).

Os planos temáticos da obra são:

ǿǿ Plano da Viagem: trata sobre a viagem da descoberta do ca-


minho marítimo para a Índia de Vasco da Gama e dos seus
marinheiros;

ǿǿ Plano da História de Portugal: são relatados episódios da his-


tória dos portugueses;

ǿǿ Plano do Poeta: Camões refere–se a si mesmo enquanto poeta


admirador do povo e dos heróis portugueses;

ǿǿ Plano da Mitologia: são descritas as influências e as interven-


ções dos deuses da mitologia greco–romana na ação dos heróis.

Ao longo da narração nos deparamos com vários tipos de episó-


dios: bélicos, mitológicos, históricos, simbólicos, líricos e naturalistas.

O poema épico é o canto da construção de uma nação com a ajuda


de Deus ou dos deuses. Os Lusíadas é uma epopéia moderna, em que o
maravilhoso não passa de um artifício necessário, mas só literário. A fé
única no Deus cristão é defendida por toda a obra.

Não se pode pensar em heresia porque não fazia sentido, em tem-


pos de Contra–Reforma, acreditar nos deuses do panteão greco–roma-
no, e a prova é a não censura dos inquisidores aos Deoses dos Gentios.

98
Os Lusíadas Capítulo 05
No episódio da Máquina do Mundo (estrofe 82 do Canto X), é o próprio
personagem da deusa Tétis que afirma: eu, Saturno e Jano, Júpiter, Juno,
fomos fabulosos, Fingidos de mortal e cego engano. Só pera fazer versos
deleitosos Servimos. Apesar de terem cortado excertos da obra nas suas
primeiras edições, o Parecer do censor do Santo Ofício na edição de
1572 declara que percebeu que esse recurso dos deuses não pretende
mais que ornar o estilo Poético. Por isso, continua, não tivémos por incon-
veniente ir esta fábula dos Deoses na obra, mas não resiste a acrescentar
ficando sempre salva a verdade de nossa sancta fé, que todos os Deoses dos
Gentios são Demónios.

A presença desses deuses, todavia, ocupa um lugar de muito rele-


vo no poema. São as suas intrigas que ligam os episódios dispersos da
epopéia e as suas intervenções deus ex machina que emprestam lógica a
acontecimentos inesperados da viagem, relatados na narrativa.

5.4 Temas
5.4.1 O Herói
Como o título indica, o herói desta epopéia é coletivo, os Lusíadas,
ou os filhos de Luso, os portugueses. Nas estrofes iniciais do discurso
de Júpiter no Concílio dos deuses olímpicos, que abre a parte narrativa,
surge a orientação do autor.

O rei dos deuses afirma que desde Viriato e Sertório, o destino


(fado) dos valentes portugueses (forte gente de Luso) é realizar feitos tão
gloriosos que façam esquecer os dos impérios anteriores (Assírios, Per-
sas, Gregos e Romanos).

O desenrolar da sua história prova isso, pois além de ser marcada


pelas sucessivas e vitoriosas lutas contra mouros e castelhanos, mostra
como um país tão pequeno descobre novos mundos e impõe a sua lei
para outras nações.

No final do poema surge o episódio da Ilha dos Amores, recom-


pensa ficcional da gloriosa caminhada portuguesa através dos tempos.
E é confirmado o receio de Baco de que as suas façanhas de conquista
sejam ultrapassadas pelas conquistas e glórias dos portugueses.

99
Unidade B – Séc. XVI

Camões dedicou sua obra–prima ao rei D. Sebastião de Portugal.


Os feitos inéditos dos descobrimentos portugueses e a chegada ao novo
reino que tanto sublimaram no Oriente foram sem dúvida os estímulos
determinantes para a tarefa, desde há muito ambicionada, de redigir o
épico português.

Vasco da Gama e Adamastor

Havia um ambiente de orgulho e ousadia no povo português. Nave-


gadores e capitães eram heróis recentes da pequena nação, homens capazes
de extraordinárias façanhas, como o Castro forte (o vice–rei D. João de
Castro), falecido poucos anos antes de o poeta aportar na Índia. Principal-
mente Vasco da Gama, a quem se devia o descobrimento da rota para o
oriente em uma viagem difícil e com poucas probabilidades de êxito, e que
vencera inúmeras batalhas contra reinos muçulmanos em terras hostis aos
cristãos. Essa viagem épica foi por isso usada como história central da obra,
à volta da qual vão sendo contados episódios da história de Portugal.

100
Os Lusíadas Capítulo 05
5.4.2 A Cruzada contra os Mouros

Figura de um mouro

O poema pode ser lido em perspectiva que já era antiga, mas fatos
recentes acrescentaram outra atualidade, como por exemplo, a da cruza-
da contra os mouros. As lutas no Oriente seriam a continuação das que
já se haviam travado em Portugal e no Norte de África, dominando ou
abatendo o poder do Islã.

O próprio “movimento” dos descobrimentos surgiu na lógica de


combate ao poderoso Império Otomano que ameaçava a Europa cris-
tã, esta incapaz de vencer o inimigo em guerra aberta. O objetivo era
fazer uma concorrência comercial aos muçulmanos, ao mesmo tempo
ganhando proveitos e debilitando a economia dos rivais, mas também
se ambicionava encontrar aliados dos europeus nas novas terras, e po-
deriam ser eles mesmos cristãos, ou passíveis de conversão.

101
Unidade B – Séc. XVI

Em 1571, a aparente invencibilidade do sultanato turco tinha sido


desmentida na batalha de Lepanto. Sentia–se que os otomanos afinal não
detinham a supremacia no Mediterrâneo. E o comandante das forças
cristãs era D. João de Áustria, filho bastardo do imperador Carlos V, o
avô de D. Sebastião. Foi nesse contexto de exaltação que o poeta terá con-
tribuído para incitar o jovem rei português a partir em conquista para a
África, com os desastrosos efeitos que a partir desse ato se seguiram.

5.5 Os Narradores e os seus Discursos


Cada um dos tipos de discurso nesse poema evidencia particulari-
dades estilísticas concretas. Dependendo do assunto que tratam, o estilo
pode ser heróico e exaltado, empolgante, lamentoso e melancólico, hu-
morístico, admirador.

Os Lusíadas é uma obra narrativa, mas os seus narradores são qua-


se sempre oradores que fazem discursos grandiloqüentes: o narrador
principal, Camões, que abre em grande estilo e retoma a palavra em
várias ocasiões; Vasco da Gama, reconhecido como facundo capitão
(eloqüente); Júpiter, que também toma a palavra em diversas ocasiões;
Paulo da Gama (Canto VIII); o Velho do Restelo (Canto IV); Tétis; a
Sirena que profetiza ao som de música (Canto X) etc.

Deve–se atentar para as excelentes descrições, como as dos palácios


de Netuno e do Samorim de Calicute, a do lugar aprazível, ameno da
Ilha dos Amores (Canto IX), a do jantar no palácio de Tétis (Canto X) e
a do traje do Gama (final do Canto II), entre outras.

Por vezes, essas descrições são feitas ao modo de uma passagem de


slides: as coisas descritas estão ali e há alguém que as mostra. Por exem-
plo, o começo geográfico do discurso de Vasco da Gama ao rei de Melin-
de (Canto III, estrofes 6 a 20), certas esculturas dos palácios de Netuno e
do Samorim, o discurso de Paulo da Gama ao Catual (Canto VIII, estro-
fes 26 a 44), A Máquina do Mundo (Canto X, estrofes 77 a 144).

Exemplos de descrições dinâmicas são a da batalha da ilha de Mo-


çambique (Canto I, estrofes 84 a 92), as das batalhas de Ourique (Canto
III, estrofes 42 a 54) e Aljubarrota (Canto IV, estrofes 26 a 44), a da tem-

102
Os Lusíadas Capítulo 05
pestade (Canto VI, estrofes 1 a 42). Camões é mestre nessas descrições,
marcadas pelos verbos de movimento, pela abundância de sensações
visuais e acústicas e por expressivas aliterações.

Há nos Lusíadas vários momentos líricos. Os textos em que se concre-


tizam são no geral narrativo–descritivos. É o caso da parte inicial do episó-
dio da Linda Inês (Canto III, estrofes 120 a 135), da parte final do episódio
do Adamastor (Canto V, estrofes 37 a 60), do encontro na Ilha dos Amores
(Canto IX). Em todos esses casos o estilo é muito assemelhado à écloga.

São muitas as ocasiões em que o poeta assume um tom de lamento:


a última estrofe do Canto I, parte do discurso do Velho do Restelo (Can-
to IV, estrofes 94 a 104), o início e final do Canto VII e partes da Profecia
da sereia fazem lembrar outros lamentos da lírica.

A fé e os apelos a Deus têm uma presença forte na


obra. Já Virgílio chamava ao seu herói pio Eneias. Por várias
vezes, em momentos difíceis, Vasco da Gama irrompe em
oração: em Mombaça (Canto II), na aparição do Adamas-
tor, no meio do terror da tempestade etc. As invocações do
poeta às Tágides, a Calíope (Canto III, estrofes 1 e 2 e Canto
X, estrofe 8), às ninfas do Tejo e do Mondego (Canto VII),
em termos tipológicos, são também orações.

5.6 Os Lusíadas: o poema épico


5.6.1 Canto I

Depois da Proposição (estrofes 1 a 3), da Invocação


(estrofes 4 e 5) e da Dedicatória (estrofes 6 a 18), a narra-
ção começa no meio da história, com a frota de Vasco da
Gama já no Oceano Índico, mas antes de chegar à Índia
(estrofe 19). Fac–símile das duas primeiras estrofes do
canto I de Os Lusíadas (imagem histórica).

Você deve ler todo o poema Os Lusíadas. Vamos comentar cada can-
to e selecionamos algumas estrofes. Nossos comentários partem da
premissa que você está lendo o poema na íntegra.

103
Unidade B – Séc. XVI

O concílio dos deuses

Júpiter

O Concílio dos deuses é convocado (1) para decidir se os portugue-


ses devem ou não conseguir alcançar o seu destino. Júpiter afirma que
sim, porque isso lhes está predestinado (2):

(1) Estrofe 20: Quando os Deuses no Olimpo luminoso, / Onde o


governo está da humana gente, / Se ajuntam em concílio glorioso /
Sobre as cousas futuras do Oriente. […]

(2) Estrofe 25: Já lhe foi (bem o vistes) concedido / C’um poder tão
singelo e tão pequeno, / Tomar ao Mouro forte e guarnecido / Toda a
terra, que rega o Tejo ameno: […]

Estrofe 28: Prometido lhe está do Fado eterno, / Cuja alta Lei não
pode ser quebrada, / Que tenham longos tempos o governo / Do mar,
que vê do Sol a roxa entrada. […]

104
Os Lusíadas Capítulo 05
Baco discorda porque, se isso for permitido, as suas próprias con-
quistas no Oriente serão esquecidas, ultrapassadas por esse povo (3).
Vênus, entretanto, vê os portugueses como herdeiros dos seus amados
romanos e sabe que será celebrada por eles (4).

Baco

(3) Estrofe 30: […] O padre Baco ali não consentia / No que Júpiter
disse, conhecendo / Que esquecerão seus feitos no Oriente, / Se lá
passar a Lusitana gente.

Estrofe 32: […] Teme agora que seja sepultado / Seu tão célebre
nome em negro vaso / D’água do esquecimento, se lá chegam / Os
fortes Portugueses, que navegam.

(4) Estrofe 33: Sustentava contra ele Vénus bela, / Afeiçoada à gente
Lusitana, / Por quantas qualidades via nela / Da antiga tão amada
sua Romana; […]

105
Unidade B – Séc. XVI

Estrofe 34: Estas causas moviam Citereia, / E mais, porque das Par-
cas claro entende / Que há de ser celebrada a clara Deia, / Onde a
gente belígera se estende. […]

Segue–se um tumulto, com os outros deuses tomando o partido de


Baco ou Vênus (5), até que o poderoso Marte se impõe (6), assustan-
do Apolo (7). O amante de Vênus, admirador dos feitos guerreiros dos
portugueses, lembra que não só já é merecido que consigam realizar a
sua façanha, como Júpiter já tinha decidido conceder esse favor e não
deveria voltar atrás na palavra (8). O rei dos deuses concorda e encerra
o concílio (9).

(5) Estrofe 35: Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura / De silves-


tre arvoredo abastecida, / Rompendo os ramos vão da mata escura, /
Com ímpeto e braveza desmedida; / Brama toda a montanha, o som
murmura, / Rompem–se as folhas, ferve a serra erguida: / Tal andava
o tumulto levantado, / Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.

(6) Estrofe 36: Mas Marte, que da Deusa sustentava / Entre todos as
partes em porfia, / Ou porque o amor antigo o obrigava, / Ou porque
a gente forte o merecia, / De entre os Deuses em pé se levantava: /
Merencório no gesto parecia; / O forte escudo ao colo pendurado /
Deitando para trás, medonho e irado, /

(7) Estrofe 37: E dando uma pancada penetrante, / Com o conto


do bastão no sólio puro, / O Céu tremeu, e Apolo, de torvado, / Um
pouco a luz perdeu, como enfiado. […]

(8) Estrofe 39: […] Mas esta tenção sua agora passe, / Porque enfim
vem de estômago danado; / Que nunca tirará alheia inveja / O bem,
que outrem merece, e o Céu deseja.

Estrofe 40: “E tu, Padre de grande fortaleza, / Da determinação, que


tens tomada, / Não tornes por detrás, pois é fraqueza / Desistir–se da
cousa começada. […]

(9) Estrofe 41: Como isto disse, o Padre poderoso, / A cabeça incli-
nando, consentiu / No que disse Mavorte valeroso, / E néctar sobre
todos esparziu. / Pelo caminho Lácteo glorioso / Logo cada um dos

106
Os Lusíadas Capítulo 05
Deuses se partiu, / Fazendo seus reais acatamentos, / Para os deter-
minados aposentos.

O discurso com que Júpiter começa a reunião é uma acabada peça


de oratória (10). Abre com uma introdução objetiva do assunto em que,
depois de uma original saudação, expõe brevemente o tema a desenvol-
ver. Segue–se, ao modo da retórica antiga, a narração (o passado mostra
que a intenção dos fados é mesmo a que o orador apresentou). Vem
depois a confirmação: os fatos do presente corroboram o que já, a seu
modo, a narração comprovara (11). E termina com duas estrofes de pe-
roração, onde se apela à benevolência dos deuses para com os filhos de
Luso (12) — aliás, a decisão dos fados cumprir–se–á inexoravelmen-
te. Contra o que seria de esperar, Júpiter conclui determinando e não
abrindo o debate.

(10) Estrofe 24: “Eternos moradores do luzente / Estelífero pólo, e


claro assento, / Se do grande valor da forte gente / De Luso não per-
deis o pensamento, / Deveis de ter sabido claramente, / Como é dos
fados grandes certo intento, / Que por ela se esqueçam os humanos /
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

(11) Estrofe 27: “Agora vedes bem que, cometendo / O duvidoso mar
num lenho leve, / Por vias nunca usadas, não temendo / De Áfrico e
Noto a força, a mais se atreve: / Que havendo tanto já que as partes
vendo / Onde o dia é comprido e onde breve, / Inclinam seu propósito
e porfia / A ver os berços onde nasce o dia.

(12) Estrofe 28: “Prometido lhe está do Fado eterno, / Cuja alta Lei
não pode ser quebrada, / Que tenham longos tempos o governo / Do
mar, que vê do Sol a roxa entrada. / Nas águas têm passado o duro
inverno; / A gente vem perdida e trabalhada; / Já parece bem feito
que lhe seja / Mostrada a nova terra, que deseja.

Estrofe 29: “E porque, como vistes, têm passados / Na viagem tão ás-
peros perigos, / Tantos climas e céus experimentados, / Tanto furor de
ventos inimigos, / Que sejam, determino, agasalhados / Nesta costa
africana, como amigos. / E tendo guarnecida a lassa frota, / Torna-
rão a seguir sua longa rota.”

107
Unidade B – Séc. XVI

A Ilha de Moçambique e o Piloto Mouro

A narração volta então à frota lusa, que chega à ilha de Moçambi-


que (13). São acolhidos por muçulmanos que, intimidados pelo poderio
bélico das naus, lhes prometem mantimentos e um piloto para levá–
los à Índia (14), mas as suas verdadeiras intenções são a destruição dos
portugueses (15). A inspiração do soberano mouro vem de Baco, que
tomara a forma mortal de um dos seus conselheiros (16).

(13) Estrofe 54: “Esta ilha pequena, que habitamos, / em toda esta
terra certa escala / De todos os que as ondas navegamos / De Quíloa,
de Mombaça e de Sofala; / E, por ser necessária, procuramos, / Como
próprios da terra, de habitá–la; / E por que tudo enfim vos notifique,
/ Chama–se a pequena ilha Moçambique.

(14) Estrofe 55: “E já que de tão longe navegais, / Buscando o Indo


Idaspe e terra ardente, / Piloto aqui tereis, por quem sejais / Guiados
pelas ondas sabiamente. / Também será bem feito que tenhais / Da
terra algum refresco, e que o Regente / Que esta terra governa, que
vos veja, / E do mais necessário vos proveja.”

(15) Estrofe 70: Pilotos lhe pedia o Capitão, / Por quem pudesse à
Índia ser levado; / Diz–lhe que o largo prémio levarão / Do trabalho
que nisso for tomado. / Promete–lhos o Mouro, com tenção / De peito
venenoso, e tão danado, / Que a morte, se pudesse, neste dia, / Em
lugar de pilotos lhe daria.

(16) Estrofe 77: […] E por melhor tecer o astuto engano, / No gesto
natural se converteu / Dum Mouro, em Moçambique conhecido / Ve-
lho, sábio, e co’o Xeque mui valido.

A primeira estratégia é atacar os marinheiros que vão a terra abas-


tecer–se de água (17), mas estes, cuidadosos, vão armados e desbaratam
as forças inimigas (18), prosseguindo depois com o bombardeamento da
cidade (19). O regedor rende–se e oferece então um piloto que os condu-
za para terras inimigas, a segunda estratégia do deus do vinho (20).

(17) Estrofe 80: “E também sei que tem determinado / De vir por
água a terra muito cedo / O Capitão dos seus acompanhado, / Que
da tensão danada nasce o medo. / Tu deves de ir também co’os teus

108
Os Lusíadas Capítulo 05
armado / Esperá–lo em cilada, oculto e quedo; / Porque, saindo a
gente descuidada, / Cairão facilmente na cilada.

(18) Estrofe 89: Eis nos batéis o fogo se levanta / Na furiosa e dura
artilharia, / A plúmbea péla mata, o brado espanta, / Ferido o ar
retumba e assovia: / O coração dos Mouros se quebranta, / O temor
grande o sangue lhe resfria. / Já foge o escondido de medroso, / E
morre o descoberto aventuroso.

(19) Estrofe 90: Não se contenta a gente Portuguesa, / Mas seguindo


a vitória estrui e mata; / A povoação, sem muro e sem defesa, / Es-
bombardeia, acende e desbarata.

(20) Estrofe 94: Pazes cometer manda arrependido / O Regedor da-


quela iníqua terra, / Sem ser dos Lusitanos entendido, / Que em fi-
gura de paz lhe manda guerra; / Porque o piloto falso prometido, /
Que toda a má tenção no peito encerra, / Para os guiar à morte lhe
mandava, / Como em sinal das pazes que tratava.

Por duas vezes o piloto indica bons portos de acolhimento: uma


terra de cristãos (21), que será uma referência ao reino de Preste João,
e outra, em que cristãos e muçulmanos viveriam juntos (22). Vasco da
Gama confia no piloto (23), mas Vênus, vendo que na realidade se trata
de terras de muçulmanos capazes de vencer os portugueses, desvia a
frota com ventos contrários (24). O primeiro porto é ultrapassado; o se-
gundo é Mombaça, a pouca distância do qual a frota lança âncora (25),
e o canto termina com duas estrofes plenas de suspense (26).

(21) Estrofe 98: E diz–lhe mais, com o falso pensamento / Com que
Sinon os Frígios enganou: / Que perto está uma ilha, cujo assento /
Povo antigo cristão sempre habitou. / O Capitão, que a tudo estava
atento, / Tanto com estas novas se alegrou, / Que com dádivas gran-
des lhe rogava, / Que o leve à terra onde esta gente estava.

(22) Estrofe 101: Mas o malvado Mouro, não podendo / Tal deter-
minação levar avante, / Outra maldade iníqua cometendo, / Ainda
em seu propósito constante, / Lhe diz que, pois as águas discorrendo
/ Os levaram por força por diante, / Que outra ilha tem perto, cuja
gente / Eram Cristãos com Mouros juntamente.

109
Unidade B – Séc. XVI

(23) Estrofe 102: Também nestas palavras lhe mentia, / Como por
regimento enfim levava, / Que aqui gente de Cristo não havia, / Mas
a que a Mahamede celebrava. / O Capitão, que em tudo o Mouro
cria, / Virando as velas, a ilha demandava; / Mas, não querendo a
Deusa guardadora, / Não entra pela barra, e surge fora.

(24) Estrofe 100: Para lá se inclinava a leda frota; / Mas a Deusa em


Citere celebrada, / Vendo como deixava a certa rota / Por ir buscar
a morte não cuidada, / Não consente que em terra tão remota / Se
perca a gente dela tanto amada. / E com ventos contrários a desvia /
Donde o piloto falso a leva e guia.

(25) Estrofe 103: Estava a ilha à terra tão chegada, / Que um es-
treito pequeno a dividia; / Uma cidade nela situada, / Que na fronte
do mar aparecia, / De nobres edifícios fabricada, / Como por fora ao
longe descobria, / Regida por um Rei de antiga idade: / Mombaça é o
nome da ilha e da cidade.

(26) Estrofe 105: O recado que trazem é de amigos, / Mas debaixo


o veneno vem coberto; / Que os pensamentos eram de inimigos, / Se-
gundo foi o engano descoberto. / Ó grandes e gravíssimos perigos! / Ó
caminho de vida nunca certo: / Que aonde a gente põe sua esperança,
/ Tenha a vida tão pouca segurança!

Estrofe 106: No mar tanta tormenta, e tanto dano, / Tantas vezes


a morte apercebida! / Na terra tanta guerra, tanto engano, / Tanta
necessidade avorrecida! / Onde pode acolher–se um fraco humano, /
Onde terá segura a curta vida, / Que não se arme, e se indigne o Céu
sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?

5.6.2 Canto II

Cilada em Mombaça

O rei de Mombaça envia um mensageiro com promessas de bom


acolhimento e pede que a armada entre no porto da cidade (27), mas com
a intenção de armar uma emboscada. Vasco da Gama envia primeiro dois
degredados à cidade para passarem a noite (28) e avaliarem a situação.
Enganados pelos mouros e por Baco (29), estes aconselham a entrada em
Mombaça (30), mas Vênus interfere mais uma vez, e com a ajuda das Ne-

110
Os Lusíadas Capítulo 05
reidas impede a entrada dos navios portugueses (31). Vênus sai então em
direção aos céus (32). Seduz Júpiter com a sua beleza (33) e queixa–se dos
perigos que a expedição está a correr (34). O rei dos deuses reafirma que
os fados já destinaram sucesso para os portugueses (35) e envia Mercúrio
para avisar Vasco da Gama da existência de Melinde (36), onde encontra-
rá um rei justo e bondoso, que fornecerá tudo o que procura (37).

(27) Estrofe 2: […] O Rei que manda esta ilha, alvoroçado / Da vin-
da tua, tem tanta alegria, / Que não deseja mais que agasalhar–te, /
Ver–te, e do necessário reformar–te.

Estrofe 3: “E porque está em extremo desejoso / De te ver, como cou-


sa nomeada, / Te roga que, de nada receoso, / Entres a barra, tu com
toda armada: […]

(28) Estrofe 7: E de alguns que trazia condenados / Por culpas e por


feitos vergonhosos, / Por que pudessem ser aventurados / Em casos
desta sorte duvidosos, / Manda dous mais sagazes, ensaiados, / Por
que notem dos Mouros enganosos / A cidade e poder, e por que vejam
/ Os Cristãos, que só tanto ver desejam.

(29) Estrofe 10: Mas aquele que sempre a mocidade / Tem no rosto
perpétua, e foi nascido / De duas mães, que urdia a falsidade / Por
ver o navegante destruído, […]

Estrofe 11: Ali tinha em retrato afigurada / Do alto e Santo Espírito


a pintura: […]

(30) Estrofe 14: Tornam da terra os Mouros co’o recado / Do Rei,


para que entrassem, e consigo / Os dous que o Capitão tinha manda-
do, / A quem se o Rei mostrou sincero amigo; / E sendo o Português
certificado / De não haver receio de perigo, / E que gente de Cristo em
terra havia, / Dentro no salso rio entrar queria.

(31) Estrofe 19: Convoca as alvas filhas de Nereu, / Com toda a mais
cerúlea companhia, […] / Com todas juntamente se partia, / Para
estorvar que a armada não chegasse

Estrofe 20: Já na água erguendo vão, com grande pressa, / Com as


argênteas caudas branca escuma; / Cloto eo’o peito corta e atravessa /
Com mais furor o mar do que costuma. […]

111
Unidade B – Séc. XVI

Estrofe 22: Põe–se a Deusa com outras em direito / Da proa capitai-


na, e ali fechando / O caminho da barra, estão de jeito, / Que em vão
assopra o vento, a vela inchando. […]

(32) Estrofe 33: Já penetra as Estrelas luminosas, / Já na terceira


Esfera recebida / Avante passa, e lá no sexto Céu, / Para onde estava
o Padre, se moveu. […]

(33) Estrofe 35: E por mais namorar o soberano / Padre, de quem foi
sempre amada e eriça, […]

(34) Estrofe 39: […] Mas, pois que contra mim te vejo iroso, / Sem
que to merecesse, nem te errasse, / Faça–se como Baco determina; /
Assentarei enfim que fui mofina.

(35) Estrofe 44: “Formosa filha minha, não temais / Perigo algum
nos vossos Lusitanos, / Nem que ninguém comigo possa mais, / Que
esses chorosos olhos soberanos; / Que eu vos prometo, filha, que vejais
/ Esquecerem–se Gregos e Romanos, / Pelos ilustres feitos que esta
gente / Há–de fazer nas partes do Oriente.

(36) Estrofe 56: Como isto disse, manda o consagrado / Filho de


Maia à Terra, por que tenha / Um pacífico porto o sossegado, / Para
onde sem receio a frota venha; […]

(37) Estrofe 63: “Vai–te ao longo da costa discorrendo, / E outra ter-


ra acharás de mais verdade, / Lá quase junto donde o Sol ardendo /
Iguala o dia e noite em quantidade; / Ali tua frota alegre recebendo /
Um Rei, com muitas obras de amizade, / Gasalhado seguro te daria,
/ E, para a índia, certa e sábia guia.”

Chegada a Melinde

Depois de interrogarem prisioneiros feitos em Mombaça, é confir-


mada a boa notícia do reino de Melinde (38). A frota dirige–se para lá e
é bem recebida (39).

O rei melindano oferece mantimentos, munições e piloto para a Ín-


dia (40). Subindo a bordo da nau capitânia, pede a Vasco da Gama que
lhe conte sobre a sua viagem (41), mas que primeiro descreva o reino de
Portugal: a sua geografia, a sua história e as suas gentes.

112
Os Lusíadas Capítulo 05
(38) Estrofe 70: E como o Gama muito desejasse / Piloto para a Ín-
dia que buscava, / Cuidou que entre estes Mouros o tomasse; / Mas
não lhe sucedeu como cuidava, / Que nenhum deles há que lhe ensi-
nasse / A que parte dos céus a Índia estava; / Porém dizem–lhe todos,
que tem perto / Melinde, onde achará piloto certo.

(39) Estrofe 75: O Rei, que já sabia da nobreza / Que tanto os Por-
tugueses engrandece, / Tomarem o seu porto tanto preza, / Quanto
a gente fortíssima merece: / E com verdadeiro ânimo e pureza, / Que
os peitos generosos enobrece, / Lhe manda rogar muito que saíssem, /
Para que de seus reinos se servissem.

(40) Estrofe 88: “Porém, como a luz crástina chegada / Ao mundo


for, em minhas almadias / Eu irei visitar a forte armada, / Que ver
tanto desejo, há tantos dias; / E se vier do mar desbaratada, / Do fu-
rioso vento e longas vias, / Aqui terá, de limpos pensamentos, / Piloto,
munições e mantimentos.”

(41) Estrofe 109: “Mas antes, valeroso Capitão, / Nos conta, lhe di-
zia, diligente, / Da terra tua o clima, e região / Do mundo onde mo-
rais distintamente; / E assim de vossa antiga geração, / E o princípio
do Reino tão potente, / Co’os sucessos das guerras do começo, / Que,
sem sabê–las, sei que são de preço.

5.6.3 Canto III

Após uma invocação do poeta a Calíope (42), Vasco da Gama co-


meça por explicar a geografia da Europa e a situação de Portugal no
continente (estrofes 6 (43) a 20 (44)).

Inicia então a narrativa da história de Portugal. De Luso (45) a Vi-


riato, passa para o rei D. Afonso VI de Leão e Castela (46), D. Teresa (47)
e o conde D. Henrique. Segue–se a luta de D. Afonso Henriques pela
formação da nacionalidade (48) e a enumeração dos feitos guerreiros
do primeiro rei de Portugal contra castelhanos, leoneses e mouros.

(42) Estrofe 1: Agora tu, Calíope, me ensina / O que contou ao Rei o


ilustre Gama: / Inspira imortal canto e voz divina / Neste peito mor-
tal, que tanto te ama. […]

113
Unidade B – Séc. XVI

Calíope

(43) Estrofe 6: “Entre a Zona que o Cancro senhoreia, / Meta se-


tentrional do Sol luzente, / E aquela que por fria se arreceia / Tanto,
como a do meio por ardente, / Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,
/ Pela parte do Areturo, e do Ocidente, / Com suas salsas ondas o
Oceano, / E pela Austral o mar Mediterrano.

(44) Estrofe 20: “Eis aqui, quase cume da cabeça / De Europa toda,
o Reino Lusitano, / Onde a terra se acaba e o mar começa, / E onde
Febo repousa no Oceano. / Este quis o Céu justo que floresça / Nas
armas contra o torpe Mauritano, / Deitando–o de si fora, e lá na ar-
dente / África estar quieto o não consente.

(45) Estrofe 21: […] Esta foi Lusitânia, derivada / De Luso, ou Lisa,
que de Baco antigo / Filhos foram, parece, ou companheiros, / E nela
então os Íncolas primeiros.

(46) Estrofe 23: “Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha, / Que
fez aos Sarracenos tanta guerra, / Que por armas sanguinas, força e

114
Os Lusíadas Capítulo 05
manha, / A muitos fez perder a vida o a terra; / Voando deste Rei a
fama estranha / Do Herculano Calpe à Cáspia serra, / Muitos, para
na guerra esclarecer–se, / Vinham a ele e à morte oferecer–se.

(47) Estrofe 25: “Destes Anrique, dizem que segundo / Filho de um


Rei de Ungria exprimentado, / Portugal houve em sorte, que no mun-
do / Então não era ilustre nem prezado; / E, para mais sinal d’amor
profundo, / Quis o Rei Castelhano, que casado / Com Teresa, sua
filha, o Conde fosse; / E com ela das terras tornou posse.

(48) Estrofe 26: “Este, depois que contra os descendentes / Da escra-


va Agar vitórias grandes teve, / Ganhando muitas terras adjacentes,
/ Fazendo o que a seu forte peito deve, / Em prémio destes feitos ex-
celentes, / Deu–lhe o supremo Deus, em tempo breve, / Um filho, que
ilustrasse o nome ufano / Do belicoso Reino Lusitano.

Egas Moniz

Das estrofes 35 a 41 conta–se a história do aio de D. Afonso Hen-


riques. Tendo dado a sua palavra ao rei de Castela de que o soberano
português lhe prestaria vassalagem (49), conseguiu o levantamento do
cerco castelhano a Guimarães (50), mas, como D. Afonso Henriques se
recusou a acatar essas condições (51), Egas Moniz foi entregar–se ao
rei castelhano, com a mulher e os filhos, comovendo a todos pela sua
lealdade e honra (52).

(49) Estrofe 36: “lulas o leal vassalo, conhecendo / Que seu senhor
não tinha resistência, / Se vai ao Castelhano, prometendo / Que ele
faria dar–lhe obediência. […]

(50) Estrofe 36: […] Levanta o inimigo o cerco horrendo, / Fiado na


promessa e consciência / De Egas Moniz; […]

(51) Estrofe 36: […]mas não consente o peito / Do moço ilustre a


outrem ser sujeito.

(52) Estrofe 37: […] Vendo Egas que ficava fementido, / O que dele
Castela não cuidava, / Determina de dar a doce vida / A troco da
palavra mal cumprida.

115
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Estrofe 38: “E com seus filhos e mulher se parte / A alevantar com


eles a fiança, / Descalços e despidos, de tal arte, / Que mais move a
piedade que a vingança. […]

Batalha de Ouriques

Das estrofes 42 a 54 é narrada a lenda da batalha de Ouriques,


em que o fundador de Portugal derrota cinco reis mouros depois de ter
uma visão de Cristo. Por esse motivo pinta os cinco escudos e os trinta
dinheiros na bandeira de Portugal (53).

A descrição das conquistas do rei Afonso continua entre da estrofe


55 à 68 em ritmo acelerado: Leiria (54), Arronches (55), Mafra (56), Sintra
(57), Lisboa (58), Óbidos, Alenquer, Torres Vedras (59), Elvas, Moura, Ser-
pa, Alcácer do Sal (60), Beja (61), Palmela, Cezimbra (62) e Badajoz (63).

(53) Estrofe 53: […] Aqui pinta no branco escudo ufano, / Que ago-
ra esta vitória certifica, / Cinco escudos azuis esclarecidos, / Em sinal
destes cinco Reis vencidos,

Estrofe 54: “E nestes cinco escudos pinta os trinta / Dinheiros por


que Deus fora vendido, / Escrevendo a memória em vária tinta, /
Daquele de quem foi favorecido. […]

(54) Estrofe 55: “Passado já algum tempo que passada / Era esta
grão vitória, o Rei subido / A tomar vai Leiria, que tomada / Fora,
mui pouco havia, do vencido. […]

(55) Estrofe 55: […] Com esta a forte Arronches sojugada / Foi jun-
tamente, e o sempre enobrecido / Scalabicastro, cujo campo ameno, /
Tu, claro Tejo, regas tão sereno.

(56) Estrofe 56: “A estas nobres vilas sometidas, / Ajunta também


Mafra, em pouco espaço, […]

(57) Estrofe 56: […] E nas serras da Lua conhecidas, / Sojuga a fria
Sintra o duro braço; […]

(58) Estrofe 57: “E tu, nobre Lisboa, que no Mundo / Facilmente das
outras és princesa, / Que edificada foste do facundo, / Por cujo enga-
no foi Dardânia acesa; […]

116
Os Lusíadas Capítulo 05
(59) Estrofe 61: […] Já lhe obedece toda a Estremadura, / Óbidos,
Alenquer, por onde soa / O tom das frescas águas, entre as pedras, /
Que murmurando lava, e Torres Vedras.

(60) Estrofe 62: […] E tu, lavrador Mouro, que te enganas, / Se sus-
tentar a fértil terra queres; / Que Elvas, e Moura, e Serpa conhecidas,
/ E Alcácere–do–Sal estão rendidas.

(61) Estrofe 64: “Já na cidade Beja vai tomar / Vingança de Tranco-
so destruída […]

(62) Estrofe 65: “Com estas sojugada foi Palmela, / E a piscosa Ce-
zimbra, e juntamente, / Sendo ajudado mais de sua estrela, / Desba-
rata um exército potente: […]

(63) Estrofe 68: […] Cercar vai Badajoz, e logo alcança / O fim de
seu desejo, pelejando / Com tanto esforço, e arte, e valentia, / Que a
fez fazer às outras companhia.

Dinastia de Borgonha

Nesta última cidade D. Afonso acaba por ser cercado pelo rei de
Leão (64), e Camões introduz o herdeiro D. Sancho I na história (65),
que se torna assunto do canto bélico juntamente com o pai, e depois da
morte de D. Afonso como rei (66).

Seguem–se os restantes reis da dinastia de Borgonha, destacando a


coragem e a qualidade do reinado de cada um. É no canto do reinado de
D. Afonso IV que vão surgir mais alguns episódios célebres d’Os Lusía-
das: a Formosíssima Maria (67), a Batalha do Salado, e Inês de Castro.
Essa seqüência torna a narrativa um carrossel de emoções. O primeiro é
um episódio lírico, em que a filha de D. Afonso IV roga a ajuda deste para
o seu reino de Castela contra os mouros (68). Comovido, o rei parte em
ajuda do genro, na batalha do Salado, mais um exemplo de luta épica.

(64) Estrofe 70: “Que estando na cidade, que cercara, / Cercado nela
foi dos Lioneses, / Porque a conquista dela lhe tomara, / De Lião sen-
do, e não dos Portugueses. […]

(65) Estrofe 75: “Porque levasse avante seu desejo, / Ao forte filho
manda o lasso velho / Que às terras se passasse d’Alentejo, / Com

117
Unidade B – Séc. XVI

gente e co’o belígero aparelho. / Sancho, d’esforço o d’ânimo sobejo, /


Avante passa, e faz correr vermelho / O rio que Sevilha vai regando,
/ Co’o sangue Mauro, bárbaro e nefando.

(66) Estrofe 85: “Sancho, forte mancebo, que ficara / Imitando seu
pai na valentia, […]

Estrofe 86: “Depois que foi por Rei alevantado, / Havendo poucos
anos que reinava, / A cidade de Silves tem cercado, / Cujos campos o
bárbaro lavrava. […]

(67) Estrofe 101: “E vendo o Rei sublime Castelhano / A força inex-


pugnábil, grande e forte, / Temendo mais o fim do povo hispano, /
Já perdido uma vez, que a própria morte, / Pedindo ajuda ao forte
Lusitano, / Lhe mandava a caríssima consorte, / Mulher de quem a
manda, e filha amada / Daquele a cujo Reino foi mandada.

Estrofe 102: “Entrava a formosíssima Maria / Pelos paternais paços


sublimados, […]

(68) Estrofe 104: “Aquele que me deste por marido, / Por defender
sua terra amedrontada, / Co’o pequeno poder, oferecido / Ao duro
golpe está da Maura espada; / E se não for contigo socorrido, / Ver–
me–ás dele e do Reino ser privada, / Viúva e triste, e posta em vida
escura, / Sem marido, sem Reino, e sem ventura.

Inês de Castro

O turbilhão de emoções continua com este episódio lírico–trágico


(estrofes 120 a 135), talvez o mais reconhecido d’Os Lusíadas. D. Inês
e D. Pedro são os amantes trágicos por excelência. O seu amor é ilí-
cito, proibido pelos poderes. D. Afonso IV pretende casar o filho que,
apaixonado por Inês, recusa (69). A solução é eliminá–la (70). Trazida
à presença do rei, esta implora pela sua vida, só para poder cuidar dos
seus filhos (71). Comove o velho soberano, mas os conselheiros e o povo
exigem a morte (72), e assim a frágil e bela apaixonada é assassinada.

(69) Estrofe 122: […]Vendo estas namoradas estranhezas / O velho


pai sesudo, que respeita / O murmurar do povo, e a fantasia / Do
filho, que casar–se não queria,

118
Os Lusíadas Capítulo 05
(70) Estrofe 123: “Tirar Inês ao mundo determina, / Por lhe tirar o
filho que tem preso, / Crendo co’o sangue só da morte indina / Matar
do firme amor o fogo aceso. […]

(71) Estrofe 124: […] Ela com tristes o piedosas vozes, / Saídas só da
mágoa, e saudade / Do seu Príncipe, e filhos que deixava, / Que mais
que a própria morte a magoava,

(72) Estrofe 130: “Queria perdoar–lhe o Rei benino, / Movido das


palavras que o magoam; / Mas o pertinaz povo, e seu destino / (Que
desta sorte o quis) lhe não perdoam. […]

D. Fernando

Depois da vingança de D. Pedro, o cruel, é apresentado o brando D.


Fernando, responsabilizado pela quase perda do reino durante as guer-
ras fernandinas (73).

Interpretando–se essas crises como conseqüência ou castigo do


amor do rei por Leonor Teles (74). Camões, no entanto, diz que o mo-
narca tem desculpa (75).

(73) Estrofe 138: “Do justo e duro Pedro nasce o brando, / (Vede da
natureza o desconcerto!) / Remisso, e sem cuidado algum, Fernando,
/ Que todo o Reino pôs em muito aperto: / Que, vindo o Castelhano
devastando / As terras sem defesa, esteve perto / De destruir–se o
Reino totalmente; / Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.

(74) Estrofe 139: “Ou foi castigo claro do pecado / De tirar Lianor
a seu marido, / E casar–se com ela, de enlevado / Num falso parecer
mal entendido; […]

(75) Estrofe 143: […] Desculpado por certo está Fernando, / Para
quem tem de amor experiência; / Mas antes, tendo livre a fantasia, /
Por muito mais culpado o julgaria.

5.6.4 Canto IV

Vasco da Gama prossegue a narrativa da história de Portugal. Fala


agora da 2.ª Dinastia, desde a Revolução de 1383–85 até o momento do
reinado de D. Manuel I, em que a sua armada parte para a Índia.

119
Unidade B – Séc. XVI

Batalha de Aljubarrota

A narrativa da revolução de 1383–85 é dividida em duas partes: o


levantamento do povo para apoiar o pretendente português (76) (estro-
fes 1 a 23), e a batalha de Aljubarrota (estrofes 24 a 44). Dois heróis par-
tilham as glórias desses episódios: o rei D. João e o guerreiro D. Nuno
Álvares Pereira (77).

Os feitos do Mestre de Avis também são cantados. A sua coragem


salva a batalha (78).

(76) Estrofe 2: “Porque, se muito os nossos desejaram / Quem os


danos e ofensas vá vingando / Naqueles que tão bem se aproveitaram
/ Do descuido remisso de Fernando, / Depois de pouco tempo o alcan-
çaram, / Joane, sempre ilustre, alevantando / Por Rei, como de Pedro
único herdeiro, / (Ainda que bastardo) verdadeiro.

(77) Estrofe 13: “Não falta com razões quem desconcerte / Da opi-
nião de todos, na vontade, / Em quem o esforço antigo se converte
/ Em desusada e má deslealdade; / Podendo o temor mais, gelado,
inerte, / Que a própria e natural fidelidade: / Negam o Rei e a pátria,
e, se convém, / Negarão (como Pedro) o Deus que têm.

Estrofe 14: “Mas nunca foi que este erro se sentisse / No forte Dom
Nuno Alvares; mas antes, / Posto que em seus irmãos tão claro o vis-
se, / Reprovando as vontades inconstantes, […]

(78) Estrofe 38: “– Vedes–me aqui, Rei vosso, e companheiro, / Que


entre as lanças, e setas, e os arneses / Dos inimigos corro e vou pri-
meiro: / Pelejai, verdadeiros Portugueses!”– / Isto disse o magnânimo
guerreiro, / E, sopesando a lança quatro vezes, / Com força tira; e,
deste único tiro, / Muitos lançaram o último suspiro.

A Expansão Portuguesa

Com a paz, as atenções do reino voltam–se para o mar (79). Surge


a narração dos preparativos da viagem à Índia, desejo que D. João II
não conseguiu concretizar antes de morrer e que iria ser realizado por
D. Manuel (80), a quem os rios Indo e Ganges apareceram em sonhos
(81), profetizando as futuras glórias do Oriente.

120
Os Lusíadas Capítulo 05
(79) Estrofe 48: “Não sofre o peito forte, usado à guerra, / Não ter
amigo já a quem faça dano; / E assim não tendo a quem vencer na
terra, / Vai cometer as ondas do Oceano. […]

(80) Estrofe 66: “Parece que guardava o claro Céu / A Manuel, e seus
merecimentos, / Esta empresa tão árdua, que o moveu / A subidos e
ilustres movimentos: / Manuel, que a Joane sucedeu / No Reino e nos
altivos pensamentos, / Logo, corno tornou do Reino o cargo, / Tomou
mais a conquista do mar largo.

(81) Estrofe 73: “Este, que era o mais grave na pessoa, / Destarte
para o Rei de longe brada: /–“Ó tu, a cujos reinos e coroa / Grande
parte do mundo está guardada, / Nós outros, cuja fama tanto voa, /
Cuja cerviz bem nunca foi domada, / Te avisamos que é tempo que
já mandes / A receber de nós tributos grandes.

Estrofe 74: “– Eu sou o ilustre Ganges, que na terra / Celeste tenho o


berço verdadeiro; / Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra / Que vês,
seu nascimento tem primeiro. / Custar–te–emos contudo dura guer-
ra; / Mas insistindo tu, por derradeiro, / Com não vistas vitórias, sem
receio, / A quantas gentes vês, porás o freio.”

O Velho do Restelo

Quando estão se despedindo das famílias na praia de Belém, os


navegadores são surpreendidos pelas palavras de um velho que estava
entre a multidão (82).
É o episódio do Velho do Restelo, que representa a contestação da
época contra as aventuras dos descobrimentos. Havia quem pensasse
que era puro orgulho e simplesmente suicídio tentar esses projetos de
navegar para partes longínquas do mundo; uma perda de recursos e
homens, que fariam falta na luta contra os inimigos mouros ou para a
defesa do reino contra uma eventual invasão castelhana. O que o Velho
de Restelo profetiza é que a glória, a cobiça, a fama, as mortes causadas
pelas conquistas e navegações não levariam Portugal a lugar nenhum.

(82) Estrofe 95: “– Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Desta vaidade,


a quem chamamos Fama! / Ó fraudulento gosto, que se atiça / C’uma
aura popular, que honra se chama! / Que castigo tamanho e que jus-

121
Unidade B – Séc. XVI

tiça / Fazes no peito vão que muito te ama! / Que mortes, que perigos,
que tormentas, / Que crueldades neles experimentas!

Restelo

5.6.5 Canto V

Vasco da Gama conta agora como foi a viagem da armada, de Lis-


boa a Melinde. É a narrativa da grande aventura marítima, em que os
marinheiros observaram maravilhados ou inquietos a costa da África e
o Fogo de Santelmo (83).

(83) Estrofe 18: “Vi, claramente visto, o lume vivo / Que a marítima
gente tem por santo / Em tempo de tormenta e vento esquivo, / De
tempestade escura e triste pranto. […]

Fernão Veloso

Aportados na costa africana (84), os portugueses fizeram contato


com os povos nativos (85). Fernão Veloso, convidado para conhecer a

122
Os Lusíadas Capítulo 05
sua aldeia, acompanhou despreocupadamente os anfitriões (86), mas
percebe as intenções assassinas destes (87).

Os companheiros fazem troça da sua fuga apressada depois de,


com tanta confiança, ter entrado pela terra adentro na companhia dos
nativos. A isso ele responde que, vendo como tantos inimigos voltavam
para atacar a praia, vinha a correr só para ajudar a frota (88).

(84) Estrofe 26: “Desembarcamos logo na espaçosa, / Parte, por onde


a gente se espalhou, / De ver cousas estranhas desejosa / Da terra que
outro povo não pisou; […]

(85) Estrofe 27: […] Eis, de meus companheiros rodeado, / Vejo um


estranho vir de pele preta, / Que tomaram por força, enquanto apa-
nha / De mel os doces favos na montanha.

(86) Estrofe 30: “Mas logo ao outro dia, seus parceiros, / Todos nus,
e da cor da escura treva, / Descendo pelos ásperos outeiros, / As peças
vêm buscar que estoutro leva: / Domésticos já tanto e companheiros /
Se nos mostram, que fazem que se atreva / Fernão Veloso a ir ver da
terra o trato / E partir–se com eles pelo mato.

(87) Estrofe 31: […]Estando, a vista alçada, co’o cuidado / No aven-


tureiro, eis pelo monto duro / Aparece, e, segundo ao mar caminha, /
Mais apressado do que fora, vinha.

(88) Estrofe 35: “Disse então a Veloso um companheiro / (Come-


çando–se todos a sorrir) / –”Ó lá, Veloso amigo, aquele outeiro / É
melhor de descer que de subir.” /–“Sim, é, (responde o ousado aventu-
reiro) / Mas quando eu para cá vi tantos vir / Daqueles cães, depressa
um pouco vim, / Por me lembrar que estáveis cá sem mim.

O Adamastor

Chegados ao Cabo das Tormentas no meio de uma tempestade


(89), os marinheiros avistam o titã (90). O Adamastor fala e, como um
oráculo, vaticina o destino cruel que espera alguns dos navegadores que
atravessarão os seus domínios (91).

Finalmente surge a história de Adamastor e Tétis: ele se apaixona


por ela (92), a separação forçada (93), a traição (94), o lamento pelo

123
Unidade B – Séc. XVI

sonho frustrado (95), do qual o sofredor é constante e eternamente


recordado (96).

Passado mais esse obstáculo, os navegadores agora enfrentam a


doença, particularmente o escorbuto (97), e um clima a que não estão
habituados. Apesar de um acolhimento cordial dos povos da África do
Sul (98), o desânimo também aumenta por não haver quem dê notícias
sobre a Índia (99), até que chegam a Melinde (100).

(89) Estrofe 37: […] Quando uma noite estando descuidados, / Na


cortadora proa vigiando, / Uma nuvem que os ares escurece / Sobre
nossas cabeças aparece.

(90) Estrofe 39: […] Se nos mostra no ar, robusta e válida, / De


disforme e grandíssima estatura, / O rosto carregado, a barba esquá-
lida, / Os olhos encovados, e a postura / Medonha e má, e a cor ter-
rena e pálida, / Cheios de terra e crespos os cabelos, / A boca negra,
os dentes amarelos.

(91) Estrofe 43:–“Sabe que quantas naus esta viagem / Que tu fazes,
fizerem de atrevidas, / Inimiga terão esta paragem / Com ventos e
tormentas desmedidas. / E da primeira armada que passagem / Fizer
por estas ondas insofridas, / Eu farei d’improviso tal castigo, / Que
seja mor o dano que o perigo.

Estrofe 44:–“Aqui espero tomar, se não me engano, / De quem me


descobriu, suma vingança. / E não se acabará só nisto o dano / Da
vossa pertinace confiança; / Antes em vossas naus vereis cada ano, /
Se é verdade o que meu juízo alcança, / Naufrágios, perdições de toda
sorte, / Que o menor mal de todos seja a morte.

(92) Estrofe 52:–“Amores da alta esposa de Peleu / Me fizeram to-


mar tamanha empresa. / Todas as Deusas desprezei do céu, / Só por
amar das águas a princesa. / Um dia a vi coas filhas de Nereu / Sair
nua na praia, e logo presa / A vontade senti de tal maneira / Que
ainda não sinto coisa que mais queira.

(93) Estrofe 53:–“Como fosse impossível alcançá–la / Pela grandeza


feia de meu gesto, / Determinei por armas de tomá–la, / E a Doris
este caso manifesto. […]

124
Os Lusíadas Capítulo 05
(94) Estrofe 56:–“Ó que não sei de nojo como o conte! / Que, crendo
ter nos braços quem amava, / Abraçado me achei com um duro mon-
te / De áspero mato e de espessura brava. / Estando com um penedo
fronte a fronte, / Que eu pelo rosto angélico apertava / Não fiquei ho-
mem não, mas mudo e quedo, / E junto dum penedo outro penedo.

(95) Estrofe 57:–“Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano, / Já que mi-


nha presença não te agrada, / Que te custava ter–me neste engano, /
Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada? / Daqui me parto irado, e
quase insano / Da mágoa e da desonra ali passada, / A buscar outro
inundo, onde não visse / Quem de meu pranto e de meu mal se risse,

(96) Estrofe 59:–“Converte–se–me a carne em terra dura, / Em pe-


nedos os ossos se fizeram, / Estes membros que vês e esta figura /
Por estas longas águas se estenderam; / Enfim, minha grandíssima
estatura / Neste remoto cabo converteram / Os Deuses, e por mais
dobradas mágoas, / Me anda Tétis cercando destas águas.”

(97) Estrofe 81: “E foi que de doença crua e feia, / A mais que eu
nunca vi, desampararam / Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
/ Os ossos para sempre sepultaram. / Quem haverá que, sem o ver,
o creia? / Que tão disformemente ali lhe incharam / As gengivas na
boca, que crescia / A carne, e juntamente apodrecia.

(98) Estrofe 62: “A gente que esta terra possuía, / Posto que todos
Etíopes eram, / Mais humana no trato parecia / Que os outros, que
tão mal nos receberam. / Com bailos e com festas de alegria /

(99) Estrofe 70: “Ora imagina agora coitados / Andaríamos todos,


perdidos, / De fomes, de tormentas quebrantados, / Por climas e por
mares não sabidos, / E do esperar comprido tão cansados, / Quanto
a desesperar já compelidos, / Por céus não naturais, de qualidade /
Inimiga de nossa humanidade.

(100) Estrofe 85: “Até que aqui no teu seguro porto, / Cuja brandura
e doce tratamento / Dará saúde a um vivo, e vida a um morto, / Nos
trouxe a piedade do alto assento. / Aqui repouso, aqui doce conforto,
/ Nova quietação do pensamento / Nos deste: e vês aqui, se atento
ouviste, / Te contei tudo quanto me pediste.

125
Unidade B – Séc. XVI

5.6.6 Canto VI

Terminada a narrativa de Vasco da Gama e os festejos dos melindanos,


a armada sai, guiada por um piloto que deverá guia–la até Calicute (101).

Baco, vendo que os portugueses estão prestes a chegar à Índia, re-


solve pedir ajuda a Netuno (102), que convoca um concílio dos deuses
marinho. A decisão destes é oposta à dos olímpicos, e assim ordenam a
Éolo (103) que solte os ventos para fazer afundar a frota.

(101) Estrofe 5: Outras palavras tais lhe respondia / O Capitão, o


logo as velas dando, / Para as terras da Aurora se partia, / Que tanto
tempo há já que vai buscando. / No piloto que leva não havia / Falsi-
dade, mas antes vai mostrando / A navegação certa, e assim caminha
/ Já segura do que dantes vinha.

(102) Estrofe 15: “Ó Netuno, lhe disse, não te espantes / De Baco nos
teus reinos receberes, / Porque também com os grandes e possantes /
Mostra a Fortuna injusta seus poderes. / Manda chamar os Deuses do
mar, antes / Que fale mais, se ouvir–me o mais quiseres; / Verão da
desventura grandes modos: / Ouçam todos o mal, que toca a todos.”

(103) Estrofe 35: A ira com que súbito alterado / O coração dos Deu-
ses foi num ponto, / Não sofreu mais conselho bem cuidado, / Nem
dilação, nem outro algum desconto. / Ao grande Eolo mandam já re-
cado / Da parte de Netuno, que sem conto / Solte as fúrias dos ventos
repugnantes, / Que não haja no mar mais navegantes.

Os Doze de Inglaterra

Enquanto isso Fernão Veloso conta o episódio d’Os doze de Ingla-


terra (104): nos tempos de D. João I, doze cavaleiros ingleses teriam
ofendido a honra de doze damas inglesas (105), e lançado o desafio
a quem quisesse defendê–las em um torneio (106). Uma vez que estes
eram homens poderosos da Inglaterra, não havia compatriotas que se
atrevessem a enfrentá–los. Assim, o duque de Lencastre lançou um ape-
lo ao seu genro rei de Portugal (107).

Em resposta, armaram–se imediatamente doze cavaleiros portu-


gueses para partir do Porto para aquele país (108), mas só onze embar-

126
Os Lusíadas Capítulo 05
caram. O 12º era Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço, que resolveu
ir primeiro por terra até Flandres (109). Depois de algumas aventuras,
chegou ao local da justa no preciso momento em que esta ia começar
(110) e, com a sua ajuda, todos os cavaleiros ingleses foram derrotados
(111), salvando–se a honra das damas ofendidas.

(104) Estrofe 42: Consentem nisto todos, e encomendam / A Veloso


que conte isto que aprova. / “Contarei, disse, sem que me repreendam
/ De contar cousa fabulosa ou nova; / E porque os que me ouvirem
daqui aprendam / A fazer feitos grandes de alta prova, / Dos nascidos
direi na nossa terra, / E estes sejam os doze de Inglaterra.

(105) Estrofe 44: “Entre as damas gentis da corte Inglesa / E nobres


cortesãos, acaso um dia / Se levantou discórdia em ira acesa, / Ou foi
opinião, ou foi porfia. / Os cortesãos, a quem tão pouco pesa / Soltar
palavras graves de ousadia, / Dizem que provarão, que honras e fa-
mas / Em tais damas não há, pera ser damas.

(106) Estrofe 45: “E que se houver alguém, com lança e espada, /


Que queira sustentar a parte sua, / Que eles, em campo raso ou esta-
cada, / Lhe darão feia infâmia, ou morte crua. […]

(107) Estrofe 46: “Mas como fossem grandes e possantes / No reino


os inimigos, não se atrevem / Nem parentes, nem férvidos amantes, /
A sustentar as damas, como devem. / Com lágrimas formosas e bas-
tantes / A fazer que em socorro os Deuses levem / De todo o Céu, por
rostos de alabastro, / Se vão todas ao duque de Alencastro.

(108) Estrofe 52: […] Apercebem–se os doze, em tempo breve, / De


armas, e roupas de uso mais moderno, / De elmos, cimeiras, letras, e
primores, / Cavalos, e concertos de mil cores.

(109) Estrofe 54: […] Agora, que aparelho certo vejo, / (Pois que
do mundo as coisas são tamanhas) / Quero, se me deixais, ir só por
terra, / Porque eu serei convosco em Inglaterra.

Estrofe 56: Vistas enfim de França as coisas grandes, / No grande


empório foi parar de Frandes.

(110) Estrofe 62: “Viram todos o rosto aonde havia / A causa princi-
pal do reboliço: / Eis entra um cavaleiro, que trazia / Armas, cavalo,

127
Unidade B – Séc. XVI

ao bélico serviço. / Ao Rei e às damas fala, e logo se ia / Para os onze,


que este era o grã Magriço; / Abraça os companheiros como amigos, /
A quem não falta certo nos perigos.

(111) Estrofe 66: “Gastar palavras em contar extremos / De golpes


feros, cruas estocadas, / É desses gastadores, que sabemos, / Maus do
tempo, com fábulas sonhadas. / Basta, por fim do caso, que enten-
demos / Que com finezas altas e afamadas, / Com os nossos fica a
palma da vitória, / E as damas vencedoras, e com glória.

A Tempestade

A história de Veloso é interrompida pela chegada da tempestade


provocada pelos deuses marinhos (112). Vendo as suas embarcações
quase perdidas, Vasco da Gama dirige uma prece a Deus (113). Mais
uma vez, é Vênus que ajuda os portugueses, mandando as ninfas sedu-
zirem os ventos para acalmá–los (114). Dissipada a tempestade, a arma-
da avista Calicute (115) e o capitão agradece a mercê divina (116).

(112) Estrofe 70: Mas, neste passo, assim prontos estando / Eis o
mestre, que olhando os ares anda, / O apito toca; acordam despertan-
do / Os marinheiros duma e doutra banda; / E porque o vento vinha
refrescando, / Os traquetes das gáveas tomar manda: / “Alerta, disse,
estai, que o vento cresce / Daquela nuvem negra que aparece.”

(113) Estrofe 80: Vendo Vasco da Gama que tão perto / Do fim de
seu desejo se perdia; / Vendo ora o mar até o inferno aberto, / Ora
com nova fúria ao céu subia, / Confuso de temor, da vida incerto, /
Onde nenhum remédio lhe valia, / Chama aquele remédio santo é
forte, / Que o impossível pode, desta sorte:

(114) Estrofe 87: Grinaldas manda pôr de várias cores / Sobre cabe-
lo; louros à porfia. / Quem não dirá que nascem roxas flores / Sobre
ouro natural, que Amor enfia? / Abrandar determina, por amores, /
Dos ventos a nojosa companhia, / Mostrando–lhe as amadas Ninfas
belas, / Que mais formosas vinham que as estrelas.

(115) Estrofe 92: Já a manhã clara dava nos outeiros / Por onde o
Ganges murmurando soa, / Quando da celsa gávea os marinheiros /
Enxergaram terra alta pela proa. / Já fora de tormenta, e dos primei-

128
Os Lusíadas Capítulo 05
ros / Mares, o temor vão do peito voa. / Disse alegre o piloto Melinda-
no: / “Terra é de Calecu, se não me engano.

(116) Estrofe 93: […] Sofrer aqui não pode o Gama mais, / De ledo
em ver que a terra se conhece: / Os geolhos no chão, as mãos ao céu,
/ A mercê grande a Deus agradeceu.

5.6.7 Canto VII

Assim que aporta em Calicute, Vasco da Gama envia um mensageiro


ao soberano indiano (117). No meio desse novo povo, com quem não
consegue falar, o marinheiro encontra Monçaide (118), um mouro hispâ-
nico falante de castelhano (119), que o acolhe (120) e lhe serve de tradu-
tor. Monçaide acompanha–o até a frota (121) e explica aos portugueses
um pouco da geografia, história, política, religiões e costumes da Índia.

O capitão e Monçaide desembarcam (122) e encontram–se com o


Catual (123), um ministro que os acompanha ao Samorim. É proposto
um tratado comercial (124) e, enquanto o soberano indiano pondera
(125), a embaixada volta à nau capitânia (126).

(117) Estrofe 23: Chegada a frota ao rico senhorio, / Um Português


mandado logo parte /  A fazer sabedor o Rei gentio / Da vinda sua
a tão remota parte. / Entrando o mensageiro pelo rio, / Que ali nas
ondas entra, a não vista arte, / A cor, o gesto estranho, o trajo novo /
Fez concorrer a vê–lo todo o povo.

(118) Estrofe 26: Espantado ficou da grã viagem / O Mouro, que


Monçaide se chamava, / Ouvindo as opressões que na passagem / Do
mar, o Lusitano lhe contava: […]

(119) Estrofe 25: Em vendo o mensageiro, com jocundo / Rosto,


como quem sabe a língua Hispana, / Lhe disse: “Quem te trouxe a
estoutro mundo, / Tão longe da tua pátria Lusitana?” […]

(120) Estrofe 27: E que, entanto que a nova lhe chegasse / De sua es-
tranha vinda, se queria, / Na sua pobre casa repousasse, / E do man-
jar da terra comeria, / E depois que se um pouco recreasse, / Com ele
para a armada tornaria, / Que alegria não pode ser tamanha, / Que
achar gente vizinha em terra estranha.

129
Unidade B – Séc. XVI

(121) Estrofe 28: […] Ambos se tornam logo da cidade / Para a


frota, que o Mouro bem conhece; / Sobem à capitania; e toda a gente
/ Monçaide recebeu benignamente.

(122) Estrofe 45: Desta arte o Malabar, destarte o Luso / Caminham,


lá para onde o Rei o espera: / Os outros Portugueses vão ao uso / Que
infantaria segue, esquadra fera. […]

(123) Estrofe 46: O Gama e o Catual iam falando / Nas coisas, que
lhe o tempo oferecia; / Monçaide entre eles vai interpretando / As
palavras que de ambos entendia. […]

(124) Estrofe 62: “E se queres com pactos e alianças / De paz e de


amizade sacra e nua / Comércio consentir das abastanças / Das fa-
zendas da terra sua e tua, / Por que cresçam as rendas e abastanças,
/ Por quem a gente mais trabalha e sua, / De vossos Reinos, será cer-
tamente / De ti proveito, o dele glória ingente.

(125) Estrofe 65: E que entanto podia do trabalho / Passado ir re-


pousar, e em tempo breve / Daria a seu despacho um justo talho, /
Com que a seu Rei resposta alegre leve. / Já nisto punha a noite o
usado atalho / As humanas canseiras, por que ceve / De doce sono os
membros trabalhados, / Os olhos ocupando ao ócio dados.

(126) Estrofe 73: […] Ambos partem da praia, a quem seguia / A


Naira geração, que o mar coalhava. / A capitania sobem forte e bela,
/ Onde Paulo os recebe a bordo dela.

5.6.8 Canto VIII

Painel da História de Portugal

Na nau encontra–se um painel representando a história de Por-


tugal. A descrição da pintura começa com Luso (127), depois Viriato
(128) e Sertório (129).

Em seguida vêm o Conde D. Henrique (130) e D. Afonso Henri-


ques (131), juntamente com algumas personalidades que se evidencia-
ram durante a primeira dinastia: Egas Moniz (132), D. Fuas Roupinho
(133), o prior D. Teotônio (134), Mem. Moniz (135), Geraldo Sem Pavor
(136), Martim Lopes (137) e D. Paio Peres Correia (138).

130
Os Lusíadas Capítulo 05
Já durante a revolução de 1383–85 e o reinado de D. João I estão
presentes D. Nuno Álvares Pereira (139), Pêro Rodrigues (140), Gil Fer-
nandes (141), Rui Pereira (142) e D. Pedro (143).

(127) Estrofe 2: […] Antigos são, mas ainda resplandecem / Colo


nome, entre os engenhos mais perfeito / Este que vês é Luso, donde a
fama / O nosso Reino Lusitânia chama.

(128) Estrofe 6: […] Este que vês, pastor já foi de gado; / Viriato
sabemos que se chama, / Destro na lança mais que no cajado; […]

(129) Estrofe 8: […] Olha tão subtis artes e maneiras, / Para ad-
quirir os povos, tão fingidas, / A fatídica Cerva que o avisa: / Ele é
Sertório, e ela a sua divisa.

(130) Estrofe 9: […] Depois de ter com os Mouros superado, / Ga-


legos e Leoneses cavaleiros, / A casa Santa passa o santo Henrique, /
Por que o tronco dos Reis se santifique.”

(131) Estrofe 11:–“Este é o primeiro Afonso, disse o Gama, / Que


todo Portugal aos Mouros toma; / Por quem, no Estígio lago, jura a
Fama / De mais não celebrar nenhum de Roma. […]

(132) Estrofe 13: […] Egas Moniz se chama o forte velho, / Para
leais vassalos claro espelho.

(133) Estrofe 17: “É, Dom Fuas Roupinho, que na terra / E no mar
resplandece juntamente, / Com o fogo que acendeu junto da serra /
De Abila, nas galés da Maura gente.

(134) Estrofe 19: […] É Teotónio, Prior. Mas vê cercada / Santarém,


e verás a segurança / Da figura nos muros, que primeira / Subindo,
ergueu das Quinis a bandeira.

(135) Estrofe 20: […] Mem. Moniz é, que em si o valor retrata, /


Que o sepulcro do pai com os ossos cerra, / Digno destas bandeiras,
pois sem falta / A contrária derriba e a sua exalta.

(136) Estrofe 21: […] Ela por armas toma a semelhança / Do ca-
valeiro, que as cabeças frias / Na mão levava (feito nunca feito!) /
Giraldo Sem–pavor é o forte peito.

131
Unidade B – Séc. XVI

(137) Estrofe 23: “Martim Lopes se chama o cavaleiro, / Que destes


levar pode a palma e o louro. […]

(138) Estrofe 26: “Vês? com bélica astúcia ao Mouro ganha / Silves,
que ele ganhou com força ingente: / É Dom Paio Correia, cuja manha
/ E grande esforço faz inveja à gente.

(139) Estrofe 32: “Se quem com tanto esforço em Deus se atreve, /
Ouvir quiseres como se nomeia, / Português Cipião chamar–se deve;
/ Mas mais de Dom Nuno Alvares se arreia: […]

(140) Estrofe 33: […] Outra vez vê que a lança em sangue banha /
Destes, só por livrar com o amor ardente / O preso amigo, preso por
leal: / Pêro Rodrigues é do Landroal.

(141) Estrofe 34: “Olha este desleal o como paga / O perjúrio que fez
e vil engano: / Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga, / E faz vir a
passar o último dano: […]

(142) Estrofe 34: […]De Xerez rouba o campo, e quase alaga / Com
o sangue de seus donos Castelhano. / Mas olha Rui Pereira, que com
o rosto / Faz escudo às galés, diante posto.

(143) Estrofe 38: “Vês o conde Dom Pedro, que sustenta / Dois cercos
contra toda a Barbaria? / Vês, outro Conde está, que representa / Em
terra Marte, em forças e ousadia; […]

Tratado com o Samorim

Samorim entretanto manda examinar os augúrios que (144) prevê-


em que os portugueses virão a subjugar toda a Índia. Isso é confirmado
pelos conselheiros islâmicos do soberano, a quem durante a noite Baco
visitara durante os sonhos (145), fazendo–se passar por Maomé, acu-
sando os ocidentais de pirataria (146) e incitando à destruição a frota.

No dia seguinte, o Samorim tem de decidir entre as vantagens eco-


nômicas do tratado com os portugueses e as previsões catastróficas da
noite. Pede a Vasco da Gama que confesse a verdade (147). Vasco da
Gama reafirma suas intenções, e sai da audiência com autorização para
comercializar (148).

132
Os Lusíadas Capítulo 05
O ministro indiano, entretanto, influenciado pelos muçulmanos do
reino, faz o capitão de refém (149) e tenta trazer a frota portuguesa para
mais perto, para poder assaltá–la (150). Quando essa estratégia falha
(151), cobiçando o lucro e temendo o castigo do seu soberano por estar
a desobedecer às suas ordens (152), aceita trocar Vasco da Gama por
mercadorias das naus (153).

(144) Estrofe 45: Entretanto os Arúspices famosos / Na falsa opi-


nião, que em sacrifícios / Antevêem sempre os casos duvidosos, / Por
sinais diabólicos e indícios, / Mandados do Rei próprio, estudiosos /
Exercitavam a arte e seus ofícios / Sobre esta vinda desta gente estra-
nha, / Que às suas terras vem da ignota Espanha.

(145) Estrofe 47: A isto mais se ajunta que um devoto / Sacerdote da


lei de Mafamede, / Dos ódios concebidos não remoto / Contra a divi-
na Fé, que tudo excede, / Em forma do Profeta falso e noto, / Que do
filho da escrava Agar procede, / Baco odioso em sonhos lhe aparece, /
Que de seus ódios ainda se não desse.

(146) Estrofe 53: Com peitas, ouro, e dádivas secretas / Conciliam


da terra os principais, / E com razões notáveis e discretas / Mostram
ser perdição dos naturais, / Dizendo que são gentes inquietas, / Que,
os mares discorrendo ocidentais, / Vivem só de piráticas rapinas, /
Sem Rei, sem leis humanas ou divinas […]

(147) Estrofe 60: Sobre isto, nos conselhos que tomava, / Achava
muito contrários pareceres; / Que naqueles com quem se aconselha-
va / Executa o dinheiro seus poderes. / O grande Capitão chamar
mandava, / A quem chegado disse:–“Se quiseres / Confessar–me a
verdade limpa e nua, / Perdão alcançarás da culpa tua.

(148) Estrofe 77: Juntamente a cobiça do proveito, / Que espera do


contrato Lusitano, / O faz obedecer e ter respeito / Com o Capitão, e
não com o Mauro engano. / Enfim ao Gama manda que direito / As
naus se vá, e, seguro de algum dano, / Possa a terra mandar qualquer
fazenda, / Que pela especiaria troque e venda.

(149) Estrofe 84: Que nenhum torne à pátria só pretende / O con-


selho infernal dos Maumetanos, / Por que não saiba nunca onde se
estende / A terra Eoa o Rei dos Lusitanos. / Não parte o Gama enfim,

133
Unidade B – Séc. XVI

que lho defende / O Regedor dos bárbaros profanos; / Nem sem licen-
ça sua ir–se podia, / Que as almadias todas lhe tolhia.

(150) Estrofe 86: Nestas palavras o discreto Gama / Enxerga bem


que as naus deseja perto / O Catual, por que com ferro e flama, / Lhas
assalte, por ódio descoberto. […]

(151) Estrofe 90: Insiste o Malabar em tê–lo preso, / Se não manda


chegar a terra a armada; / Ele constante, e de ira nobre aceso, / Os
ameaços seus não teme nada; […]

(152) Estrofe 91: […] Comete–lhe o Gentio outro partido, / Temen-


do de seu Rei castigo ou pena, / Se sabe esta malícia, a qual asinha /
Saberá, se mais tempo ali o detinha.

(153) Estrofe 92: Diz–lhe “que mande vir toda a fazenda / Vendível,
que trazia, para a terra, / Para que de vagar se troque e venda: / Que
quem não quer comércio, busca guerra. / Posto que os maus propó-
sitos entenda / O Gama, que o danado peito encerra, / Consente,
porque sabe por verdade, / Que compra com a fazenda a liberdade.

5.6.9 Canto IX

Ainda tentam demorar os portugueses, proibindo o comércio com


os feitores das naus, para dar tempo de chegar uma armada muçulmana
(154), mas Monçaide, convertido agora ao cristianismo, consegue infor-
mar o capitão português dos planos dos inimigos (155), enquanto isso
os feitores eram presos (156).

Vasco da Gama aprisiona alguns importantes, do reino de Calicute, e


troca–os pelos feitores aprisionados (157). Com mercadoria e alguns pri-
sioneiros indianos, a frota tem provas da chegada à Índia e zarpa (158).

(154) Estrofe 4: Por estas naus os Mouros esperavam, / Que, como


fossem grandes e possantes, / Aquelas, que o comércio lhe tomavam, /
Com flamas abrasassem crepitantes. / Neste socorro tanto confiavam,
/ Que já não querem mais dos navegantes, / Senão que tanto tempo
ali tardassem, / Que da famosa Meca as naus chegassem.

(155) Estrofe 5: Mas o Governador dos céus e gentes, / Que, para


quanto tem determinado, / De longe os meios dá convenientes, / Por

134
Os Lusíadas Capítulo 05
onde vem a efeito o fim fadado, / Influiu piedosos acidentes / De afei-
ção em Monçaide, que guardado / Estava para dar ao Gama aviso, /
E merecer por isso o Paraíso.

(156) Estrofe 9: Porém não tardou muito que, voando, / Um rumor


não soasse com verdade: / Que foram presos os feitores, quando /
Foram sentidos vir–se da cidade. […]

(157) Estrofe 12: Manda logo os feitores Lusitanos / Com toda sua
fazenda livremente / Apesar dos inimigos Maumetanos, / Por que lhe
torne a sua presa gente. / Desculpas manda o Rei de seus enganos;
/ Recebe o Capitão de melhor mente / Os presos que as desculpas, e
tornando / Alguns negros, se parte as velas dando.

(158) Estrofe 14: Leva alguns Malabares, que tomou / Por força,
dos que o Samorim mandara / Quando os presos feitores lhe tornou;
/ Leva pimenta ardente, que comprara; / A seca flor de Banda não
ficou, / A noz, e o negro cravo, que faz clara / A nova ilha Maluco,
com a canela, / Com que Ceilão é rica, ilustre e bela.

A Ilha dos Amores

Vendo agora a frota em segurança no seu regresso a Portugal, Vê-


nus pede a ajuda do seu filho Cupido para juntar os amores e ferir as
Nereidas com as flechas do amor (159). Com as ninfas e Tétis sob essa
influência, coloca uma ilha mística na rota dos portugueses (160) e a ela
traz os amantes (161).

Comumente atribui–se ao episódio da Ilha dos Amores as seguin-


tes implicações:

ǿǿ Cenário onde decorre o encontro amoroso, com os seus chãos


maciamente relvados (162), águas límpidas (163), arvoredos
frondosos e lago. É um cenário paradisíaco;

ǿǿ O amor que experimentam é de paixão: imediato, arrebatado


e carnal;

ǿǿ Se os amores mal sucedidos de Adamastor deixam entrever o


caso real do próprio Camões (164), Leonardo aqui representa
a consumação do seu sonho (165).

135
Unidade B – Séc. XVI

Vasco da Gama é acompanhado por Tétis até um magnífico palá-


cio de cristal e ouro, enquanto os restantes marinheiros e as suas com-
panheiras ficam nas praias e nos bosques (166).

Tétis

(159) Estrofe 20: Algum repouso, enfim, com que pudesse / Refocilar
a lassa humanidade / Dos navegantes seus, como interesse / Do tra-
balho que encurta a breve idade. / Parece–lhe razão que conta desse
/ A seu filho, por cuja potestade / Os Deuses faz descer ao vil terreno
/ E os humanos subir ao céu sereno.

(160) Estrofe 40: “E para isso queria que, feridas / As filhas de Ne-
reu, no ponto fundo, / De amor dos Lusitanos incendidas, / Que vêm
de descobrir o novo mundo, / Todas numa ilha juntas e subidas, /
Ilha, que nas entranhas do profundo / Oceano terei aparelhada, / De
dons de Flora e Zéfiro adornada;

136
Os Lusíadas Capítulo 05
(161) Estrofe 52: De longe a Ilha viram fresca e bela, / Que Vénus
pelas ondas lha levava / (Bem como o vento leva branca vela) / Para
onde a forte armada se enxergava; / Que, por que não passassem,
sem que nela / Tomassem porto, como desejava, / Para onde as naus
navegam a movia / A Acidália, que tudo enfim podia.

(162) Estrofe 55: […] Arvoredo gentil sobre ela pende, / Como que
pronto está para afeitar–se, / Vendo–se no cristal resplandecente, /
Que em si o está pintando propriamente.

(163) Estrofe 54: […] Claras fontes o límpidas manavam / Do cume,


que a verdura tem viçosa; / Por entre pedras alvas se deriva / A sono-
rosa Ninfa fugitiva.

(164) Estrofe 75: Leonardo, soldado bem disposto, / Manhoso, ca-


valeiro e namorado, / A quem amor não dera um só desgosto, / Mas
sempre fora dele maltratado, / E tinha já por firme pressuposto / Ser
com amores mal afortunado, / Porém não que perdesse a esperança /
De ainda poder seu fado ter mudança,

(165) Estrofe 82: Já não fugia a bela Ninfa, tanto / Por se dar cara ao
triste que a seguia, / Como por ir ouvindo o doce canto, / As namo-
radas mágoas que dizia. / Volvendo o rosto já sereno e santo, / Toda
banhada em riso e alegria, / Cair se deixa aos pés do vencedor, / Que
todo se desfaz em puro amor.

(166) Estrofe 87: Tomando–o pela mão, o leva e guia / Para o cume
dum monte alto e divino, / No qual uma rica fábrica se erguia / De
cristal toda, e de ouro puro e fino. / A maior parte aqui passam do
dia / Em doces jogos e em prazer contínuo: / Ela nos paços logra seus
amores, / As outras pelas sombras entre as flores.

5.6.10 Canto X

A Profecia da Sirena

Depois de saciados todos os prazeres, os marinheiros chegam ao


palácio de Tétis, onde lhes é servido um grande banquete (167). Neste,
a Sirena profetiza (168) os feitos dos portugueses no Oriente. São en-
tão cantados os heróis e governadores da Índia, que da mesma forma

137
Unidade B – Séc. XVI

vão merecer a presença na Ilha dos Amores: Duarte Pacheco Pereira


(169), Francisco de Almeida e o seu filho Lourenço de Almeida (170),
Tristão da Cunha (171), Afonso de Albuquerque (172), Lopo Soares de
Albergaria (173), Diogo Lopes de Sequeira (174), Duarte de Menezes e
o próprio Vasco da Gama (175), Henrique de Menezes (176), Pêro Mas-
carenhas (177), Lopo Vaz de Sampaio (178), Heitor da Silveira (179),
Nuno da Cunha (180), Garcia de Noronha e António da Silveira (181),
Estêvão da Gama (182), Martim Afonso de Sousa (183), João de Castro
e os seus filhos Álvaro e Fernando (184) e João de Mascarenhas (185).

(167) Estrofe 2: Mandados da Rainha, que abundantes / Mesas


d’altos manjares excelentes / Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza /
Restaurem da cansada natureza. […]

(168) Estrofe 10: Cantava a bela Deusa que viriam / Do Tejo, pelo
mar que o Gama abrira, / Armadas que as ribeiras venceriam / Por
onde o Oceano Índico suspira; […]

(169) Estrofe 12: E canta como lá se embarcaria / Em Belém o re-


médio deste dano, / Sem saber o que em si ao mar traria, / O grão
Pacheco, Aquiles Lusitano. […]

(170) Estrofe 26: “Mas eis outro (cantava) intitulado / Vem com
nome real e traz consigo / O filho, que no mar será ilustrado, / Tan-
to como qualquer Romano antigo. / Ambos darão com braço forte,
armado, / A Quíloa fértil, áspero castigo, / Fazendo nela Rei leal e
humano, / Deitado fora o pérfido tirano.

Estrofe 27: […] Despois, na costa da Índia, andando cheia / De le-


nhos inimigos e artifícios / Contra os Lusos, com velas e com remos /
O mancebo Lourenço fará extremos.

(171) Estrofe 39: “Mas oh, que luz tamanha que abrir sinto / (Dizia a
Ninfa, e a voz alevantava) / Lá no mar de Melinde, em sangue tinto /
Das cidades de Lamo, de Oja e Brava, / Pelo Cunha também, que nunca
extinto / Será seu nome em todo o mar que lava / As ilhas do Austro, e
praias que se chamam / De São Lourenço, e em todo o Sul se afamam!

(172) Estrofe 40: “Esta luz é do fogo e das luzentes / Armas com que
Albuquerque irá amansando / De Ormuz os Párseos, por seu mal

138
Os Lusíadas Capítulo 05
valentes, / Que refusam o jugo honroso e brando. / Ali verão as setas
estridentes / Reciprocar–se, a ponta no ar virando / Contra quem as
tirou; que Deus peleja / Por quem estende a fé da Madre Igreja.

(173) Estrofe 50: Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto, / De So-


ares cantava, que as bandeiras / Faria tremular e pôr espanto / Pelas
roxas Arábicas ribeiras: /–“Medina abominábil teme tanto, / Quanto
Meca e Gidá, co as derradeiras / Praias de Abássia; Barborá se teme
/ Do mal de que o empório Zeila geme.

(174) Estrofe 52: “Também Sequeira, as ondas Eritreias / Dividindo,


abrirá novo caminho / Pera ti, grande Império, que te arreias / De se-
res de Candace e Sabá ninho. / Maçuá, com cisternas de água cheias
/ Verá, e o porto Arquico, ali vizinho; / E fará descobrir remotas Ilhas,
/ Que dão ao mundo novas maravilhas.

(175) Estrofe 53: “Virá despois Meneses, cujo ferro / Mais na África,
que cá, terá provado; / Castigará de Ormuz soberba o erro, / Com lhe
fazer tributo dar dobrado. / Também tu, Gama, em pago do desterro
/ Em que estás e serás inda tornado, / Cos títulos de Conde e d’honras
nobres / Virás mandar a terra que descobres.

(176) Estrofe 54: “Mas aquela fatal necessidade / De quem ninguém


se exime dos humanos, / Ilustrado co a Régia dignidade, / Te tirará
do mundo e seus enganos. / Outro Meneses logo, cuja idade / É maior
na prudência que nos anos, / Governará; e fará o ditoso Henrique /
Que perpétua memória dele fique.

(177) Estrofe 56: “Mas, despois que as Estrelas o chamarem, / Su-


cederás, ó forte Mascarenhas; / E, se injustos o mando te tomarem, /
Prometo–te que fama eterna tenhas. […]

(178) Estrofe 59: “Mas, contudo, não nego que Sampaio / Será, no
esforço, ilustre e assinalado, / Mostrando–se no mar um fero raio, /
Que de inimigos mil verá coalhado. / Em Bacanor fará cruel ensaio
/ No Malabar, pera que, amedrontado, / Despois a ser vencido dele
venha / Cutiale, com quanta armada tenha.

(179) Estrofe 60: “E não menos de Dio a fera frota, / Que Chaúl
temerá, de grande e ousada, / Fará, co a vista só, perdida e rota, / Por

139
Unidade B – Séc. XVI

Heitor da Silveira e destroçada; / Por Heitor Português, de quem se


nota / Que na costa Cambaica, sempre armada, / Será aos Guzarates
tanto dano, / Quanto já foi aos Gregos o Troiano.

(180) Estrofe 61: “A Sampaio feroz sucederá / Cunha, que longo tem-
po tem o leme: / De Chale as torres altas erguerá, / Enquanto Dio ilus-
tre dele treme; / O forte Baçaim se lhe dará, / Não sem sangue, porém,
que nele geme / Melique, porque à força só de espada / A tranqueira
soberba vê tomada.

(181) Estrofe 62: “Trás este vem Noronha, cujo auspício / De Dio os
Rumes feros afugenta; / Dio, que o peito e bélico exercício / De António
da Silveira bem sustenta. / Fará em Noronha a morte o usado ofício, /
Quando um teu ramo, ó Gama, se exprimenta / No governo do Impé-
rio, cujo zelo / Com medo o Roxo Mar fará amarelo.

(182) Estrofe 63: “Das mãos do teu Estêvão vem tomar / As rédeas
um, que já será ilustrado / No Brasil, com vencer e castigar / O pirata
Francês, ao mar usado. / Despois, Capitão–mor do Índico mar, / O
muro de Damão, soberbo e armado, / Escala e primeiro entra a porta
aberta, / Que fogo e frechas mil terão coberta.

(183) Estrofe 67: “Este será Martinho, que de Marte / O nome tem co
as obras derivado; / Tanto em armas ilustre em toda parte, / Quanto,
em conselho, sábio e bem cuidado. / Suceder–lhe–á ali Castro, que o
estandarte / Português terá sempre levantado, / Conforme sucessor ao
sucedido, / Que um ergue Dio, outro o defende erguido.

(184) Estrofe 70: “Fernando, um deles, ramo da alta pranta, / Onde o


violento fogo, com ruido, / Em pedaços os muros no ar levanta, / Será
ali arrebatado e ao Céu subido. / Álvaro, quando o Inverno o mundo
espanta / E tem o caminho húmido impedido, / Abrindo–o, vence as
ondas e os perigos, / Os ventos e despois os inimigos.

(185) Estrofe 69: “Basiliscos medonhos e liões, / Trabucos feros, mi-


nas encobertas, / Sustenta […]

A Máquina do Mundo

Acabado o banquete, Tétis convida Gama para o espetáculo da Máqui-


na do Mundo, o espetáculo único das esferas celestes de Ptolomeu (186).

140
Os Lusíadas Capítulo 05
Incluídas nesse episódio ainda vão estar mais
“profecias” sobre os portugueses e a história dos mi-
lagres de S. Tomé, evangelizador da Índia, com uma
breve mas arriscada crítica aos Jesuítas na estrofe
119. Na estrofe 128, uma referência ao naufrágio de
Camões, em que este se salvou a nado com Os Lusí-
adas (187). Depois disso, os portugueses embarcam
novamente e chegam sem mais problemas a Lisboa,
onde recebem as glórias que lhes são devidas (188).

(186) Estrofe 77: Não andam muito que no er-


guido cume / Se acharam, onde um campo se es-
maltava / De esmeraldas, rubis, tais que presume
/ A vista que divino chão pisava. / Aqui um globo
vêm no ar, que o lume / Claríssimo por ele pene-
trava, / De modo que o seu centro está evidente, /
Como a sua superfícia, claramente. Máquina do mundo

Estrofe 80: “Vês aqui a grande máquina do Mundo, / Etérea e ele-


mental, que fabricada / Assi foi do Saber, alto e profundo, / Que é sem
princípio e meta limitada. / Quem cerca em derredor este rotundo /
Globo e sua superfícia tão limada, / É Deus: mas o que é Deus, nin-
guém o entende, / Que a tanto o engenho humano não se estende.

Estrofe 90: “Em todos estes orbes, diferente / Curso verás, nuns grave
e noutros leve; / Ora fogem do Centro longamente, / Ora da Terra
estão caminho breve, / Bem como quis o Padre omnipotente, / Que
o fogo fez e o ar, o vento e neve, / Os quais verás que jazem mais a
dentro / E tem co Mar a Terra por seu centro.

(187) Estrofe 128: “Este receberá, plácido e brando, / No seu regaço


os Cantos que molhados / Vêm do naufrágio triste e miserando, / Dos
procelosos baxos escapados, / Das fomes, dos perigos grandes, quan-
do / Será o injusto mando executado / Naquele cuja Lira sonorosa /
Será mais afamada que ditosa.

(188) Estrofe 144: Assi foram cortando o mar sereno, / Com vento
sempre manso e nunca irado, / Até que houveram vista do terreno /
Em que naceram, sempre desejado. / Entraram pela foz do Tejo ame-

141
Unidade B – Séc. XVI

no, / E à sua pátria e Rei temido e amado / O prémio e glória dão por
que mandou, / E com títulos novos se ilustrou.

Epílogo

A epopéia termina com um epílogo, em que o poeta lamenta mais


uma vez as injustiças que o Reino lhe terá cometido (189). Reforça a
dedicatória da obra ao jovem rei D. Sebastião (190) e aproveita, como
homem experiente da vida e dos conhecimentos, para lhe dar alguns
conselhos: que se aconselhe com os melhores, governe com justiça, pre-
mie apenas e sempre quem merece (191). Deste modo, tal como Aqui-
les foi cantado por Homero, Camões cantará o seu rei e as glórias do
povo lusitano (192).

(189) Estrofe 145: Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho / Des-
temperada e a voz enrouquecida, / E não do canto, mas de ver que
venho / Cantar a gente surda e endurecida. / O favor com que mais
se acende o engenho / Não no dá a pátria, não, que está metida / No
gosto da cobiça e na rudeza / Düa austera, apagada e vil tristeza.

(190) Estrofe 146: E não sei por que influxo de Destino / Não tem
um ledo orgulho e geral gosto, / Que os ânimos levanta de contino / A
ter pera trabalhos ledo o rosto. / Por isso vós, ó Rei, que por divino /
Conselho estais no régio sólio posto, / Olhai que sois (e vede as outras
gentes) / Senhor só de vassalos excelentes.

(191) Estrofe 149: Favorecei–os logo, e alegrai–os / Com a presença e


leda humanidade; / De rigorosas leis desalivai–os, / Que assi se abre o
caminho à santidade. / Os mais exprimentados levantai–os, / Se, com
a experiência, têm bondade / Pera vosso conselho, pois que sabem / O
como, o quando, e onde as cousas cabem.

(192) Estrofe 156: Ou fazendo que, mais que a de Medusa, / A vista


vossa tema o monte Atlante, / Ou rompendo nos campos de Ampe-
lusa / Os muros de Marrocos e Trudante, / A minha já estimada e
leda Musa / Fico que em todo o mundo de vós cante, / De sorte que
Alexandro em vós se veja, / Sem à dita de Aquiles ter enveja.

A vibração emotiva e, ao mesmo tempo, a permanente lucidez


com que são analisados os sentimentos humanos, transmitem à obra de

142
Os Lusíadas Capítulo 05
Camões uma dramaticidade que a torna uma das mais significativas re-
alizações literárias não só do Renascimento, mas de todos os tempos.

No entanto, nesse século, também se deram os fatos que marca-


ram oficialmente o fim do Classicismo. D. Sebastião morre na batalha
de Alcácer–Quibir em 1578 e com ele sepulta–se o sonho do gran-
de império português na África. No ano de 1580, ocorre a anexação
de Portugal pela Espanha, situação que perduraria por 60 anos. No
mesmo ano, ocorre a morte do maior autor clássico português: Luís
de Camões. Encerrava assim o Classicismo e Os Lusíadas passam a de-
sempenhar o símbolo da vontade nacional pela independência política,
narrando a história de um pequeno povo que sai dos seus limites para
conquistar o mundo conhecido e desconhecido.

Em carta datada de 1579, Camões escreve: “[…] enfim, acabarei a


vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não me con-
tentei de morrer nela, mas com ela”. Para acesso a carta consulte: <http://
www.vidaslusofonas.pt/luis_de_camoes.htm>. Acesso em 04 jun. 2008.

Camões morre com sua pátria. O grande vate português apresenta–se


sobre uma tríplice perspectiva: 1) um fidalgo fiel a seu rei; 2) o guerreiro,
que enfrenta os perigos de ultramar; e 3) o poeta que sintetizou todas essas
experiências em uma linguagem que sobreviveu ao séculos. Resumindo:
guerreiro, navegador, amante patriota, poeta, lírico, trágico, épico.

143
Unidade B – Séc. XVI

Faça aqui o seu resumo!

144
Unidade C
Séc. XVII
Os Sermões do Padre Vieira Capítulo 06
6 Os Sermões do Padre Vieira
Este é o mundo em que vivemos. Antes, e depois de Noé, sempre foi
Dilúvio. Uns para uma parte, outros para outra: todos cansando–se em buscar
descanso, e todos cansados de o não achar.
(Padre Antônio Vieira,
Sermão da 5ª dominga da Quaresma, Lisboa, 1651)

Índio sendo catequizado

6.1 Biografia
Antônio Vieira (Lisboa, 6 de fevereiro de 1608 — Bahia, 17 de ju-
nho de 1697) foi religioso, escritor, orador português da Companhia de
Jesus, diplomata e embaixador. Além de ter feito tudo o que fez tam-
bém é um dos mais influentes personagens do século XVII em termos
de política e destacou–se como missionário em terras brasileiras. Nessa

147
Unidade C – Séc. XVII

qualidade, defendeu infatigavelmente os direitos humanos dos povos


indígenas combatendo a sua exploração e escravização. Era por eles
chamado de “Paiaçu” (Grande Padre/Pai, em tupi). Defendeu também
os judeus, a abolição da distinção entre cristãos–novos (judeus conver-
tidos, perseguidos à época pela Inquisição) e cristãos–velhos (os cató-
A Inquisição foi uma ope- licos tradicionais). Como emissário do rei D. João IV foi a Haia e Ams-
ração oficial conduzida terdã para contatos, e entrevistou Menasseh ben Israel, o grande rabino,
pela Igreja Católica a fim
de apurar e punir pessoas na tentativa de encontrar pontos teológicos comuns entre o judaísmo e
acusadas de heresia. o cristianismo — uma aliança entre a Igreja e a Sinagoga — que permi-
tisse o retorno deles, dos judeus, a Portugal.

Vieira nasceu em Lisboa em um lar humilde, e era mulato. Seu pai


serviu a Marinha Portuguesa e foi, por dois anos, escrivão da Inquisição,
tendo mudado para o Brasil em 1609, para assumir cargo de escrivão
em Salvador, na capitania da Bahia. Em 1614 mandou vir a família para
o Brasil. Nesse tempo Antônio Vieira tinha seis anos.

Vieira estudou na única escola da Bahia: o Colégio dos Jesuítas em


Salvador. Segundo consta, ele era um bom aluno no começo, mas depois
tornou–se brilhante. Juntou–se à Companhia de Jesus com voto de no-
viço em maio de 1623. Obteve o mestrado em Artes e foi professor de
Humanidades, ordenando–se sacerdote em 1634.

Padre Antônio Vieira

148
Os Sermões do Padre Vieira Capítulo 06
Em 1624, quando da Invasão Holandesa de Salvador, refugiou–
se no interior, e aí iniciou a sua vocação missionária. Um ano depois
tomou os votos de castidade, pobreza e obediência, abandonando o
noviciado. Não partiu para a vida missionária. Além de Teologia, estu-
dou Lógica, Física, Metafísica, Matemática e Economia. Em 1634, após
ter sido professor de retórica em Olinda, foi ordenado e em 1638 já
ensinava Teologia.

Quando da segunda invasão holandesa ao Nordeste do Brasil


(1630–1654), defendeu que Portugal entregasse a região aos Países Bai-
xos, pois gastava dez vezes mais com sua manutenção e defesa que o que
obtinha em contrapartida, além do fato de que os Países Baixos eram um
inimigo militarmente muito superior na época. Quando eclodiu uma
disputa entre Dominicanos (membros da inquisição) e Jesuítas (cate-
quistas), Vieira, defensor dos judeus, caiu em desgraça, enfraquecido
pela derrota de sua posição quanto à questão do Nordeste do Brasil.

Após a Restauração da Independência (1640), iniciou a carreira di-


plomática, integrando a missão que veio a Portugal prestar obediência
ao novo monarca. Impondo–se pelo espírito vivaz e como orador, foi
nomeado pelo rei como pregador régio. Em 1646 foi enviado à Holan-
da, no ano seguinte à França, com encargos diplomáticos. Era embai-
xador e foi enviado para negociar com os Países Baixos a devolução do
Nordeste. Caloroso adepto de obter para a coroa a ajuda financeira dos
cristãos–novos, entrou em conflito com a Inquisição, mas viu fundada a
Companhia de Comércio do Brasil.

O povo de Portugal não gostava de suas pregações em favor dos


judeus. Após tempos conturbados acabou voltando ao Brasil. De 1652
a 1661 atuou como missionário no Maranhão e no Grão–Pará, sempre
defendendo a liberdade dos índios.

Voltou para a Europa com a morte de D. João IV, tornando–se con-


fessor da Regente, D. Luísa de Gusmão. Com a morte de D. Afonso VI,
Vieira não encontrou apoio.

Abraçou a profecia do Sebastianismo e por isso entrou de novo em


conflito com a Inquisição, que o acusou de heresia com base em uma
carta de 1659 ao bispo do Japão, na qual expunha sua teoria do Quinto

149
Unidade C – Séc. XVII

Império, segundo a qual Portugal estaria predestinado a ser a cabeça de


um grande império do futuro, substituindo os antigos impérios como
Babilônia, os Medos e Persas, Grécia e Roma. Foi expulso de Lisboa,
desterrado e encarcerado no Porto e depois encarcerado em Coimbra,
enquanto os jesuítas perdiam seus privilégios. Em 1667 foi condenado
a internamento e proibido de pregar, mas, seis meses depois, a pena foi
anulada. Com a regência de D. Pedro, futuro D. Pedro II de Portugal,
recuperou sua condição de pregador.

Seguiu para Roma, de 1669 a 1675. Encontrou o Papa à morte, mas


deslumbrou a Cúria com seus discursos e sermões. Com apoios pode-
rosos, renovou a luta contra a Inquisição, cuja atuação considerava
nefasta para o equilíbrio da sociedade portuguesa. Obteve um breve
pontifício que o tornava apenas dependente do Tribunal romano.

Regressou a Lisboa seguro de não ser mais importunado. Quando,


em 1671, uma nova expulsão dos judeus foi promovida, novamente os
defendeu, mas o Príncipe Regente passara a protetor do Santo Ofício e
o recebeu friamente. Em 1675, absolvido pela Inquisição, voltou para
Lisboa por ordem de D. Pedro, mas afastou–se dos negócios públicos.

Decidiu voltar outra vez para o Brasil, em 1681. Dedicou–se à ta-


refa de continuar a coligir seus escritos, visando à edição completa em
16 volumes dos seus Sermões, iniciada em 1679, e à conclusão da Clavis
Prophetarum. Possuía cerca de 500 Cartas que foram publicadas em 3
volumes. Suas obras começaram a ser publicadas na Europa, onde fo-
ram elogiadas até pela Inquisição.

Já velho e doente, teve que espalhar circulares sobre a sua saúde


para poder manter em dia a sua vasta correspondência. Em 1694, já
não conseguia escrever de próprio punho. Em 10 de junho começou a
agonia, perdeu a voz, silenciaram–se seus discursos. Faleceu em 18 de
julho de 1697, aos 89 anos, justo no ano em que as primeiras notícias
da descoberta do ouro das minas abalaram o reino. Ouro que, como se
sabe, e ele intuíra, foi perdulariamente esbanjado ao longo do século 18
por D. João V.

150
Os Sermões do Padre Vieira Capítulo 06
6.2 Os Sermões e a Literatura
Você já deve ter ouvido falar em Sermão. Essa palavra está ligada
à religião, padres e pastores pregam sermões. Trata–se de um discur-
so religioso, em que o pregador proclama as verdades cristãs e no qual
aconselha seus ouvintes para que tenham uma vida digna. Geralmente
tem uma introdução, depois uma análise de um texto da Bíblia, uma
aplicação prática e uma conclusão.

Os sermões do Padre Vieira possuem considerável importância no


barroco brasileiro e as universidades de Letras freqüentemente exigem
sua leitura. Esclarecemos que Padre Vieira é estudado tanto em literatu-
ra portuguesa quando brasileira.

Victor Hugo disse que, até surgir a Imprensa no século 15, os homens
escreviam com pedras, isto é, manifestavam–se pela arquitetura. A arqui-
tetura era a sua gramática, seu estilo e sua sintaxe. Os granitos eram suas
letras. O Padre Vieira foi um original. Aprumou sozinho uma catedral,
empilhando, a partir de 1671, com 15 tomos dos seus sermões, confor-
mando–a com mais de três milhões de palavras–pedras. Enquanto Bernini,
Borromini, Mansard e Wren, seus contemporâneos do século 17, expressa-
ram–se com argamassa, tijolos, rochas esculpidas e vitrais, o padre–gênio
socorreu–se dos substantivos, dos verbos, conjugados de todos os modos
possíveis, e da riqueza sem fim dos adjetivos do idioma português.

Abaixo as obras do Padre Vieira:

Obras

ǿǿ Sermão da Sexagésima;

ǿǿ Sermão de São José (1642);

ǿǿ Maria Rosa Mística;

ǿǿ Sermão de Santo António aos Peixes;

ǿǿ Sermão de Nossa Senhora do Rosário;

ǿǿ Sermão da Quinta Dominga da Quaresma;

ǿǿ Sermão do Mandato; Padre Antônio Vieira

151
Unidade C – Séc. XVII

ǿǿ Sermão Segundo do Mandato;

ǿǿ Sermão de Santa Catarina Virgem e Mártir;

ǿǿ Sermão Histórico e Panegírico;

ǿǿ Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus;

ǿǿ Sermão da Primeira Dominga do Advento (1650);

ǿǿ Sermão da Primeira Dominga do Advento (1655);

ǿǿ Sermão de São Pedro;

ǿǿ Sermão da Primeira Oitava de Páscoa;

ǿǿ Sermão nas Exéquias de D. Maria de Ataíde;

ǿǿ Sermão de São Roque;

ǿǿ Sermão de Todos os Santos;

ǿǿ Sermão de Santa Teresa e do Santíssimo Sacramento;

ǿǿ Sermão de Santa Teresa;

ǿǿ Sermão da Primeira Sexta–feira da Quaresma (1651);

ǿǿ Sermão da Primeira Sexta–feira da Quaresma (1644);

ǿǿ Sermão de Santa Catarina (1663);

ǿǿ Sermão do Mandato (1643);

ǿǿ Sermão do Espírito Santo;

ǿǿ Sermão de Nossa Senhora do Ó (1640);

ǿǿ Quarta parte, licenças e privilégio real;

ǿǿ Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal;

ǿǿ Sermão da Segunda Dominga da Quaresma (1651);

ǿǿ Maria Rosa Mística Excelências, Poderes e Maravilhas do seu


Rosário;

152
Os Sermões do Padre Vieira Capítulo 06
ǿǿ Sermão das Cadeias de São Pedro em Roma pregado na Igreja
de S. Pedro. No qual sermão é obrigado, por estatuto, o prega-
dor a tratar da Providência, ano de 1674;

ǿǿ Sermão do Bom Ladrão (1655);

ǿǿ Sermão da Dominga XIX depois do Pentecoste (1639);

ǿǿ Sermão XII (1639);

ǿǿ Sermão XIII;

ǿǿ Sermão de Dia de Ramos (1656);

ǿǿ Quarta Parte em Lisboa na Oficina de Miguel Deslandes;

ǿǿ Sermão do Quarto Sábado da Quaresma (1640);

ǿǿ Sermão XIV (1633);

ǿǿ Sermão Nossa Senhora do Rosário com o Santíssimo Sacra-


mento;

ǿǿ Sermão XI Com o Santíssimo Sacramento Exposto;

ǿǿ Sermão da Quinta Dominga da Quaresma (1654);

ǿǿ Sermão nas Exéquias de D. Maria da Ataíde (1649);

ǿǿ Sermão de São Roque (1652);

ǿǿ Sermão Segundo do Mandato (II);

ǿǿ Sermão do Mandato (1655);

ǿǿ Sermão da Epifania (1662);

ǿǿ Sermão da Primeira Oitava da Páscoa (1656);

ǿǿ História do Futuro (vol. I);

ǿǿ História do Futuro (vol. II);

ǿǿ Esperanças de Portugal;

ǿǿ Defesa do livro intitulado Quinto Império.

153
Unidade C – Séc. XVII

6.3 O Movimento Barroco


O ano de 1580 é significativo, já que foi marcado pela morte de
Camões (e com ela, a decadência do movimento clássico), e pelo fim da
autonomia política de Portugal, com o desaparecimento do rei D. Se-
bastião, na África. Seu sucessor foi Felipe II de Espanha, que anexou
o reino português a seus domínios.

A capital política passou a ser Madri, tendo Portugal perdido,


além do seu foco político, o seu foco cultural. No século que se seguiu
(século XVII), a influência predominante passou a ser a espanhola, que
se tornou marcante na cultura portuguesa e, durante esse mesmo pe-
ríodo, surge na Espanha uma riquíssima geração de escritores, como
Gôngora, Quevedo, Cervantes, Lopes de Vega e Calderón, além de
muitos outros.

Em 1640, Portugal inicia sua empreitada na reconquista de sua po-


sição no cenário europeu, libertando–se do domínio espanhol, após D.
João IV, da dinastia de Bragança, subir ao trono. Até 1668 muitas lutas
ocorreram contra a Espanha, na defesa da independência e contra os
holandeses, em busca de recuperar as colônias da África Ocidental e
parte do Brasil.

Esse foi um período de intensa agitação social,


com esforços permanentes em busca do restabeleci-
mento da vida econômica, política e cultural. Publi-
caram–se várias obras panfletárias clandestinas, que
denotavam posição contrária à corrupção do Estado
e a exploração do povo. A mais famosa e significativa
é a Arte de Furtar (1652), cuja autoria foi atribuída
a partir de 1941 ao Padre Manuel da Costa e hoje é
praticamente incontestável.

Marquês de Pombal, ministro do rei Dom José,


subiu ao poder em 1750, com propostas renovadoras
que inauguraram uma nova fase na história cultural
portuguesa. Em 1756, a Arcádia Lusitana demarcou
o início de novas concepções literárias.
Igreja estilo barroco

154
Os Sermões do Padre Vieira Capítulo 06
O Barroco foi um período estilístico e filosófico da História da so-
O termo Barroco advém
ciedade ocidental, ocorrido desde meados do século XVI até o século
da palavra portuguesa
XVIII. Foi inspirado no fervor religioso e na Contra–reforma. Didatica- homônima que significa
“pérola imperfeita”, ou
mente falando, o Período Barroco vai de 1580 a 1756. A escola Barroca
por extensão jóia falsa. A
é enfática, violenta, agitada e domina todo o século seguinte. Procura palavra foi rapidamente
introduzida nas línguas
fundir elementos da arte gótica e renascentista, rompendo ao mesmo
francesa e italiana.
tempo os valores aceitos. Abandona o senso de equilíbrio geométrico,
buscando despertar surpresa e emoções.

No Brasil, o período foi marcado por novas diretrizes na política


de colonização. Estabeleceram–se engenhos de cana–de–açúcar na Bahia.
Salvador, como capital do Brasil, transformou–se em um núcleo popula-
cional importante e, como conseqüência, um centro cultural que, mesmo
timidamente, fez surgir grandes figuras, como Gregório de Matos Guer-
ra. O Barroco Brasileiro teve início em 1601, tendo como obra significati-
va Prosopopéia, de Bento Teixeira, e terminando com as obras de Cláudio
Manuel da Costa, em 1768, uma introdução ao Neoclassicismo.

A ideologia do Barroco é fornecida pela Contra–Reforma. Estamos


diante de uma arte eclesiástica, que deseja propagar a fé católica. Em ne-
nhuma outra época se produz tamanha quantidade de igrejas e capelas,
estátuas de santos e documentos sepulcrais. As obras de arte devem falar
aos fiéis com a maior eficácia possível, mas em momento algum descer
até eles. Eis o caráter solene da arte barroca. Arte que tem de convencer,
conquistar, impor admiração.

A partir do Maneirismo, termo que você já conhece pela leitura


dos sonetos de Camões no Capítulo IV, instaura–se na arte um conflito
fundamental que mesmo o Barroco não consegue equacionar de todo:
o conflito entre os prazeres corpóreos e as exigências da alma. O Renas-
cimento definira–se pela valorização do profano, do secular, pondo em
voga o gosto pelas satisfações mundanas.

Frente a essas conquistas, a atitude dos intelectuais maneiristas e Aproveite o dia e o


barrocos é extremamente complicada. Não podem renunciar ao carpe momento.
diem renascentista, isto é, ao “aproveitar o dia”, ao viver intensamente
cada minuto, mas não alcançam a tranqüilidade para agir assim, pois a
filosofia da Contra–Reforma, antiterrena, teocêntrica, medieval, fustiga
os seus cérebros, oprime os seus corações.

155
Unidade C – Séc. XVII

O dilema centra–se, portanto, na oposição vida eterna versus vida


terrena, espírito versus carne. Dentro do Maneirismo e dentro do Bar-
roco não há possibilidade de conciliação para essas antíteses. Ou se
vive sensualmente a vida, ou se foge dos gozos humanos e se alcança a
Na pintura e escultura
Michelangelo, Tintoretto e eternidade.
Ticiano marcaram o início
do Barroco. As principais características do Barroco na pintura e escultura e
que podem ser aplicados à literatura barroca são:

ǿǿ Predomínio do emocional sobre o racional;

ǿǿ O artista é livre de qualquer regra ou padrão para liberdade


de criação;

ǿǿ Busca de efeitos decorativos e visuais;

ǿǿ Busca de forte realismo pela inspiração popular;

ǿǿ Composição dinâmica;

ǿǿ Predomínio da vertical sobre a horizontal com eliminação da


linha reta, com fuga do geométrico;

ǿǿ Estreita relação das artes, através da arquitetura e escultura in-


timamente ligadas;

ǿǿ Valorização do entalhe na construção de altares, com luxo na


decoração e aplicação a ouro;

ǿǿ Pintura de tetos com efeitos ilusionistas;

ǿǿ Fachadas simples, contraste entre a simplicidade do exterior


com a opulência decorativa do interior, era a tônica na ar-
quitetura;

ǿǿ Violentos contrastes de luz e sombra eram marcantes na pintura.

O Barroco brasileiro é claramente associado à religião católica. O


ponto culminante da integração entre arquitetura, escultura, talha e pin-
tura Barrocas aparece em Minas Gerais, sem dúvida a partir dos traba-
lhos de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

O barroco foi desenvolvido no século XVII. Nesse período, o terror


provocado pela Inquisição tentava limitar pensamentos, manifestações

156
Os Sermões do Padre Vieira Capítulo 06
culturais e impor a austeridade. Uma das características do barroco é
que denominamos de Cultismo e Conceptismo.

6.4 Cultismo e Conceptismo


O Cultismo é caracterizado por uma linguagem rebuscada, culta,
extravagante, descritiva, serve–se, sobretudo, de três artifícios (jogo de
palavras (ludismo verbal), jogo de imagens e jogo de construções) para
esconder, sob um burilado excessivo da forma, uma temática estéril e
banal. Trocadilhos, aliterações, homonímia, sinonímia, perífrases e ex-
travagância de vocábulos são alguns dos artifícios de que se serve. É
também designado por gongorismo devido ao escritor espanhol Luís
de Gôngora, que serviu de modelo aos nossos poetas, inclusive para Pa-
dre Vieira, que criticava o cultismo, mas o usava com freqüência.

Já o Conceptismo é caracterizado por um jogo de idéias ou concei-


tos, seguindo um raciocínio lógico, racionalista, que utiliza uma retóri-
ca aprimorada. Para tal, recorre a um conjunto de artifícios estilísticos
como comparações, metáforas e imagens de enorme ousadia, ou ainda
sinédoques e hipérboles, entre outros, que conduzem a uma densidade
conceitual que obscurece o seu conteúdo. Um dos principais cultores do
conceptismo foi o espanhol Quevedo.

Ainda acrescentamos o que denominamos de Conceitos Predicá-


veis, que consistem em «figuras» ou alegorias pelas quais se consegue
realizar uma pretensa demonstração de fé, ou verdades morais, ou até
juízos proféticos. O processo, como notou Erich Auerbach em sua obra
Figura, deriva da interpretação do Velho Testamento como conjunto
de «prefigurações» do que narra o Novo Testamento. Assim sendo, por
exemplo: Abraão, ao tentar sacrificar seu filho Isaac, seria uma prefi-
guração do sacrifício de Jesus. Depois, os passos bíblicos tornaram–se
pretexto para construções mentais arbitrárias, em que brilha o virtuo-
sismo do orador.

157
Unidade C – Séc. XVII

Faça aqui o seu resumo!

158
Unidade D
Séc. XVIII
Os Sonetos de Bocage Capítulo 07
7 Os Sonetos de Bocage
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co’o sacrílego gigante.

Como tu, junto ao Ganges sussurante,


Da penúria cruel no horror me vejo.
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura


Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas… oh, tristeza!…


Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

(Bocage)

7.1 Biografia
Manuel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage (Setúbal, 15 de Se-
tembro de 1765 — Lisboa, 21 de Dezembro de 1805) era filho do bacha-
rel José Luís Soares de Barbosa, juiz de fora, ouvidor, e depois advoga-
do, e de D. Mariana Joaquina Xavier l’Hedois Lustoff du Bocage, cujo
pai era francês. Apesar das numerosas biografias publicadas após a sua
morte, boa parte da sua vida permanece um mistério. A identificação
das mulheres que amou é duvidosa e discutível.

Bocage passou os primeiros anos de estudo com um mestre que


o maltratava, entrou na aula régia de gramática do padre espanhol D.
João de Medina, e ali aprendeu a língua latina. A sua infância foi infeliz.
O pai foi preso por dívidas ao Estado quando o pequeno Manuel tinha
seis anos, e permaneceu na cadeia seis anos. A sua mãe faleceu quando
Bocage tinha dez anos. Isso já é o bastante para quebrar o espírito de

161
Unidade D – Séc. XVIII

muitos, no entanto foi voluntário no Exército em 1781, possivelmente


magoado por um amor não correspondido e ali permaneceu até 15
de Setembro de 1783. Nessa data, foi admitido na Escola da Marinha
Real, onde fez estudos regulares para guarda–marinha. No final do
curso desertou, mas, ainda assim, aparece nomeado guarda–marinha
por D. Maria I. Nessa altura, já a sua fama de poeta e versejador corria
por Lisboa.

Em 14 de Abril de 1786 embarcou como oficial de marinha para


a Índia, na nau “Nossa Senhora da Vida, Santo António e Madalena”,
que chegou ao Rio de Janeiro em finais de Junho. Fez escala na Ilha de
Moçambique (início de Setembro) e chegou à Índia em 28 de Outubro
de 1786. Em Pangim, freqüentou de novo estudos regulares de oficial
de marinha. Foi depois colocado em Damão, mas desertou em 1789,
embarcando para Macau.

Bocage foi preso pela Inquisição, mas teve (ele e nós também) a
sorte de não ter sido queimado, e na cadeia traduziu poetas franceses e
latinos. A década seguinte é a da sua maior produção literária e também
o período de maior boemia e vida de aventuras.

Ainda em 1790 foi convidado e aderiu à Academia das Belas Letras


ou Nova Arcádia, onde adotou o pseudônimo Elmano Sadino, mas,
passado pouco tempo, escrevia já ferozes sátiras contra os confrades.
A sátira é uma técnica Em 1791, foi publicada a 1ª edição das “Rimas”.
literária ou artística que ri-
diculariza um determinado Dominava então Lisboa o Intendente da Polícia Pina Manique,
tema (indivíduos, organiza- que decidiu pôr ordem na cidade, tendo em 7 de Agosto de 1797 dada
ções, estados), geralmente
como forma de interven- ordem de prisão a Bocage por ser “desordenado nos costumes”. Ficou
ção política ou outra, com preso no Limoeiro até 14 de Novembro de 1797, tendo depois dado en-
o objetivo de provocar ou
evitar uma mudança. trada no calabouço da Inquisição, no Rossio. Nesse lugar permaneceu
até 17 de Fevereiro de 1798, tendo ido depois para o Real Hospício das
Necessidades, dirigido pelos Padres Oratorianos de São Filipe Neri, de-
pois de uma breve passagem pelo Convento dos Beneditinos. Durante
esse longo período de detenção, Bocage mudou o seu comportamento
e começou a trabalhar seriamente como redator e tradutor. Só saiu em
liberdade no último dia de 1798.

162
Os Sonetos de Bocage Capítulo 07
É interessante verificar que grande parte dos sonetos mais sexualmente
descritivos e desreprimidos foi encontrada em um caderno onde, se-
gundo algumas fontes, constava o nome de Pedro José Constâncio, cuja
biografia ainda não figura nas enciclopédias e compêndios literários.

http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/bocage.htm
acesso em 15/5/2008.

Esclarecendo: há todo um mistério e controvérsia sobre os poemas


eróticos. É certo que Bocage escreveu a maioria deles, mas parece que sua
fama foi maior que sua produção e que o poeta aceitava outros poemas
eróticos/pornográficos como sendo seus. Repetimos: sobre a chamada
poesia erótica de Bocage, existe um bom número de sonetos apócrifos,
que não são de sua autoria, mas que ele aceitou como sendo seus, ou
foram escritos após sua morte e atribuídos a ele. Em muitas antologias
sobre o poeta, essa parte da produção foi cuidadosamente expurgada.

De 1799 a 1801 trabalhou, sobretudo, com Frei José Mariano da


Conceição Veloso, um frade brasileiro, politicamente bem situado e nas
boas graças de Pina Manique, que lhe deu muitos trabalhos para tradu-
zir. A partir de 1801, até a morte por aneurisma, viveu em casa por ele
arrendada no Bairro Alto.

Embora ícone do arcadismo lusitano, é uma figura inserida em um


período de transição do estilo clássico para o estilo romântico, que teve
forte presença na literatura portuguesa do século XIX.

O Arcadismo é uma escola literária surgida na Europa no século


XVIII. O nome dessa escola é uma referência à Arcádia, região bucó-
lica do Peloponeso, na Grécia, tida como ideal de inspiração poética.
No Brasil, o movimento Árcade toma forma a partir da segunda me-
tade do século XVIII.

A principal característica dessa escola é a exaltação da natureza e


de tudo que lhe diz respeito. É por isso que muitos poetas ligados
ao arcadismo adotaram pseudônimos de pastores gregos ou lati-
nos (pois o ideal de vida válido era o de uma vida bucólica).

163
Unidade D – Séc. XVIII

Em Arte, o Classicismo refere–se geralmente à valorização da An-


tiguidade Clássica como padrão por excelência do sentido estético,
que os classicistas pretendem imitar. Ao classicismo opõe–se o Ro-
mantismo. A arte classicista procura a pureza formal, o equilíbrio, o
rigor–ou, segundo nomenclatura proposta por Friedrich Nietzsche,
pretende ser mais apolínea que dionisíaca.

O Romantismo foi um movimento artístico e filosófico surgido


nas últimas décadas do século XVIII na Europa que perdurou por
grande parte do século XIX. Caracterizou–se como uma visão de
mundo contrária ao racionalismo que marcou o período neoclás-
sico e buscou um nacionalismo que viria a consolidar os estados
nacionais na Europa.

Obras
ǿǿ 1790 – Elegia que o Mais Ingénuo e Verdadeiro Sentimento Con-
sagra à Deplorável Morte do Illmo. e Exmo. Sr. D. José Tomás de
Menezes;

ǿǿ 1791 – Rimas (Primeiro Tomo); Queixumes do Pastor Elmano


contra a Falsidade da Pastora Urselina (Écloga); Idílios Marítimos;

ǿǿ 1793 – Eufémia ou o Triunfo da Religião;

ǿǿ 1799 – Rimas (Segundo Tomo);

ǿǿ 1800 – Elogio aos Faustissimos Annos do Serenissimo Principe


Regente Nosso Senhor;

ǿǿ 1802 – Aos Annos Faustissimos do Serenissimo Principe Regente


de Portugal, obra dedicada ao futuro D. João VI;

ǿǿ 1804 – Rimas (Terceiro Tomo); Epicédio na Sentida Morte do


Ilustríssimo, e Excelentíssimo Senhor. D. Pedro José de Noronha,
Marquez de Angeja;

ǿǿ 1805 – Improvisos de Bocage na sua mui perigosa enfermidade; A


Gratidão, os Novos Improvisos de Bocage na sua moléstia, A Sauda-
de Materna; Mágoas Amorosas de Elmano; A Virtude Laureada.

164
Os Sonetos de Bocage Capítulo 07
7.2 Bocage, o Lírico
Por ser um poeta de faces múltiplas, a obra literária de Bocage não
pode ser simplesmente incluída no gênero literário do Neoclassicismo
ou Arcadismo. O Bocage que ficou conhecido em Portugal e no Bra-
sil é o poeta boêmio, satírico e erótico, que freqüentava o bar do Nicola
e o Botequim das Parras. Além disso, apesar de Bocage dominar com
maestria a técnica do Soneto, sendo considerado, devido a isso, como
clássico, sua poesia vai muito além das convenções literárias da época.
Essa transgressão às normas faz de Bocage um poeta de transição en-
tre o Neoclassicismo e o Romantismo.

Leiamos um soneto em que Bocage faz um retrato dele mesmo:

Auto–Retrato
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;
Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Esse poema pode ser analisado da seguinte forma:

ǿǿ 1ª parte, constituída pelas quadras e pelo 1º terceto, na qual o


sujeito poético esboça o seu auto–retrato;

ǿǿ Estrutura interna bipartida;

ǿǿ 2ª parte, constituída pelo último terceto, na qual o sujeito poé-


tico revela a sua identidade e as circunstâncias que proporcio-
naram a criação do soneto;

165
Unidade D – Séc. XVIII

ǿǿ Na 1ª parte, devem ser considerados dois momentos distintos:


a 1ª quadra, que respeita o retrato físico; a 2ª quadra e o primei-
ro terceto, que evidenciam o retrato psicológico;

ǿǿ Aspectos psicológicos: inconstante (propenso a paixões), ira-


do, anticlerical;

ǿǿ Elementos neoclássicos: a forma (soneto), o vocabulário alati-


nado (níveas, letal, deidades);

ǿǿ Elementos românticos: o caráter autobiográfico, o individualis-


mo, o tom confessional, o amor sensual;

ǿǿ Alguns recursos estilísticos: adjetivação (magro, azuis, more-


no, meão, triste, alto, pequeno, incapaz, propenso, níveas, es-
cura, infernais, letal, devoto, pachorrento); antítese (versos 6, 7,
9/11); hipérbole (versos 9, 10); anástrofe (versos 8, 11, 12, 13).

Análise retirada do site http://www.prof2000.pt/users/lrdp/anal.


poembc.htm, acesso em 20/3/2008.

Ou seja, Bocage compõe sonetos neoclássicos, pré–românticos e


eróticos, sendo por vezes muito difícil a classificação dos mesmos, se é
que é necessário sempre classificar tudo em compartimento… No sone-
to analisado, você percebeu características neoclássicas e românticas. A
seguir, um exemplo de soneto neoclássico:

Olha, Marília, as flautas dos pastores


Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir–se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?
Vê como ali beijando–se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei–las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores.
Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira.
Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.

166
Os Sonetos de Bocage Capítulo 07
Em seguida analisaremos as características neoclássicas (e român-
ticas) do soneto Olha, Marília, as flautas dos pastores:

ǿǿ Descrição de um locus amoenus (lugar ameno e tranqüilo) ao


longo de quase todo o soneto (até o final do 1º terceto), muito
ao gosto clássico. No entanto, o sujeito poético esclarece que
toda aquela paisagem paradisíaca só é possível na presença da
amada (versos 13/14). Essa atitude–apresentar a natureza como
reflexo do estado da alma do poeta em função da presença ou
ausência da amada–é uma característica romântica;

ǿǿ Elementos neoclássicos: a forma (soneto), o vocabulário alatina-


do (cadente, ósculos); a presença da mitologia (Amores, Zéfiros);

ǿǿ Elementos românticos: a natureza como reflexo do estado da


alma do poeta (em função da presença ou ausência da amada);
a pontuação subjetiva (abundância de exclamações); a presen-
ça do rouxinol, borboletas, a noite, amor sensual;

ǿǿ Alguns recursos estilísticos: apóstrofe (versos 1, 3, 5); adjeti-


vação (cadentes, ardentes, alegre, clara); aliteração (sobretudo
de sons fricativos, sibilantes, chiantes e vibrantes); personifica-
ção (versos 3/4, 7/8, 9/11); anáfora (versos 1, 3, 10/11); anástro-
fe (versos 7/9); hipérbole (versos 13/14); metáfora (versos 4, 9,
11); sinestesia (presença de várias sensações: auditivas, visuais,
táteis, gustativas, olfativas).

Análise retirada do site http://www.prof2000.pt/users/lrdp/anal.


poembc.htm, acesso em 20/3/2008.

Como você pode observar, mesmo sendo identificado como neo-


clássico esse soneto também tem características românticas. Por isso, e
porque é sua poesia que, sem sobra de dúvidas, anuncia os primeiros
valores do Romantismo em Portugal, Bocage é considerado por vários
estudiosos como um poeta Pré–romântico.

Apesar de ser fortemente influenciado pelo estilo dominante em sua


época e fazer concessões ideológicas, políticas, sociais e religiosas para
sobreviver, é comum encontrar na poesia de Bocage, principalmente nos
poemas escritos depois de sua prisão, uma luta constante entre a razão

167
Unidade D – Séc. XVIII

iluminista e a emoção. Nessa luta dolorosa e angustiante a emoção sobre-


puja a razão como se pode ver no fragmento do soneto a seguir:

Importuna Razão, não me persigas;


Cesse a ríspida voz que em vão murmura;
Se a lei de Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas;

Se acusas os mortais, e os não abrigas,


Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa–me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas.

É teu fim, teu projecto encher de pejo


Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo.

Queres que fuja de Marília bela,


Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.

Somente um Romântico escreveria versos como estes: Importuna


Razão, não me persigas ou Deixa–me apreciar minha loucura. Um neo-
clássico ou arcádico jamais faria algo semelhante. Se nesses versos já
encontramos algumas características do movimento literário que está
por vir, no tema da Morte é que se pode perceber claramente que Boca-
ge é uma espécie de profeta do Romantismo. Isso se dá porque todo o
sofrimento da vida acaba com a morte, ela, a morte, é a única verdade
da vida. Confira:

Oh retrato da morte, oh Noite amiga


Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto!
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a somente os diga,


Dá–lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve–os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

168
Os Sonetos de Bocage Capítulo 07
E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;


Quero a vossa medonha sociedade,

Quero fartar meu coração de horrores. Esse poema pode ter sua
estrutura analisada da seguinte forma:

ǿǿ As duas quadras, em que o sujeito poético se dirige à «Noite


amiga», «retrato da Morte»; nesse primeiro momento, assisti-
mos à caracterização da noite (retrato da Morte, amiga, teste-
munha, confidente) e ao pedido para que, uma vez mais, ouça
os seus desabafos, os seus lamentos;

ǿǿ Os dois tercetos, em que se dirige aos «mochos piadores», «cor-


tesãos da escuridade» e «inimigos da claridade»; nesse segundo
momento, o poeta suplica aos mochos que, com a sua «medo-
nha sociedade», o ajudem a fartar o seu coração de horrores;

ǿǿ O estado de alma do poeta é o resultado da falta de afetos, a


conseqüência da «cruel» que dorme (ao contrário dele que pas-
sa uma noite de insônia) e que o obriga a delirar (verso 8);

ǿǿ Elementos românticos: o tom confessional do poema, uma


certa linguagem teatral (tom declamatório com presença de
algumas interjeições e de exclamações), o   uso de vocabulário
tétrico (Morte, escuridão, pranto, desgostos, cruel, escuridade,
Fantasmas, piadores, medonha, horrores) que nos aproxima de
um ambiente próprio a um locus horrendus;

ǿǿ Alguns recursos estilísticos: personificação da Noite e dos mo-


chos (verso 9); apóstrofe (versos 1/4, 6/7, 9/12); elipse (verso 3);
anástrofe (versos  4/5, 8, 12); adjetivação (amiga, calada, anti-
ga, pio, vagos, piadores, inimigos, medonha); reiteração  (vv 7,
13/14 (através da anáfora)); anáfora (versos 7, 13/14);  sineste-
sia (versos 3, 5, 7, 9, 11/12); metáfora (versos 1, 4, 6, 9, 10, 13);
comparação (verso 11).

Análise retirada do site: http://www.prof2000.pt/users/lrdp/


anal.poembc.htm, acesso em 20/3/2008.

169
Unidade D – Séc. XVIII

Incapaz de encontrar uma forma nova que melhor correspondesse


à novidade dos seus sentimentos, Bocage permaneceu um típico pro-
duto de transição entre a escola neoclássica e o romantismo. Em Crítica
Bocageana — Falam os Especialistas (Disponível em: <http://tertuliabo-
cage.blogs.sapo.pt/87664.html>. Acesso em jun. 2008) David Mourão
Ferreira afirma que Bocage vivia com um pé nos degraus da Arcádia e
com o outro suspenso ante os abismos enigmáticos do futuro.

 7.3 Bocage: poesia satírica e erótica


A literatura erótica é um gênero literário que inclui toda a literatura li-
cenciosa, dirigida para a libertação do desejo sexual ou do amor sensu-
al, independentemente do grau de licenciosidade, o que levaria, como
alguns entendem, a uma distinção entre literatura erótica (menos li-
cenciosa) e literatura pornográfica (abertamente licenciosa). Essa
distinção está longe de ser válida para toda a literatura que descreve
experiências do desejo sexual e do amor explícito. Se atendermos ao
fato de que até o final do século XIX, por força da moral estabelecida
canonicamente, toda a literatura que ofendesse os bons costumes, ex-
citasse claramente o apetite sexual ou cuja linguagem incluísse termos
licenciosos ou obscenos era considerada “erótica”, com uma forte carga
pejorativa, então torna–se muito difícil estabelecer um critério rigo-
roso para distinguir o que é erotismo e o que é pornografia. Por es-
sas razões, e porque a base de todo o desejo sexual é a relação amorosa
(o elogio de eros) e não necessariamente a relação pornográfica (do gre-
go porné, “cortesã, prostituta”, logo o elogio da prostituição), preferimos
denominar essa parte da poesia de Bocage com a designação mais uni-
versal de literatura erótica, ficando implícita a inclusão da literatura que
se considere pornográfica, mas também obscena, indecente, libidinosa,
licenciosa, ultrajante etc., adjetivos com os quais tem convivido sinoni-
mamente. Salientamos aqui que o próprio livro Cântico dos Cânticos, do
Velho Testamento, já foi incluído em várias antologias de poesia erótica.

A literatura erótica do século XVIII encontra no português Bocage um


exemplo de como é possível não estabelecer limites ao grau de licen-
ciosidade no texto literário. Na sua obra mais marginal Poesias Eróticas,
Burlescas e Satíricas podemos ler versos como estes que apresentam o
Poeta como um sofredor de amor no mais alto grau de licenciosidade.

http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/L/literatura_erotica.htm,
acesso em 30/3/2008.

170
Os Sonetos de Bocage Capítulo 07
Soneto do Epitáfio

Lá quando em mim perder a humanidade


Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi–gratia — o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,


Que engrole “sub–venites” em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa


Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre–me este epitáfio mão piedosa:

“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;


Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro”.

A seguir, mais um soneto erótico e satírico:

Soneto de Todas as Putas

Não lamentes, oh Nise, o teu estado;


Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:

Dido foi puta, e puta d’um soldado;


Cleópatra por puta alcança a c’roa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:

Essa da Rússia imperatriz famosa,


Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:


Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo peta.

171
Unidade D – Séc. XVIII

7.4 Erotismo, Sadismo e Masoquismo


na Literatura
Bocage consagrou um tipo de poesia que fez história na literatura. Pela
mesma altura, o inglês John Cleland publica Fanny Hill: Memoirs of a
Woman of Pleasure, (1748),  que lhe valeu de imediato a prisão sob a
acusação de ter publicado um livro pornográfico, ofensivo para os bons
costumes. O romantismo alemão também nos legou obras como a co-
leção de poemas eróticos com que Goethe contribuiu para a revista
dirigida por Schiller, Die Horen, onde se incluem as Elegias Romanas
(1876), poemas inspirados na relação amorosa de Goethe com Chris-
tiane Vulpius. No século XVIII, porém, poucos ganharam lugar de maior
destaque na história da literatura erótica que o exemplo do Marquês
de Sade (1740–1814), escritor francês cuja obra foi amaldiçoada publi-
camente enquanto viveu. Os constantes atentados ao pudor, a prática
quase selvagem de relações sexuais que não conheceram limites e as
ofensas à moral levaram–no à prisão várias vezes, onde escreveu a maior
parte das suas obras, sob rigorosa censura. Destacamos os romances
Cento e Vinte Dias de Sodoma (1782–1785) e Justina ou as Infelicidades
da Virtude (1791–1797), em 6 volumes. Cento e Vinte Dias de Sodoma
foi uma obra de esgotamento criativo, na qual Sade julgava ter alcança-
do o seu próprio limite. Essa obra perdeu–se na Bastilha, onde o poeta
tinha estado preso durante dois anos. As mais de 300 páginas do livro
foram recuperadas mais tarde por um carcereiro, que as encontrou.
Sade também soube descrever, com rigor filosófico, as suas próprias
experiências sexuais, bizarras, agressivas, obscenas, pouco ortodoxas e
sempre a roçar os limites do desejo libidinoso. Essa personalidade, for-
temente inclinada para o excesso da vida sexual, com recurso a todo
o tipo de perversão, fez com que o seu nome se consagrasse para de-
signar um tipo de neurose ou pulsão agressiva a que os psiquiatras
denominam sadismo. A procura do prazer pela dor não é exclusiva do
sadismo. O austríaco Leopold Franz Johann Ferdinand Maria Sacher–
Masoch (1836–1895) ficou conhecido por um outro tipo de perversão
sexual, o prazer obtido pela dor física e pelo sofrimento corporal, pul-
são que foi  imortalizada com o nome de masoquismo. Masoch foi um
aristocrata letrado, escritor de qualidade, tendo–nos legado histórias
eróticas de indivíduos que só alcançavam o prazer sexual se fossem
chicoteados, por exemplo: Uma História Galega (1846); O Don Juan de
Kolomea (1866); O Legado de Caim (1870–1877), que inclui o famoso
romance erótico A Vénus das Peles (1874). Na França, o ano de 1857 é

172
Os Sonetos de Bocage Capítulo 07
particularmente importante para a literatura erótica: Gustave Flaubert
publica o romance Madame Bovary, imediatamente classificado como
pornográfico por tomar como tema as experiências de adultério de
uma jovem provinciana casada com um viúvo medíocre, e que há de
marcar o ponto de partida da época de ouro do romance realista.

http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/L/literatura_erotica.htm,
acesso em 30/3/2008.

Faça aqui o seu resumo!

173
Considerações Finais
Caro aluno(a),

C
hegamos a final da disciplina Literatura Portuguesa I. Passamos
pelo Trovadorismo e suas Cantigas de Amor, de Amigo e as satíricas
Cantigas de Escárnio. Nos emocionamos com as Novelas de Cavala-
ria, conhecemos os heróis Arthur, Lancelot e Amadis de Gaula. Conhecemos o
teatro de Gil Vicente e suas farsas, seus autos, suas alegorias. Lemos os clássicos
sonetos camonianos e constatamos a genialidade de Camões na composição
da epopéia Os Lusíadas. Analisamos os Sermões do Padre Vieira e, depois de
tantos sermões, finalizamos com a lírica e a sátira desbocada de Bocage.

Por vezes sentimos que a ementa seria muito grande e que não daríamos conta,
mas confiávamos em sua capacidade e sabíamos que juntos conseguiríamos.
Havia a possibilidade de ser feito um recorte, mas confiamos que poderíamos
sim ver toda a disciplina. Se você leu este Livro–texto, fez todas as atividades
solicitadas, entregando–as no prazo estabelecido, acessou o AVEA, participou
dos bate–papos e videoconferências, se assistiu à aula por nós ministrada, se
buscou e consultou os tutores responsáveis pela disciplina, temos certeza de
que você está apto(a) para passar de semestre e em condições de frequentar a
disciplina Literatura Portuguesa II.

Foi um grande prazer termos navegado com você em mares/matérias nunca


antes navegados/conhecidas, e chegado a um porto seguro.

Parabéns pelo seu esforço, cremos que agora um valor mais alto se alevanta…

Salma Ferraz

175
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