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8º
Maria Cristina Figueiredo Silva
Período
Florianópolis - 2013
Governo Federal
Presidência da República
Ministério de Educação
Secretaria de Ensino a Distância
Coordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil
Comissão Editorial
Tânia Regina Oliveira Ramos
Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos
Cristiane Lazzarotto-Volcão
Equipe de Desenvolvimento de Materiais
Ficha Catalográfica
S586l Silva, Maria Cristina Figueiredo
Aquisição da linguagem / Maria Cristina Figueiredo Silva. — Floria-
nópolis : LLV/CCE/UFSC, 2010.
156p.
ISBN 978-85-61482-24-4
CDU 801
Sumário
Unidade A - O fascinante problema da fala e do
começar a falar............................................................ 9
1 Introdução: a fala do bicho homem e a fala dos outros
bichos................................................................................................................11
2 Certas características do cérebro humano..........................................21
3 Como aprendemos a falar?........................................................................31
3.1 As crianças aprendem por imitação?..........................................................31
3.2 As crianças aprendem por estímulo-e-resposta?...................................34
3.3 As crianças formulam regras!.........................................................................38
4 Conclusões .....................................................................................................41
E
ste material foi desenvolvido para o seu estudo individual durante a
disciplina Aquisição da Linguagem, do curso Letras-Português, mo-
dalidade a distância.
Por conta dessa capacidade infantil, vamos fazer uma longa defesa da hipótese
inatista da linguagem, que supõe que a criança está dotada geneticamente de
um aparato que lhe permite aprender uma língua humana. Essa é a aborda-
gem defendida por Noam Chomsky e seus seguidores, e o segundo capítulo
apresentará uma série de argumentos em defesa dela. É preciso esclarecer que,
embora Chomsky afirme que as línguas humanas são parte do código genético
humano, parece evidente que as línguas não são só genética, porque se assim
fosse não se esperaria que existissem diferentes línguas. Além disso, é fato que,
se falamos português com a criança, é português que ela aprende, não chinês.
Portanto, é inegável, na aquisição da linguagem, o papel do input (isto é, da
língua que a criança ouve à sua volta e que lhe é dirigida), e devemos por isso
examinar atentamente quais são suas características e como interage com o
aparato genético na aquisição.
É por isso que o terceiro capítulo se propõe a analisar a aquisição de uma es-
trutura específica do português brasileiro, que é a formação interrogativa. De-
vemos começar olhando como são as interrogativas que os adultos falantes de
português usam, e que análise teríamos para elas. O passo seguinte é ver como
as crianças traduzem esses padrões adultos na sua própria fala. O arcabouço
teórico usado aqui, tanto para a análise das construções adultas quanto das
construções infantis, é a gramática gerativa, que você teve a oportunidade de
aprender na disciplina de Sintaxe.
No último capítulo, falaremos brevemente da relação entre aquisição e apren-
dizagem abordando principalmente um problema de grande interesse para os
educadores: a alfabetização. Veremos as hipóteses que o aprendiz de língua faz
dependendo também da variedade do português brasileiro que ele fala. Essa
discussão será seguida por outra sobre certas diferenças entre o português
brasileiro e o português que a criança aprende na escola. Esta também será
uma discussão breve, mas certamente abrirá novos horizontes no seu entendi-
mento, provável presente ou futuro professor.
Para que toda essa discussão não fique excessivamente teórica, você deverá
examinar o corpus de uma criança adquirindo português brasileiro, que será
disponibilizado via rede para todos os alunos. Esta atividade será parte im-
portante da sua nota, mas sobretudo será parte fundamental da sua formação:
você verá que coisa surpreendente é examinar os dados de produção infantil a
partir de um ano e oito meses até aproximadamente quatro anos.
Bom trabalho!
11
Aquisição da Linguagem
Segundo Lyons (1987), nós podemos fazer tudo isso com os siste-
mas linguísticos humanos porque eles são flexíveis e versáteis. E a
flexibilidade e a versatilidade observadas nas línguas humanas se
devem à presença em alto grau de basicamente quatro proprieda-
des: a arbitrariedade, a dualidade, a descontinuidade e a produtivi-
dade. Vamos examinar cada uma dessas propriedades comparando
as línguas humanas com as linguagens dos animais.
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Introdução: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos Capítulo 01
amor que faça pensar no significado que ela tem, porque amor partilha
uma boa parte dos seus sons com mordaça e nem por isso os significa-
dos delas se parecem, não é verdade? Claro, existem casos em que há
uma relação necessária entre o som e o significado da palavra – com to-
das as onomatopeias, do tipo coaxar (do sapo) ou miar (do gato) – mas
comparativamente são poucos os exemplos, e o fato de existir variação
do que são as “vozes” animais entre as línguas mostra que mesmo aí tem
um tanto de arbitrariedade na relação: o cachorro late [au-au] em por-
tuguês, mas [wau-wau] em japonês! Para a grande maioria das palavras
(primitivas), não é possível prever, dado o som da palavra, qual será o
seu significado.
13
Aquisição da Linguagem
1 km
1 s=
Figura 1.1: Dança em “círculo cortado”, em que a distância é expressa pela velocidade com que
2010.
comida
sol
comida
90º
colmeia
Figura 1.2: Relação entre o ângulo em que a dança é feita, na colmeia, e a posição do sol para
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Introdução: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos Capítulo 01
Podemos perguntar agora: essas formas dos signos e os seus signi-
ficados mantêm entre si uma relação arbitrária ou não arbitrária? Apa-
rentemente, a relação é arbitrária, não é mesmo? Não há nada em dan-
çar em oito ou dançar em círculo que faça pensar em distância menor
ou maior, mesmo porque a dança em círculo está envolvida tanto na
expressão da menor quanto da maior distância. Também vivacidade ou
quantidade de vezes que se repete o padrão não têm nenhuma relação
necessária com a qualidade da fonte de comida.
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Aquisição da Linguagem
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Introdução: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos Capítulo 01
dessem a diferenças mínimas de significado (apesar da arbitrariedade
do signo linguístico). Contudo, não é isso o que normalmente ocorre: a
diferença de significado entre pata e bata não é necessariamente maior
ou menor do que a de qualquer outro par de palavras escolhidas aleato-
riamente. E, numa situação de comunicação específica, a probabilidade
de ocorrência de uma dessas palavras é muito maior do que da outra, o
que faz com que, mesmo em condições de comunicação muito degra-
dadas, é bastante provável que a mensagem ainda possa ser fielmente
passada. Viu agora qual é a vantagem?
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Aquisição da Linguagem
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Introdução: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos Capítulo 01
nações exige que o elemento a ser coordenado seja do mesmo tipo dos
que estão ali, aos quais ele vai se coordenar, e assim podemos encaixar
outro nome próprio ali, mas não um verbo, por exemplo: * o João, a
Maria e beijar saíram.
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Aquisição da Linguagem
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Certas características do cérebro humano Capítulo 02
2 Certas características do
cérebro humano
Neste capítulo, vamos examinar mais de perto o cérebro humano, que
parece ser dotado de regiões específicas responsáveis pelas diferentes atividades
humanas, incluindo a linguagem. Ao que tudo indica, é o hemisfério esquer-
do do cérebro que controla a linguagem. Veremos ainda que, embora nossa
produção linguística deva esperar alguns desenvolvimentos biológicos iniciais,
nossa percepção da linguagem desde o nascimento é incrivelmente acurada e
deve se efetivar dentro de certo período, pois do contrário a língua materna
não poderá mais ser adquirida com o nível de perfeição com que os humanos
típicos a adquirem.
Sem dúvida, a parte do corpo humano mais misteriosa para nós ain-
da é o cérebro. Uma das razões do mistério é que notamos no corpo hu-
mano uma organização que podemos chamar de modular: o coração faz
uma coisa diferente da que o rim faz, tendo seus próprios princípios de
funcionamento – o coração bate, o rim não! – ou seu próprio tipo celular
diferente das células que observamos no estômago, por exemplo. Os ór-
gãos interagem, mas são autônomos. No cérebro, por outro lado, o que se
observa é uma constituição aparentemente uniforme: sob a caixa crania-
na, se reúnem cerca de 10 bilhões de neurônios (também chamados em
seu conjunto de massa cinzenta), formando a superfície do cérebro, que
é o córtex. Por baixo dele temos a massa branca, constituída por bilhões
de fibras que ligam os neurônios entre si. Aparentemente, não há aqui
nenhum tipo de modularização como a que vemos no corpo.
Mas nem tudo é tão diferente no cérebro: por exemplo, ele exibe
dois hemisférios, algo que também vemos no corpo, onde temos alguns
órgãos em pares (os rins, os pulmões), assim como alguns membros (os
pés, as mãos, os olhos...). A coisa surpreendente, no entanto, é que esses
hemisférios não são simétricos como os órgãos do resto do corpo em
geral são: o pulmão direito faz a mesma coisa que o pulmão esquerdo,
assim como o pé direito faz fundamentalmente a mesma coisa que o pé
esquerdo (ainda que um deles possa ser mais esperto do que o outro).
No caso do cérebro, não é uma questão de esperteza, mas de divisão de
tarefas, chamada tecnicamente de lateralização: tudo leva a crer que o
21
Aquisição da Linguagem
22
Certas características do cérebro humano Capítulo 02
sintomas também pode ser muito mais vasto, o que quer dizer que o
conhecimento que temos construído nesse campo é menos definitivo
do que gostaríamos. Um problema ainda mais sério, no caso das afasias,
é que não é sempre claro se o que se perdeu foi a base neuronal onde se
aloja de alguma forma o conhecimento ou se o que está perdido são as
conexões entre os conhecimentos...
Seja como for, para o nosso modesto propósito aqui, que é o de mos-
trar que a linguagem tem suporte material em certas áreas do cérebro,
essas observações gerais sobre o fenômeno bastam. No entanto, é conve-
niente chamar a atenção para uma coisa bem importante: vamos imagi-
nar que os neurologistas conseguissem fornecer uma caracterização cabal
em termos de tipo celular e processos físico-químicos envolvidos na lin-
guagem; ainda assim teríamos que decidir que estatuto teriam conceitos,
como “sentença”, “grupo nominal”, “concordância”, “verbo”, que parecem
ser necessários para a caracterização dos fenômenos gramaticais. Será que
esses conceitos também fazem parte da base física do cérebro? Hum, é
difícil imaginar que uma rede de neurônios específica só deixa passarem
por ali informações sobre concordância, né? Pode ser que esse seja o caso,
mas não parece que é assim que funciona a estória... Por isso, é inesca-
pável a referência a outro conceito, o de mente, que seria o conjunto dos
sistemas cognitivos, responsável pelas propriedades abstratas que o cére-
bro enquanto sistema físico exibe, e onde se alojariam também conceitos
abstratos, como o de representação, tão caro ao estudo dos sistemas sim-
bólicos em geral. Na última unidade, discutiremos um pouco o que é um
sistema simbólico e o conceito mesmo de representação. Por agora, basta
frisar que, por essas razões, seguiremos Chomsky em toda a sua obra e
usaremos daqui para frente o termo técnico cérebro/mente.
23
Aquisição da Linguagem
Você deve estar pensando: claro, o bebê que vai ser falante de
francês já ouviu um monte de francês quando ele estava na barriga da
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Certas características do cérebro humano Capítulo 02
mãe, é por isso que ele reconhece a língua. No entanto, note que dentro
do útero materno o bebê está mergulhado no líquido amniótico e ouve
tão bem quanto nós ouvimos o que diz o alto-falante do clube quando
estamos com a cabeça dentro d’água na piscina – um monte de barulho.
Além do mais, os pesquisadores mostraram que os bebês podem distin-
guir entre línguas que não são conhecidas, desde que elas pertençam a
grupos com propriedades rítmicas diferentes (como o russo e o francês,
mas não o holandês e o inglês, por exemplo).
linguísticas, que começam na verdade bem mais tarde, não antes dos
seis meses, quando o bebê começa a balbuciar. Segundo Guasti (2002),
até mais ou menos quatro meses, o aparato vocal do bebê é muito pa-
recido com o do chimpanzé (e esse é o problema de articulação que ele
25
Aquisição da Linguagem
Contudo, como nota Guasti (2002, p. 47), não devemos dar im-
portância excessiva à maturação do aparato vocal em si, porque crianças
surdas começam mais ou menos na mesma idade a balbuciar com as
mãos (claro! A língua que elas podem adquirir é uma língua de sinais!),
Língua
Cavidade Nasal
Epiglote
(a)
Laringe
(b)
o que mostra que, por trás do balbucio, está em jogo mais do que a
capacidade de articular sons (ou o domínio motor). E é isso o que mui-
tos pesquisadores têm tentado mostrar: nos primeiros meses de vida,
o cérebro humano sofre o processo que temos chamado lateralização,
ou seja, cada um dos hemisférios passa a se dedicar a um conjunto de
funções, e apenas quando parte considerável desse processo já ocorreu
ou está em marcha é que a linguagem pode começar a se desenvolver.
26
Certas características do cérebro humano Capítulo 02
A maior evidência para essa hipótese do período crítico vem de
casos dramáticos reportados na literatura de crianças isoladas sem qual-
quer contato social ou linguístico. Costa e Santos (2003) reportam um
desses casos, relatado por Curtiss (1977); a menina Genie até os doze
anos permaneceu afastada de qualquer interação linguística. Quando CURTISS, S. Genie: a
psycholinguistic study of
resgatada dessas condições, a menina foi assistida por médicos e lin-
a modern-day ‘wild child’.
New York: Academic Press,
1977.
E a linguagem não só pode como deve se desenvolver nesse pe-
ríodo inicial da vida humana. Uma observação importante é a de
que existe o que se convencionou chamar “período crítico” para a
aquisição da primeira língua, que é o início da puberdade; até esse
momento, a criança deve ter contato com falantes de alguma língua
natural, sob pena de não mais ser possível adquirir uma língua com
a perfeição com que a adquirem crianças expostas a uma língua hu-
mana antes desse momento.
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Aquisição da Linguagem
80 Linguagem estabelecida
28
Certas características do cérebro humano Capítulo 02
não permitindo mais a aquisição de um língua com a mesma rapidez,
facilidade e perfeição com que a primeira língua foi aprendida. Isso tem
desdobramentos sérios na aquisição da língua de sinais por crianças
surdas. Estudos como o de Newport (1990), citados por Avram (2003),
mostram que, quanto mais tarde se dá a exposição à língua de sinais, NEWPORT, E. Maturational
constraints on language
menos nativo é o domínio e o uso dessa língua pela criança surda, o que learning. Cognitive Science,
parece confirmar a abordagem geral de Lenneberg. Pesquisas que estão v. 14, p. 11-28, 1990.
em curso nessas áreas nos ajudarão no futuro a entender melhor a rela-
ção entre cérebro/mente e linguagem.
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Aquisição da Linguagem
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Como aprendemos a falar? Capítulo 03
3 Como aprendemos a falar?
Neste capítulo, vamos analisar as várias hipóteses do senso comum sobre
a aquisição da linguagem. A mais popular entende que as crianças aprendem
por imitação dos adultos, já que afinal elas aprendem a falar a língua que os
adultos falam em torno delas. Também é comum pensarmos que os adultos
podem, por algum mecanismo de castigo e recompensa, fazer com que a aquisi-
ção da linguagem se desenvolva melhor nas crianças. No entanto, veremos que
há um conjunto de fatos observáveis na aquisição que mostram que as crian-
ças, no que tange à gramática, não estão nem imitando nem sendo estimuladas
de alguma maneira a atingir certo conhecimento, mas estão formulando regras
e aplicando-as.
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Aquisição da Linguagem
nomear as coisas, por exemplo. Mas é verdade também que, sem saber,
por exemplo, quais são os princípios que norteiam a ordem das palavras
numa língua, não é possível alguém se fazer compreender nela, mesmo
conhecendo seus itens lexicais. Imagine que você aprende em japonês
as palavras relativas a “o menino”, “ver” e “a menina”. Como é que você
diz em japonês que “o menino viu a menina”? Sem saber pelo menos
os rudimentos da gramática, isto é, a ordem que a língua escolhe para
ordenar seus constituintes (sem falar em como é que essa língua faz para
veicular a ideia de tempo passado!), sabendo apenas os itens lexicais,
não é claro que você vai conseguir dizer o que você quer dizer – em
particular, copiar a ordem do português pode resultar em algo incom-
preensível ou pode veicular o sentido exatamente oposto, ou seja, o de
que foi a menina que viu o menino. Portanto, aprender uma língua é
muito mais (mas muito mais mesmo!) do que saber simplesmente as
palavras da língua, ainda que essa seja uma parte importante da estória,
sobretudo quando falamos do aspecto comunicativo.
Vários fatos mostram que esse não deve ser o caso. Primeiramente,
segundo Guasti (2002), diversos pesquisadores já fizeram um levanta-
mento cuidadoso do tipo de estrutura gramatical que os pais usam com
as crianças, e os resultados mostram que majoritariamente as sentenças
dos pais ou são ordens (vá pegar o seu casaco!) ou são perguntas (o que
que você quer?), e apenas 25% das sentenças usadas por eles são declara-
32
Como aprendemos a falar? Capítulo 03
tivas simples; porém, os primeiros enunciados das crianças são em sua
grande maioria declarativas simples.
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Aquisição da Linguagem
34
Como aprendemos a falar? Capítulo 03
Assim, se a criança diz uma frase como ninguém não gosta de mim, o
adulto intervém dizendo: não é verdade, meu amor, todo mundo gosta de
você. O fato de não ser possível esse tipo de dupla negação no português
passa despercebido. Além do mais, a criança normalmente é premiada
quando diz a verdade e é punida quando mente, por exemplo, indepen-
dentemente da qualidade gramatical das suas asserções. O adulto está
mais preocupado em educar do que em ensinar língua.
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Aquisição da Linguagem
(1)
(2)
(3)
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Como aprendemos a falar? Capítulo 03
b) Nesta penitenciária, os presos agridem alguém frequentemente.
(4)
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Aquisição da Linguagem
que as palavras ou grupos de palavras mantêm entre si. Por isso, o número
de palavras é completamente irrelevante para a sintaxe. Falando de uma
forma um pouco mais técnica, as relações entre os termos constituintes
de uma sentença exibem dependência da estrutura em que se encontram,
e este é um fato que deve ser levado em conta pelas nossas hipóteses lin-
guísticas, se é que nós queremos ter qualquer chance de encontrar uma
explicação real para o funcionamento da linguagem humana.
a) cant-a-Ø-o = canto
b) vend-e-Ø-o = vendo
c) abr-i-Ø-o = abro
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Como aprendemos a falar? Capítulo 03
O morfema responsável pela expressão do tempo e do modo é Ø,
isto é, o morfema zero. Além disso, ocorre nessas formas um fenômeno
geral da fonologia do português, que é o apagamento da vogal átona
quando à forma que a contém como vogal final é acrescentada outra vo-
gal (átona ou tônica). Assim, a vogal temática é apagada e resta apenas a
vogal que marca a primeira pessoa do singular, -o aqui.
Observe agora que a mesma descrição pode ser dada para a forma
sabo:
(7)
sab-e-Ø-o = sabo
a) cant-e-Ø-i = cantei
b) vend-i-Ø-i = vendi
c) abr-i-Ø-i = abri
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Aquisição da Linguagem
(9)
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Conclusões Capítulo 04
4 Conclusões
Nesta primeira unidade, começamos comparando as línguas huma-
nas e as linguagens animais, observando certo número de propriedades
para poder responder em que exatamente as línguas humanas diferem
das linguagens de seus companheiros de planeta. Fizemos a inspeção de
algumas propriedades conhecidas do cérebro/mente humano para tentar
determinar o que ele tem de especial que nos permite falar uma língua
com o grau de complexidade que as línguas humanas em geral mostram.
41
Aquisição da Linguagem
Leia mais!
Para dirimir suas dúvidas sobre as propriedades que as línguas humanas
têm em alto grau frente às linguagens dos animais, você pode ler Lyons
(1987), no capítulo 1 – em particular na seção 1.5 – onde você encontra-
rá toda essa discussão detalhada.
Já em Menuzzi (2001) você encontrará a discussão de Lenneberg (1967)
detalhada e uma aplicação da hipótese do período crítico à aquisição de
uma segunda língua.
Finalmente, Raposo (1992) apresenta no capítulo1, entre outras coisas,
mais exemplos de que a ideia de analogia dos behavioristas fornece re-
sultados equivocados quando aplicada à aquisição da linguagem.
42
Unidade B
Uma defesa consistente da
abordagem inatista
Uma defesa consistente da abordagem inatista Capítulo 05
5 Uma defesa consistente da
abordagem inatista
Neste capítulo, mostraremos que, durante a aquisição da linguagem, não
apenas certos fenômenos aparecem num mesmo período de aquisição em todas
as crianças aprendendo uma mesma língua, como os mesmos fenômenos são
observáveis em crianças aprendendo línguas diferentes, fato que apenas a hipó-
tese inatista pode explicar naturalmente. Também será realçada a uniformida-
de do estágio final alcançado por todas as crianças em todas as línguas, que é a
competência adulta para lidar com os fatos da língua materna.
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Aquisição da Linguagem
46
Uma defesa consistente da abordagem inatista Capítulo 05
A razão pela qual este mecanismo deve ser específico é que, como
já vimos, mecanismos gerais da inteligência, como a capacidade
de fazer analogias, não podem ser usados na aquisição, sob pena
de a criança fazer analogias possíveis logicamente, mas incorretas
linguisticamente. Adicionalmente, a habilidade de falar uma lín-
gua funciona de maneira diferente de outras habilidades cogniti-
vas: tocar piano ou fazer contas exigem instrução específica, treino,
dependem de motivação individual, e o estado final atingido varia
enormemente de um indivíduo para outro. Por outro lado, a habi-
lidade para adquirir uma língua se assemelha muitíssimo a outros
processos biológicos, que são inatos no ser humano.
47
A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
6 A sequencialidade do
processo: estágios de
aquisição
Vamos agora apresentar os estágios de aquisição da linguagem que são ob-
serváveis em todas as línguas do mundo. Começando pelo balbucio, as crianças
passam por uma fase de enunciados de uma só palavra, depois por uma fase
em que elas juntam duas palavras e formam assim suas primeiras sentenças e, a
partir de então, formam sentenças maiores e mais complexas. O léxico também
cresce exponencialmente durante o segundo ano de vida da criança.
49
Aquisição da Linguagem
Figura 6.1: Forma de onda, pulsos, espectrograma e curva do E o problema continua se a criança conse-
contorno de pitch da sentença A menina quebrou a jarra
guir isolar uma palavra na frase, porque desco-
brir o que ela significa é bem complicado se não temos o resto do léxico
à disposição. Imagine que alguém diz pra você: “Quer comer erraiolo?”.
50
A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
Bom, você pode não ter ideia do que é erraiolo, mas você vai poder su-
por que deve ser algum tipo de coisa comestível, porque você entende o
resto da frase, certo? Mas você não poderia fazer essa suposição se não
soubesse o significado das palavras quer e comer! A questão é que, mes-
mo que seja possível prever, pela situação, o conteúdo do que está sendo
dito, a forma não é previsível, pois existem mil maneiras de formular a
mesma ideia. Deu pra perceber qual é o tamanho do problema que a
criança tem que resolver?
É isso: quanto mais você sabe, mais condições de saber mais você tem.
E quanto menos você sabe, mais complicado é saber alguma coisa...
Assim, é uma proeza, nessa fase, a criança reconhecer palavras no in-
terior de uma sentença! E, por isso mesmo, se as crianças nessa idade
produzem algo em torno de dez palavras, não é sem motivo: dá um
trabalhão danado descobrir cada uma delas!
O grosso das palavras produzidas pelas crianças nessa fase são no-
mes. É verdade que alguns advérbios, como mais ou não, também estão
presentes e que certos adjetivos, como grande e bonito, também podem
estar pela saliência que têm no input; porém, o crescimento do vocabu-
lário da criança, que aos 18 meses já é de cerca de 50 palavras, será na
direção dos nomes, que em geral se constituem, segundo Costa e Santos
(2003), em palavras básicas – nem hiperônimos, nem hipônimos. Por-
tanto, é possível ver a criança usando a palavra passarinho para se referir
a qualquer pássaro, mas não animal (para fazer referência a um pássaro)
nem pardal ou bem-te-vi.
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Aquisição da Linguagem
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A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
todo e continuaremos a falar de idades, ainda que, sabemos todos, as idades
estão sempre sujeitas a diferenças individuais e são sempre aproximadas,
como ocorre com o nascimento dos dentes, os primeiros passos, etc.
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Aquisição da Linguagem
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A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
E é preciso dizer que ela quer muito falar. Nesse seu quarto ano de
vida, é notório o desejo que a criança tem de conversar e, em particular,
é muito conhecido o seu desejo de saber o porquê das coisas. Algumas
questões são razoáveis e revelam mesmo a curiosidade da criança de
saber como o mundo funciona – por que o carro liga? Por que o portão
fecha sozinho? Por que vamos almoçar na casa da vovó? – mas outras
questões definitivamente são descabidas – por que está sol? – e revelam
simplesmente a vontade de prender a atenção do adulto ou de “jogar
conversa fora”.
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Aquisição da Linguagem
teu as botas, não será difícil ouvir da criança a seguinte pergunta: que
botas que ele bateu?
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A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
tar novamente, aprendendo a usar a mão para segurar o tronco, passo
importante para que ele aprenda a engatinhar e, posteriormente, para se
segurar nos objetos e começar a dar seus primeiros passos. Finalmente,
a criança consegue ir se soltando das coisas nas quais se agarra para an-
dar; primeiro só dá alguns passinhos, mas logo já consegue mais e mais
passos e, quando você vê, ela já está correndo pela casa.
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O argumento da pobreza do estímulo Capítulo 07
7 O argumento da pobreza do
estímulo
Neste capítulo, vamos examinar o que é talvez o argumento mais famoso
em prol da hipótese inatista: o argumento da pobreza do estímulo, também co-
nhecido como “problema lógico da aquisição” ou “problema de Platão”. Vamos
apresentar o problema e discutir em que sentidos o input (isto é, o conjunto de
dados primários oferecidos à criança) é pobre ou degradado. O ponto central
é que há uma diferença qualitativa considerável entre o que os fenômenos da
língua que configuram nosso input podem mostrar e a caracterização última
daquilo que é nosso conhecimento linguístico.
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Aquisição da Linguagem
(1)
(2)
60
O argumento da pobreza do estímulo Capítulo 07
b) A menina [que ___ viajou ontem] conhece o João.
61
Aquisição da Linguagem
É verdade que existe uma forma de falar com os bebês que é “simpli-
ficadora” e, portanto, supostamente “organizadora” do input. É o chama-
do “paiês”, também conhecido por “manhês” ou ainda “mamanhês”, uma
tradução do inglês motherese, que tem características bem especiais:
Há quem pense que este modo de falar com as crianças seja uma
maneira de organizar um pouco o input e, portanto, auxilie na aquisi-
ção da linguagem. No entanto, há muita variação nas sociedades com
respeito ao modo como se fala com as crianças, isto é, o paiês não é um
fenômeno universal. O fato de não haver universalidade na maneira de
falar com as crianças não permite atribuir ao paiês um papel crucial no
desenvolvimento dos aspectos universais da aquisição.
62
O argumento da pobreza do estímulo Capítulo 07
serve que a estrutura dessas palavras reproduz em parte a estrutura do
balbucio da criança, o que pode querer dizer que o adulto é que passa a
produzir as palavras como a criança e não ao contrário – já houve quem
observasse que o paiês é muito mais uma necessidade do adulto por em-
patia na comunicação do que da criança por um input mais claro...
Vamos dar um exemplo pra tornar tudo isso mais claro. Com base
numa discussão presente em Mioto, Figueiredo Silva e Lopes (2004),
vamos considerar a distribuição de pronomes – como eu ou ele – e ex-
pressões-R(eferenciais) – como o João ou a mesa – nas sentenças do
português. Observe (3) a seguir:
(3)
63
Aquisição da Linguagem
pode significar que ele, Pedrok, disse que o Joãoi viajou no feriado, não
é verdade?
(4)
64
O argumento da pobreza do estímulo Capítulo 07
quer dizer, ele passou na casa da Ana e a Maria estava lá então ele pen-
sou que...” em que claramente a sentença que contém as meninas está
inacabada. Nenhum adulto se corrige ou avisa de algum modo que co-
meteu um erro gramatical ali. O que os adultos fazem, na melhor das
hipóteses, é refazer a estrutura, dizendo aquilo de outra forma. E esse
fato só agrava as coisas: a rigor, o problema que a criança encontra com
respeito aos dados do input é ainda mais sério do que se poderia pensar,
por conta dos erros de desempenho do falante (por razões de cansaço
ou atenção, por exemplo) – atribui-se a Chomsky a observação de que a
criança aprendendo língua está na mesma posição de alguém que quer
aprender a jogar xadrez apenas vendo dois jogadores jogarem, mas de
vez em quando um deles faz um movimento impossível (anda com a
torre na diagonal, por exemplo), sem se desculpar com o outro jogador,
que não reclama porque também ele de vez em quando faz jogadas proi-
bidas como essa.
65
Aquisição da Linguagem
66
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
8 O papel do input no modelo
P&P
Num modelo inatista como o que estamos defendendo, é pertinente
perguntarmos exatamente que papel têm as informações linguísticas (o input)
que a criança recebe dos falantes que a rodeiam. Vamos discutir essa questão
olhando mais de perto o modelo de Princípios e Parâmetros e sua concepção de
aquisição de linguagem.
67
Aquisição da Linguagem
68
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
Isto posto, podemos avançar para a próxima questão que provavel-
mente você já está se colocando aí: se as línguas são todas determinadas
pelo nosso código genético e se o nosso código genético é fundamen-
talmente o mesmo para toda a espécie humana, como é que as línguas
humanas são tão diferentes umas das outras?
(5)
69
Aquisição da Linguagem
realizado por he, mas (5) tem a forma (6b) em italiano, onde o pronome
deve ser realizado por uma categoria vazia nesse contexto gramatical:
(6)
70
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
“não” e assim pode permitir tanto (6b) quanto (7b), sentenças que exi-
bem uma categoria vazia na posição Spec IP:
(7)
a) It rains.
b) ____ piove.
Desta rápida discussão, uma coisa já deve ter ficado clara sobre o
formato que gostaríamos de dar para os parâmetros: eles devem ter uma
formulação binária, isto é, eles devem ser perguntas que admitem como
respostas apenas “sim” ou “não”, porque formulados dessa maneira en-
tendemos imediatamente como as crianças chegam tão rapidamente a
falar perfeitamente a língua que se fala ao redor delas. Observe qual é a
tarefa da criança aqui: ouvir sentenças matrizes e encaixadas na sua lín-
gua (abundantes no input!) e decidir se Spec IP sempre apresenta con-
teúdo lexical ou não. Fácil, né?
(8)
a) È arrivato Gianni.
b) Llegò Juan.
71
Aquisição da Linguagem
/chegou o João/
Mas que formulação abstrata é essa que poderíamos dar para o Pa-
râmetro do Sujeito Nulo que acabamos de examinar? Uma intuição já
antiga, que se encontra até mesmo na gramática tradicional, é a de que
apenas línguas com um paradigma morfológico “rico”, isto é, com certo
número de desinências distintas para representar as diferentes combi-
nações dos traços de número (singular e plural) e pessoa (1a, 2a e 3a)
presentes no paradigma verbal, aceitam uma categoria vazia na posi-
ção de sujeito; línguas com um paradigma verbal “pobre”, isto é, com
poucas desinências distintas para representar esse mesmo conjunto de
combinações, não são capazes dessa proeza. Compare em (9) a seguir os
paradigmas verbais do inglês e do italiano:
(9)
72
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
lado, o inglês possui uma só desinência, o que faz com que o paradigma
como um todo seja pobre demais para poder recobrir o conteúdo de
uma eventual categoria vazia na posição sujeito, razão pela qual jamais
esta posição poderá prescindir de conteúdo lexical (um pronome ou um
DP). Vale a mesma observação para o francês.
73
Aquisição da Linguagem
nhum dos dois valores está acionado, mas daí se a gente ligar não acontece
nada, né? O aparelho não funciona... Muito bem, então temos que esco-
lher uma das duas opções para poder usar o aparelho. Qual é a voltagem
na sua região? Isso alguém que mora na região é que deve informar a
você, porque só olhando pra tomada você não vai saber, certo? Se na sua
região a voltagem é 220V, escolhendo a posição 110V seguramente você
vai queimar o aparelho (o caso contrário, isto é, ligar o aparelho 220V
na tomada 110V talvez não estrague o aparelho, mas é provável que ele
simplesmente não funcione). É verdade que modernamente existem apa-
relhos bivolt, que você pode ligar em qualquer tomada com qualquer vol-
tagem e eles mesmos reconhecem qual é a voltagem e se adaptam a ela...
74
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
Observe que é um problema escolher a voltagem errada para de-
pois corrigir o erro e escolher a voltagem certa, porque a essas altu-
ras o aparelho pode estar queimado. O mesmo podemos dizer para a
aquisição, porque, se admitirmos que a criança pode refixar o valor dos
parâmetros, ela poderia ficar fazendo isso o resto da vida. Veja bem qual
é o problema: imagine que a criança está aprendendo italiano e vamos
imaginar que ouvir frases com sujeito nulo ou preenchido é que a faz
escolher um ou outro valor para o parâmetro. Ela ouve uma frase com
sujeito nulo, coloca a chavinha ali no [+pronominal]; mas se a próxima
frase da mãe é com sujeito lexical, ela pode se perguntar se não fixou o
valor errado e põe a chavinha no valor [-pronominal]. Daqui a pouco
aparece outra sentença com sujeito nulo e ela se pergunta novamente se
não fixou o valor errado... Deu pra perceber qual é o problema?
Como você pode ver, nós não temos respostas prontas para todas
as questões, mas o fato concreto é que nós conseguimos fazer perguntas
75
Aquisição da Linguagem
76
Conclusões Capítulo 09
9 Conclusões
77
Aquisição da Linguagem
Leia mais!
Costa e Santos (2003) é um livro de divulgação científica, não tão téc-
nico e por isso mesmo de fácil leitura. No capítulo 1 os autores apre-
sentam vários argumentos em defesa da hipótese inatista e no capítulo
2 apresentam as várias fases por que passa a criança quando começa a
falar, fazendo um paralelo interessante com outras habilidades humanas
biologicamente determinadas.
Há leituras mais técnicas e por isso mesmo mais difíceis e interessantes.
Em Mioto, Figueiredo Silva e Lopes (2004), em particular no capítulo
V, você encontrará informações detalhadas sobre as possibilidades de
relações entre pronomes e expressões-R; com Kato (1995), você pode
também ampliar o seu conhecimento sobre este debate entre matura-
cionistas e continuístas.
78
Unidade C
Um problema específico: aquisição
das interrogativas no PB
O que é uma sentença interrogativa? Capítulo 10
10 O que é uma sentença
interrogativa?
Neste capítulo, vamos examinar as propriedades das interrogativas de
tipo WH. Vamos começar por uma definição geral do que é uma sentença
interrogativa; a seguir, vamos examinar que princípios e parâmetros já foram
aventados para explicar as restrições que pesam sobre esta construção nas
línguas do mundo.
81
Aquisição da Linguagem
(1)
(2)
(3)
CP
Spec C’
C IP
OPWH
Ik
tk tOP
configuração
especificador-núcleo
82
O que é uma sentença interrogativa? Capítulo 10
A questão que coloca Rizzi (1996) é: por que esse movimento seria
obrigatório em inglês e italiano, por exemplo? A resposta, segundo ele,
é que uma condição de boa formação universal, responsável pela dis-
tribuição em SS e interpretação em LF de operadores WH, exige essa
configuração Spec-núcleo entre um operador WH e um núcleo marca-
do com o traço [+wh]. Assim, em (3), a flexão porta o traço [+wh] e por
isso deve ir para C estabelecer essa relação com o operador WH movido
para lá. Essa restrição, conhecida como Critério WH, está enunciada em
(4) a seguir:
(4)
Critério WH:
83
Aquisição da Linguagem
Rizzi (1996), seria dizer que o lugar para respeitar o Critério WH pode
ser tanto SS quanto LF em francês, mas por conta de predições incor-
retas que essa hipótese faria para as interrogativas indiretas, o autor opta
por propor um mecanismo chamado concordância dinâmica, segundo
o qual o operador WH, estacionado em Spec CP, pode dotar o núcleo
C com o traço [+wh] e assim satisfazer o Critério WH em estrutura-S.
Essa opção extra do francês também está disponível para o português,
como veremos no próximo capítulo.
Antes, porém, vamos frisar que o Critério WH, uma condição uni-
versal (um princípio, portanto), está sujeito à variação paramétrica nas
línguas basicamente em dois pontos, conforme vimos em toda a discus-
são feita acima:
(5)
84
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
11 Características do português
brasileiro (PB) adulto
Abordaremos agora a questão de como o português brasileiro adulto (que
é o input da criança) lida com as exigências universais que pesam sobre as
interrogativas WH. A seção 11.1 investiga o que acontece com o movimento do
verbo para C nessa língua; a seção 11.2 examina as construções de tipo WH é
que e WH que, que parecem ser o modo principal de o PB respeitar o Critério
WH e, finalmente, em 11.3, vamos examinar as construções com WH in situ.
(6)
85
Aquisição da Linguagem
(7)
86
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
no PB atual está restrita a estruturas com verbos de cópula (como ser e
estar) e com verbos apresentativos, que admitem já nas sentenças decla-
rativas a ordem VS, como mostra (8) a seguir:
(8)
a) Apareceu a margarida.
(9)
(10)
87
Aquisição da Linguagem
tos – (i) Norma urbana culta, no caso de São Paulo (NURC/SP), (ii)
língua escrita e (iii) língua falada – a autora observou que os fatores
que interferem diretamente na escolha da ordem nas interrogativas WH
são o tipo de verbo e o tipo de sujeito. Com respeito ao tipo de verbo,
observa-se que os verbos transitivos são inibidores da ordem VS, como
mostra a inaceitabilidade de sentenças como *Onde viu o João a Maria?;
os verbos monoargumentais (copulares, inergativos e inacusativos), por
seu turno, aceitam naturalmente a ordem VS, como se vê pela gramati-
calidade relativa de sentenças do tipo onde fica essa rua? ou ainda quan-
do chegou a carta?.
A análise é bem bonita, não é? Sim, mas ela tem alguns problemas.
Vamos a eles. Em primeiro lugar, é indiscutível que existem estruturas
com deslocamento do sujeito à direita em PB atual, mas elas são per-
feitas com verbos transitivos, como vemos em (11a), colhida em uma
festinha de aniversário. Esse fato coloca um problema para a análise de
Kato (1993), pois a “falsa inversão” parece sensível ao número de argu-
mentos do verbo, como mostra (11b), mas o deslocamento à direita do
sujeito em (11c) não é.
(11)
88
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
o mesmo juízo de gramaticalidade porque, para ela, ambas são deriva-
das pela mesma estratégia, que é o deslocamento à direita do sujeito.
É verdade que a frase em (11b) coloca em jogo também o movimento
WH, mas esse não parece ser um problema se o par em (10) não exibe
nenhum contraste, concorda? Então tem um problema mesmo aqui...
Outro fato a salientar é que esta análise não pode explicar, como
bem nota Sell (2003), uma sentença como Onde foram eles?, que só é
gramatical sem o pronome pré-verbal, como mostra a agramaticalidade
de *onde eles foram eles?. Observe também que essa não poderia ser uma
estrutura de deslocamento à direita do sujeito – os pronomes são pre-
feridos na posição canônica do sujeito Spec IP, como mostrou Sikansi
(1998). Portanto, parece inescapável a conclusão de que há tanto a “fal-
sa” quanto a “verdadeira” inversão no PB, esta última restrita aos verbos
inacusativos, o que inclui as cópulas que, como você sabe, selecionam
uma small clause como complemento.
Assim, o mais sensato parece ser manter uma análise para VS que
tire proveito do fato de serem os inacusativos os verbos que aceitam essa
ordem, verbos que não possuem argumento externo, apenas argumento
interno. É possível então que o único argumento que o verbo possui fi-
que em sua posição de base e apenas o verbo se mova, como usual, para
a posição I. Assim, uma sentença como (12a) terá uma representação
arbórea como (12b), a seguir:
(12)
89
Aquisição da Linguagem
b)
CP
Spec C’
onde C IP
Spec I’
I VP
foram V’
V SC
t foram
os meninos
90
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
11.2 A construção com (é) que
Lopes Rossi (1993, 1996), também num trabalho sobre diacronia
das construções interrogativas no PB, hipotetiza que as construções
com é que são derivadas de sentenças clivadas, exibindo, portanto, uma
sentença matriz e outra encaixada. Observe os exemplos em (14) e o
pedaço pertinente da árvore a elas correspondente em (15):
(14)
(15)
CP
Spec C’
O que C IP
Spec I’
I VP
foi V’
V CP
t foi Spec C’
(o bolo)
C IP
91
Aquisição da Linguagem
(16)
92
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
c) * O que é que que você está fazendo?
(17)
CP
Spec C’
OPWh- C IP
que [+wh]
t Wh-
Configuração
especificador-núcleo
(18)
93
Aquisição da Linguagem
(19)
CP
Spec C’
Quem [+wh] C IP
[+wh]
t WH
94
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
WH em SS, mas apenas em LF, onde supostamente todas as línguas são
idênticas. Portanto, a hipótese é que as interrogativas com WH in situ
poderão adiar até LF a satisfação do Critério WH, quando o sintagma
WH se moverá para Spec CP e se configurará assim como um operador
WH. Também nesse nível algo acontecerá para dotar o núcleo C com o
traço [+wh], garantindo o respeito ao Critério WH.
Essa análise, no entanto, deixa sem resposta uma questão óbvia (so-
bretudo para quem quer lidar com dados de aquisição): que propriedade
permitiria a certas línguas adiarem o movimento do sintagma WH até
LF enquanto outras já devem realizá-lo necessariamente em estrutura-S?
Alguns estudos vão tentar exatamente explicitar que propriedade seria
essa. Segundo a pesquisa diacrônica de Lopes Rossi (1993), o PB, a partir
do século XIX começa a permitir duas estruturas sintáticas inusitadas:
WH SV e WH in situ. Para ela, a razão do aparecimento destas cons-
truções no PB é que essa língua sofreu uma mudança na marcação do
parâmetro que governa tanto o movimento de núcleo de I-a-C quanto
o movimento do sintagma interrogativo para Spec CP: o PB passou, de
uma língua marcada com a opção [+movimento WH] até o século XIX,
a ser uma língua que escolhe a opção [-movimento WH] no século XX.
(20)
IP
Sintagma WH IP
DPsuj I’
I VP
95
Aquisição da Linguagem
(21)
Como bem nota Sikansi (1999), se é verdade que houve essa mu-
dança paramétrica, isto é, nem o verbo vai a C nem o sintagma WH vai
a Spec CP, o que se espera é que as crianças adquirindo o PB, tendo im-
plantado essa nova opção, exibam abundantemente tanto construções
com a ordem WH SV (que revelam que o verbo não saiu de VP) quanto
96
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
com WH in situ (que mostram que o sintagma WH não precisa ir a Spec
CP). Veremos mais pra frente se essas predições se confirmam.
97
Aquisição da Linguagem
(22)
98
O que se observa na aquisição do português brasileiro Capítulo 12
12 O que se observa na aquisição
do português brasileiro
Neste capítulo, vamos examinar dados de basicamente duas pesquisas a
respeito de sentenças interrogativas em PB de modo a poder estabelecer quais
são os fatos da aquisição da linguagem nessa língua. Vamos nos debruçar em
particular sobre a possibilidade de inversão VS, tema da seção 12.1, em segui-
da abordando, na seção 12.2, a distribuição nos dados infantis das estruturas
WH é que e WH que, para finalmente examinarmos, na seção 12.3, as cons-
truções com WH in situ.
(23)
99
Aquisição da Linguagem
100
O que se observa na aquisição do português brasileiro Capítulo 12
Tipo de DP sujeito Ordem WH SV Ordem WH VS Total
DP lexical 4 – 20% 16 – 80% 20 – 28%
Demonstrativo 3 – 18% 14 – 82% 17 – 23,5%
Pronome pessoal 34 – 97% 1 – 3% 35 – 48,5%
Total 41 – 57% 31 – 43% 72 – 100%
(24)
a) Quem é esse?
101
Aquisição da Linguagem
Tabela 12.2.1 – Distribuição geral das estruturas interrogativas WH conforme o sujeito falante e
a presença ou ausência de (é) que
(25)
102
O que se observa na aquisição do português brasileiro Capítulo 12
Sikansi (1999) observa que nesses dados só aparece a construção
WH que, mas o fato de a criança omitir a cópula em (25b) nos impede
de saber com certeza se WH que é diferente de WH é que para a criança.
O número diminuto de dados também impede qualquer conclusão mais
sólida a este respeito.
Com relação aos dados de N., observa-se ainda outro contraste sur-
preendente: o número de construções com WH que é dez vezes maior
que o de estruturas WH é que. Grolla (2000) nota que essa distância nas
porcentagens de uso de cada uma das construções não se encontra na
fala adulta: segundo o trabalho de Lopes Rossi (1996), numa pesquisa
com dois corpora de língua falada, não se observa diferença significativa
no uso de cada uma dessas construções:
(26)
103
Aquisição da Linguagem
(27)
(28)
104
O que se observa na aquisição do português brasileiro Capítulo 12
poderia ser considerada a mais simples – e, portanto, a primeira a ser
adquirida pela criança. Se temos essa expectativa, os números são muito
surpreendentes: a criança analisada por Sikansi (1999), G., não produz
nenhuma interrogativa com WH in situ até a última sessão de gravação,
aos 3;10, e a criança analisada por Grolla (2000), N., só produz sua pri-
meira estrutura desse tipo aos 3;09, e até os quatro anos, momento da
sua última gravação, de um total de 520 interrogativas, não exibe mais
que 8 sentenças com WH in situ, um percentual de 1,7%, portanto.
É preciso dizer que os números dos adultos também não são tão ro-
bustos. Por exemplo, no corpus examinado por Sikansi (1999), o adulto
interagindo com G. produz apenas 24 interrogativas desse tipo, num to-
tal de 639, o que fornece um percentual de 3,75%; a criança mais velha,
irmã de G., produz, em 76 interrogativas, apenas 2 sentenças desse tipo,
totalizando 2,5% de enunciados com WH in situ.
(29)
105
Aquisição da Linguagem
Cr.: Pá í aonde?
Por agora, é suficiente notar, como faz Sikansi (1999), que não pode
estar correta a hipótese de Lopes Rossi (1993, 1996), segundo a qual o
PB perdeu o movimento do verbo flexionado para C e por isso perdeu
o movimento do constituinte interrogativo para Spec CP, pois, se assim
fosse, o que se esperaria seria, no mínimo, a coexistência de movimento
do constituinte interrogativo e WH in situ na fala da criança desde sem-
pre, apresentando desde o início da aquisição porcentagens similares
para esses dois tipos de construção, o que não se verifica.
106
Conclusões Capítulo 13
13 Conclusões
A primeira observação a ser feita é o fato de que existem diferentes
modos de se fazer uma interrogativa WH direta em PB, como mostrou o
paradigma reportado por Sikansi (1999), apresentado em (6) e repetido
em (30) a seguir:
(30)
Sikansi (1999) nota que a criança, já aos 2;04, isto é, quando ainda
não produz essa profusão de ordens e nem mesmo a profusão de expres-
sões interrogativas do PB adulto (essa é a fase em que as interrogativas
infantis são montadas essencialmente com cadê), é perfeitamente capaz
de entender estruturas interrogativas complexas, como no seguinte diá-
logo, extraído de Sikansi (1999, p. 96):
(31)
G.: Eu.
G.: Não.
Assim, parece claro que a criança chega rapidamente a entender quais são
os tipos de interrogativas e que restrições pesam sobre cada uma delas. Vamos
retomar as nossas expectativas com respeito à fala da criança dado o que obser-
vamos na fala adulta e o tipo de análise que encaminhamos para ela:
107
Aquisição da Linguagem
Possivelmente são esses dados dos adultos que estão por trás da
ideia de Lopes Rossi (1996) de que essas duas construções são funda-
mentalmente a mesma, derivadas ambas de construções clivadas com
ou sem cópula (isto é, com apagamento ou não da cópula).
108
Conclusões Capítulo 13
ples em termos estruturais e já na faixa dos 2;9 está presente nos dados
infantis; a outra, WH é que, colocando em jogo mais estrutura frasal,
isto é, sendo muito mais complexa em termos estruturais, aparece mais
tarde na fala da criança, depois dos três anos.
(32)
109
Aquisição da Linguagem
gerar os dados da sua língua. Pode ser que essa definição de parâmetro
não esteja correta, mas como ela tem nos permitido adquirir algum co-
nhecimento sobre como a criança chega tão rapidamente a falar a língua
que a rodeia, também não faz sentido abandonarmos a concepção no
primeiro problema, não?
Leia mais!
Você deve ter disponível aí no seu polo alguns materiais que podem
ajudar bastante a compreensão dessa unidade, que é mesmo bastante
difícil. Neste momento, é recomendada a leitura das seguintes obras:
110
Conclusões Capítulo 13
3) Sikansi (1998), que apresenta um estudo sobre as ordens VS e
SV no PB atual;
111
Unidade D
Aquisição e aprendizagem:
algumas observações sobre
alfabetização
Fala e escrita Capítulo 14
14 Fala e escrita
Neste capítulo, vamos discutir, com base em Lyons (1987), as diferenças en-
tre língua falada e língua escrita, mostrando que a língua falada precede a língua
escrita sob os mais variados pontos de vista e é, portanto, pressuposta por ela.
115
Aquisição da Linguagem
116
Fala e escrita Capítulo 14
língua oral); entretanto, inúmeras sociedades foram e ainda são ágrafas.
E, mesmo dentro das sociedades que dispõem de tradição escrita, muitos
de seus membros são analfabetos, mas evidentemente falam seu dialeto
sem problemas. A prioridade histórica, diz Lyons (1987), é indiscutível.
117
Aquisição da Linguagem
118
Fala e escrita Capítulo 14
meio, sabemos que a fala e a escrita são parcialmente isomórficas, não
completamente isomórficas – como observa Lyons (1987), nenhum sis-
tema de escrita conhecido é capaz de fornecer uma representação perfei-
ta de todas as distinções significativas que fazemos na fala (por exemplo,
os sistemas de pontuação disponíveis nas línguas escritas são em geral
uma pálida sombra do que fazemos com a entoação em qualquer língua).
É claro que, nas sociedades que dispõem de uma escrita, há que se consi-
derar os aspectos relacionados à funcionalidade desses sistemas: há coi-
sas que só fazemos por escrito – como a escritura da casa – mas há outras
tantas que só fazemos oralmente – fofoca com a vizinha, por exemplo.
119
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
15 Certas noções básicas que
todo professor de língua
deve ter
Vamos abordar agora, com base em Lemle (1985), a questão da alfabetiza-
ção (ou, mais precisamente, o domínio do sistema alfabético). Este capítulo vai
se organizar em várias seções: primeiramente, vamos examinar certos conceitos
gerais que estão em jogo na alfabetização e que devem ser considerados pelo edu-
cador. Nas seções seguintes, veremos como certas noções de fonologia, morfologia
e história da língua podem ajudar significativamente o alfabetizador na sua
tarefa de ensinar os mistérios do sistema da escrita.
Talvez o primeiro ponto a ser discutido aqui é por que estamos pau-
tando a questão da alfabetização ou do domínio do sistema alfabético
como um problema que os professores de português devem enfrentar,
já que em geral quem trabalha com a alfabetização das crianças são os
pedagogos. Embora seja verdade que poucos professores de português
lidam com alfabetização, é também verdade que mais tarde muitos pro-
blemas que deveriam ter sido resolvidos já na alfabetização (alguns dos
quais ligados a certas crenças sobre a língua) são os professores de por-
tuguês que devem resolver. Por essa razão, os professores de português
devem ter conhecimento técnico específico sobre a questão linguística
que subjaz à alfabetização para poder inclusive discutir com os colegas
pedagogos a melhor maneira de conduzir esse processo.
121
Aquisição da Linguagem
possível que um time de futebol eleja a cor branca para os seus unifor-
mes e assim, nesse contexto, uma bandeira branca simboliza esse time.
122
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
escrita. Como já falamos anteriormente sobre o tamanho do trabalho da
criança em segmentar a fala, não vamos nos deter neste ponto. Vamos,
contudo, frisar outra vez que essa consciência mais fina das distinções
da fala ainda não garante que a criança vai supor uma relação entre a
forma da escrita e a fala.
(1)
123
Aquisição da Linguagem
Camara Jr. (1970) garante que pronunciamos uma única vogal ligei-
ramente mais longa, mas talvez tenhamos (e a criança também) alguma
dificuldade para reconhecer a parte do “ligeiramente”. O fato concreto é
que pronunciamos uma só vogal, não duas, certo? Bom, então a criança
faz uma representação bem acurada do que ouve quando escreve “casa
marela”, né? Observe ainda que, tanto quanto sabemos, nenhuma crian-
ça faz a hipótese de escrever “cas amarela”! Por que será?
(2)
a b
124
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Finalmente, vamos notar com Lemle (1985) que há superposição de
relações simbólicas na palavra escrita: uma primeira camada é a que exis-
te entre a forma da palavra, digamos ilusão, e o seu significado; a segunda
camada é a que existe entre os sons [iluzãw] e as letras com que a palavra
é escrita, no caso i, l, u, s, a e o (e mais o diacrítico til). Será preciso frisar
muitas vezes que todas as relações simbólicas são fruto de convenção.
Letras Fonemas
p /p/
b /b/
t /t/
d /d/
f /f/
v /v/
a /a/
125
Aquisição da Linguagem
Vamos começar com o caso de um mesmo som que se casa com di-
ferentes letras na língua. Vamos tomar o som [i]. Segundo Lemle (1985),
se esse som aparece numa posição acentuada, será transcrito pela letra
i, como em vida ou saci. Se, por outro lado, essa vogal se encontra numa
posição átona em final de palavra, a nossa convenção ortográfica nos
obriga a escrevê-la como e, e assim nós escrevemos vale mesmo falan-
do [vali]. Com o som [u] acontece alguma coisa muito parecida: em
posição tônica, [u] se escreve u mesmo, como em caju ou juba, mas em
posição átona final, [u] se escreve o e, por isso, embora falemos [bolu],
quando escrevemos somos obrigados a escrever bolo.
126
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Fone
Letra Posição Exemplo
(som)
rr Intervocálico carro
[R]
r Outras posições rua, carta, honra
Quadro 15.1.2 – Sons representados por diferentes letras segundo sua posição
Vamos agora examinar o caso de uma mesma letra que se casa com
diferentes sons da língua dependendo de onde estão. Vamos tomar a
letra l como exemplo: ela tem a pronúncia de consoante lateral quando
diante de uma vogal, como em lado ou bolo, mas em posição final (de
sílaba ou de palavra), quando segue uma vogal, a letra l corresponde em
muitos dialetos do PB ao som da vogal [u], como nas palavras sal, jornal,
alto, caldo.
127
Aquisição da Linguagem
Quadro 15.1.3 – Letras que representam diferentes sons segundo sua posição
128
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Evidentemente, esses casos de poligamia e poliandria colocam pro-
blemas sérios para os aprendizes, que podem ter pensado que exis-
tia casamento monogâmico entre os sons e as letras. O alfabetizador
tem que ter muito claro o que está em jogo para responder adequa-
damente às dúvidas dos alfabetizandos. É muito comum, frente a
uma pergunta como “por que é que eu tenho que escrever mato se
eu falo [matu]?”, o professor responder coisas como “é porque nós
falamos errado; nós deveríamos falar [mato]”. Essa resposta é inade-
quada porque, como bem coloca Lemle (1985, p. 20):
129
Aquisição da Linguagem
s mesa
[z] Intervocálico z certeza
x exemplo
ss russo
Intervocálico diante
[s] ç ruço
de a, o, u
sç cresça
ss posseiro, assento
Intervocálico diante
c roceiro, acento
de e, i
sc asceta
ch chuva, racha
[š] Diante de vogal
x xuxu, taxa
s espera, testa
Diante de consoante
x expectativa, texto
u céu, chapéu
[u] Final de sílaba
l mel, papel
130
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Como não há aqui nenhum princípio fônico que possa guiar a es-
colha entre uma ou outra das opções, a única maneira de descobrir qual
é a letra correta é consultar o dicionário e decorar o resultado. Mas não
é o caso de se desesperar: veremos a seguir que outros conhecimentos
linguísticos, como os advindos da morfologia, da história da língua e da
variação e mudança linguística, podem ajudar muito no entendimento
dessa aparente falta de sistematicidade da escrita do português.
Alternativa ortográfi-
Afixo ca (fonologicamente Exemplos
plausível)
131
Aquisição da Linguagem
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Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Lemle (1985, p. 32) é o das palavras sino e cinco: elas partilham o mesmo
som inicial mas ele aparece transcrito por letras diferentes.
133
Aquisição da Linguagem
134
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
apenas para que você se convença do fato. Em última análise, o que es-
tamos afirmando é que, ao contrário do pensamento mais tradicional
veiculado pela GT, a mudança linguística não quer dizer perda pura e
simples de alguns segmentos; antes, se configura como um tipo de “es-
cravos de Jó” linguístico, uma espécie de rodízio de formas que Lemle
(1985, p. 55) representa como:
u2 l1 l2 r1 r2
u1 u3 r3
l3
zero zero
(falou > falô) (anzol >anzou) (blusa>brusa) (cantar>cantá)
135
Aquisição da Linguagem
Antes disso, porém, uma palavra final sobre a relação entre a escrita
e a fala: na nossa sociedade, a escrita serve a propósitos de comunicação
bem mais amplos que a fala – nós queremos nos comunicar não apenas
com as pessoas que vivem no mesmo bairro ou na mesma cidade, mas
também no mesmo estado ou país e também em outros países, no tem-
po passado, presente ou futuro. E é por isso que a língua escrita não pode
ser próxima da minha fala, da fala do meu bairro ou da minha cidade.
Na verdade, devemos fazer uma opção: ou temos uma única língua es-
crita para paulistas, gaúchos e alagoanos, moçambicanos e portugueses,
do século XIX ou do século XXI, ou temos muitas línguas escritas, cada
uma próxima de um desses falares – e eventualmente incompreensível
para outros falantes de outros lugares e outros tempos.
Optar pela língua escrita que vai além das fronteiras espaciais e
temporais sem dúvida é um peso para o aprendiz e explica também o
conservadorismo da língua escrita. Observe, no entanto, que as coisas
não seriam mais fáceis se fôssemos adotar uma escrita mais perto da
fala, porque de qualquer modo teríamos que eleger, dentre os diversos
dialetos falados numa região, qual seria a base para a escrita, uma ques-
tão de difícil solução linguística, já que nenhum dialeto ou registro é
inerentemente mais ou menos adequado à escrita. A solução nesse caso
é sempre política e daí depende de correlações de forças sociais, um lu-
gar onde a linguística nunca é chamada a opinar.
Portanto, o que parece ser mais sensato ainda é, como observa Lemle
(1985, p. 60), aceitar que “[h]á várias maneiras, todas igualmente válidas,
aceitáveis e respeitáveis de falar a língua. A relação entre língua escrita
e língua falada é fonética em uns poucos casos e arbitrária em outros
[...]”, mas a arbitrariedade é uma propriedade bem geral das línguas hu-
manas e, portanto, apreensível pelos humanos, certo?
136
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
16 Um pouco mais sobre língua
escrita e mudança linguística
Neste capítulo, vamos discutir um pouco mais sobre a língua escrita com
base no trabalho de Kato (1999), que mostra que a escrita, num primeiro mo-
mento, é efetivamente a transcrição da fala do indivíduo, mas, num segundo
momento, funciona como um novo input para a aprendizagem de uma nova
língua que, no caso do PB, distancia-se consideravelmente da língua adquirida
na primeira infância..
filtrada pela
transição da neutra em
pré-escrita tecnologia
fala do sujeito relação às falas
da escrita
137
Aquisição da Linguagem
conservadora
inovadora conservadora conservadora
inovadora
(3)
138
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
O que se observa é que sentenças como (3c) são altamente desfa-
vorecidas no PB atual, mas não em PE (português europeu) atual, nem
eram desfavorecidas no PB até o final do século XIX. A partir do começo
do século XX, começa a aparecer o padrão brasileiro de preenchimento
da posição de sujeito, que nos fornece sentenças como (4):
(4)
a) Eu disse que eu queria viajar mas eu não quero pagar uma for-
tuna de hotel.
b) Quando ela acordou ela estava em casa sem saber como ela foi
parar ali.
139
Aquisição da Linguagem
(5)
Clítico 262 (89,1%) 257 (87,4%) 234 (81,6%) 133 (50%) 26 (11,2%)
DP - - - - 1 (0,4%)
TOTAL 294 (100%) 294 (100%) 287 (100%) 266 (100%) 233 (100%)
140
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
(6) (7)
(8)
141
Aquisição da Linguagem
perfeita pelos falantes e não costuma ser alvo de críticas por parte dos
gramáticos de plantão. Em todo o caso, esse tipo de relativo padrão ain-
da é razoavelmente familiar aos brasileiros, diferentemente de (9a), que
não é dominada nem mesmo pelos falantes escolarizados, o que torna
as outras duas estruturas as únicas possibilidades – novamente, a copia-
dora é um pouco marginal:
(9)
Analfabetos 1ª/2ª séries 3ª/4ª séries 5ª/6ª séries 7ª/8ª séries Universitário
Clítico - - - 2% 1% 14%
DP 5% 3% 15% 8% 7% 14%
142
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
Tabela 16.3 – Distribuição de objetos diretos anafóricos
por nível de educação em textos escritos
143
Aquisição da Linguagem
(10)
1ª/2ª séries 3ª/4ª séries 5ª/6ª séries 7ª/8ª séries Universitário Total: 57
Próclise - 4 1 4 6 15
Ênclise - - 13 14 12 39
144
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
O que podemos tirar como conclusão deste breve estudo é que a es-
cola pressionará o aprendiz no sentido não apenas de aprender uma
escrita, mas de aprender uma escrita que difere muito em alguns as-
pectos da sua fala. Essa distância começa a se desenhar já na alfabeti-
zação e é fundamentalmente a mesma para as mais variadas línguas;
no entanto, ela pode depois se aprofundar em certas línguas, como
é o caso do PB, que tem estruturas gramaticais já muito distanciadas
das da língua portuguesa escrita, aquela que queremos manter em
comum com os portugueses, angolanos, moçambicanos, etc.
145
Conclusões Capítulo 17
17 Conclusões
Vimos nesta unidade que língua oral e língua escrita são parcial-
mente isomórficas e não exatamente idênticas e que a língua oral tem
prioridade sobre a língua escrita sob os mais variados pontos de vista: o
histórico, o estrutural, o funcional e o biológico.
Leia mais!
Em Lyons (1987), em especial na seção 1.4, você pode encontrar toda
a discussão a respeito da prioridade da língua oral com respeito à lín-
gua escrita. Já em Camara Jr. (1970), em particular no capítulo 8, você
encontra uma belíssima discussão sobre fronteiras prosódicas, que é na
verdade sobre a interface da fonologia com a morfologia. Não é preciso
dizer o que você vai encontrar em Lemle (1985), mas essa é uma leitura
que você deveria fazer várias vezes! Finalmente, em Kato (1999) você
encontra mais detalhes sobre a gramática do PB atual.
147
Bibliografia
Bibliografia consultada
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ve perspective. Bucaresti: Editura Universitatii, 2003. Disponível em:
<http://ebooks.unibuc.ro/filologie/avram/index.htm>. Acesso em: 15
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1970.
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