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Iremos trazer alguns complementos à teoria da subjetividade apresentada no
seminário preceden te.
de 1987 Por oposição ao simples para-si, tal como se apresenta no ser vivo, ou à
psique ou mesmo ao indivíduo social puro e simples, a subjetividadeçpseu-
dobola pseudofechada, pode verdadeiramenre interagir - comunicar - com
outras • pseudobolas pseudofechadas.'ElaI é capaz de se autodilarar, guardando,
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~ •.. f .·~\t//'\. •. entretanto, a mesma estrutura, é capaz de extensão interna e externa (exten-

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L,'~ ". 'ro.~ ~._ /f. ~"__ )I
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são de seu campo de percepção
car sua estrutura,
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e pesquisa); em seguida, é Capaz de modifi-
suas leis, de se colocar em questão, de se reorganizar.
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~..:-'J'\~~-:.-.--:'-~ características que fazem com que f~lemos de pseudobolas pseudófechadas.


Isso quer dizer também - conseqüência, demonstrãvei, do que acabamos
de dizer - que ela pode se pôr em posição de meta-observador de si mesma,
que pode se dar como objeto a si mesma e o conjunto - pelo menos abstra-
to ....:...de SU<1:S operações. Surgem e~tão questões Como a da realidade do
mundo exterior, da relação da representação com o que é (à'a manifestação
e do ser para-si), da v;rdade ou "objetividade" do conhecimento erc,
Ora, essas afirmações condensarn um conjunto de fatos (interpretados, é
certo), mas ao mesmo tempo nos reconduzern às condições lógicas e rransceri-
dentais para que haja conhecimenrpe histó;ia do conhecim;nto. Se quere-
mos considerar esta dimensão da filosofia não no quadro estático, totalmente
I .
artificial, abstrato e insatisfatório no qual ela tem sido considerada até "agora
(como pode haver conhecimento), mas na efetividade quea questão nos
impõe, ou seja, como pede haver conhecimento e história do conhecimento,
não mudança de opiniões, mas história, do conhecimento, história
. da ver da-
de, então somos remetidos a pelo menos uma das condições, a uma natureza
I .
ou modo de ser da subjetividade que implica o que dissemos: uma subjetivi-
I ,
I .
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SEMINÁRIO DE 25 DE MARÇO'DE 1987

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SUJEITO E VERDADE

. . ,.

dade não dada de uma vez por todas, mas capaz' de autodilataçâo, capaz de I
meça a trilhar o caminho .
da autonomia. É certo que, no caso da sociedade,
I

isso se determina de outra forma, e nos permite responder à questão que


comunicação, capaz de questionamento de si mesma e das leis de sua.estru- _ .•' I
tura: Afinal, não operamos, sendo "nós" o pluralis humanitatis, nada mais /"("(>fo ~ mais nos interessa: o que é, e como é, a sociedade, e como deve ser asocie-
dadchístórica para que uma questão da verdade possa sempre vir à luz?
que um questionamento das leis da estrutura da subjetividade quando dis;ê-. ","Ino~ .
mos que a lógica de Aristóteles é extraordinária, mas há domínios que ela P' I Toda sociologia..9'ye se limita a des_crever uma sociedade como ela é, e aquilo
não cobre ou mesmo domínios que a contradizem ou a derrubam. Ou quan- I g;e eia chama de ~ições de_J.2Iodução do .50nEeci;;nto", e a ~~
do dissemos que a geometria euclidiana, embora totalmente insuperável sob I que toda produção de ~9n~eciIJ.lento é determinada pelo processo de rep!o-
certos aspectos, não somente é, afinal, complerável, ° que Hilbert demons- i dução da sociedade tal como é, pois bem, uma tal sociologia (Foucault,
trou no final do século XIX, mas é apenas uma das geometrias possíveis, Bourdleu e tuttt quanti...) não apenas~ra o g~lho sobre o qual esrasentada,
pois existem outras leis de coexistência de uma pluralidade abstrata em uma n;2s o vem serrando há'mui:0 temp~ e es!.~ e.!!4Yia~de cair no vazi'.?:!.2i2 s~
extensão no sentido mais vasto do termo: geometrias nâo-euclidianas, geo- discurso torna-se ele mesmo impossível, visto que ela acredita demonstrar
metrias mesmo euc1idianas, mas a n dimensões etc, Tudo isso é questiona- que todo discurso é determinado pelas Cõn-áiçôes dereInwução a; st;;;
rnento das leis da estrutura da subjetividade, fazendo com que um matemático qUõ saciá! e,portanto, ela mesma é determinada assim._
possa pensar em n dimensões e não somente em três dimensões, mesmo que .-Pal;;ci; da sociedade, temos sempre essa dupla preocupação: descrever,
não possa intuir - pelo menos no sentido usual do termo - multiplicidades analisar, trazer à luz o' mais honestamente, o mais escrupulosamente possí-
. de n dimensões, mesmo que precise recoriduzir essas imagens de n dimen- vel, o que é <constitutivo > d~str1\t~ra ?a 'spciedafe; no que nos é. dado
sões a imagens truncadas, rebaixadas a três dimensões. ver; e, sem que essa segunda questão falseie a prL'11eirá; perguntar-se como
! •. .

Portanto, tudo o que foi dito aqui sobre a subjetividade não é apenas deve ser 't sociedade ou o social-histórico para qlJe em seu seio possa surgir
descritivo, mas é também, por um outro lado, forçoso. É um requisito lógico a questão da verdade, mas também aquela de seu próprio ser e de seu sentido.
e transcendental para que haja conhecimento e história do conhecimento,
isto é, no fim das contas, para que possamos falar e para que possamos falar Questão preliminar (sabendo que é o concreto que nos ensina, que são as
° sentido): a própriadefiníção
. I

da própria subjetividade, ~ que seja apenas no plano descritivo. questões concretas que fazem brotar de uma
Especificidade do método seguido aqui: as duas vertentes da efetividade sociedade particular, concreta - ou, em outras palavras, a questão da' fron-
e da exigência de validade devem ser levadas em conta. As ~oisas são assim e teira. Falamos da sociedade, das instituições, primeiras e segundas," da arti-
sendo assim p-ermitem um juízo ·sobre as coisas. Por um outro lado, a subje- culação das instituições, da auto-instituição da sociedade, Tudo isso pressupõe
tividade assim concebida pressupõe um certo tipo de instituição da socieda- que tenhamos em vista uma classe de objetos que são as diferentes socieda-
de, não é possível em toda parte e sempre - Sócrares, Descartes ou Kant são des, pois há pluralidade e diversidade de sociedades, e que, portanto,como
inconcebíveis na sociedade faraônica, por questões de fundo, de atitude hu- diria ]oseph de Maistre, possamos encontrar franceses, italianos, russos, mas
manamente possível. Esse tipo de instituição, por sua vez,' só é possível fa- nunca o homem. De fato, só encontramos pessoas ~s_de um~ soci~dade
zendo ser esse tipo de subjetividade. Uma sociedade parcialmente aberta e particular, com uma língua, costumes es ecíficos êtc. Em umaYJjmeir:a.ab_Qr:-
parcialmente autônoma não o é senão na medida em que faz existir sujeitos agem, ° ornem como tal é uma abstração exangue, embora outros aspec-
capazes de colocar em questão as leis herdadas e as representações existentes. :ms apareçam em uma segunda abordagem. Nuncá encontramos a socicdad.,:.
Ademais, conforme veremos, o que foi dito da s,ubjetividade se transpõe em geral: estamos na França, ou nos Estados Upidos, no Irã ou na Indonésia
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com determinações novas à descrição da própria sociedade quando ela co- - em uma sociedade particular.
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Como se faz en tão e~sa delimitação? No ca.so do vi~ente, ele próprio O


constrói a própria fronteira, E ISSO de forma muito material: membrana ou \~l + ~
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sua órbita, mas é a sociedade que decidefaz~ da Lua isso ou ~quilo, investi-
Ia de um certo sentido. Pensemos em tudo aquilo que a Lua significou atra-
, .
pele são fronteiras e filtros - e, se elas falham, é a morte. Mesmo quando se vés das diferentes sociedades - Astarte, Artemis, os astecas, as.ligações das
trata da psique, podemos falar de uma fronteira apoiada por sua delimitação fases da Lua com o ciclo feminino, a divisão dos anos em meses lunares etc. '
corporal e suas possibilidades perceptivas.' No caso da sociedade, o que po- Tudo isso não é dado pela trajetória da Lua, mas resulta do investimento de
demos dizer? Cada sociedade se auto-institui enquanto sociedade, se autocria ,I sentido nesse fato bruto, e isso é tão verdade~ro que difere segundo ar. insti-
criando sentido e organizando, mediante esse sentido, o que se apresenta. O I tuições da sociedade. Assim também para a reprodução sexuada dos seres
que se apresenta: expressão muito pesada. Primeira elucidação: o que se humanos: nenhuma sociedade pode ignorá-Ia, mas a cada vez ela é vestida,
apresenta é sempre pré- ou quase-or~aniza~9; é/o que cha~."ee~~: ~ institui- I consti:uída, criada com um sentido diferente e segundo modalidades; insti-
ção..., de primeiro estrato natural. ~ - ~j) I tuições segundas diferentes. ,
A sociedade, come auto-instituição, encontra sempre, de um lado; a or- I A sociedade op.era, portanto, como um para-si, aurocria-se sobre o moª-º-.
ganização biológica dos seres humanos que, como simples viv,entes, a com-
I
,I ,
do Para-si. Voltaremos ao tema das relações entre as dimensões do para-si '
põem ou o que .dela subsiste depois da irrupção da loucura da psique; depois,' ' em geral (representação, intenção, afeto) e seus equivalente na sociedade.
de um outro lado, os correlatos objetivos desse sujeito humano, para esse Mas dizer isso significa que essa autocriação é essencialmente de tipo
sujeito. Quero dizer com isso que a organização biológica do ser humano monádico (ver A instituição ..., capítulo VI). A psique originária é mônada,
comporta, por exemplo, uma fisiologia das necessidades de nutrição, um isto é, ao mesmo tempo entidade singular; mas também fechada sobre ela
modo de reprodução sexuada etc. Portanto, a sociedade encontra tudo iss'o mesma. E a mônada originária psíquica é, também mônada no sentido da '
e de uma certa maneira há uma organização da fisiologia da nutrição, assim índistinçâo daquilo que ela é ou daquilo que € nela, da simplicidade, da con-
como uma organização da reprodução sexuada que já estão presentes. Mas i flação absoluta, da indiscrirninação originária daquilo que é "nela". Não
há também um correlato objetivo dessa organização biológica. Por exemplo, !- pensamos o nó inicial originário da psique senão como, simultaneamente,
como ser sensorial, o humano tem diante de si uma certa consistência do 1I representação, afeto e desejo reunidos." É possível que alguma coisa seja to-
mundo pré-humano e mesmo pré-biológico que lhe permite existir como talmente indistinta no início e só comece a dJsvelar suas potencialidades de
humano simplesmente vivente, As cores só existem para um sujeito que vê; I diferenciação em outras condições.' Mônad~ para a psique, mas mônada
este, com sua sensorialidade, deve fazer face a esse mundo pré-humano e ! também para a sociedade no sentido do fechamento - mas não no sentido
mesmo pré-biológico no qual há, efetivamente, vibrações eletromagnéticas I da indistinção, da simplicidade, da indiscriminação. Pois no caso da socieda-
de tal ou tal comprimento de onda e repartidas sobre um espectro "contí- ,I de, temos de imediato pluralidades múltipl~5: vários indivíduos (número
nua" com determinadas propriedades etc. (É verdade que a partir do mo- indefinido), pluralidade de instituições, cada uma comportando uma multipli-
-
mento em que queremos falar cienti ficamente <desse primeiro estrato> não I cidade de momentos
I
(exemplo da linguagem e das significações que carre-
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'

o colocamos dentro de um sistema de categorias, postulados, axiomas etc.) ! ga); e, mais que isso, pluralidade de níveis de ser, de modos de se instituir
A sociedade encontra, portamo, o que se apresenta como pré- ou quase- ! etc. Mas é de todo modo uma mônada, no ~entido em que tudo deve ser I
organizado, mas isso para ela é suporte. Tudo o que encontra assim, ela ;i reabsorvido no mundo de sentido que ela criou. Ou seja, deve referir-se a
,I
retoma e organiza diversamente, segundo uma organização que investe de J I um só pólo, deve fazer sentido segundo as matrizes de sentido colocadas por
sentido e permite que essa pré- ou quase-organização seja o suporte desse i essa sociedade. Ou seja, isso, ter que fazer se~tido segundo o modo de sen-
sentido. Não é a sociedade que cria as fases da Lua nem a regularidade de i tido e fazer sentido colocado no caso concreto," deriva tautologicamente do
: I
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SUJEITO s VERDADE

fato de que tudo deve poder se tornar dizível na língua da sociedade, que a utilizações do Holocausto (das quais Finkielkraut fala muito bem em I.:Avenir
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cada vez é específica e própria (caso das sociedades mulrilíngües: Suíça, Ín- . d'une négation" - à exceção das asneiras sobre Socialismo ou barb,árie)
dia, mesmo China; e caso de línguas que se estendem sobre "várias" socieda- para mais uma vez demonstrar uma certa eleição do povo judeu. Mas não é
des, como o árabe, por exemplo)." ..A. apenas o povo judeu. Por toda parte há essa luta contra o não-sentido e a
I

É aqui a. fronteira primordi~l, Esta não é geográfica nem étnica --;- é a~~ tentativa de transformar em sentido aquilo que o ser, o sem-fundo, o .,abis-
fro~a do sentido. ~m 'efetivamente à sociedaae francesa ou ameri- ~ ~ mo.iimpôem constantemente à sociedade.
cana, ou japonesa, ou grega antiga etc. aqueles que são obrigados a fazer Mas a pretensão da existência de um sentido: outro também resiste ao
sentido do r'rlUndo e do que se apresenta segundo a maneira colocada por . sentido próprio. Aqui, geralmente a resposta inicial da sociedade considerada
, esta sociedade. Esses aqui pertencem a essa sociedade, encontrem-se eles em é declarar o outro sentido puro e simples não-sentido. Inútil insistir no exern-
Veneza ou junto ao Grande Kh~n. Não pertencem a ela, são de corpos es- plo do Antigo Testamento: para todas as religiões, as outras são mais ou
trangeiros, aqueles qu~ fazem sentido das coisas de uma outra forma (cf menos erros diabólicos. O ecumenismo atual dos cristãos foi imposto pela
Lettres persanes etc.). 8 . modernidade e é totalmente contrário ao espírito da religião. Basta lembrar
Dada a necessidade interna para a sociedade de tudo reabsorver em seu as palavras de Cristo: "Quem não está comigo .. ." E na civilização ocidental,
mundo de sentido, essas fronteiras deveriam estar situadas no infinito; o durante muito tempo - discussão sobre a alma dos. índios no século XVI,
fechamento da sociedade não deveria deixar nada em seu exterior, no exte- Engelssobre o disparate, o absurdo (Blodsinn)14 das crenças primitivas, das
rior do mundo de sentido colocado por essa sociedade. Ora/ sabemos que quais a humanidade se desembaraçaria pouco a pouco - isso era totalmente
isso não é possível. O fechamento da sociedade não pode englobar tudo, e dominante até 1914 e mesmo depois (embora Montaigne, ou Montesquieu,
~s razões. Há s~pre algo que resiste ao sentido criado por essa socie- ~. ou Swift, ou Voltaire tenham ironizado o ridículo recíproco dos costumes).
dade, a seu sentIdo proprio ~ e resiste a ela como não-sentido, 10 Existe cons- O não-sentido [o a-sentido] aparece como sentido colocado .Ror uma
tantemente l~ta intensa (esqueç~m a·sociedade contemporânea, mas tenham soc.iedade exterior.
..
Somos a tri
ge eIras ou alhures, e constatamos que
---.
X e encontraEi~tribo
.ara eles
"
Y na selva; nas
s coisa~nificam total-
em vista qualquer sociedade arcaica que conheçam ou sociedades não-mo-
dernas ou relatos de seus avós sobre sua aldeia ... ) que se percebe no mundo mente outra coisa, nosso sagrado é para eles abominação etc. Mas também,
religioso das sociedades tradicionais, luta intensa e permanente para fazer êm uma etapa mais tardIa, hãum sentiao dTversõ'que
I .'
pode aparecer •
no
sentido de tudo. Quase-fracasso permanente porque algo resiste. O que re- interior da sociedade, antes que a contestação, o questionamento tornem-se
siste? É o ser enquanto caos. Acontece sempre, acontecem (de onde?) coisas legítimos. Essa consrestaçâo interna emerge corno um sentido diferente in-
que não podem entrar nesse mundo. Assim a história do povo judeu - tolerável, que deve ser declarado não-sentido' É o: que se passa com as 'gran-
tentativa desesperada de fazer sentido de todas as catástrofes que acontecem des religiões instituídas, no caso das heresias, por exemplo. As heresias são
irnputando-Ihes um sentido. O Deus de Israel envia essas catástrofes porque um outro sentido parcial tentando se constitui~ e que logo é declarado não-
os judeus pecaram, porque têm a "nuca dura" 11 etc. Fantástica inversão do sentido, sentido mau, sentido proveniente do mal, sentido diabólico (e sen-
negativo em positivo: as perseguições, as catástrofes ~tc. transformam-se em tido maldito) pela religião dominante. Podemos.iportanto, queimar os hereges
. provas da eleição do povo de Israel- como a conversão ao íslam de Sabbatai ou exilá-los fora dos limites do Império. Ver, agora, a Rússia prendendo os
Zevi (cf, Scholern)" é prova para alguns de sua natureza de Messias. Deus dissidentes em hospitais psiquiátricos: o sentido-ao qual os dissidentes se
cuida de nós-com amor e ciúme, é por isso que pune. Aqueles que Deus ama, refere~ é simplesmente não-sentido e pertencem h doença mental. 15 Aquele
ele os castiga, Assiste-se a inversõ~s estranhas na época atual com determinadas I que encarna esse sentido diferente encarna o mal ou a patologia, logo,iram-
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bérn O não-s~ntido - e/ouréciprocamenre: se um humano '(ou o que quer socialmente instituíd~: ele é a dimensão infiJita de nós mesmos como seres
que seja, aliás) encarna o não-sentido, não pode ser senão "mau". Aparece finitos, onisciente, todo-poderoso, todo bob -'- o. mais engraçado, ele é
corno um princípio negativo, mau, diabólico opondo-se a um princípio po- amor, Deus sem Ser (jeari-Luc Marion),
. -
17 grande moda entre os cristãos que'
I'

sitivo ou bom. parasitaram Heidegger, cobrindo o seu lance! Aqui, o Ser é a corrupçâo gre-
I '

A sociedade, para colocar-se asi própria, tem necessidade de colocar um . ga, Deus não tem necessidade de ser, pois s;er é unia categoria metafísica,
: " 1

outro (tendo necessidade, de.invéntá-lo)? Pode-se perceber a coloração es- onto-teo-logo-falo-etc.vcêntrica. E preciso, portanto, um Deus que nada te-
truturalista dessa maneira de colocar a questão: um termo não pode ganhar nha à ver com o ser, a quem não se possa falar etc.; ,é preciso despojá-Ia de
, I •

sentido senão opondo-se a um outro termo. Mas a sociedade não tem ne- todas as características não apenas antropomórficas e anrropocêntricas, mas
nhuma necessidade de instaurar um outro "para se opor a ela mesma", pela anrropo-qualquer coisa. O ser é uma categoria com a qual os humanos pen-
simples razão de que é forçada a instaurar este outro, e isso de duas formas. sam o que é; donde é poluída. Portanto, em última instância, o ser não perten-
i ce a Deus (ou o inverso), Ele está além da dntologia, logo: Deus sem Ser.
Para começar, pelo menos como sociedade heterônoma, ela coloca um Outro,
i , I

positivo para subtrair sua instituição e seu sentido próprios de qualquer Tudo isso é perfeito, mas não muito novo e não havia nenhuma necessidade
í de passar por Heidegger, já estava no Pseudo-Dionísio" (século VI), corno
constestação e de qualquer dúvida. Esse Outro, esse Grande Outro (como
diria o finado Lacan), ou o Todo Outro
em breve, o Deus das teologias racionais,
(como diriam Lévinas e Ricoeur),
é a fonte e a garganta do sentido e I
i
teologia apofática ou negativa etc. Não se pode sequer dizer de Deus que
"Ele é". Muito bem, mas o que vocês pretend~m fazer com esse Deus? Subir
da instituição. Como se sabe, ele assume diferentes rostos, segundo as socie- numa coluna no deserto egípcio, retirar-se para uma g:ruta ou um monastério
dades. Pode ser javé, Alá com seu Profeta, ou pode ser o Ancestral ou o do planalto castelhano? Só não podem fazerluma religião instituída social-
Herói fundador etc. Em .todo caso, constitui um termo em um sentido diver- mente. Mas isso não lhesagrada e então o rigor filosófico é dispensado eo
so no tocante à sociedade considerada, exigido pela instituição heterônorna. I coelho sai da cartola de jean-Luc Marion: Deus não é e não tem Ser - Deus
Por que "em um sentido"? Porque constatamos quase sempre." que esse Gran- ,I é amor. Como se fosse possível conceber
anrrooornórfico e antropocêntrico
I
atributo
que o arndr. Substância
ao mesmo tempo mais
o é, a bem dizer,
de Outro ou Todo Outro' não é realmente Todo Outro (e isso vale também I
para Lacan!), ele é também ou deve ser um pouco como nós (malgrado as I infini~amente menos. ., . I .
denegações cristãs etc.). Tornemos os casos das crenças primitivas, ond~ há i Em poucas palavras, não se escapa ao fato de que.esse Todo Outro deve
I

ancestrais fundadores, que não apenas existiram, de uma vez por todas in illo I ser de todo modo também de substância igual ou partilhar alguma coisa com
tempere, mas retomamconstantemente, pois reencarnam nos recém-nasci- os humanos - e aí ele se torna o Pai Nosso que estais no céu ou, como os
dos. Cada indi,víduo existe sob duas espécies: sou o que sou empiricarnente I
I,
deuses gregos, francamente antropomorfo: te+ paixõ~s, desejos) detestaçôes
I,
e ao mesmo t~mpo - mas disso não posso realmente dar conta '-, sou um, ,
! etc., <e isso em graus diversos: > é inteligente, por exemplo, e todos os
I
I, d~uses gregos são infinitamente inteligentes,! mas é evidente que Zeus ou
dos ancestrais' reencarnado, um dos legisladores originários reencarnado. I
Mas não posso nunca dizer: dado que sou um dos legisladores
reencarnado, "proponho que se mude as leis", pois nesse caso eu deixaria de
originários
i Atenas o são ainda mais que os outros. Sem essa necessidade Iógico-lingüís-
,

tica e ontológica, se não houvesse algum parentesco


I

de essência, não se po-


I
I
ser o Ancestral reencarnado, entraria em contradição comigo mesmo (que deria fazer ou dizer nada, e ele não poderia ter feito: ou garantido, nossas
I'
potência da criação institucionall). Pode-se ver que o Todo .Outro é coisa instituições. Logo, esse Outro vai adquirir certos atributos. E quando temos
bem diversa de Totalmente Outro. 'Caso, de resto clássico, do monoteísmo, que fazer face à negação de nosso sentido próprio, que vem da colocação de
pois se ele é realmente Todo Outro, não pode mais sustentar uma religião I um outro sentido, de um sentido exterior, erri'geral, v~mos nesse outro sen-
, ·1;
, ,

252 II ! 253

I
!
SUJEITO E VERDADE ~SEMINARIO DE 25 DE MARÇO DE 1987

tido o Mal por excelência" que pode ser instituído em,uma série ilimitada de da existência, aquela da qual Anaximandro dirá que vota à destruição tudo o
I
gradaçôes na mesma sociedade, como entre sociedades. E já a transgressão, que chegou à existência, sendo isso a própria justiça. Dessa Lei suprema, um
bem ou mal, é a negação do sentido instituído e da instituição que o garante moderno diria que ela é no fundo a figura de um Mal originário, na medida
e sanciona. em que é negação radical de todo sentido que seria sentido para nós. Um
Portanto, em uma sociedade hererônorna, há coexistência obrigatória mundo onde tudo o que existe deve necessariamente ser destruído para que
dessas duas formas do Outro, coexistência finalmente antinôrnica - e tanto outra coisa possa existir, a começar pelos próprios deuses (cf Teogonia e os
a questão da teodicéia nas religiões instituídas quanto a do maniqueísmo Prometeu), em um: nível último não tem sentido para nós - esse sentido que
não são mais que ramificações dessa problemática. Aqui são necessários dois as outras religiõesbuscam desesperadamente (rnonoteísras comopoliteístas)
princípios para "explicar" o Mal: seja o maniqueísmo, onde o mundo e sua ecuja garantia querem dar a seus fiéis. Há simplesmente a figura de uma Lei
história são a luta interminável entre o princípio do Bem e da Luz e o prin- impessoal, indiferente aos homens, sem sentido. Por certo, em outro nível,
I

cípio do Mal e da Escuridão; ou então, sem maniqueísmo, é necessária uma inferior, há um mal humano, um malfazer ou um ser mal- a hubris, essen-
tecdicéia, da qual o cristianismo, mas também o islamismo, foram por exce- cialmente - mas não é um mal metafísico." É por isso que não existe peca-
lência os terrenos mais férteis, e que evidenrernen te não pode chegar a ter- do entre os gregos; pode haver transgressão
I
da lei, mas é tudo. Esse mal
mo - excero, em termos filosóficos, colocando o Mal como simples ilusão 'intramundano não se comunica, como através de um poço ou deuma gale-
ou concomitância necessária do Bem maior etc. ; ria que atravessa o fundo do mundo, com urna fonte de mal extracósrnico -
Ess~ coexistência obrigada das duas formas do Outro - o Outro supre- I como mal para o cristão, o judeu ou o muçulmano. Esse mal intramundano
mamente positivo, o Outro negativo - introduz o germe de uma corrupção é uma transgressão que, por isso mesmo, apaga-se quando é punida (ver
interna em toda a instituição hererônorna da sociedade ou a torna caduca Édipo em Colonai. O que aparece como o mal supremo do destino do homem,
desde o início, pois a imagem do mundo e dela mesma que resulta daí é na concepção grega, é a própria existência do homem, na medida em que é
necessariamente clivada: princípio divino/princípio diabólico, ou princípio regida pela lei impessoal, a eimarmenê, a moira, a dikê, que conduz necessa-
, !
do Bem/princípio do Mal. (seja ele a natureza "má" de Adão ou um lado mau riamente a uma catástrofe. E o que mostra a 'tragédia. Aqui, o que se mostra
de sua. natureza ou a sua liberdade ... ). Essa caducidade originária - que não é o pecado: não se reprova a Édipo ,iseüs atos horríveis, ele mesmo se "

finalmente é o mesmo que dizer que nenhuma instituição pode investir to- insurge contra eles; tenta-se antes consolá-lo, à exceção de Tirésias, que tem
talrnente de sentido tudo o que aí está sem que necessariamente o não-senti- outros motivos e urna longa querela com os reis de Tebas. Em outras tragédias,
do surja do exterior ou do, interior - trabalha, portanto, a partir do interior aquilo que o Herói deve enfrentar é a Lei do mundo (até Eurípides!), que
da instituição e condiciona, de modo, por assim dizer, extrínseco, a sua condena, por exemplo, os labdácidas a cumprir o próprio destino.
historicidade. Temos aqui, portanto, umainstituiçâo imaginária da sociedade que não
Em tudo isso, temos constantemente em vista os dois casos onde as coi- coloca um mal cósmico separado, mas urna iei suprema do mundo que nos
sas se passam diversamente: a Grécia e a Europa Ocidental. Algumas pala- aparece como mal, donde os prantos;
,
e, ~, partir daí, questões intra-sociais
vras sobre os gregos, e apenas desse ponto de vista. A especificidade a esse ou intramundanas em relação às quais existem sanções, mas sanções que
respeito da instituição grega do mundo, do imaginário grego, é que o Outro permanecem no interior da sociedade, sem dimensão "metafísica"."
l-
!: para os gregos não era "pessoal" e não pertencia à .rnesrna ordem que os
li humanos e mais geralmente os viventes. O Outro, para os gregos, não é E agora eu gostaria de tomar um exemplo particular, em relação a essa deter-
~:
r"I~;
I~
os deuses. O Outro, é o eimarmenê, a moira, a dike - a lei do mundo, a lei minação do Outro e à sorte que destinam ao ,Outro as diferentes sociedades,
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SUJEITO E VEI1DADE
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sobre o caso mais agudo, que nos mostra a coisa em toda a sua intensidade, Il bloco: sim, nossas instituições são ruins e aJ dos vizinhos, boas..Numa situa-
I
em toda a sua pureza e que tem também uma importância' prática e política, f: _ção ~ssim, <àLs.9_ciedª,º--e_s
des.ID.Qronª--.m- fno caso eX!rt:;..mo,adotam-s~ as
atual, que é o racismo." A idéia central é de que o racismo faz parte de algo f instituições çLovizinho, Restam, püj"tan~.au<l{)"p_o_s_sjbiliQades: 0tL0S outros
de muito mais universal do que se costuma admitir, que se trata do rebento
~.
I,r- --- J---
são inferiores, ou são nossos iguais e suas insJjmi~_õe.s são equivalentes.
:'
ou do avatar, sob uma forma particularmente aguda e exacerbada, de um . Mas constata-se; de fato, que é o primeiro caminho quase sempre' o es-
traço universal das sociedades humanas: essa maneira particular de se cons- colhido e quase nunca o segundo. As instituições dos outros - e eles rnes-
tituir, colocando o outro no não-sentido ou excluindo-o, e' essa incapacidade ~mo~; outros- - são quase sempre postos como Inferiores e quase nunca
de excluir o outro sem desvalorizá-I o e finalmente odiá-lo. Há duas verten- como iguais. E há para isso uma razão aparente. Dizer que os outros são
tes na questão do racismo: a vertente das significações imaginárias sociais e iguais a nós não poderia significar que são iguais na indiferenciação, pois
aquela do psiquismo singular, daquilo que o psiquismo impõe como coação isso implicaria dizer que dá exatamente no mesmo seguir os costumes de
à instituição e sofre como coação em retorno. minha tribo ou os costumes da tribo vizinha, casar-se segundo os ritos e com
Como: se coloca para uma 'sociedade a questão da existência de outros as pessoas que me são impostas pelas leis do casamento em minha tribo ou.
humanos, -de outras sociedades? Há um caso que é preciso distinguir de com qualquer outra pessoa. Tudo então se tornaria indiferente, seria desín-
imediato: muitas sociedades arcaicas ou tradicionais
,
constituíram
,
outros total vestido pelos sujeitos e ao mesmo tempo ;desmoronaria corno instituição.
ou parcialmente místicos. Assim os gregos homéricos, e mesmo depois, os Logo, não é no modo da indiferença que t~latitude tornou-se possível. Ela
etíopes para não falar dos lotófagos e outros lestrigôes. Ou os astecas que só poderia existir através do reconhecimento de que os outros são simples-
tinham salvadores brancos. Esses outros místicos podem tanto ser superio- mente outros. Vale dizer que não somente as línguas, os folclores ou as manei-
res, quanto inferiores, eventualmente monstruosos, como os Ciclopes, por ras à mesa, mas as instituições tomadas globalmente; como' todo e no detalhe,
exemplo. Quanto ao papel que esses outros místicos, desempenham, é um são incomparáveis. Basta enunciar essa idéi~ para ver a fantástica dificuldade
tema muito importante sobre o qual não podemos, infelizmente, nos deter - para não dizer impossibilidade - que! ela comporta. Efetivamente, as
aqui. Depois, há os outros reais, aqueles que uma sociedade efetivamente instituições são incomparáveis; em um out~o sentido, porém, ninguém acei-
encontra. Apresentei em "Reflexões sobre o racismo" um esquema rudimentar
para pensar esse segundo caso. Em um primeiro tempo rnítico ou "logicamente I
I
ta essa idéia; em um terceiro sentido,
podemos aceitá-Ia. Eu não aceito, eu, Castoriadis,
e razoavelmente, nós mesmos não
que possam existir países,
primeiro", tempo de autocolocação
outros são encontrados e então três possibilidades
da instituição, não há outros. Depois os
apresentam-se de forma'
I
[
por exemplo, onde as pessoas são postas erP hospitais psiquiátricos' quando
não concordam com o governo. Não digo queé uma instituição incompará-
evidente e trivial: as. instituições
,
dos outros, e logo esses outros também-são I I
I
[
vel, digo que é uma instituição monstruosa. E não aceito que possam existir
I
"superiores" ou são inferiores (é a via quase sempre seguida), ou ainda países onde se lapide os adúlteros ou se éo~te a mão dos ladrões. Não digo
são consideradas como equivalentes ou simplesmente outras. que é incomparável, digo que é comparável e queé ruim. Uma vez que eu
O primeiro
contradição
caso deve ser excluído, pois acarreta ao rnesrno tempo uma
lógica e uma espécie de suicídio: uma sociedade não pode con-
I
I,
tenha dito: "É ruim", isso não quer dizerj que aqueles que exercem
práticas são uns monstros ... Começa uma outra discussão. Dizer "é ruim"
essas

siderar instituições estrangeiras como superiores às suas próprias e mesmo implica: "Como se faz para convencê-los, entrando em guerra contra eles?"
assim mantê-Ias, isto é, continuar a ser a mesma sociedade. É evidente que f
Como dizia Robespierre, "os povos aceita~ malas missionários armados"
não se trata do fato de que tal indivíduo diga: os vizinhos têm uma maneira r etc, Temos aqui uma discussão enorme. Mas eu não posso me limitar a dizer

I
melhor de fazer cordeiro no espeto; mas de uma sociedade que dissesse em que os sacrifícios humanos são simplesme11te uma outra instituição, e que
I

2 5 6
257
I
I ç:o
SUJEITO E VERDADE

I SEM I N A RI o D E 2 5 D E M A R D E 1 9 8 7

I
, , , I
ela é incomparável. 22 Por trás, ou melhor, em um outro nível, há um enorme crença dos sujeitos nela, e também o fato de que ela pode tornar o mundo e
problema de fundo e de substância, mas não é disso que estou tratando aqui. a vida coerentes, isto é, com sentido. Ora, essa crériça dos sujeitos da 1nsti-
S6 o menciono porque é preciso entender bem até que ponto a idéia de que r tuiÇão em sua institu'ição, dos crentes- em sua religião, encontra-se, é claro,
l
as instiruiçôes possam ser incomparáveis, que, mais uma vez, é verdadeira em perigo mortal a partir do momento em' que se fornece a prova de que
i
até um, certo nível, não pode aparecer naturalmente na história, pois isso podem existir outras, maneiras de dar sentido à vida e ao mundo, isto é, a
significaria dizer que os sujeitos de uma cultura, de uma instituição da socie- partir do momento em que o sistema de crença perde seu monopólio, gue
dade, teriam que tolerar nos outros aquilo que entre eles é abominação e essemonogQlio...p.o.de-ser-CGi'ltestado,-Eu ressaltei que se trata de uma proba-
aceitar 'que aquilo que para eles é sagrado para outros é abominável. Essa 'bilidade extrema, não de uma necessidade nem- de uma fatalidade; o contrá-
idéia, portanto, que parece tão simples, tão verdadeira; de que os outros são rio, embora altamente improvável, como a democracia é altamente improvável
" 1----
simplesmente outros, é uma criação histórica recente e' está no contrapasso na história, é de todo modo possível. Encontra-se um indício dISSOno fato
da instituição espontânea da sociedade. E de resto, sabemos que os outros de que em dete;:-minãdas wcieããâes modernas' há uma relativa e modesta
foram, quase sempre e quase em toda parte, instituídos como inferiores. transformação a esse respeito, há uma luta contra a xenofobia em geral, por
Não digo que seja uma fatalidade ou uma necessidade lógica, digo que é certo ainda longe de chegar a um fim (basta ver o código da nacionalidade
simplesmente a probabilidade extrema, a tendência natural das instituições. em gestação, e todo' o resto); mas enfim, a questão está colocada e há uma
Quer dizer que o modo mais simples do valer das instituições, para seus luta' em curso.
próprios sujeitos, é evidentemente a afirmação, que geralmente mal é expli-
citada, de que elas são as únicas verdadeiras, de que, portanto, os deuses dos , Mas tudo o que acabei de dizer concerne à exclusão da alteridade extrema.
outros são falsos deuses, seus costumes aberrantes, suas crenças falsas etc. A questão do racismo é muito mais específica: !:,orque o que poderia perma-
Em outros termos, sob uma certa relação, a inferioridade dos outros nada necer como uma simples afirmação da inferioridade dos outros deve 'se trans-
mais é que a outra face da afirmação, indispensável para que exista socieda- formar em discriminação,
,
desprezo, confinamento '
e, finalmente, exacerbar-se,
'

de, da yerdade própria das 'instituições da sociedade de que se trata, Essa resultar no ódio, nessa raiva e nessa loucura: das quais temos na memória as
verdad~ própria é tomada, portanto, como excludente de qualquer outra manifestações mais mortais.
verdade, fazendo de qualquer outra crença um erro positivo e não simples- A essa transformação da inferiorização do outro em racismo po~jtivo-
mente uma outra crença, e "nos casos mais puros, um: erro diabolicamente pois sabemos que a exclusão do outro não tomou sempre e em toda parte a
pernicioso. É o que se pode ver claramente no exemplo não apenas dos forma do racismo ~ não tem explicação geral, não pode haver ~l'ais que
monoteístas, mas também do marxismo-leninismo, Nos sistemas marxistas- respostas históricas em cada caso. Tomemos o caso do anti-sernitismo. Pode-
leninistas, sob sua forma mais rígida, não há outras opiniões nem erros; os
erros têm raízes sociais e aquele que se engana é objetivamente o porta-voz
I mos certamente tentar dar uma resposta ltistórica à questão:
uma explosão no COmeço da primeira cruzadaj Mas é forçoso constatar
por que houve
que
de alguém que não é o proletariado e seu partido, isto é, alguém que é o, a irrupção aperiódica de explosões de anti-sernitismo não obedece a nenhu-
inimigo' de classe - que é b equivalente intramundano do Mal na teologia ma lei geral... O exemplo dos armênios no Império Otornano é aiJda mais
marxist~-leninista . ,
Iextrema;' portanto,
I claro e esse respeito, Mesmo que isso desagrade aos cristãos, é cert9 que os
Probabilidade e tendência natural; ~ há. aliás. uma
outra razão que faz com que se trate de uma tendência natural. A instituição
I muçulmanos
é sobretudo
foram no total mais tolerantes
,

o fato de que os cristãos não toleraram


que
, eles. E o que faz a diferença
- o caso bastante parti-
i1ão tem nem pode ter fundação racional ou real: seu 4nico fundamento é~ cular dos judeus à parte - que se permançça não-cristão em país' cristão,
--- i
258 259 i
I
I
SUHITO E VERDADE

Não se tolerou nem mesmo que se restasse católico em país protestante ou o


I
I
pode ser encontrado
SEMINÁRIO DE

lá também, tanto na
25 DE MARÇO

I
s~âety
DE 1987

quanto no povo, mas sem-


inverso. Os muçulmanos, é bom dizê-Ia, não hesitaram em matar ou em pre restou dentro de limites bastante restritos. É, que eu saiba, o primeiro
converter o quanto puderam. Mas quanto aos outros -
eles eram tolerados, com um estatuto inferior.
os que sobravam
Evidentemente, logo dirão
-,
I
t
I
país ocidental a se dotar de um primeiro-ministro
aliás, Disraeli. E isso em plena metade do Iséculo XIX, enquanto
judeu, que se chamava,
a França
!
que é muito lamentável que existam rayas, pessoas com estatuto inferior; teve que esperar até 1936. (E mesmo em 19:54, 'as origens de Mendes France
mas para as pessoas concernidas, é menos lamentável do que ser passado a não eram certamente estranhas à virulência'corn que foi rejeitado por toda a
fio de espada em um país submetido a ferro e fogo, tratamento que O hono- canalha política da IV República ... ) Em poucas palavras, nunca mais houve,
rável Carlos Magno dispensou aos saxôes que não queriam se converter. O depois da Idade Média, incidentes racistas ba Inglaterra como os que acon-
que os hebreus fizeram igualmente durante a conquista da Palestina, a crer teceram na Polônia ou na Rússia ... Em seguida, d~ uma quinzena de anos
no Antigo Testamento. O Império Otomano sempre implernentou uma polí- para cá, explodem na Inglaterra incidentes bcistas.- mas contra os negros.
tica de assimilação enorme, sem a qual não haveria aquilo que hoje chama- E isso antes das dificuldades econômicas, antes do choque do petróleo ...
mos de "turcos", isto é, uma mistura, do ponto de vista genético, de turcos, Mas vamos mais, além. O que está realmente em causa no racismo? É es-
arrnênios, gregos, sírios, búlgaros, sérvios etc. Os que não rram islamizados, pantoso que o verdadeiro critério da distinç,~o entre racismo e xenofobia, ou
I

eram certamente explorados, eram-lhes tomadas as melhores terras, sofriam entre racismo e inferiorização dos outros, nunca tenha se apresentado como
uma capitis diminutio, pagavam um imposto etc. Mas depois, em geral, eram tal na literatura sobre o assunto. Mesmo Hannah Arendt, em As origens do
deixados tranqüilos. Os dois terríveis massacres de 1895-1896 e de 1915- totalitarismo+ não 'Vêque o fato - que eld considera justamente intolerável
1916 ocorrem depois de um longo período de tolerância relativa," enquanto - de que se persiga alguém por alguma coisa '(seu "nascimento") pela qual
outras minorias cristãs silo poupadas. Por que naquele momento? Histeria- essa pessoa não é responsável não é de forma alguma específico do racismo,
dores tentarão demonstrar, por exemplo, que Abdulahmid Ir, enfrentando pois é um comportamento que se encontra: tanto no nacionalista quanto no
em 1895-1.896 certas dificuldades, tentou desviar a aténção para os ar- crente intolerante." A única, a verdadeira esheci.fi-eieacle de~raci~em rela-
rnênios ... Não estou muito convencido desse tipo de explicação. çâoàs outras formas de ódio ao outro, é quelo racismo não aceita a con~;rsão.
Com a fixação racista, os outros não são, portanto, apenas excluídos e
inferiores, são postos como coisa a eliminar e, a partir desse momento, tor-
nam-se, como indivíduos e como coletividades, o suporte de uma cristaliza- QUESTÕES
ção imaginária segunda que os dota de atributos, inclusive' físicos (o nariz, a I
,
cor da pele), que remetem a sua essência má, que evidentemente justifica P. - <Não se poderia dizer que, para alguns, hoje, a questão do sentido está
com antecedência tudo o que se vier a fazer contra eles." Não vou me esten- resolvida, sendo o enunciado científico o ú~ico sensatos»
: .
der a esse respeito, há uma imensa literatura sobre o racismo, o imaginário I
I

antijudaico na Europa ou sobre. o imaginário antinegro nos Estados Unidos As sociedades arcaicas, ou mesmo as sociedades tradicionais, têm em relação
e alhures. Talvez o tempo tenha chegado, aliás, de fazer finalmente alguma às outras uma grande vantagem, é que - quase uma tautologia - mesmo
coisa a respeito do imaginárioantiárabe na França, como se fez há pouco i sendo infinitamente complexas, apresentam um nó de significações imagi-
com o imaginário antiturco na Alemanha. Ainda uma vez, é impossível dar nárias sociais mais "simples". Mesmo a Grécia, malgrado a imensa complexi-
uma verdadeira explicação dos momentos em que esse imaginário aguçou-se dade de sua criação, desse ponto de vista é um "belo" caso, pois relativamente
em uma sociedade. Tomemos o exemplo da Inglaterra. O anri-sernitisrno simples ou em qualquer caso "mais homogêneo" que a Europa Ocidental,
i
i

260 I 261
I
I ,
S U J E,I T o E V E HD A D E SEMINÁRIO DE 25 DE MAR~O DE 1987

mundo de urna hipercomplexidade sem igual, com três ou quatro grandes 3. [Aqui a questão é a individuação real- e, a destacar, essa questão só se coloca para
tradições e vários nós imaginários em luta uns contra os outros. É, portanto, um para-si, tautologicamente. Galáxias, estr~las'etc. estão no vago de: sua pseu-

muito mais difícil dar exemplos, no fio do discurso, referindo-se ao mundo • dofronteira ... Onde acaba o sistema solar? ..]

I
4. (A colocar em relação com a indistinção inicial das quatro forças físicas fu.ndamen-
contemporâneo. Mas é certo que você tem razão. O universo, para o imagi-
tais (gravitação, força forre, força fraca, eletrornagnetismo), que só começariam a se
nário moderno, é o quê? É antes e primeiramente material a ser explorado,
I , "distinguir quando a temperatura do magma inicial baixa O suficiente.]
matéria inerte a controlar, a dominar (Descartes etc.). ]~o imaginário "racio- I'
5: [Ré-mistério do "potencial". Ovo fecundado; - não há correspondência termo a
nal" capitalista, que acompanha a secularização, o declínio da religião e o
I
,I termo entre gene e ser desenvolvido, senão rerornarfamos a um quase-homunculus
I
declínio de qualquer outra crença ou atitude desse tipo. Ternos então esse sem rosto.]
investimento com um sentido totalmente instrumental, que, bem entendido, 6. [Ver "Instituition de Ia société et religion" (1982), em Dornaines de l'homme, Paris,

é profundamente
de de filosofia -
inadequado
e totalmente
quanto à própria coisa -
inapropriado
donde a necessida-
quando se trata de cimentar a
I
I
Éditions du Seuil, i986, p. 364-384, <reed. "Points Essais", 1999, p. 455-480>.]
7. [Pouco importante para nós: as separações não são totais e firmes, não há,discreção
, (?); mas falamos precisamente da fronteira! A elaborar.]
sociedade, de fazer com que se mantenha unida. Este .fato está na ,origem de 8. [Ainda uma vez, imprecisão entre "nação" moderna e "sociedade" no sentido usado
urna série de fenômenos,e
também a ele que se deve -
é urna das raízes dos 'fenômenos
mas é de todo modo muito menos importante
totalitários. É
II aqui. Passagem da Instituição ... sobre as poleis,' gregas antigas. Ordem por inclusões
sucessivas. Fronteira comum dos gregos - subfronteiras interiores.]
- o ressurgimento no seio da sociedade ocidental de olhares em direção ao 9. [Vocábulo francês que não existe em nenhuma outra língua. O que quer dizer "or"?
Oriente, o zen, o budismo ou O "renascimento religioso" do Ocidente Ao mesmo tempo! oposição e conclusão.]'

(arlesiana' sempre esperada;


no mundo contemporâneo,
surgem algumas pequenas
e por isso estamos em um período histórico muito
seitas, é tudo). Mas
I 10. [Ver ainda "Institution de Ia société et religion", loc. cit.]
11. <Êxodo 33, 3.>
12. '(Ver Gershom Scholem, "Sabbatianisme et hérésie rnystique" em Les grands courants
particular em relação aos outros, existe esse investimento
nal/instrumental sobre o mundo, mas igualmente
de sentido racio-
uma enorme crise de sen- I
I
, de Ia mystique juiue, Paris, Payot, 1950 (Major Tiends in jewish Mystidsm, Nova
York, Schocken Books, 1941); e Sabbatai'Iseui. Le Messie mystique, 1626-1676, Paris,
tido, o que marca também a crise das sociedades contemporâneas. Verdier, 1983 (trad. ingl. Sabbatai Sevi. The Nfystical Messiah, Princeton,Princeton
University Press, 1973; orig. hebraico 1957). >
13, <Alain Finkielkraut, L'Avenir d'une négation. Ré(Iexion sur Ia question di génocide,

I Paris, Éditions du Seuíl, 1982.> I :


14. <"A história das ciências é a história da eliminação progressiva dessa. estupidez
Notas
I (Blõdsinni, ou ainda de sua substituição por uma nova estupidez, mas cada vez me-
!
I
nos absurda", carta de Engels a Conrad S(ihrp.id~, de 27 de outubro de'1890, em
1, <Sobre essa distinção, ver A instituição ... , p. 493-496, reed. p. 533-536; e "Insti- I I
Karl Marx e Friedrich Engels, Études philosophiques, Paris, Éditions Sociales, nova
tuição primeira da sociedade e instituições segundas" (1985), retomado em Figuras
,
I
I
ed. 1961, p. 159) ,
do pensâuel, Paris, Éditions du Seuil, p. 115-216. > 15. [Antecedentes em, Custine, em suas Lettres de Russie, com a história do nobre"
2. (D-iferença entre relação habitual conceito/instâncias e diversas sociedades/socieda- moscovita, autor de uma obra criticando a religião ortodoxa, que o tsar, Nícolau I
de, assim como, porranto, indivíduos franceses/indivíduos em geral. Questão de
declarou louco.]
, "
Platâo: como é que sei que se trata de um homem ... ?] i
I 116. [Budismo: problerna.]

.Rcferência à ópera de BizcrA arlesiana, na qual o personagem da arlesiana nunca aparece em I' I
'O vocábulo francês or tem basicamente o mesmo significado e a mesma origem -- do latim
,'

cena. (N. do T.) :


I ,
popular hora, por bac, hora (esta hora) - que a palavra ora, em português. (N. do T.)
I
'

2 6 Z-
I 263
I
1

!
" .
SUJEITO E VERDADE

17. <jean-Luc Marion, Dieu sans l'être (1982), reed. Paris, PUF, 1991, "Quadrige". >
18. <Oeuures completes, Pseudo-Dionísio Aeropagita, Paris, Aubier, 1943,2" ed. 1980,
reed. 1992, trad. fr. Maurice de Gandillac; em part. La théolçgie mystique, p. 177-
184.>:
19. (A elaborar?]
20. (De to'do modo: questão dos "Infernos" na mitologia e "punições"; Danaides,
Tãntalo, Sísifo etc.]
21. [Retomo aqui, com alguns complementos, as idéias apresentadas em minhas "Refle-
xões sobre o racismo", em Le Monde morcelé, Paris, Éditions du Seuil, 1990, p. 25-
38; reed. "Points Essais", 2000, p. 29-46.] <Cf. também "As raízes psíquicas e sociais XIII. Seminário de 1, deabríl de 1987
0

do ódio", em Figuras do pensâuel, Paris, Éditions du Seuil, 1999, p. 183-196.>


22. [Cf. tentativas desesperadas devernõlcgos" progressistas ou humanistas de mostrar
seja que o canibalismo não existiu, seja que era devido à falta de proteínas na ali-
mentação da tribo considerada (donde "justificado"?).]
23. [Ver Lewis sobre os dhimi, <em particular o capítulo "O islarn e as outras religiões",
em Be~nard Lewis, Juifs en terre d'islam, trad. fr. Paris, Calrnann-Lévy, 1986, reed,
"Charnps Flarnrnarion", 1989 (orig. ingl. 1984».]
24. (É surpreendente encontrar traços dessa cristalização imaginária de atributos físicos
mesmo em um escritor como Proust, ele mesmo meio-judeu, descrevendo Swann
no final da vida, em Sodoma e Gomorra, carcomido pela doença, com um rosto de
onde emerge um nariz de "velho hebreu", de "profeta", pois "nele, talvez, naqueles
últimos dias a raça fizesse surgir mais destacado o tipo físico que a caracteriza" ...,l
25. <The Origins of Totalitarism, 1" ed. Nova York, Harcourt, Brace and Co., 1951,
~
trad. fr, das três partes (Su'~l'a~tisemitisme, Le systêrne totalitaire, llimperialisrne),
entre 1972 e 1983, em diversos editores; o conjunto foi reeditado em 3 volumes
!
nas Édítíons du Seuil, na coleção "Points Essais". >
26. (Mas Carlos Magno, Maorné, os conquistadores, se massacravam aqueles que não
I I
i
aceitavam se converter, visavam a conversão dos outros: não eram racisras.] f.

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[
i Trataremos, a partir do próximo seminário, da questão da verdade em sua
f: relação com a criação social-histórica. É um ponto absolutamente essencial
para nós: assim como abordamos
.
essa questão da verdade quando falamos
.I •

da subjetividade humana, assim também, e muito mais, devemos abordá-Ia


no caso da sociedade, pois a verdade é antes de tudo. social-histórica, só
existe na e pela sociedade, na e pela história. E tudo o que dizem~á
s;'penso nessa questão: c~ pode hav-;;: criação social-histórica da
verdade?'>

Precisamos antes retomar e terminar, pelo menos provisoriamente, o que


dizíamos da última vez sobre a fronteira da sociedade, a questão do outro da
sociedade, dos modos específicos de existência da sociedade, da~ institui-
ções segundas etc, I ,
, Eu sublinhei porque, no caso da sociedadb, essa questão da fronteira se
coloca com particular insistência: contrariamente ao ser humano singular, a '
fronteira aparece c,omo relativamente índeterrninada. A sociedade não tem'
pele. ,E nós zombamos, pelo menos alguns de~tre nós, da utilização habitual
I I I,

do termo fronteira, de sua artificialidade. i Pasca! já se espantava com essa

!
I
fronteira da verda~e que os Pireneus cohstituiriam, da mentira além deles,
ou o inverso, pouco importa. Essa discussão nos levou a constatar que a

i
!
fronteira é estabele~cida a cada vez, construída, criada pela própria sociedade '
e que é essencialmente uma fronteira de sentido. Toda sociedade' constitui
I
i
seu mundo em geral, sendo ele um mundo.de, significações. É assim que ela
dá sentido às coisas, aos fenômenos, que estabelece relações, constituindo
f! por isso mesmo um mundo fechado, encerrado
I ' '
sobre si mesmo, que possui
! I
i: uma fronteira e em' relação ao qual há sempre os "outros".
I

, r"
267

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I'
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I
r . I .
SUJEITO E VERDADE
I SEMINARIO DE 1° DEjA8RIL

I
D~ 1987

. Talvez isso não seja evidente,


mais sobre o assunto. Vou retomar
talvez seja preciso estender-se
aqui, resumindo-ose
um pouco
desenvolvendo-os,
I
I.
alemã. Pouco importa, nesse caso, o que s~ passou na famosa Conferência
Wannsee, e se discutiu-se anteriormente bu não a respeito da possibilidade
de

elementos que podem ser encontrados em minhas "Reflexões sobre o ra- I


de deportar os judeus para Madagascar. Resta sempre que se optou pela
cismo". Da última vez, colocaram-me depois do seminário a questão da dife- I "solução final": o extermínio. A vontade que se manifesta nesse segundo
rença entre racismo e escravagismo. Constatamos semwe que, quando uma caso é totalmente irracional e certamente !contribuiu para a derrota ale~ã na
sociedade ou uma categoria de seres humanos domina.quando tem um po- Segunda Guerra Mundial, pois nessa altura já tinham expulsado da Alema-
der sobre os outros, ela estabelece relações instituídas com esses outros, colo! nha uma boa metade dos melhores elementos em toda uma série de disciplinas
cados como inferiores: relação de exploração
de servidão ... Mas não é evidente,
relação colonial ou pela relação de escravidão
colonial, redação de escravidão,
não é automaticamente implicado
ou de servidão que o outro
pela I ci.entíficas etc. Ora, não se trata aqui de e:kplorar
esse ponto é muito importante
marxista ingênua ou vulgar do problernaldo
.
em relação, por exemplo, a qualquer

I
o outro,
racismo.
mas de eliminá-Ia:
versão

deve ser eliminado fisicamente ou geograficamente. qeograficamente: to- Temos, aliás, toda uma categoria de fenômenos históricos, quantita-
memos o exemplo do Antigo Testamento. O que nos diz ele? O que se repete tivamente muito importante, onde o outro é posto como inferior, e inesmo
ad nauseam no livro de josué e em todos os outros que descrevem a entrada como inferior racialmente, sem que exista vontade de extermínio. É, por
dos hebreus na Palestina: os povos que habitam o perímetro sagrado foram
I
exemplo, o caso na índia Bramânica, onde os párias são, de cerro modo
passados à espada; os bosques sagrados, os templos foram destruidos etc, O por definição, racialmente párias. E de tpdo modo, aliás, as regras de vida
porquê, o como, são difíceis de explicar aqui e isso sem levar em conta qual dos párias garantem que a partir de um Icerto momento eles formem uma
seja a verdade histórica do Antigo Testamento.
alguns historiadores,
embora
mais qualificados
eu não esteja seguro disso" -
Entendo por isso -
que eu, que poderiam
que é possível que tal atitude
há talvez
lhes dizer mais,
em
I
I
I
linhagem praticamente
tros é formalmente
pura, dado que precisamente
proibido:
Donde pode haver colocação
os párias são intocáveis.
do outro como inferior
o contato com os ou-

e mesmo como
relação às populações que habitavam a Palestina (moabitas etc., há uma quin- abominavelmente inferior, sem que isso limpeça de coexistir com ele, e de
zena delas) seja descrita de modo extremado no Antigo Testamento; é muito explorá-Ia. Temos' aí toda uma série de variedades, se posso dizer assim, e
possível que os hebreus tenham levado alguns grupos que eles não nomeiam,
à conversão,
I em particular esse exemplo fantástico qucl não pode ser facilmente compara-
ou algumas partes desses grupos, e é mais que provável que f do com os outros: o caso americano, onde há evidentemente colocação do
tenham tomado as mulheres em alguns casos. Mas, enfim, o que está escrito outro como raça 'inferior, a ser explorada, e facilmente identificável por
no Antigo Testamento é que no interior da Terra Prometida há os hebreus e sinais exteriores: os negros, os niggers. É Jm tema enorme e não vou adentrá-
que os outros, pelo menos os que não conseguiram fugir, são exterminados. 10, mas enfim a fronteira é hoje muito mais permeável, temos de todo modo
i
Pode-se dizer que há nesse caso uma espécie de nó racional: os hebreus que- í
I.
alguns altos funcionários negros nos Es'tados Unidos e houve notadarnente
! .
rem se instalar na Palestina, é um elemento essencial de sua própria mitolo- I um representante negro na Organização das Nações Unidas. O que importa,
gia e é preciso, portanto, abrir espaço. í
II aqui, é que no caso dos Estados Unidos hão somente o outro não deve ser
I

Mas se formos simplesmente à outra extremidade da história - sei que t eliminado, não se pode eliminar alguém e explorá-lo ao mesmo tempo, mas
essa simples justaposição' pode parecer sacrílega aqui, mas enfim ... - temos ! finalmente a sociedade tenta mais ou menos convertê-Ia - convertê-Ia em
i:I! I
a célebre' proclamação nazista: é preciso que a Alemanha e mesmo a Europa I
cidadão -, dizer que não há outro.
ii
Um caso um pouco análogo é o de Rdma Imperial, que se apóia em uma
I
se tornem judenrein, purificadas dos judeus. Não se trata de forçar os judeus
I' a aderir ao partido nazista nem de fazê-los proclamar 'a grandeza da raça escravatura de dimensões extraodináriasl mas é ao mesmo tempo caracteri-
li
I
I

li: !
j:! 268 269)
I:
I'
I I
,

SUJEITO E VERDADE
II SEM I N A RI O DE 1 o D I: A B R:I L O'E 1 987

I
I

zada por algo que é praticamente desconhecido na Grécia Clássica, isto é, a eliminado, mas que é possível, sem dúvida, ehicidá-la parcialmente tomando
~
a outra vertente da instituição da sociedade, ou seja, a vertente psíquica.
libertação, a emancipação dos escravos. Os libertini dispõem mais ou menos !I Vamos nos deter nessa dimensão que é, de certo modo, o inverso do amor de
da metade dos direitos de um cidadão romano, e os filhos dos libertos são
quase plenamente cidadãos. Eles são, aliás, numerosos no círculo dos impe- si ou do investimento de si. Qual é; efetivamente, o silogismo, se é possível
radores e podem ascender aos maiores cargos do estado. Embora - a menos dizer assim, do sujeito diante do outro? É sempre: se a sou eu, e se afirmo o
que minha memória esteja me traindo - não tenha existido imperador valor de a, devo então afirmar o não-valor de não-a. Portanto, se eu tenho
um valor, o que não é eu não tem valor. Bem entendido, trata-se-de uma
libertinus ou filho de libertinus.' iI
Logo, quando digo: o outro inferior, o outro convertível, o outro a eli- falácia, de um paralogismo onde o valor de a, meu valor, se apresenta como
j
minar,' são modos de abordagem do material histórico concreto que é preciso exclusivo de todo outro: a vale, e a única ~oisa que vale é a; ou; o' que vale,
r por excelência é a. Enquanto em boa lógica, "a vale" quer dizer simplesmen-
utilizar a cada vez com conhecimento de causa. Escrevi há mais de vinte
anos, na primeira parte de A mstituiçâo ... ,2 que o que oferece problema na l te que "a é um dos objetos que possuem a propriedade de valer". No silogismo
história da humanidade, com a criação da divisão da sociedade, é compreen- I que :stá na base do racismo, a inclusão de a nadasse dos objetos que valem
der como nasceu a idéia de explorar alguém. Que se possa matar ou mesmo t transforma-se falaciosamente em equivalência .ou representatividade: aéo
comer o outro não coloca problema algum - senão em relação às espécies ri
I
protótipo,
,
o paradigma das coisas que valem, tudo aquilo que não é a vale
biológicas, pois geralmente os membros da mesma espécie não se comem , menos.
entre si. Mas acorrental' e fazer trabalhar mesmo ue seja horrível, é efetiva- f (Os exemplos de um tal paralogismo sobejam. Basta pensar na 'cozinha
mente uma invenção fantá,stica, uma criação grandiosa dos seres .!:!..man-os.É francesa, excelente, é certo. Mas outras cozinhas, chinesa e tailandesa, por
~a significação imaginária social que surge a partir de um certo mom~nto- " exemplo, também são notáveis. Não importa; <l: cozinha francesa é acozinha
eque permanece sob vTriõS"ãspectos ummlstêrío. -,- - , , I por excelência, e os turistas franceses em Bangcoc vão pedir um escalope à
-"":" ._, - -_.- normanda! Ou pior, um filé com friras.) ,
Mas pode-se dizer a mesma coisa à segunda potência no caso do racismo
puro. Que o outro é inferior, seja: vamos explorá-Ia. Ou vamos enriquecer a Há aqui uma observação muito importante a fazer concernente à com-
nação, ~ raça assimilando-o, convertendo-o. Mas não: vamos destruí-Ia, va- preensão no domínio que nos concerne, social-histórico. Assim
0ldomínio
mos exrerminá-lo! No mesmo momento em que a Alemanha é uma fortaleza como eu, penso, vOfês compreendem do interior essa falácia, Ora, o que nós
, '

assediada pelos aliados ocidentais, de um lado, pelos russos, do outro, em chamamos de compreensão ou inteligibilidade pressupõe sempre a correção
que enfrenta uma grave penúria de meios de transporte, ela resolve despender lógica daquilo que se compreende. Por exemplo, não se pode dizer que vocês
recursos enormes, desviar comboios inteiros de trens para consagrá-l os a compreendem muito bem porque uma criança escreveu em seu caderno;
essa tarefa "absurda" e urgente entre todas de reunir os judeus húngaros, 2 +2 = 5. Vocês podem pensar; é um erre, 'ela se enganou, estava cansada ...
I "

romenos, búlgaros, franceses etc. em Auschwitz para gaseá-Ios! Loucura mons- Mesmo ao preço de uma pseudo-interpretação - vinham de lhe falar dos
truosa e grandiosa - "sublime terrível", teriadito Kant' - que toma conta cinco continentes, ela tem cinco anos etc, ,- vocês não compreendem do
de todo um sistema social e que permanece enigmática. interior que a criança tenha podido escrever, 2 + 2 = 5. Nunca se compreen-
de do interior o erro lógico de um matemático, de um físico ou U;";I outro,
Creio que não podemos, a partir da quase-lógica ou pseudológica própria da enquanto encadeamento lógico. Mas no campo social-histórico, precisamente,
instituição social, encontrar uma explicação para essa ponta do racismo ver- a compreensão não abraça somente, talvek nem tanto os encadeamentos
dadeiro que proclama o outro como inconvertível e, ao mesmo tempo, a ser lógicos que estão em jogo no outro, mas também os paralogismos, quando

270
I
1
27 1

I'
r
SUJEITO E VERDADE SEMINÁRIO DE '0 DE ABRIL DE 1987

I .
são de um tipo que ultrapassa o caso de espécie. Assim sobre a "superiorida- essa ;ragilidade de todos os atributos sociais 80 indivíduo social não deriva
de" da cozinha francesa: vocês compreendem de imediato, vocês riem ... No de uma dúvida intelectual, que não teria nenhum sentido no nível que estamos
I'
entanto, ela implica a superioridade daquilo que é francês sobre todo o res- discutindo, o das camadas profundas da psique, mas de um fator situado na
I

to, o que é um absurdo. Não posso valorizar o que é francês - ou italiano, proximidade imediata das origens: resíduos da mônada psíquica, de sua re-
ou grego, ou espanhol ou iraniano, pouco importa - sem ao mesmo tempo I
I
cusa obstinada da realidade, que s.e transforma então em recusa, rejeição,
botar os outros em posição de inferioridade. Mas esse absurdo, todos o com- I detestaçâo,
,

que ela continua,


ódio do indivíduo social no qual essa
I
mônada ' se transformou,
é claro, a odiar de modo Ianrasmático. De forma que a face
e
preendemos. E isso é privilégio da compreensão no domínio social-histórico. r
Assim também um físico, um matemático, pode ter o raciocínio falseado, diurna, real, construída, a face falante do sujeito é sempre objeto de um
a partir de um certo momento, em função de seus próprios preconceitos - investimento duplo e contraditório. De um lado, um investimento positivo,
I ,

e aqui também podemos compreender do interior o seu erro. Mas não da que é o que aparece a maior parte do tempo: o sujeito investido positiva-
forma como compreenderíamos uma demonstração; em grande parte por- I mente, de modo, aliás, na maior parte dos casos predominante,
I
do contrário
que se sabe - somos todos mais 'ou menos freudianos sem saber - que o
encadeamento do raciocínio, da reflexão lógica, sofre constamente a inflexão
I, ele não poderia ser o indivíduo
se; e esse indivíduo
social no qual mais ?u menos substanciou-
social como sujeito funciona como um substituto de si
de desejos, afetos, preconceitos e, finalmente, daquilo que, na instituição da I
I
para a mônada psíquica. Mas esse indivíduo social é também objeto de um
sociedade onde o indivíduo foi criado, é pressuposto para dar sentido às investimento negativo na medida em que é o traço visível e real da explosão
coisas. E o pré-requisito disso é a superioridade, senão o valor exclusivo das e da' superação da mônada inicial. Tentemos traduzir isso em termos imedia-
próprias instituições: nada mais tem sentido se o fundamento do sentido é tamente compreensíveis, de psicologia corrente ou de romance popular: eu
I
subtraído. ' , , I gostaria de ser tudo e o resto e mais ainda e não seria jamais esse miserável
Mas esse primeiro
inconvertibilidade
elemento
e da eliminação
preciso descer mais profundamente
em nada elucida o racismo no sentido
do outro. Para tentar
da
chegar até lá, é
no mundo psíquico e fazer apelo ao que
I
I
!
indivíduo aqui, que detesto pois me lembra que não sou tudo, o resto e mais
ainda. Ele me lembra que não sou um metadeus, mas um pequeno mortal, eu,
esse grande conquistador,
. I
esse filósofo, esse poeta etc., um pequeno mortal
I . ' I,
somos obrigados a chamar de ódio de si inconsciente. Quando, sob que con- destinado a ser esquecido em dez segundos, dez anos, em dez séculos' - dá
dições, o outro me coloca em perigo? Eliminemos de imediato as falsas res- I no mesmo. Esse ódio de si é, bem entendido, 'objeto de uma elaboração psí-
postas do estilo: quando me atacae quer me matar. Não nos situamos nesse quica ininterrupta durante a vida do indivíduo - mas não aparece, ainda
nível, mas no nível mais profundo
de nós todos. Eliminemos
do pólo de identidade
também as respostas que apelam para elementos
menos conhecido
I
I
uma vez, na vida corrente;
seres vivos -
do contrário,
e pode até assumir aspectos
não haveria sociedade,
que restituem
não haveria
a discriminação
demasiado diurnos,
deu-capitalistas
a racionalizações
nos roubariam
de atributos
nosso dinheiro,
exteriores: porque os ju-
ou porque os negros, os ára- I naquilo que em psicanálise chamou-se
mente difícil, mas enfim
,
existe, componente
de pulsão de morte, que é extrema-
~ssencial
I
do ser humano.
bes seriam super-sexuados
que o nível importante
e colocariam em perigo a nossa virilidade.
é aquele da mônada psíquica, obrigada a abandonar
Creio
I
I

I
Ora, chegamos ao racismo em sua ponta extrema dizendo que as formas
mais exacerbadas do ódio do outro constituem, do ponto de vista psicológi-
seu fechamento" em seu caminho 'para a socialização. Ela deve, então, en- co, psicanalítico, monstruosos deslocamentos.transferindo para o outro esse
frentar o fato de que toda essa construção social que faz de 'alguém algo de I ódio de si que não pode se realizar sobre o: próprio sujeito e através dos
socialmente definido, toda essa identidade externa - identidade como mem- quais o sujeito consegue, ao mudar de objeto, guardar o afeto. Ele guarda
J em vez de dirigi-I o contra
tudo isso é frágil, é friável. E

I
bro da sociedade, identidade sexual etc. -, esse ódio absolutamente impossível de saciar seu
i
I

lI
272 273

f
I

0t1 Qr. i SUJEITO E VEHOADE SEMINÁRIO DE 1° DE ABRtl DE 1987

objeto' inicial, que é sua existência diurna, volta-se contra outro alguém, que que aquilo que já está implicado na simples vida em sociedade. Assim, mes-
ele destrói, elimina. É aí que podemos compreender a raiz da inconvertibi- mo que se aceite que o valor dos marceneiros coloque levemente em questão
lidade do outro, assim como sua eliminação: o sujeito não quer, antes de o dos bombeiros - há um dia separado dei festa das corporações e um sen-
tudo, encontrar-se no objeto a ser destruido, está fora de questão, portanto, timento de orgulho inegável dos bombeiros, marceneiros, sapateiros, médi-
.O judeu se converter, conhecer, por exemplo, a filosofia alemã melhor que cos, dos tecnocratas da Escola Nacional de Administração etc. -, finalmente,
ele, ser alemão da gema etc, Enquanto que, quando se trata da primeira quanto ao uso, marceneiros, bombeiros e t6das as corporações profissionais
forma de rejeição do outro, da simples desvalorização, ela em geral se satis- cooperam, mais ou. menos, para a existência de uma sociedade determinada,
faz com o reconhecimento pelo outro, assuma ele a forma da derrota ou da participam da mesma instituição, partilham os mesmos valores, b 'mesmo
conversão. magrna de significações determinando, para cada qual, um lugar cornple-
rnénrar ao dos outros. Mas isso deixa de ser verdadeiro assim que passamos
Quanto à questão de saber por que é ora uma forma, ora a outra que se de uma instituição da sociedade para uma ?utra, dos japoneses para os chi-
realiza, ela é análoga àquela que se quer colocar na psicanálise: por que se tem neses, dos alemãespara os franceses etc, Abre-se aqui o enorme problema
um tal sonho num tal dia? Ou por que, em uma mesma família, tal neurose dos nacionalismos 'e de sua não-superação no século XX, ao contrário do
numa criança e tal outra em seu irmáo? que acreditavam tanto a ideologia Iiberalquanto a ideologia marxista -
Toda a dialética do senhor e do servidor em A [enornenologia do espírito voltarei ao assuntoem um segundo. Mas, ~nfim, pelo menos no abstrato, é
de Hegel situa-se nesse nlvel: a luta de morte das consciências
pelo reconhecimento, nesse belíssimo esquema, evidentemente
como luta
abstrato como
'\
,, claro que de um certo modo surge, a partir da vontade de superação
primeira
'
forma do ódio do outro, a exigência de uma sociedade. mundial
dessa

todos os esquemas filosóficos, e os de Hegel por excelência, mas, por ser verdadeira. Com todos os problemas que isso coloca, tanto no plano práti-
abstrato, totalmente válido aqui. Há, com efeito, uma luta de morte das co, mas não é nossa tarefa aqui, quanto no plano da elucidaçâo teórica.
consciências, afirma Hegel; eu diria dos sujeitos, em função daquilo que Quanto à superação da segunda forma, ,a forma mais aguda, ela implica-
analisei 'como uma falácia: não posso valer, enquanto eu, senão quando os ria sem dúvida elaborações psíquicas e sociais muito mais profundas. Mas eu
outros, enquanto outros, ou você ou ele, não valem. E essa luta pelo reco- penso que, ao firn .e ao cabo, ela requer ai mesma coisa que a democracia
nhecimento conhece um final feliz, tanto na dialética hegeliana quanto em exige, no sentido de autonomia verdadeira; ou seja, uma aceitação de nossa
sua versão marxista, finalmente, embora a cor seja diferente: diante da mor- mortalidade real e total, dessa segunda morte, inelmável- depois de nos-
te, o outro tem medo, se submete, me reconhece como seu senhor e se torna sa morte para a totalidade imaginária, a onipotência, a inclusão do universo
meu servidor. Final feliz ainda, pois o esquema não pára por aí: o outro que em nós. É preciso aceitar essa mortalidade para deixar de se odiar:a si mes-
se tornou servidor entra no trabalho, desenvolve as forças produtivas, como mo, donde para deixar também de odiar ~s outros e de procurar 'néles um
I I '
se dirá mais tarde - de qualquer forma, em Hegel, é a mesma idéia - e pomo onde enganchar um deslocamento desse ódio de si.
demonstra assim o caráter, parasitário do senhor. A verdade passa en tão para . É preciso, a esse respeito, ressaltar o quanto é ao mesmo tempo superfi-
o lado do servidor, daquele que realmente transforma a realidade etc, E cial e ineficaz todo'; esse discurso sobre os direitos do homem que' ouvimos
talvez um dia surja uma solução universalrnente feliz em que cada um estará háuma dezena de anos, sobretudo depois da revelação, ou melhor, da com-
reconciliado com todo mundo, em uma sociedade sem classes ... preensão da natureza dos regimes rotalitários.notadarnente do totalitarismo
A superação da primeira forma psíquica do ódio do outro - somente eu russo. Assistiu-se erítâo a uma espécie de coro dos arrependidos, assimilando
valho; logo, o outro não vale, é inferior - parece u'ão exigir muito mais do a política ao totalit~rismo
.
ou limitando-a
.
6nicamente à defesa dos direitos

2 74 275
,I
SUJEITO
, E VERDADE
s s •• ","" o s ,. o s i"" o s ""

do homem. E isso vindo, de pessoas que ao mesmo tempo proclamavam a casamento religioso e o achado desse fantástico mercador de tapetes que se
diferença {'adical das culturas, com implicação evidente de que não se pode chama Papandreu foi dizer: vamos instaurar k laicídade permitindo que se esco-
fazer nenhum julgamento de valor sobre as culturas diferentes da nossa. :0 que,
~
I
lha entre casar diante do prefeito ou do Pfdre - sob a cobertura da
Tanto a antinomia ingênua quanto a falta de elaboração dessa posição são,
laicid:de, c?nfere ao padre. o :sta~uto delfuncionário do Estado civil e de
no entanto, evidentes. Pois se existe diferença radical de culturas, se nenhum novo a Igreja o estatuto de mstancia estatal. ;
julgamento de valor sobre culturas diferentes da nossa se justifica, se é, por- Mas, enfim, na maioria dos outros velilOs países cristãos, se a liberdade
tanto, imp.ossível por definição dizer que o nô ou o kabuk,i são inferiores, ou religiosa é garantida, a Igreja não intervémlrnais na' vida pública, pelo menos
, '

superiores, ao teatro elisabetano ou à tragédia grega -mesmo que, nesse diretamente. E o adultério, a sodomia, a homossexualidade dizem respeito
caso preciso, isso seja totalmente justo -, é preciso: ser coerente e dizer agora à esfera privada, Isso se féz lentamente, e o primeiro país a chegar lá
também, por exemplo, que o .apedrejamenro das adúlteras, a excisão das foi a França. Foi, de fato, o código napoleôníco que expulsou as velhas dis-
I \
meninas ou a amputação da mão dos ladrões são particu~aridades culturais posições punindo a homossexualidade, e por insistência do próprio Napoleão,
assaz interessantes. Assim corno, aliás, a vontade de ter uma Alemanha ju- que considerava que ela dizia respeito ao código moral e não ao código
denrein e, logo, o fato de gasear os judeus, ou o que fazem .Mengistu na penal como queriam ainda os jurisconsultos que o Cercavam, Mas se ô, homos-
Etiópia atualmente, ou Khomeini, ou Pinochet, ou Pol Por, ou os hospitais, sexualidade entre adultos consentintes deixou de ser um delito na França há
psiquiátricos na Rússia. Tudo isso são estruturas históricas diferentes, e in- duzentos anos, na Inglaterra foi preciso esperar até 1967 e até mais para que
comparáveis, e portanto não há nada a dizer - e remeto-os a esse respeitoa ela 'deixasse de ser penalmente reprimida. E certos estados dos Estados Uni-
Raça e história, de Lévi-Strauss. dos ainda mantêm disposições repressivas: mesmo que elas não sejam mais
Mas ao afirmar a universalidade dos direitos do homem, o que será ,el!- aplicadas.
tão da incórnparabilidade das culturas e qual é o lugar da cultura ocidental O que há por trás ,da ideologia dos direitos humanos, assim como por
em relação às outras culturas? Çomo conciliar os direitos do homem, e p~r- I ,
trás da ideologia marxista? Há uma pusilanimidadeteórico-política travesti da
tanto, por exemplo, o direito de praticar, de professar a religião muçulma- 'de filosofia da história: a história vai acarr~tar uma suficiente uniformização
na, com o fato de que esta mesma religião não reconhece 'a separação de um da sociedade mundial para que desapareçam para sempre tanto os fanatis-
- I
setor Jaico e de um setor religioso e, por conseguinte, pretende ditar leis mos religiosos quanto os nacionalismos exacerbados e revanchistas. Os di-
I
penais e muitas vezes até mais do que isso? rei tos do homem por toda parte e sempre, em uma grande repúblicamundial
Usei o exemplo contempo~âneo que parece mais fácil e peço desculpas ou na fase inferior do comunismo, é tudo a:mesmacoisa ... Mas não foi o que
aos muçulmanos presentes aqui, mas o caso do judaísmo; embora menos de se passou. Pelo menos não ainda, não é mesmo? E o problema permanece:
• I
massas, seria igualniente cornprobatório. o Estado de Israel, mesmo se pro- esses princípios que chamamos de direitos do homem -liberdade de opi-
clamando laico, faz prevalecer certas disposições francamente religiosas nião, presunção de inocência, direito a um julgamento justo etc. - pelos
I
concernentes à cidadania ou à validade do casamento. Quanto ao cristianis- quais me-parece justo lutar, o que fazer com eles nos países que se preten-
mo, foram necessários longos séculos de luta para arrancar-lhe a laicidade, dem verdadeiramente cristãos ou verdadeiramente islâmicos e mantêm, dis-
expulsar a Igreja da esfera púb!ica, confiná-Ia na esfera privada. E essa luta posições do direito canônico ou do Corão no que diz respeito a delitos e
deve sempre recomeçar, como.prova o exemplo da Grécia Moderna com a
hipocrisia monumental
de 1980, o casamento
da legislação Papandreu
civil só era plenamente
sobre o. casamento,
válido quando seguido
Antes
do
II penas? O que fazer, portanto,
ou não pelo subdesenvolvimento,
em um munido onde as pessoas, "enganadas"
pelo , imperialismo
I
americano erc, não
querem direitos do homem - ou os querem para si mesmos mas não para os
I ;
276 I·
I
I 277

I
SEM I N A RIO D E 1 o D E A a R I.l D E 1 9 a7
SUJEITO E VERDADE

sociedade é na maior parte do tempo assimétrica e antagônica _. o que


outros? E no entanto isso não traduz, de resto, nenhuma deficiência mental,
pois no que diz respeito a aprender a utilizar metralhadoras, aviões, compu- chama~í~mos~rosso modo de divisão de classes, sem polemizar demais sobre
o termo "classe", e que cobre a grande maioria das sociedades históricas -,
tadores; o fanatismo religioso ou o subdesenvolvimento nunca foram um
conhecemos sociedades que não são divididas antagônica e assimetricarnente,
obstáculo. Por que a vitória do Ocidente é a vitória das metralhadoras, dos
. por exemplo um bom número de sociedades:arca~cas, "primitivas", tais como
jipes, da televisão, mas certamente não a vitória do habeas corpus, da sobera-
1 'as descritas por Clastres em La société contre l'Etat. Se a divisão é uma ne-
nia popular ou da responsabilidade do cidadão? Sabemos, é certo, que em
cessidade estrutural, por que essa diferença: entre sociedades de divisão an-
qualquer cultura encontraremos pessoas que buscam promover os direitos
tagônica e assirnérrica e as outras? Ou seja: por que sociedades de divisão
do homem, mesmo que sejam infinitamente minoritários; mas sabemos tam-
bém que, se todas as culturas são iguais, só uma reconhece essa igualdade, e entre "a" sociedade e o "exterior"? Pode-se certamente chicanear dizendo
que nessas sociedades a situação dos homens e das mulheres não é a mesma;
nós afirmamos a superioridade de certos valores que foram criados na Euro-
pa - em poucas palavras, os valores da autonomia individual e social. E isso certas feministas chegaram a sustentar que as mulheres foram a única classe
não decorre de uma asserçâo metafísica ou transcendental sobre a essência explorada na história humana. Considero essa .últirna posição falsa.' Nas so-
do ser humano, mas de uma criação histórica e de nossa vontade, na medida ciedades arcaicas, as descritas por Clastres, assim como outras, os cungues,
em que esrarnos situados em uma tradição, de afirmar esses valores para e por exemplo, a divisão homens/mulheres não é antagônica, mas comple-

contra tudo. Como afirmá-Ios é uma outra história: as cruzadas armadas mentar; e existem também sociedades co~ outras divisões, por clãs, por

para libertar os iranianos de Khomeini contra a vontade deles, ou mesmo os metade de aldeia, mas ainda assim não são antagônicas nem assimétricas.

russos de Gorbatchev, aliás, são pura loucura, e há outros meios para agir. Respostas dos defensores da divisão originária da sociedade como neces-

Mas não podemos baixar essa bandeira da liberdade, da igualdade, da demo- sidade: os "primitivos", nesse caso, dividem-se ainda na medida em que co-
cracia e da autonomia dos indivíduos como contrapartida absolutamente locam no exterior da sociedade a origem da instituição. Mas essa defesa é
um sofisma. Vimos que colocar a origem da instituição e da significação no
inelimiriável da autonomia da sociedade.
I exterior da sociedade é característico dessa classe de sociedades que chama-
mos heterônornas - e isso não segue necessariamente junto com a .exístên-
Vimos que a sociedade, como sujeito, se autocria e cria seu mundo. Vimos
também em que sentido ela encontra o problema do outro: como origem da
II cia ou não de uma divisão interna da sociedade.
, Podem existir sociedade
significância de suas instituições e de suas significações imaginárias sociais, I sem divisão interna verdadeira, como certas sociedades primitivas, ainda
mas também como outra sociedade humana e resistência daquilo que existe uma vez, onde a origem da sociedade é imputada aos ancestrais. Em outras
ao sentido ql;le ela tenta dar às coisas, o que conduz mais ou menos direta- Ii sociedades, fortemente antagônicas e assimétricas,
deuses, aos ancestrais, a um único Deus -.,é o caso da maior parte das socie-
a origem é imputada a
mente à categoria do mal. E isso nos permite chegar à seguinte conclusão, I
i, dades históricas. Existe Deus, fonte da significação e de tudo aquilo .que é,
relativa a esse problema tão importante para nós hoje: não há divisão inter- . I
i
na da sociedade que seja necessária à instituição da sociedade. Se insisto i aliás, e ao mesmo tempo há servos e senhores, ou.escravos e homens livres e
i
cada um está bem em' seu lugar. E depois, há sociedades - a Grécia Antiga e,
nesse ponto, é em função do renascirnento
que fazem da divisão interna da sociedade
em anos recentes
uma necessidade
de discursos
estrutural, não I em parte, asociedade moderna - onde a divisão antagônica e assimétrica é
podendo a sociedade instituir-se senão dividindo-se. É certo que houve na I real (homens livres, escravos; capitalistas
oligarcas),
e 'proletários;
mas que não colocam a fonte e a origem de sua instituição
o povo e diversos
no
maior parte do tempo na história o fato da divisão interna; não discuto isso,
mas sim a pretensa necessidade estrutural dessa divisão. Pois se a divisão da I
I
exterior; no máximo, elas pretendem que ess,a fonte é a natureza ou a razão,
iI ,I
279
278
I
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SEMINÁRIO DE 1° DE JSRIL DE 1987
SUJEITO E VERDADE f
i
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t en~~entamos uma certa divisão da soc;eda~e que deve ser combatida, Mas
sem serem verdadeiramente claras sobre a essência dessa natureza ou razão.
Portanto, as duas questões se situam em níveis muito diferentes e é falacios~ não se poderia dar justificações ontológice-estrururais do gênero: façam o
encasá-las sob pretexto de necessidade estrutural. que fizerem, haverá sempre uma divisão dd sociedad~. Isso poderia 'ser dito
Suspeito que nessa discussão os defensores da divisão necessária da socie- em 1788, por exemplo, em relação à divisão que o Antigo Regime encarnava.

dade combatem um inimigo mais ou menos imaginário, que eles sequer no- É totalmente diverso dizer que haverá serripre uma divisão entre homens e
- . I·
meiam e que pretenderia que a sociedade é, ou pode vir a ser, homogênea e mulheres - não importa o que pense a srtá. Badinter,' não creio que consi-
transparente para si mesma. É, creio eu, a isso que a afirmação de uma ne- gamos superar essa divisão, embora ela possa se tornar menos conflitiva,

cessidade interna, intrínseca, estrutural de divisão da sociedade responde. Mas o mesmo se dá com a divisão entre a sociedade instituinte e a sociedade

Mas a idéia de uma sociedade homogênea, perfeitamente. transparente etc. instituída: não creio que uma sociedade autônoma possa apagar a distinção

não é mais que um fantasma negativo (hostil) daquele que esta teoria formu- entre instituinte e instituído, garantir-se coAtra qualguer distância que possa
existir entre instituirite e instituído. Mas rião vejo por que esses distanci~-
la: a sociedade nunca foi homogênea e nunca o será, nem idêntica a si; como
tudo o que, existe, ela é muito mais que ela mesma, existe em um múltiplo mentos e a infinidade de outras divisões oue se poderia evocar deveriam se
"
distanciamenro de si mesma. Isso é verdade para toda sociedade, para todo traduzir em uma divisão dominantes/dominados, pois é precisamenrea isso
indivíduo .:- e finalmente até mesmo para esse rel6gio aqui, que só é ele que se retorna.
mesmo para fins práticos, de outro modo não é igual nem idêntico a si mes- I
mo. Mas isso vale infinitamente mais para tudo o que é humano: há um Retomemos, para terminar, o problema do outro mencionado mais acima,

múltiplo distanciamento de si d~ toda a sociedade que é de ordem ontológica mas do ponto de vista de uma sociedade aptônoma: o que fazer desse "ou-
e do qual a divisão social não é absolutamente a tradução suficiente ou ne- tro"? No que diz respeito ao segundo "outro" - aquilo que resiste à donação
cessária. Vimos, no caso das sociedades arcaicas, que ela não é necessária. E de sentido pela sociedade e pelos outros humanos, ou seja, os outros concre-
o exemplo das sociedades divididas nos mostra que também não é suficien- tos, as outras sociedades humanas -, digamos que, na medida em que o
te: não se pode reduzi-Ias ao fato dessa divisão, Elas não se esgotam nisso, problema não foi resolvido por nossas pró~rias sociedades, pela del:isa His-
elas existem também de múltiplos outros modos e nesses outros modos estão tória, conforme se esperava, e cerramentel não o será, devemos, ac~itando
mais uma vez distanciadas em relação a elas mesmas. E isso mostra a arti- sempre a diversidade das culturas e a verdJdeira alteridade dos seres huma-
ficialidade .da ligação entre divisão da sociedade e questão ontológica: a so- nos, estabelecer um limite para essa alteridade, sendo esse limite aquilo que
ciedade, não mais que outra coisa, e em qualquer caso não mais que qualquer. consideramos como consubstancial ao pro/eto de autonomia social e indivi-
outra coisa humana, não pode coincidir plenamente com ela mesma. Busco dual. Quanto ao primeiro "outro", fonte de sentido, uma sociedade autôno-
. I

em vão exemplos de alguma coisa que coincidisse consigo mesma. Será que ma não pode senão elirniná-lo - eliminar: a idéia de que existe uma fonte

um teorema matemático coincide com ele mesmo? Certamente não. Ele não das instituições que não é a atividade instituinte dos seres humanos. Tere-

pode ser demonstrado - não existe como teorema - senão remetendo-se a mos, assim, que enfrentar a ameaça que f~z pender sobre esse mundo das
outra coisa. E para ser compreendido e funcionar como tcorema, supõe a significações imaginárias sociais o fato de que o universo não é redutível ao

compreensão humana da linguagem matemática, o que nos embarca imedia- esquema de significações estabelecido pela sociedade, de que ele resiste sem-

tamente em um oceano de alteridade. .. O que é que coincide consigo mesmo pre. E no que tange ao indivíduo particular, essa resistência aparece não
e por que .a sociedade coincidiria consigo mesma? A questão da divisão da apenas como limitação de sua potência e de suas capacidades de fazer, mas
sociedade ·é uma questão particular, e uma questão política. Atualmente, essencialmente como limitação de sua vida, isto é, como mortalidade.
I
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281 I
I.SUJEITO E VERDADE
'S E M I N Á RI o DE 1 o D E A B RI L DE 1 987

I .
E a grande potência da religião, 6
ponto nodal dessa instituição heterônorna tudo o que Heidegger escreve, concernem aHeidegger, * É o melhor conjun-
da sociedade, vem do fato de que ela permite a eliminação do não-sentido: to que há sobre o pensamento de Heidegger. Se não quiserem ler tudo isso,
em uma religião, todo não-sentido é sempre transitório (excero nas formas embora essa seja uma forma ruim de trabalhar e eu não deva encorajá-los,
extremas de maniqueísmo). E isso aparece com certeza no nível do indiví- comentem-se, no volume I, com as páginas 140-200 e no volume II com as
duo como promessa de imortalidade: a morte é não-sentido, o não-sentido páginas 154-160,207-211,337-360 e 386-4~2. Vocês encontrarão aí uma
último, mas ela se transforma em seu contrário, em condição extraordinária outra concepção dá verdade, a meu ver absolutamente insustentável, mas
de sentido quando é o acesso a uma existência imortal. É isso que uma socie- que é a única a se opor à concepção da verdade que prevaleceu depois da
dade autônoma não pode se permitir, é a isso que deve renunciar. Trata-se origem da filosofia, I .:
para essa sociedade não apenas de aceitar que toda significação é uma cria-
ção humana, isto é, dissociar, ao contrário de toda religião e de toda a filo-
.,
sofia herdada, o ser e o sentido, compreender que o sei: não é nem sentido QUESTÓES

nem não-sentido, que essas categorias não têm influência sobre o ser, mas
assumir também a "tradução" humana dessa dissociação entre o ser e o sen- - <Pergunta inaudiuel. >
tido, ou seja, a mortalidade humana. I
E se, nesse seminário sobre a criação política, retorno tão obstinadamen- Cada vez que falamos o fazemos a partir de pressupostos, mas é impossível
.. '

te ao exemplo da Grécia Antiga, é porque em meu conhecimento - ainda explicitá-Ios. Não acabaríamos nunca. Isso não Ruer dizer que seja impossível
uma vez, deixando de lado o budismo inicial, que não criou uma sociedade explicitá-Ios para sempre. O percurso do p~nsa'mento, e da filosofia, é tam-
democrática - a Grécia é, a única sociedade,' pelo It,lenos a Grécia até o bém esse trabalho permanente de explicação dos pressupostos. Poderemos
século V, onde se fez tudo ô que sabemos aceitando-se perfeitamente a idéia algum dia estar seguros de tê-los explicítado todos? Em direito, a resposta é
. I'

de que o homem é tanto mortal quanto fadado a um destino ainda pior do não: A demonstração do fato de que explicitamos todos os pressupostos,
. I

que aquele' que lhe coube na Terra; sabendo disso e pensando nisso durante não vejo como ela poderia ter lugar, que procedimento se deveria seguir
quatro séculos. Isso nos mostra, portanto, uma possibilidade essencial dos para efetuá-Ia. Certos procedimentos fora~, é bem verdade, experimenta-
seres humanos: eles podem viver sabendo-se mortais e o resto são histórias dos, mas revelaram-se todos falaciosos. Por exemplo, o cogito cartesiano:
boas para os chefes d~ polícia e para os padres. E é isso que precisa ser afasto tudo, faço tãbula rasa e constato que esse simples fazer no "fazer
revivido para os homens d~ nosso tempo, sob uma outra forma, é claro. É
I tábula rasa de tudo" me deixa com algum~ coisa: a cogitação et~. O que
somente a eS,sepreço que poderemos avançar para a autonomia.
I
I pode ser criticado
cedimento
de vários-modos,
lógico, pode-se retorquir
Se o cogito é tomado como 'um pro-
a Desc~rtes: você ignora aquil~ que se
Para prepará-Ios questão que abordaremos nos próximos seminários: "Corno sabe desde Platão e Aristóteles, que toda d~rrlOnstração pressupõe premissas
I
à

a verdade é possível no mundo social-histórico?", aconselho a releitura do a partir das quais ela se faz; que uma demonstração das premissas suporia
Teeteto de PIarão, por um lado. E em seguida, na medida em que Heidegger I outras premissas; ananké.stênai,
que existe, portanto,
, necessidade de. parar. ,

é o autor essencial em relação ao qual será necessário tomar distância, ler A resposta de um cartesiano seria que o cogito não é um procedimento. , lógi-
"Da essência da verdade", ''Aletéia'', ''A doutrina de Platão sobre a verdade", I co, que tenta fornecer primeiras premissas indubitáveis para rudo o que se
"O fim da filosofia e a tarefado pensamento", e os dois volumes do Nietzsche, seguirá. 9 cogito apóia-se precisamente (corroPlatão e como Aristóteles) no
que concernem um pouco a Niezsche, mas sobretudo, como de hábito em
I
I faro de que nada pode começar sem determinadas evidências indubitáveis

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I "
SUJEITO E VEROAOE
SEM IN Á RI O oE 1 o oE A B kIL .0 E 1 987

partilhadas por todos. Uma dessas evidências é que eu penso no sentido da 'd 'I' d 1 . I
....
O. que o sen hor pensa a ana tse segun o a quai sé!o racismo sempre exts-
.

cogitação cartesiana - não no sentido discursivo ou reflexivo, mas no sen- tiu, a idéia de extermínio, esta só apareceu depois das Luzes e sob a influência
rido representativo; e que de todo modo algumas coisas existem para mim, da ciência moderna, sobretudo o danoinismo. . , .
nem que fosse no simples domínio de minha esfera subjetiva - portanto, eu
existo. E responderíamos: mas então você já sabe o que quer dizer "eu existo" .. O relato da conquista da Palestina na BíblJ d~ q~al falamos, é a melhor
Contra-resposta: chamo de "eu' existo" o que sinto quando existem para resposta a esses absurdos: o que os hebreus duerem é justamente urna Pales-
mim certas coisas. Contracontra-resposta: isso nada mais é que uma tautologia tina "limpa", que seja habitada apenas por hebreus, e eles conquistaram essa
ou uma simples denominação. E só se pode chegar realmente a alguma coisa Palestina - depois disso, ficam' tranqüilos te não 'amolam mais ninguém.
introduzindo a falaciosa prova o~tológica de um Deus que garante a verdade, Porém, que eu saiba, eles não passaram pelaslLuzes. De todas as pessoas que
De todo modo, o trabalho do pensamento e da filosofia é explicitar os formulam teorias sobre a história, os que esquecem 05 contra-exemplos são
pressupostos, o que jamais poderia ser feito em um só percurso; tal percurso os mais lastimáveis. Assim também com as teorias sobre o cristianismo como
nunca terminou nem na vida de um filósofo e menos ainda na história da raiz da democracia moderna: esquecem a exihêncía de Bizâncio e da Rússia,
filosofia. Posso, portanto, retomar e dizer: o que escrevia há' cinco anos de um lado, da península Ibérica de outro." Dizer que há entre as duas reali-
continha ainda esse pressuposto implícito que agora eu posso cxplicitar. dades um parentesco de sentido ou que esse' parentesco facilita determina-
das coisas, isso pode ser plausível; mas fazer disso uma "causa" ou uma
- <Pergunta inaudiuel. > condição necessária e suficiente é aberranre.lblesse caso específico, eu mes-
mo disse aqui; e independentemente de falações.que se pode ouvir na praça
Encontramos aqui a sobreposição de que falávamos há três semanas. Em de Paris, que há um momento em que ° indi~iduaIismo moderno, seu imagi-
direito, do ponto de vista lógico e transcendental, devo postular que se eu nário, atinge seus limites.' Não esqueçamos que no Iluminismo encontrare-
Ihes falo nesse momento, não importa se explicitando pressupostos ou qual- , mos duas coisas: um imaginário individualista! é certo, mas também a vontade
quer outra coisa, é porque existe uma dimensão desse discurso que se pode de estabelecer uma comunidade política; e que isso é verdadeiro na Afnérica
discutir independentemente de qualquer configuração facrual, e que concerne do Norte, mas também na França, onde temos hão simplesmente o individua-
à minha posição, primeiramente, e à posição respectiva dos outros persona-' lismo, por exemplo, de Constanr, e suas conseqüências. Mas é verdade que
gens etc, _. ou na qual todas essas considerações entram, como "objetos". há um momento em que esse imaginário político e ~ocíal e esse imaginário
Por exemplo, se alguém me faz.notar o quanto o que digo: "me arranja" do do indivíduo re5urtam em um processo que leva, de uma forma ou de' outra,
ponto de vista político-social etc, - argumento certamente abaixo do nível a uma massificação da sociedade - cf Hanz)ah Arendt - e à privarização,
• t •

da cintura -- trata-se ainda de Uma tentativa de explicitar pressupostos. De da qual venho falando desde 1960, em condições totalmente diversas, nas
fato - fato não simplesmente empírico - não posso dizer o que digo fora condições de uma sociedade de abundância. A partir desse momento, insta-
de uma ancoragem social-histórica - ou seja, que se criou linguagem, inter- la-se um totalitarismo, duro ou suave, como o reverso quase imediato e obriga-
rogação, história da filosofia erc. - no meio da qual apareço. Assim é de I I
tório da medalha. Esse indivíduo reduzido a si mesmo, isto é, a absolutamente
fato, mas esse "de fato" é de direito. Eis a originalidade de minha posição: o nada (é uma proposição ontológica, e não apenas sociológica), ou ele adere
encadeamento desses dois aspectos. Que um Sócrates babilônico seja impos- a um partido ou gruda na televisão como urna mosca em excrernenros, Por-
sível não é um fato empírico da mesma ordem que o fato de que Sócrates que ele não é mais nada - resultado do imaginário individualista. MIas não
usava uma túnica ateniense, e não babilônica, se pode ver aqui uma conseqüência das Luzes, é preciso buscar antes em
/ '
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I
II
SUJEITO E VERDADE SEtvllNÁRIO DE 10 DE ABRIL DE 1987

certos aspectos do individualismo e do papel que eles desempenharam na as festas. E nesses poemas fica-se sabendo, desde o começo, que personagens
preparação do totalitarismo ou da sociedade contemporânea privatizada, supremamente nobres como Andrômaca - e isso é dito no trecho" sublime
dominada pela mídia etc., onde há 55 milhões de indivíduos mas - digamos do adeus entre Andrômaca e Heitor - vão sê tornar escravos. M'as quem
que exagero - talvez nem um humano que seja realmente diferente dos pode dizer que Andrôrnaca é escravo phusei? ,É uma nobre dama ~f. existe
outros. alguma. Heitor, se não fosse morto, poderia se tornar escravo. Evidente-
• J ' •

mente, a água corre sob as pontes e, nos tcrupos clássicos, não pede haver,
- Pergunta sobre os bilotas, os esparciatas .... em geral, um cidadão de uma cidade que seja escravo em sua própria cidade
- e a escravidão de gregos por outros gregos é muito rara, senão d~scol1he-
É todo o problema da escravidão na Grécia Antiga, não nos filósofos, mas na cida. Os escravos, Pelo menos a partir do século: VI, são bárbaros: prisioneiros
realidade histórica, nos historiadores e nos escritores "literários", o que é de guerra ou talvez vendidos por sua própria tribo ou família, por exemplo,
muito diferente. Sobre os diversos tipos de escravidão na Grécia, remeto a na Trácia ou nos arredores de Ponto Euxino. Elesvêm, portanto, corno es-
um ótimo artigo de Finley em um de seus livros." Pode-se distinguir duas trangeiros, bárbaros que não falam a mesma língua. Há, portanto, uma con-
.grandes categorias. De um Iádo, os hilotas em Esparta e os penestai na Tessália,
cuja condição era uma espécie de servidão: se eles não eram ligados necessa-
riamente a uma determinada terra, não eram vendáveis; não eram escravos-
I cepção da "inferioridade':

em Atenas são escravos -


do escravo.

geralmente citas -
I
Mas há ainda alguns pontos a assinalar. iPor exemplo, que os "policiais"
sob a supervisão de cidadãos,
mercadoria. E depois há, nas cidades mais evoluídas economicamente e é certo, mas de qualquer forma escravos. Depois,
, . que os escravos são adrni-
sobretudo nas cidades democráticas, os escravos-mercadoria. Embora co- tidos nas representações teatrais e, em geral/ em todas as manifestações reli-
nheçamos mal certas situações, não há dúvida de que eles eram vistos como giosas: não há segregação à moda americana. A posição dos filósofos a esse
"inferior.es". Em Atenas, a palavra aneleutheron; que significa "que não é respeito é, aliás, ambígua. Platão aceita a escravidão (não obstante o que
digno de um homem livre", é uma palavra depreciativa. Mas há também Despotopoulos diz a respeito), pelo menos nas Leis. E na República é, de
muito pouca emancipação de escravos em Atenas e, portanto, muito poucos fato, pior, pois há divisão "racial" da soci~dade em três ordens. r,,'/LJ.S tam-
liberti ou libertini como havia em Roma. Sabe-se que, em seu testamento, bém, no Ivlênon, Sócrates empreende uma coisa extraordinária: der'nonstrar
Aristóteles, a crer em Diógenes Laertius, liberta vários de seus escravos. i que qualquer homem, logo também o escravo com o qual a demonstração é
Mas Afistóteles vem mais tarde, e é um filósofo. Dit~ isso, encontra-se em feita, tem coridiçôes, se corretamente questionado, de demonstrar 6 equiva-
Aristóteles a primeira tentativa conhecida de justificar a escravidão, desce- lente em nossos di~s, quanto à dificuldade,' da teoria geral da relatividade.
nhecida entre os escritores ,clássicos pela simples razão de que, por mais que Pois o que Sócrates faz o escravo demonstrar nesse diálogo é um dos teoremas
desagrade a Leo Strauss'? e. a outros, não há "direito natural" entre os gre-
gos, mas apenas direito do mais forte, e só há questão de direito e de justiça
I
,I
mais avançados daJpoca: a existência de,n6meros
certeza, em Piarão, temos também o mito final da República:
irracionais. Mas com
cada alma es-
entre iguais, embora com uma enorme interrogação: que são os iguais e i colhe sua sorte. Mas, então, por que as c1adses na República são hereditári-
quem os define? Ninguém "justifica" isso e não seria concebível justificar a as? Imensa contradição.
escravidão em um país onde as pessoas aprendem a falar ou de todo modo a . Quando os arenienses tomam Melos, em 451, matam todos os homens;
e a ,escrever monstruosidade suprema - e que foi um 'hábito dos próprios atenienses.
ler
filológico,
com os poemas homéricos,
um texto que se pode ou não consultar
que na Grécia não são um caso
em Beaubourg. E com
I M~tam os homens púberes (para isso não: precisam de estado ci~il.: basta
Homero que as escolas trabalham, é Homero que as rapsódias cantam durante I levantar a túnica e ver se um menino é púbere ou não) e vendem osmeninos
I •. .
I

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I

I
f
SUJEITO E VERDADE

impúberes ~ as mulheres corno escravos. É a Guerra do Peloponeso - e são


os gregos. Endrapodisan." diz com freqüência Tucídides para falar da sorte
de todos aqueles que não são mortos: transformados em andrapoda, escra-
vos. Bela palavra também: os que têm pés de homens, os quase-humanos,
andróides.

[
I
,
Notas XIv. Seminário de 29 de abril de 19871
1. <Macrino (217-218), comandante da preto ria de Caracalla, sucedeu-o depois de
I
ter mandado assassinã-lo e era "talvez um liberto, de origem obscura em qualquer
caso" (P. Perir, Histoire générale de l'empire romain, 2. La crise de l'empire, Paris, .
Éditi"ons du Seuil, 1974, reed. "Points Histoire", p. 49.>
2. Op. cit., p. 216-218, reed. p. 232-235.>
3. <Kant, Obseruations SUl' te sentiment du beau e du sublime, trad. R. Kempf, Paris,
Vein, 2" ed. 1930, p, 19.>
4. [Cf. "Reflexões sobre o racismo", op. cit., p. 35; <reed. p. 43>.]
5. <Ver, por exemplo, E. Badinter, J.:Un est l'autre. Des relations entre hommes et
[emmes, Paris, Odile jacob, 1986. >
6. [Explico-me longarnente a esse respeito no texto "Instituriou de Ia société et religion"
(1982, retomado em Domaines ...., loco cit.]
7. rÉ verdade que, nesta última, há germes de contestação interna: rnarranos etc, Ver
O livro de bom amor ou A celestina.i
8. [E não se trata das Luzes, porque no Iluminismo há também muitas outras coisas: há

I
aqui uma outra confusão, por exemplo, em Glucksmann.] I
I
9. <M. r. Finley, "Entre esclavage et liberré" (1964), em Economie et société en Grêce
.. I
ancienne, trad. fr, Paris, La Découverte, 1984, p. 172-194; ver também, no mesmo
volume, ''ta civilisation grecque était-elle fondée sue ie travail des esclaves?" (1959)
e "Les statuts serviles en Grêce ancíenne" (1960); ver ainda Esclauage antique et
I /

idéoiogii; moderne, trad. fr, Paris, Minuit, 1981. >


10. <Cf. em particular os caps. II e IV em L. Srrauss, Droit naturel et bistoire, trad. fr.
Paris.Plon, 1954.>
I
I

11. <"[ ... ] os atenienses reduzem à escravidão as mulheres e as crianças (paidas kai
I
gunaikas endrapodisani", Tucídides, .v, 115, 27-28. >

I

I
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