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Literatura Brasileira: Poesia

Autora: Profa. Ana Lúcia Machado da Silva


Colaboradoras: Profa. Cielo Festino
Profa. Joana Ormundo
Professora conteudista: Ana Lúcia Machado da Silva

Ana Lúcia Machado da Silva é especialista e mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Foi professora do Ensino Básico em rede pública e privada da disciplina Língua Portuguesa durante quase
vinte anos. Ministra aulas de Análise do Discurso, Semântica e Pragmática, Literatura em língua portuguesa, entre
outras, no curso de graduação em Letras pela Universidade Paulista. Ministra também aulas em módulos para cursos
de lato sensu pela UNIP.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S586l Silva, Ana Lúcia Machado da.

Literatura brasileira: poesia / Ana Lúcia Machado da Silva. -


São Paulo: Editora Sol, 2013.
216 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XIX, n. 2-020/14, ISSN 1517-9230.

1. Literatura brasileira. 2. Poesia. 3. Identidade nacional. I. Título.

CDU 82-1(81)

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
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Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Andréia Andrade
Michel Apt
Virgínia Bilatto
Lucas Ricardi
Sumário
Literatura Brasileira: Poesia

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 DISCURSOS FUNDADORES NA POESIA BRASILEIRA: O ÍNDIO ANTES DO INDIANISMO..... 11
1.1 Imagem do índio .................................................................................................................................. 13
1.2 Representação do índio na poesia dos séculos XVI e XVII.................................................... 22
1.3 O índio na poesia do século XVIII................................................................................................... 32
2 EPOPEIA NO BRASIL COLONIAL: UMA ILUSTRAÇÃO.......................................................................... 42
2.1 Construção épica de O Uraguai....................................................................................................... 44
2.2 Desdobramento do herói e do antagonista em O Uraguai.................................................. 49
2.3 A valorização do espaço americano n’O Uraguai..................................................................... 58
3 LITERATURA E IDENTIDADE NACIONAL: A POESIA ROMÂNTICA................................................... 61
3.1 Devoção à natureza.............................................................................................................................. 63
3.2 Idealização do ameríndio: o indianismo...................................................................................... 71
3.3 Amor à pátria.......................................................................................................................................... 79
4 HISTORIOGRAFIA E ESCOLARIZAÇÃO DA POESIA BRASILEIRA...................................................... 83
4.1 Historiografia da literatura brasileira............................................................................................ 83
4.2 Panorama dos estilos literários brasileiros na poesia: fase colonial ................................ 94
4.3 Panorama dos estilos literários brasileiros na poesia: fase da
identidade nacional...................................................................................................................................102
4.4 Panorama dos estilos literários brasileiros na poesia: fase de transgressão
e inovação......................................................................................................................................................109

Unidade II
5 LITERATURA DESSACRALIZADORA..........................................................................................................117
5.1 Consonâncias e dissonâncias: o ritmo do Modernismo......................................................117
5.2 Cobra Norato.........................................................................................................................................124
6 POESIA NOVECENTISTA E SUA RELAÇÃO COM O SAGRADO........................................................132
6.1 Augusto dos Anjos: um místico com Deus ..............................................................................133
6.2 Jorge de Lima: terra sagrada, religião na poesia....................................................................138
6.3 Adélia Prado: poesia materno-teologal.....................................................................................146
Unidade III
7 LINGUAGEM CRIADORA..............................................................................................................................158
7.1 Drummond, afirmação da poesia brasileira..............................................................................158
7.2 João Cabral, o idioma pedra e as palavras-pedra..................................................................163
7.3 Henriqueta Lisboa, um caso de transcodificação...................................................................171
8 SUPORTE E RECEPÇÃO DA POESIA E SUAS TENDÊNCIAS..............................................................176
8.1 O hibridismo na poética pós-moderna......................................................................................177
8.2 No ritmo da atualidade ...................................................................................................................186
8.3 Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres................................................................194
APRESENTAÇÃO

A disciplina Literatura brasileira: poesia tem como objetivo geral proporcionar ao aluno reconhecer
o desenvolvimento e as características específicas da literatura brasileira, por meio do estudo de autores
e obras, considerando a forma mentis, o contexto cultural e social de cada período, o diálogo entre as
artes e as características específicas dos escritores pesquisados e, considerando esses aspectos, discutir
modos e formas de ensinar literatura.

Seus objetivos específicos são:

• proporcionar ao aluno reconhecer a estrutura e a operação estética realizada  nos textos literários
considerados canônicos para a formação e constituição da literatura brasileira, bem como a dos
textos contemporâneos;

• proporcionar ao aluno debater o ainda precário conceito de literatura pós-moderna no país e o


modo de articulação desse juízo estético com a sociedade brasileira  contemporânea, discutindo
o suporte no qual as novas tendências aportam – sites, blogs, redes sociais etc. – e a volatilidade
a qual essa produção problematiza a questão da ação da crítica diante de algo que lhe é
contemporâneo;

• levar o aluno a reconhecer a cultura brasileira (obras e autores) como um processo cultural
contínuo e consolidado da consciência nacional e cultural do país — dentro e fora das culturas de
massa.

A disciplina volta-se à reflexão sobre a relação entre a literatura brasileira e a sociedade local
e a situação destas no contexto no qual se inserem os movimentos literários nos locais de origem,
com a finalidade de dar ao aluno subsídios específicos para lecionar literatura brasileira no Ensino
Médio.

Sendo assim, o conteúdo programático abrange:

1. a condição colonial: a poesia jesuítica de José de Anchieta, de Gregório de Matos e o discurso


retórico-político-religioso no Barroco brasileiro; 

2. o Arcadismo brasileiro, estética reacionária (neoclássica), ação revolucionária (relação com a


Inconfidência);

3. o Romantismo, a contradição entre o cenário socioeconômico-político na Europa e o contexto


socioeconômico-político no Brasil. O Romantismo fora de lugar da poesia brasileira. Estudo das
Três Gerações do Romantismo Brasileiro e do cenário histórico social de cada momento;

4. o Parnasianismo e o Simbolismo brasileiros. A arte pela arte parnasiana e o simbolismo de Cruz e


Souza no cenário brasileiro;

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5. as vanguardas europeias e o modernismo brasileiro, os antecedentes da Semana de Arte Moderna;
os manifestos da Primeira Geração Modernista; a poesia de Mário de Andrade, Oswald de Andrade
e Manuel Bandeira; a poesia da geração de Augusto Schmidt, Carlos Drummond de Andrade,
Cecília Meireles, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes; a poesia de Ferreira Gullar e João Cabral de
Melo Neto. As consequências da Semana de 22 para a arte e a cultura brasileira.

INTRODUÇÃO

São três os grandes aspectos, do ponto de vista da autora deste livro-texto, que envolvem a poesia
brasileira: a poesia inserida na história do Brasil, a poesia fortemente influenciada pela tradição europeia
e a poesia questionadora e questionada na literatura moderna e pós-moderna.

A literatura brasileira tem uma história permeada por transformações constantes, com consequências
culturais, políticas, sociais e identitárias. Em determinados momentos históricos, questões sobre sua
identidade ficam mais latentes.

A literatura no Brasil só adquire existência com a vinda dos europeus, em especial dos portugueses,
à América. Toda a produção cultural, inclusive a poética, pré-colombiana é desconsiderada na história
da literatura do continente. No caso do Brasil, os estudos literários iniciam-se a partir de 1500, isto é,
das escritas produzidas aqui pelos portugueses.

Todo imaginário criado por eles sobre a terra nova é refletido na literatura e marca, por conseguinte,
a história da nossa literatura. Esse aspecto envolve intimamente outro: a base religiosa em nossa
poesia. Os portugueses sempre foram um povo católico, seguidor da Bíblia cristã, assim como os povos
europeus ocidentais. A influência da Bíblia na literatura (cultura) ocidental é indiscutível e apontada por
estudiosos notórios, repercutindo nos escritores brasileiros atuais.

Por fim, a poesia brasileira, seguindo preceitos discutidos por autores europeus, reflete nova posição
em sua história. Os poetas constroem textos que questionam a própria poesia. Nunca houve tanta
consciência e questionamentos sobre a poesia, seu papel na sociedade, sua existência no presente e no
futuro quanto na sociedade pós-moderna. Essa nova poesia marca, principalmente, linguagem própria,
formando realmente a identidade de uma literatura nacional.

Esse percurso é expandido e discutido neste livro-texto, porém se trata de uma história de 500
anos, com número crescente de autores a cada século que passa, e os autores, por sua vez, lançam
várias obras. Causa dificuldade, com efeito, na seleção de material literário. Frente a tantos poetas,
por exemplo, do começo do século XX, qual deles exemplificar nesse percurso? Qual ou quais obras
discutir desses selecionados? As obras abrangem várias temáticas: indicar todas elas?

Além dessa dificuldade na seleção, há também a necessidade de romper com a apresentação


tradicional dos estudos literários. Como apresentar e discutir os poemas sem repetir o modelo dos
livros didáticos? Aquele modelo que apresenta: estilo de época e suas características, biografia do
autor e lista de obras, análise de poema verificando, justamente, as características apresentadas
previamente.
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Assim, este livro-texto apresenta o percurso histórico da literatura brasileira com seleção temática:
a identidade nacional na intersecção literatura-país e o processo dentro da literatura para alcançar
autonomia. Nesse percurso, apenas alguns poetas e poemas estão presentes; contudo, mais pelo caráter
de exemplificação do que por um possível julgamento valorativo de um poeta/obra melhor do que o
outro.

Depois da leitura, você poderá fazer uma avaliação sobre este material, no que diz respeito, por
exemplo:

1. aos autores/obras cânones destacados;

2. ao autor/obra que não foi mencionado e você indica (pode fazer indicação para momentos
históricos diferentes);

3. ao autor/obra desconhecido até então por você e que lhe chamou a atenção;

4. à temática que poderia ter sido desenvolvida no livro-texto;

5. à abordagem da literatura proposta por você.

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LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Unidade I
1 DISCURSOS FUNDADORES NA POESIA BRASILEIRA: O ÍNDIO ANTES DO
INDIANISMO

Os estudos literários brasileiros começam a partir do momento em que os portugueses passaram


a colonizar nosso país. Fundou-se uma tradição histórica que considera os textos escritos em língua
portuguesa; inicialmente, por esse povo colonizador, mais tarde, pelos descendentes, já denominados
brasileiros.

A tradição cultural fundada no grande continente americano pré-colonização foi completamente


descartada nessa história. Em livros didáticos sobre o início da literatura no Brasil, encontramos textos e
autores que chegaram ao país e se depararam com um mundo novo.

Passamos a ter, portanto, um ponto de vista: o dos europeus que se depararam com uma realidade,
a qual precisava ter sentido para eles. Assim, podemos adotar as perguntas feitas pela estudiosa Eni
Orlandi (2003, p. 11): “como do sem sentido se faz sentido e irrompe o sentido novo? Como, diante
de um mundo novo, com coisas, seres e paisagens ainda não nomeados vai surgindo um sentido, vão
surgindo nomes?”.

No processo de dar sentido ao novo, a construção do significar envolve: seu apagamento por uma
memória já estabelecida; resistência ao apagamento e a consequente produção de outros sentidos;
retorno do que foi excluído pelo apagamento, deslocando-o. Trata-se do percurso do sem sentido em
direção ao sentido, verificado nos primeiros discursos escritos pelos europeus colonizadores.

Tais discursos são os discursos fundadores. O discurso caracteriza-se como fundador ao criar uma
nova tradição, ressignificando o que veio antes e instituindo aí outra memória. O sentido anterior é
desautorizado, e o novo irrompe no processo significativo de tal modo que, pelo seu próprio surgir,
produz sua memória.

Em relação ao mundo novo encontrado pelos europeus, uma América diferente, com paisagens e
povo não esperados, um dos sentidos atribuídos por eles é de ter se deparado com o Eldorado, a Terra
Prometida. Com base na memória mítica e bíblica sobre o Paraíso perdido por Adão e Eva e a promessa de
reencontro com esse paraíso, os primeiros europeus atribuíram à terra descoberta americana justamente
essa terra perdida. A América passou a ser simbolicamente instituída como Eldorado, a Terra Perdida, o
Paraíso.

No caso do Brasil, a terra foi vista como fértil, abundante e diversificada em sua natureza. Na Carta
de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500, temos a primeira fotografia do Brasil:

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Unidade I

Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra
ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será
tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte cinco léguas por costa. Tem, ao
longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas;
e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a
ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu,
vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão
terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.

Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa
alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito
bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho,
porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são
muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta
gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve
lançar (CAMINHA apud CASTRO, 1985, p. 239).

A Carta é um exemplo – na verdade, considerada o primeiro documento escrito no Brasil – de


discurso fundador. Ela instituiu um sentido ao novo, que passou a fazer parte da memória coletiva. Um
desses sentidos é “nessa terra em se plantando tudo dá”, o qual não corresponde exatamente à ideia
formulada por Caminha, mas que se fixou na história. Afinal, o fruto que ele se propôs a plantar foi a
catequese dos índios.

Na Carta de Caminha, o autor descreve o primeiro contato entre os portugueses e os indígenas,


que se apresentaram nus aos olhos admirados dos europeus. Nos contatos iniciais, o índio é visto
como os primeiros seres humanos criados por Deus, em estado de inocência, representada pela
nudez natural e espontânea. Os portugueses se perguntaram se não tinham finalmente encontrado
o Paraíso.

Quando, décadas depois, passaram efetivamente a colonizar o país, vieram grupos religiosos, em
especial os jesuítas (da Companhia de Jesus), para catequizar aquele povo tão diferente e inocente. Entre
eles, estava o padre Manoel da Nóbrega, em cujos discursos também fundadores, escritos em 1557,
estabeleceu outros sentidos sobre o povo indígena, que se tornou alvo da ação civilizadora. Segundo
Nóbrega (apud ORLANDI, 2003, p. 19):

A lei que lhes hão-de dar é:

1. Defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do governador;

2. Fazer-lhes ter uma só mulher;

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LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

3. Vestirem-se;

4. Tirar-lhes os feiticeiros;

5. Mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos;

6. Fazê-los viver quietos, sem se mudarem para outra parte se não for para
entre os cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem e com estes padres
da Companhia para os doutrinar.

Temos outros sentidos sobre os índios criados pelos europeus, tanto nos documentos fundadores
(cartas, crônicas) quanto nos primeiros textos literários. Esses sentidos foram mudados apenas depois,
no século XIX, no período do Romantismo, quando os escritores literários passaram a idealizar a figura
do índio, considerando-o o legítimo povo brasileiro, guerreiro, com fortes traços positivos.

Assim, quando você ouve alguém relacionar literatura brasileira com o povo ameríndio, o que primeiro
vem a sua mente? Será que você se lembra da figura do Peri, personagem do romance O guarani, ou do
jovem tupinambá, do poema I-Juca Pirama? Ou quem sabe da descrição da inocência dos índios feita
por Pero Vaz de Caminha exatamente em 1500?

Se predomina a lembrança de Peri e I-Juca Pirama, prevalece a visão que os autores do Romantismo,
no século XIX, idealizaram sobre o povo nativo e de direito do país. Se predomina a descrição de Caminha,
prevalece a visão dos primeiros europeus sobre os índios, seu encantamento e estranhamento sobre o
novo, o diferente.

Existe, então, uma marca temporal: antes e depois do indianismo. Os textos dos séculos XVI, XVII e XVIII
são anteriores ao indianismo; os textos do Romantismo alcançaram notoriedade em decorrência das ideias
criadas sobre os índios: o indianismo. Tal idealização é tão notória que sobrepujou as primeiras impressões
dos europeus sobre os índios e foram registradas em diversos documentos, como cartas e poemas.

Há necessidade, assim, de resgatar na literatura como os ameríndios são referidos em textos


inaugurais, ou, em outros termos, textos fundadores. Nesses textos, a condição permanente do índio,
segundo Bastos (2011), é de objeto de um discurso alheio, porque não temos exemplos de textos nos
quais, de fato, sua voz se faça ouvir. O índio nunca é de fato o sujeito da enunciação, diferente do que
ocorre no caso dos índios da América do Norte e da América hispânica.

São abundantes os textos em que é atribuída uma fala ao índio, com projeção ideológica, isto é,
a suposição de como falaria o índio brasileiro. No entanto, nessa fala emprestada a ele, temos um
documento não tanto do objeto, mas da visão sobre o objeto, servindo, assim, como registro verdadeiro
das imagens que dele foram produzidas ao longo do tempo.

1.1 Imagem do índio

O primeiro documento escrito em português no Brasil, sobre o Brasil, é datado de 1º de maio de


1500. Trata-se da carta destinada ao rei D. Manuel, escrita por Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de
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Unidade I

Pedro Álvares Cabral. Esse documento ficou guardado por três séculos; somente em 1817 foi divulgado
na sua Corografia brasílica pelo padre Aires do Casal.

Essa carta e as crônicas dos padres e viajantes de diversas nacionalidades formam a manifestação
literária brasileira denominada Literatura de Informação, corrente nos séculos XVI e XVII.

Esses textos são fundadores e relevantes devido ao fato de seus autores registrarem suas impressões
sobre o contato estabelecido com os índios tupi, que ocupavam a costa brasileira.

Com base em Bastos (2011), elencam-se aqui sete aspectos sobre os índios apontados por Caminha
e cronistas em seus primeiros contatos com eles. Entre as obras fundadoras, temos:

Quadro 1

Ano original
Autor Nacionalidade Obra da obra
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta. In: CASTRO,
Sílvio. O descobrimento do Brasil: a carta de
Pero Vaz de Caminha português 1500
Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM,
1985.
THEVET, André. As singularidades da França
André Thevet francês Antártica. Tradução Eugênio Amado. Belo 1555
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1978.
LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil.
Jean de Léry francês Tradução Sérgio Milliet. Belo Horizonte: 1557
Itatiaia; São Paulo: USP, 1980.
ANCHIETA, José de. Cartas: informações,
Padre José de Anchieta canarino A partir de
fragmentos históricos e sermões. Belo 1553
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1988.
GANDAVO, Pero Magalhães. Tratado da Terra
Pero Magalhães Gândavo português do Brasil e a História da Província de Santa 1576
Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
USP, 1980.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo
Gabriel Soares de Sousa português do Brasil em 1587. 5. ed. São Paulo: 1587
Nacional; Brasília: INL, 1987.
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil.
Hans Staden alemão Tradução Guiomar de Carvalho Franco. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1988.

As imagens criadas sobre os índios são:

1 – A boa aparência física dos índios (homens e mulheres) deixou ótima impressão nos primeiros
europeus chegados à nova terra. Caminha (1985, p. 78) diz que: “A feição deles é parda, algo avermelhada;
de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem feitos”. O padre José de Anchieta (1988, p. 441) concorda
com essa visão favorável ao descrever os índios como “vermelhos de cor, de mediana estatura, a cara e
os membros mui bem proporcionados”. Thevet (1978, p. 102-103), também, anota que os “americanos”
são “bem conformados e possuem membros bem proporcionados”, embora tenha destacado que os
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LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

olhos “são mal feitos, ou seja, são negros e vesgos”, lembrando o olhar “das feras selvagens”. Jean de Léry
(1980, p. 111), por sua vez, descreve índio como:

[...] um homem nu, bem conformado e proporcionado de membros, inteiramente


depilado, de cabelos tosquiados como já expliquei, com lábios e faces fendidos
e enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e igualmente
adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas de preto com suco de
jenipapo, e com colares de fragmentos de conchas pendurados ao pescoço.

[...]

Colocai-lhe na mão seu arco e suas flechas e o vereis retratado bem garboso
ao vosso lado.

Gabriel Soares de Sousa (1987, p. 300), que se tornou senhor de engenho na Bahia, fez menção à
cor da pele e à proporcionalidade dos membros dos índios, bem como à aparente disposição de ânimo
vista nos rostos alegres dos nativos, chegando à minúcia dos “bons dentes, alvos, miúdos, sem nunca
lhe apodrecerem”.

Outra descrição favorável da aparência física dos índios é encontrada nos textos do alemão Hans
Staden (1988, p. 161). Ele foi prisioneiro dos tupinambás durante nove meses e esteve a ponto de morrer
e servir-lhes de comida, mas não denegriu os índios, referindo-se a estes como gente “bonita de corpo
e estatura, homens e mulheres igualmente”.

De forma geral, então, os cronistas em seus primeiros textos sobre a terra descoberta descrevem
os índios de forma elogiosa, aludindo ao vigor físico e também à sua longevidade. Sobre este último
aspecto, temos o exemplo do texto de Jean de Léry (1980, p. 111):

Os selvagens do Brasil, habitantes da América, chamados Tupinambás, entre


os quais residi durante quase um ano e com os quais tratei familiarmente,
não são mais maiores nem mais gordos do que os europeus; são porém mais
fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos
a moléstias, havendo entre eles muito pouco coxos, disformes, aleijados ou
doentios. Apesar de chegarem muitos a 120 anos (sabem contar a idade pela
lunação), poucos são os que na velhice têm os cabelos brancos ou grisalhos.

O padre Simão de Vasconcelos (1597-1654), historiador das ações da Companhia de Jesus no Brasil,
confirma a extraordinária vitalidade dos índios:

Rarissimamente se acha entre eles torto, cego, aleijado, surdo, mudo,


corcovado, ou outro gênero e monstruosidade: cousa tão comum em outras
partes do mundo. [...] São vividouros, e passam muitos de cem anos, e cento
e vinte; nem entram em cãs, senão depois de decrépita idade (apud BASTOS,
2011, p. 29).
15
Unidade I

A respeito de os americanos terem vida longa, com saúde e boa disposição, o padre José de Anchieta
faz preciosa observação ao mencionar sobre uma criança indígena de Piratininga, que nasceu sem nariz
e com outras enfermidades não conhecidas pelo padre. O tio enterrou a criança, assim como faziam os
índios com todos que nasciam com alguma falta ou deformidade. Devido a essa preocupação eugênica,
não eram encontrados índios coxos, disformes, aleijados ou doentios.

Complementando as descrições sobre a boa aparência, o vigor físico e a longevidade dos índios,
destacam-se também a bravura nos combates e a destreza no manejo de armas de guerra e de
instrumentos de caça e pesca. Segundo Anchieta (1988, p. 441-442), os índios “são guerreiros e grandes
frecheiros; basta ver um olho só descoberto a um homem para lhe pregar; [e] são tão destros que
não lhes escapa passarinho que não matem, e a frechadas matam o peixe na água”. Ao se referir aos
tupinambás sobre o costume de caçar animais de grande porte, Anchieta (1988, p. 313) acrescenta
que os índios “não arreceiam arremeter grandes cobras, que matam, e a lagartos que andam na água,
tamanhos como eles, que tomam vivos e a braços”.

Os cronistas da época do início da colonização apontaram igualmente a esperteza e a malícia dos


índios. Alguns destes eram capazes de simular a própria glória, desenterrando cadáveres a fim de lhes
quebrarem as cabeças, apresentando-as como troféus de batalha para gozar de todas as honrarias
militares.

Ainda sobre a aparência dos índios, a nudez, especialmente em relação à das mulheres, causou
espanto nos europeus, que, contudo, logo no início, perceberam a candura desse hábito das índias, o
qual acabaria por inibir a luxúria e a lascívia deles, como observa Léry (1980, p. 121):

Mas direi que, em que pesem as opiniões em contrário, acerca da


concupiscência provocada pela presença de mulheres nuas, a nudez grosseira
das mulheres é muito menos atraente do que comumente imaginam. Os
atavios, arrebiques, postiços, cabelos encrespados, golas de rendas, anquinhas,
sobre-saias e outras bagatelas com que as mulheres de cá se enfeitam e de
que jamais se fartam, são causas de males incomparavelmente maiores do
que a nudez habitual das índias, as quais, entretanto, nada devem às outras
quanto à formosura.

Pero Vaz de Caminha, na carta de 1500, o padre Balthazar Fernandes, em carta de 1567 e mesmo
Anchieta, que sempre reprovou a nudez dos índios, reconhecem o estado de inocência.

A nudez das índias não provocou desinteresse sexual dos europeus, uma vez que inúmeros casos de
mancebia ou de casamento regular ocorreram entre os europeus e as índias. Eles se uniram às índias
de livre vontade e muitos viveram como “gentios com muitas mulheres”, no esclarecimento de Gabriel
Soares de Sousa (1987, p. 331).

Para o padre Manoel da Nóbrega, que chegou ao Brasil em 1549, a nudez dos índios causa incômodo
por razões teológicas (BASTOS, 2011). Afinal, como permitir o batismo dos índios, quando eles não
usavam roupas?
16
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Mais tarde, no século XIX, os autores do Romantismo escreveram seus poemas e prosas e criaram
índios belos, pujantes, destemidos guerreiros, delicadas virgens, situando os índios, em seu ambiente
de início da colonização, num ambiente edênico. Os românticos estavam muito longe dessa visão dos
primeiros europeus; afinal, já no século XIX, os índios eram quase um grupo em extinção.

2 – A vida comunitária dos índios é unanimemente reconhecida nesses textos fundadores. Como
diz Staden (1988, p. 167-172): “Não existe entre eles propriedade particular, nem conhecem dinheiro”.
No caso da comida, por exemplo, era de todos os índios, por igual. A caça terrestre ou aquática era
distribuída entre todos. Gabriel Soares de Sousa (1987, p. 313), com toque de humor, compara os índios
com os padres franciscanos, levando em conta o despojamento entre ambos:

Têm estes tupinambás uma condição muito boa para frades franciscanos,
porque o seu fato, e quanto têm, é comum a todos os da sua casa que
querem usar dele: assim das ferramentas, que é o que mais estimam, como
das suas roupas, se as têm, e do seu mantimento; os quais, quando estão
comendo, pode comer com eles quem quiser, ainda que seja contrário, sem
lho impedirem nem fazerem por isso carranca.

O padre Manoel da Nóbrega, em uma das cartas, reforça esse costume:

Entre eles, os que são amigos vivem em grande concórdia e amor, observando
bem aquilo que se diz: Amicorum omnia sunt communi. Se um deles mata
um peixe, todos comem deste e assim de qualquer animal (apud BASTOS,
2011, p. 33).

A bem da verdade, um dos cronistas, o padre jesuíta Antonio Blasquez, chegado ao Brasil em 1553,
em carta de 1557, destacou o lado negativo dessa vida em grupo, descrevendo as habitações dos índios
como “casas escuras, fedorentas e afumadas”, nas quais as camas “são umas redes podres com a urina,
porque são tão preguiçosos que ao que demanda a natureza se não querem levantar” (apud BASTOS,
2011, p. 33).

As guerras em que os índios se envolviam constantemente não deviam, portanto, aos interesses
materiais. A motivação não era conquista de terras ou obtenção de vantagem material. A guerra devia-
se ao desejo de vingança por ofensas anteriores. Conforme Léry (1980, p. 183):

Os selvagens se guerreiam não para conquistar países e terras uns aos outros,
porquanto sobejam para todos; não pretendem tampouco enriquecer-se
com os despojos dos vencidos ou o resgate dos prisioneiros. Confessam eles
próprios serem impelidos por outro motivo: o de vingar pais e amigos presos
e comidos, no passado.

Outro aspecto dos hábitos dos índios destacado pelos primeiros europeus no Brasil era a boa
hospitalidade, verdadeira questão de honra, incluindo nela a completa segurança dada aos visitantes.
Na observação de Gabriel Soares de Sousa (1987, p. 316), o hóspede era brindado pelo dono da casa
17
Unidade I

com a própria rede, e “a mulher lhe põe de comer diante, sem lhe perguntarem quem é, nem de onde
vem, nem o que quer”.

3 – O senso político dos índios brasileiros causou muita admiração nos europeus. Os índios não
reconheciam autoridade de rei ou de prepostos, limitando-se ao respeito por um principal apenas
quando em guerra. Nas palavras de Ambrósio Fernandes,

Em cada aldeia há um principal, que não reconhece superioridade a outro,


senão quando sucede haver algum tão cavaleiro que, pelo medo que têm
dele, lhe guardam respeito; cada um faz o que quer, sem embargo do
principal lhe ordenar o contrário, mas, nas cousas tocantes à guerra, lhe
guardam mais respeito (apud BASTOS, 2011, p. 37).

Observação

O principal era aquele que reunia em torno de si o maior número


possível de genros e filhos do sexo masculino.

Podemos concordar com Bastos (2011) quando esse estudioso denomina como esdrúxula a
observação feita por Gândavo, em 1576. Como não existem os fonemas /f/, /l/, /r/ na língua indígena,
Gândavo (apud BASTOS, 2011, p. 37) diz que os índios não têm Fé, Lei nem Rei:

A língua deste gentio toda pela Costa é uma: carece de três letras –
scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque
assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem justiça e
desordenadamente.

Essa ideia de que os índios, por não terem em sua língua esses três fonemas (que foram confundidos
com letras), não tinham fé, lei, rei foi repetida por outros europeus, que a ratificaram. O primeiro que
repetiu a ideia foi Gabriel Soares de Sousa (1987, p. 302). Na concepção deste, o índio:

a) se não tem F, é porque não tem fé em nenhuma coisa que adorem; b)


se não tem L na sua pronunciação, é porque não tem lei nenhuma que
guardar, nem preceitos para se governarem; c) se não tem esta letra R na
sua pronunciação, é porque não tem rei que os reja, e a quem obedeçam.

Os outros que repetiram a ideia foram:

• Brandônio, no texto Diálogos das grandezas do Brasil, de 1618;

• Frei Vicente do Salvador, no texto História do Brasil 1500-1627, de 1627;

• Padre Simão de Vasconcelos, no texto Crônica da Companhia de Jesus, de 1663.


18
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

4 – A suposta ausência de uma concepção religiosa foi tema enfático nas crônicas dos primeiros
europeus no Brasil. O primeiro deles foi Caminha (1985, p. 94): “Parece-me gente de tal inocência que,
se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem
crença alguma, segundo as aparências”.

Assim, a ausência de religiosidade pareceu a Caminha favorável aos propósitos dos colonizadores,
pois ele já notou que os índios não eram circuncidados, isto é, nem pagãos nem judeus. Logo, Caminha
recomendou ao rei “salvar esta gente”, enviando clérigo para batizá-la.

Também Gândavo (1980, p. 142), na obra de 1576, décadas depois da Carta de Caminha, escreveu:

Por todas as Capitanias desta Província estão edificados Mosteiros dos Padres
da Companhia de Jesus e feitas em algumas partes algumas Igrejas entre os
índios que são de paz onde residem alguns Padres pera os doutrinar e fazer
Cristãos: o que todos aceitam facilmente sem contradição alguma porque
como eles não tenham nenhuma Lei nem cousa entre si que adorem, é-lhes
muito fácil tomar esta nossa. E assim também com a mesma facilidade, por
qualquer cousa leve a tornam a deixar, e muitos fogem para o sertão, depois
de batizados na doutrina cristã.

5 – A antropofagia é outro traço de primitivismo que os europeus destacaram.

Observação
Distinguimos antropofagia, que significa comer carne humana dos
inimigos por vingança, do canibalismo, que significa alimentar-se da carne
humana sem motivação especial.

No geral, entre os cronistas, há concordância sobre o motivo que levava os índios à antropofagia.
O motivo, segundo Staden (1988, p. 176), “não era para matar a fome, mas por hostilidade, por grande
ódio”, com o que concorda Léry (1980, p. 200), para quem os índios, embora confessassem ser a carne
humana saborosa, “seu principal intuito é causar temor aos vivos”.

Em alguns casos, como na prática dos tapuias, os índios chegavam a comer carne de entes queridos
por amor, para poupá-los de maior sofrimento, em um processo de quase eutanásia, como observa
Gândavo (1980, p. 141):

É que quando algum chega a estar doente de maneira que se desconfia de


sua vida, seu pai, ou mãe, irmãos ou irmãs, ou quaisquer outros parentes mais
chegados o acabam por matar com suas próprias mãos, havendo que usam assim
com ele de mais piedade, que consentirem que a morte o esteja senhoreando
e consumindo por termos tão vagarosos. E o pior é que depois disso o assam e
cozem, e lhe comem toda a carne, e dizem que não hão de sofrer que coisa tão
baixa e vil como é a terra lhes coma o corpo de quem eles tanto amam.

19
Unidade I

A antropofagia era praticada também com crianças e mulheres. No caso das mulheres, se estas se
tornassem cativas, eram mortas e suas carnes comidas pelos índios de tribo vencedora; ou elas poderiam
se tornar mulher do guerreiro vencedor. Sobre esse aspecto cultural indígena, Brandônio (apud BASTOS,
2011, p. 44) esclarece:

Às vezes as matam e outras não, que é quando sucede tomá-la algum dos
vencedores por sua mulher ou manceba; e por este modo escapam da morte,
mas a graça é que, se algumas destas cativas acertam de fugir, e vai prenhe,
depois de estar entre os seus posta a salvo, e chega a parir, o próprio avô, e
ainda a mesma mãe, matam a criatura nascida e a comem, dizendo que o
fazem ao filho de seu inimigo; porque a mãe foi somente um bolso em que
se criou e se aperfeiçoou a tal semente, sem tomar nada dela; e por esse
modo usam de mil crueldades em casos semelhantes.

Sousa (1987) também descreve o destino da criança, mas de outra situação. Ele fala da criança
nascida da relação entre prisioneiro e a mulher que lhe fora dada como parte dos preparativos para a
execução inevitável. A criança é criada pela mãe até a idade em que pode ser comida. A mãe a oferece
ao parente mais próximo, que quebra sua cabeça, e ela é a primeira a comer dessa carne.

Todos os cronistas da época dos primeiros contatos entre europeus e indígenas concordavam que o
ritual da execução de um prisioneiro demonstrava requinte e cavalheirismo, pois o próprio condenado
tomava parte ativa nos preparativos, com prazer e orgulho, tendo papel relevante neles. Não faltavam
cânticos e danças nem bebidas, sendo a morte tida por gloriosa. No esclarecimento do padre Anchieta
(1988, p. 55):

Os prisioneiros, no entanto, julgam ser assim tratados excelentemente e com


distinção, e pedem uma morte tão (como eles mesmos imaginam) gloriosa;
porquanto, dizem que só os medrosos e fracos de ânimo é que morrem e
vão, sepultados, suportar o peso da terra, que eles creem ser gravíssimo.

Justamente devido ao fato de os cristãos acreditarem em enterro, muitos índios recusavam o batismo,
porque queriam morrer como valentes, com morte formosa e gritando para seus captores que os seus
vingariam destes, assim como eles (os vencidos) já comeram muitos parentes dos captores.

6 – O senso estético dos índios foi descrito pelos europeus, que narraram as danças, os cânticos e
a dramatização rudimentar da cerimônia de execução de um prisioneiro. Além dessas manifestações,
eles mencionaram também o adorno do corpo feito com tintas, penas de aves, pedaços de ossos etc. De
acordo com Bastos (2011, p. 48): “O gosto pelo enfeite é de tal ordem que os índios não hesitavam em
‘negociar’ com os brancos, recebendo, em troca de pau-brasil, por exemplo, colares, miçangas e outras
quinquilharias”.

7 – A relação de parentesco, o casamento e a poligamia na cultura indígena foram assuntos tratados


pelos europeus.

20
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Sobre o casamento, observa Léry (1980, p. 223):

Devo dizer com relação ao casamento dos nossos americanos que eles
observam tão somente três graus de parentesco; ninguém toma por esposa
a própria mãe, a irmã ou filha, mas o tio casa com a sobrinha e em todos os
demais graus de parentesco não existe impedimento.

Ressalta-se, porém, que um índio (tio) não se casava com as filhas de seu irmão, porque eles
acreditavam que o parentesco verdadeiro vinha pela parte dos pais. No entanto, as sobrinhas filhas das
irmãs não mereciam o mesmo respeito e com elas os homens copulavam sem qualquer impedimento.

Sobre o casamento em si, segundo o francês Thevet (1978), era realizado sem qualquer formalidade,
cerimônia, pois o casal apenas se ajuntava.

Quanto à poligamia, parece ser uma distinção concedida apenas aos bravos guerreiros. As mulheres
aceitavam sem queixa, mas não costumavam trair os maridos, porque no caso de serem surpreendidas
eram mortas por ele, que considerava o ato uma falta muito grave.

Exemplo de Aplicação

I. Faça um resumo das imagens criadas pelos cronistas e padres jesuítas sobre os índios do Brasil nos
séculos XVI e XVII.

Quadro 2

Aparência dos índios

Vida comunitária

Senso político

Concepção religiosa

21
Unidade I

Antropofagia

Senso estético

Sistema de parentesco e
casamento

II. Selecione uma das imagens resumidas e faça uma breve pesquisa sobre a sociedade indígena
brasileira da nossa atualidade. Escreva um parágrafo sobre como a imagem escolhida é concebida
atualmente pelos ameríndios contemporâneos. Esclareça qual grupo foi estudado: tupi, guarani etc.

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III. Leia o jornal do dia (no momento em que você lê este livro-texto), verifique se há notícia sobre
a sociedade indígena brasileira. Faça uma síntese da notícia, verificando o tema específico abordado no
texto jornalístico sobre a sociedade indígena e discuta o posicionamento do jornalista a respeito.

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1.2 Representação do índio na poesia dos séculos XVI e XVII

O padre José de Anchieta (1534-1597) tem lugar na literatura brasileira de forma controversa, por
vários motivos, entre eles por não ser português de nascimento e pela sua obra ter sido escrita em várias
línguas: português, espanhol, latim, tupi.

O poema épico De Gestis Mendi de Saa, por exemplo, foi escrito em latim.

22
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Figura 1 – Capa da obra De Gestis Mendis de Saa, do padre José de Anchieta

À parte a discussão entre os críticos literários sobre o papel de Anchieta em nossa literatura, a parte
mais considerável de sua obra poética e de suas inúmeras cartas diz respeito ao índio brasileiro.

Parecia certo que o indígena do Brasil não tivesse qualquer concepção religiosa, como afirmava, por
exemplo, Fernão Cardim (apud BASTOS, 2011, p. 52):

Este gentio parece que não tem conhecimento do princípio do Mundo.


Este gentio não tem conhecimento algum de seu Criador, nem de cousa do
Céu nem se há pena nem glória desta vida, e portanto não tem adoração
nenhuma, nem cerimônias, ou culto divino.

Essa suposta disponibilidade espiritual do indígena adequava-o perfeitamente ao projeto


evangelizador a que se dedicou o jesuíta Anchieta, o qual tratou os índios, antes de mais nada, como
objeto de uma ação salvadora, a afirmação de sua (dos índios) inata inferioridade, na conclusão de
Bastos (2011).

Anchieta, na obra de 1584, quantifica o trabalho de salvação:

Passam de 2.000 aqueles que, este ano, foram pelos nossos arrancados
à impiedade e purificados pelo batismo, em toda a província, se a eles se
juntarem os trezentos que foram batizados no Colégio do Rio de Janeiro
(como é grande a bondade divina!), não contando os que foram batizados
em casas particulares e não puderam ser registrados (ANCHIETA, 1989, p.
413).

Para alcançar esse objetivo, o jesuíta recorreu à poesia e ao teatro como meios complementares da
ação catequética, que desmantelou o universo simbólico do indígena, por meio de:

23
Unidade I

• desmoralização contínua dos pajés, que nunca se enganaram com o programa de salvação e eram,
por conseguinte, oponentes dos jesuítas;

• identificação dos ritos indígenas com a feitiçaria europeia da época;

• caracterização de suas leis de parentesco como desordem e luxúria.

Conforme o poeta Anchieta (1989, p. 401), os padres iam:

Com boa intenção,


A buscar gente perdida,
Que possa ser convertida
A Iesu de coração
E ganhar a eterna vida.

Sobretudo na obra épica De Gestis Mendi de Saa, o estudioso Bastos (2011) verifica a quase absoluta
ausência de piedade do padre Anchieta em relação aos indígenas. No caso dessa obra, a adesão aos
vencedores portugueses sobre os índios é incondicional do poeta, que faz exortações entusiasmadas
das atrocidades praticadas pelos soldados (portugueses) ao dizimarem os inimigos (índios), e chega a
lamentar que nem todos tenham em igual intensidade o ímpeto exterminador do comandante:

Eis que, não sofrendo demoras, com as armas tingidas


no sangue inimigo, Fernão com seus jovens briosos
acorre, e olhos na glória, se precipita ao assalto
do arraial medroso, e à força de golpes arrombam
os robles enormes, abrindo numerosas e largas entradas.
Uma vez dentro estraçalham a fortaleza e trucidam
a turba inimiga, ceifando com a espada afiada
esses corpos brutais. Junto ao mar o estrondo ecoa medonho
enfurece horrendo na praia o soldado matando
e enterrando vitorioso na areia corpos aos montes,
no inferno vidas que cevavam as carnes humanas
e impinguavam os ventres com o sangue dos homens.
Já não se alonga o combate, já não pensa
o inimigo em entesar o arco, e defender a vida com brio.
Tudo é pressa em fugir, não lhes valem de nada os redutos,
só resta galgar ligeiro as muralhas do último forte.
Nossas armas gloriosas prostraram o feroz inimigo,
rompendo à força as trincheiras com vasta matança.
O general e seu bravo esquadrão, cansados
embora do duplo esforço e com os corpos crivados de flechas,
conservaram ainda frescas a conhecida energia das almas nobres:
vibram de entusiasmo: uma de duas,
ou acabar com as hordas bárbaras
24
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

ou deixar no combate a vida,


comprando com o sangue a vitória da pátria.
“Triunfadores meus, diz o chefe, vossa espada valente,
armas e dextras estão tintas ainda do sangue maldito;
sem tardar, lancemo-nos contra o inimigo vencido,
enquanto o abate o terror das últimas duas batalhas.
Vedes quantos aí estão prostrados a gemer moribundos,
quantos outros na fuga receberam mortais ferimentos.
Ou exterminar de vez esta raça felina
com a ajuda de Deus, ou sepultar-nos na areia gloriosamente”.
A estas palavras, parte. A todos devora o mesmo fogo.
Arrojam-se como impetuosa corrente
ou como a tempestade negra que revolve o oceano,
encapela as ondas, rasga o linho branco das velas,
quebra os altos mastros, e, girando três ou quatro vezes
as popas as submerge voraz em rápido redemoinho.
Quantos estragos não causou então
o braço valente do jovem chefe!
quantos corpos de guerreiros ferozes arremessou à morte,
tomando vingança no sangue inimigo.
Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus braços,
fervesse-lhes no peito um sangue mais quente,
acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe,
e esse dia marcaria a ruína desses feros selvagens,
atirando-os para as sombras eternas do Inferno.
Fonte: Anchieta (1970, p. 11-12).

O padre José de Anchieta adotou a forma do auto medieval, pondo em cena as forças opostas do
anjo e do diabo. O diabo, por ter a simpatia dos indígenas, é sempre retratado negativamente nas obras
de Anchieta. Seu discurso promove íntima relação entre o diabo e o universo indígena anterior à ação
jesuítica, visando infundir nos índios temor absoluto. Entre os recursos retóricos buscados por Anchieta,
o ardil mais sibilino, na concepção de Bastos (2011) é o empréstimo, aos diabos postos em cena, de
nomes próprios de chefes guerreiros hostis aos portugueses católicos.

Nos textos literários, poemas e autos, Anchieta ora usa a primeira pessoa do singular, ora a primeira
do plural, dando voz aos índios, que se dizem, nos textos criados, arrependidos dos vícios e dos defeitos
de seus costumes típicos, de quando ainda viviam sob a influência do diabo.

– Vivemos como selvagens,


somos filhos da floresta.
Viemos saudar-te [à Virgem Maria],
renunciamos os vícios.
te acompanharemos

25
Unidade I

entrando no reino do Deus!


Vem ensinar-nos
a seguir tuas leis
vivendo nessa serra
não sei muita coisa
danço aqui
à moda dos meus.
Hoje, em homenagem à tua visita,
Repudiarei meus defeitos.
Aproximo-me do verdadeiro Deus.
Venerarei suas palavras.
– Aqui estou à tua frente
– eu, que era um rebelde!
Vem abrigar-me
Em tua virtude! (ANCHIETA, 1989, p. 582).

Na produção poética de Anchieta, os costumes indígenas, os velhos hábitos, passam a ser renegados.
São apresentados como condenáveis:

Evitai,
de hoje em diante, serdes maus,
para extinguirdes vossos velhos hábitos,
– a bebida, o fétido adultério,
mentiras, brigas,
ferimentos mútuos, guerras (ANCHIETA, 1989, p. 647).

Em outra poesia, o leitor depara-se com um texto que parece contraditório à ideologia jesuítica:

É bom dançar,
adornar-se, tingir-se de vermelho,
empenar o corpo, pintar as pernas,
fazer-se negro, fumar,
curandeirar...

De enfurecer-se, andar matando,


comer um ao outro, prender tapuias,
amancebar-se, ser desonesto,
espião, adultero
– não quero que o gentio deixe (ANCHIETA, 1989, p. 691).

Como bem explica Bastos (2011, p. 59), na obra de Anchieta,

toda essa defesa dos maus costumes é proclamada por um diabo, entidade
representativa do mal, o que dá às suas palavras a condição reflexa de
26
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

enunciado negativo, na medida em que, pela lógica cristã, tudo o que


procede do Diabo é pernicioso.

No auto de representação de Guaixará (personagem diabo com nome de chefe guerreiro), ele diz:

– Sou Guaixará, o bêbado,


Grande boicininga, jaguar,
Antropófago, agressor,
Andirá-guaçu, que voa,
Demônio assassino (ANCHIETA, 1989, p. 701).

Como observam Cafezeiro e Gadelha (apud BASTOS, 2011, p. 60), estudiosos atuais:

Para o indígena, nada significava ser Deus ou o Diabo. Ora, a dança, as cores
(especialmente o vermelho): o estranho da figura do diabo com chifres e rabo;
o ritmo; o canto fascinavam os índios, que, também já vimos, tinham nestas
manifestações o único meio de se libertar das aflições, do tormento que o próprio
cotidiano lhes levava. Daí a alegoria do diabo funcionar, ao contrário, como
motivação, incitação psicológica, magia e não como elemento de repressão, o
que acontecia com os portugueses, para quem a ideia de diabo era aterradora.

Diante da produção poética de Anchieta, a intenção dele era desqualificar o universo indígena e sua
expectativa, então, era criar um novo imaginário no índio. Assim, costumes indígenas como a alegria
ingênua advinda da bebida e da dança são mostrados como perdição, como ocorre em outro poema, em
que há um diálogo entre o diabo Aimberê (nome de chefe guerreiro) e o Anjo:

Eles são pecadores,


Repelem o amor de Deus
E orgulham-se disso levianamente.
– Se o cauim regorgita nas igaçabas,
Então elas o tentam,
Como as cuias da velhas...

As grandes cabaças tolhem


Sua liberdade espiritual.
Excitados pela dança,
Ganhamos-lhes os corações,
Desrespeitam o seu criador... (ANCHIETA, 1989, p. 703).

No poema, o diabo descreve um festim indígena, com dança e bebida (cauim), o qual se torna uma
situação de ação maléfica.

Enfim, a adoção de nomes de guerreiros indígenas para o personagem diabo aparece em mais de
uma obra de Anchieta. Os nomes Guaixará e Aimbirê são verídicos. O primeiro foi herói tamoio que, em
27
Unidade I

1564, tomou parte dos ataques dos tamoios de Cabo Frio, aliados dos franceses, contra os portugueses
de São Sebastião; o segundo, também chefe tamoio e aliado dos franceses, tornou-se herói do poema
épico romântico Confederação dos Tamoios (1856), de Gonçalves de Magalhães. Anchieta recorre a esses
nomes, cujos donos tinham sido hostis ao projeto evangelizador/colonizador, e promoveu a identificação
onomástica do mal, uma vez que os chefes tamoios são, nos textos, diabos. Ele visava inculcar na
mente dos índios a certeza de que os tamoios que haviam resistido aos portugueses não eram heróis
reverenciados, mas demônios a serem exorcizados. Os autos eram representados, em forma teatral, duas
ou três décadas depois dos acontecimentos históricos, quando os chefes tamoios já estavam mortos há
muito tempo, não constituindo, então, perigo à segurança dos portugueses.

Em síntese, nos textos literários de Anchieta, o índio aparece sob a marca da negatividade, não
merecendo um olhar compreensivo do Apóstolo do Brasil.

Bento Teixeira (1561-1600?) escreveu Prosopopeia, poema épico publicado em Lisboa em 1601.
São 752 versos sobre os feitos de Jorge de Albuquerque Coelho, terceiro donatário da capitania de
Pernambuco, narrados por Proteu, deus marinho dotado do poder de profetizar os fatos.

Esse poema é considerado a primeira obra de cunho inteiramente literário, sem se voltar, portanto,
à catequese, como ocorre com as obras de José de Anchieta. É um texto produzido na colônia, podendo
ser um marco do início da literatura brasileira, mesmo levando em conta o fato de Bento Teixeira não
ser brasileiro de nascimento.

Em Prosopopeia, os principais pontos do percurso do herói são:

• sua atuação contra os indígenas no processo de colonização da terra, entre os anos de 1560 a 1565;
• sua atribulada viagem a Lisboa, em 1565, na qual enfrentou motins a bordo, tempestades em
alto-mar, ataques de corsários franceses e só com muito esforço chegou ao seu destino, trôpego
e com poucos remanescentes da tripulação;
• sua participação malograda na campanha de Alcácer-Quibir (1578), na África, na qual morreu o
rei de Portugal, Dom Sebastião (BASTOS, 2011).

Nesse poema, a presença do índio é mínima. A primeira referência é encontrada na parte que fala
do pai de Jorge Albuquerque Coelho. Duarte Coelho Pereira foi o primeiro donatário de Pernambuco e
entre seus triunfos está o fato de ter amansado os índios caetés:

O braço invicto vejo com que amansa


A dura cerviz bárbara insolente,
Instruindo na Fé, dando esperança Do bem que sempre dura e é presente
(TEIXEIRA, 1969, estrofe XXVII).

Versos adiante, agora se referindo ao herói e seu irmão (nomeado para o governo, em razão da morte
do pai), os quais se viram também às voltas com a pacificação dos índios, o poeta emprega outro verbo
contundente e pouco apropriado para lidar com seres humanos: domesticar.
28
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

O Princípio de sua Primavera


Gastarão seu distrito dilatando,
Os bárbaros cruéis e gente Austera,
Com meio singular domesticando (TEIXEIRA, 1969, estrofe XXX).

Segundo a leitura interpretativa de Bastos (2011), os jovens senhores, com pouco mais de 20 anos,
no Princípio da Primavera, estavam empenhados em dilatar seu distrito por meio da persuasão pacífica;
mas, caso não conseguissem, há outros meios, como prenuncia Proteu:

E primeiro que a espada lisa, e fera,


Arranquem, com mil meios de amor brando,
Pretenderão tirá-la, de seu erro,
E senão porão tudo a fogo, e ferro (TEIXEIRA, 1969, estrofe XIX).

Contra a gente austera e bárbaros cruéis, ou seja, o povo indígena rude, os heróis usariam instrumentos
decisivos da ação pacificadora; nada menos do que o fogo e o ferro. A descrição que segue está bem de
acordo com o gosto épico pela sangria explícita, não deixando dúvida sobre o resultado do ferro e do
fogo pelos braços vigorosos e constantes dos esforçados irmãos:

Os braços vigorosos e constantes


Fenderão peitos, abrirão costados,
Deixando de mil membros palpitantes
Caminhos, arraiais, campos juncados;
Cercas soberbas, fortes repugnantes
Serão dos novos Martes arrasados,
Sem ficar deles todos mais memória
Que a qu’eu fazendo vou em esta História (TEIXEIRA, 1969, estrofe XXXI).

Como coroamento dessa obra meritória dos irmãos, “Quais dois soberbos rios espumosos” (TEIXEIRA,
1969, estrofe XXXII), farão destruição em toda parte, dando aos bárbaros “total exício”. Os portugueses,
na época, usavam de estratagema que consistia em embebedar índios para que denunciassem os
companheiros que matavam os brancos e os escravos. A punição contra os responsáveis é contada pelo
Frei Vicente do Salvador, em texto de 1627:

A uns mandou [Jerônimo de Albuquerque] pôr em bocas de bombardas e


dispará-las à vista dos mais, para que os vissem voar feitos pedaços, e outros
entregou aos acusadores que os mataram em terreiro e os comeram em
confirmação de sua inimizade (apud BASTOS, 2011, p. 65).

O narrador Proteu cria uma linha genealógica bizarra para reforçar a condição inferior do índio. No
poema, os índios descendem de Vulcano, que se opõe às intenções dos portugueses:

Porque Lemnio cruel, de quem descende


A Barbara progênie, e insolência,
29
Unidade I

Vendo que o Albuquerque tanto ofende,


Gente que dele tem a descendência,
Com mil meios ilícitos pretende,
Fazer irreparável resistência,
Ao claro Jorge, varonil, e forte,
Em quem não dominava a vária sorte (TEIXEIRA, 1969, soneto XLV).

Lembrete

O deus Vulcano, de acordo com a lenda, tem como local de refúgio


a ilha de Lemnos e uma imagem nada honrosa: deus pagão feio, coxo e
vítima de traição por parte da esposa, Vênus.

Em resumo, é assim que estreia o índio na literatura brasileira: estigmatizado e como obstáculo a
ser tirado do caminho do herói. Na obra de Bento Teixeira, o índio aparece bem diverso da impressão
favorável de Pero Vaz de Caminha e dos cronistas que conheceram o índio em “seu habitat quase
edênico, livre, digno e insubmisso” (BASTOS, 2011, p. 66).

Outro escritor dessa época é Gregório de Matos (1633-1696), em cuja obra o índio é presença
apenas oblíqua. Gregório de Matos viveu em século posterior ao de José de Anchieta, em uma sociedade
menos rudimentar e essencialmente urbana. Assim, Matos recorre à figura do índio apenas como dado
referencial para ridicularizar as pretensões da aristocracia dos baianos de seu tempo.

Aos principais da Bahia chamados os Caramurus

Há cousa como ver um Paiaiá


Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de Tatu,
Cujo torpe idioma é cobé pá.

A linha feminina é carimá


Moqueca, pititinga caruru
Mingau de puba, e vinho de caju
Pisado num pilão de Piraguá.

A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé um branco Paí
Dormiu no promontório de Passé.

O Branco era um marau, que veio aqui,


Ela era uma Índia de Maré
Cobé pá, Aricobé, Cobé Paí (MATOS, 1990, p. 640).

30
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

O poeta denuncia a ascendência indígena de suas vítimas, pois para ele a genealogia apresenta-se
como motivo de vergonha e não de orgulho. Ele ironiza esse aristocrata “descendente do sangue de
Tatu, / cujo torpe idioma é cobé pá”. Para o poeta, é pretensão absurda um descendente de branco e índio
querer passar por Caramuru, isto é, de raça branca.

Na descrição desse Paiaiá, o poeta descreve tanto a linha genealógica feminina quanto a masculina.
Na descrição da linha feminina, na segunda estrofe, recorre a dados culinários indígenas. A feminina é a
carimá com sua moqueca, pititinga etc. Na descrição da linhagem masculina, esse Paiaia é um Aricobé,
fruto de um branco Paí e a índia, filha de um Cobé.

A última estrofe sintetiza a ancestralidade, que é indesejável. No poema, enfim, o universo indígena
é trabalhado com a intenção de causar estranheza e até repugnância em relação à mestiçagem. Tal
efeito é obtido pela seleção lexical bizarra e pelo constante emprego de rima oxítona, desqualificando a
ascendência daqueles que dão ares de nobreza.

Outro poema é:

Ao mesmo assunto

Um calção de pindoba a meia zorra,


Camisa de Urucu, mantéu de Arara,
Em lugar de cotó arco, e taquara
Penacho de Guarás, em vez de gorra.

Furado o beiço e sem temor que morra,


O pai, que lho envazou com uma titara,
Senão a Mãe, que a pedra lhe aplicara,
A reprimir-lhe o sangue, que não corra.

Animal sem razão, bruto sem fé,


Sem mais Leis, que as do gosto, quando erra,
De Paiaiá virou-se em Abaeté.

Não sei onde acabou, ou em que guerra,


Só sei que deste Adão de Massapé,
Procedem os fidalgos desta terra (MATOS, 1990, p. 641).

Com estudada crueldade, o poeta convoca elementos da aparência física e psicológicos


caracterizadores do indígena brasileiro. Da aparência, o poeta realça contrastivamente a indumentária:
a pindoba fazendo as vezes do calção; o peito pintado de Urucu; pela Camisa; o arco e a taquara
substituindo o cotó; e o Penacho de Guarás no lugar de gorra; e o costume nativo de furar o beiço com
uma titara (graveto de palmeira) e estancar o sangue com uma pedra.

Dos traços psicológicos, o poeta rebaixa os valores culturais do índio, reforçando o prototípico de um
índio irracional, bestial e errante.
31
Unidade I

A Cosme Moura Rolim, Insigne Mordaz Contra os Filhos de Portugal

Um Rolim de Monai Bonzo Bramá


Primaz de Greparia do Pegu,
Que sem ser do Pequim, por ser do Açu,
Quer ser filho do Sol nascendo cá.

Tenha embora um Avô nascido lá,


Cá tem três para as partes do Cairu,
Chama-se o principal Paraguaçu
Descendente este tal de um Guinamá.

Que é fidalgo nos ossos, cremos nós.


Que nisto consistia o mor brasão
Daqueles, que comiam seus avós.

E como isto lhe vem por geração,


Tem tomado por timbre em seus teirós
Morder, aos que provêm de outra Nação (MATOS, 1990, p. 642).

Nesse poema, ocorre a dubiedade de sentidos do verbo morder. Rolim herdara dos antepassados,
e como diz o poeta “E como isto lhe vem por geração”, o costume de morder, em sentido estrito, e
o empregava, agora em sentido figurado, em “Morder, aos que provêm de outra Nação” nos “teirós”
(conflitos) em que se metia esse “fidalgo nos ossos”. A expressão “fidalgo nos ossos” é, segundo Bastos
(2011), maldosa e habilíssima alusão à antropofagia dos antepassados de Rolim. Este era descendente
de “um Avô nascido lá”, no Extremo Oriente, e de um avô índio, tendo, então, “três para as partes do
Cairu”, que usava os ossos dos inimigos comidos como adereço de distinção, já que “Que nisto consistia
o mor brasão”.

O índio, de forma geral, é caracterizado como inferior, objeto de ironia ou de maledicência, nunca
empática. No caso da obra de Gregório de Matos, o índio não é objeto de interesse específico nem
alvo direto de seu ressentimento, apenas uma imagem risível para servir de termo de comparação
rebarbativa para aqueles que se orgulhavam de serem caramuru e, devido a suas pretensões de serem
nobres, encobriam sua descendência nativa.

Como podemos observar, as primeiras aparições do índio na literatura brasileira não lhe foram
favoráveis.

1.3 O índio na poesia do século XVIII

A obra Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia, de 1781, é de Santa Rita de Durão
(1722-1784). O argumento é, nas palavras do próprio autor,

o descobrimento da Bahia, feito quase no meio do século XVI por Diogo


Álvares Correia, nobre vianês, compreendendo em vários episódios a história
32
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

do Brasil, os ritos, tradições, milícias dos seus indígenas, como também a


natural, e política das colônias (DURÃO, 2003, p. 13-14).

A figura do índio, portanto, constitui-se ainda secundária. O herói legítimo do poema é o português
Diogo Álvares Correia, que teria naufragado nas costas baianas e visto, com pesar, seis companheiros
de infortúnio devorados pelos índios. Diogo foi salvo por se encontrar doente no momento da captura.
Junto aos índios, que o mantiveram vivo “para melhor nutrido servir-lhes de mais gostoso pasto”
(DURÃO, 2003, p. 14), matou com uma espingarda uma ave, causando espanto nos nativos, que “o
aclamaram Filho do Trovão, e Caramuru, isto é, Dragão do mar” (DURÃO, 2003, p. 14). Mais tarde, no
combate com indígenas do sertão, venceu-os. Os chefes ofereceram-lhe inúmeras regalias, entre elas as
filhas, tendo Diogo escolhido apenas uma, Paraguaçu. Eles se casaram e foram para a França. Na volta à
Bahia, Diogo realizou grandes feitos e Paraguaçu, depois de uma visão da Virgem Santíssima lhe pedindo
para resgatar sua imagem, “roubada por um Selvagem” (DURÃO, 2003, p. 15), lançou-se à procura,
encontrando a imagem e, “com exclamações de jubilo, se lançou a abraçá-la” (DURÃO, 2003, p. 15). Na
síntese da crítica de Bastos (2011, p. 92):

Até o fim dos seus dias, gozaram ambos, Diogo/Caramuru e Paraguaçu/


Catarina, da maior consideração dos poderosos, servindo a sua estória como
ilustração perfeita da ação piedosa e civilizadora do conquistador branco e
cristão em relação ao povo da terra.

Essa obra, lançada dez anos depois do épico O Uraguai, de Basílio da Gama, que constrói relativa
elevação de status dos índios, divide a opinião dos críticos literários, pois, para metade destes, volta à
concepção de inferioridade completa do nativo. De fato, logo na abertura do poema, o poeta ressalta o
aspecto mais negativo da cultura indígena, a antropofagia. Da visão de um náufrago, diz o poeta (Canto
I, estrofes XVII-XVIII):

Correm, depois de crê-lo, ao pasto horrendo,


E, retalhando o corpo em mil pedaços,
Vai cada um famélico trazendo,
Qual um pé, qual a mão, qual outros os braços;
Outro na crua carne iam comendo,
Tanto na infame gula eram devassos;
Tais há que as assam nos ardentes fossos,
Alguns torrando estão na chama os ossos.

Que horror da humanidade! ver tragada


Da própria espécie a carne já corrupta!
Quando não deve a Europa abençoada
A fé do Redentor, que humilde escuta!
Não era aquela infâmia praticada
Só dessa gente miseranda e bruta:
Roma e Cartago o sabe no noturno
Horrível sacrifício de Saturno (DURÃO, 2003, p. 22).
33
Unidade I

Na recepção dos índios ao náufrago, o poeta ressalta o lado negativo, mesmo admitindo que os índios
não inauguraram o costume de comer carne humana. No entanto, continua explícita sua repugnância
contra o canibalismo. No poema, apenas os cristãos estão isentos do canibalismo.

Em outro momento, no Canto V, o poeta indica o lado positivo dos índios, como a bravura nos
momentos de guerra. Bambu, feito prisioneiro por Taparica, pai de Paraguaçu, recusa a liberdade que foi
oferecida por Diogo, seu adversário:

LIX

Estava o desditoso encadeado,


E exposto a mil insetos que o mordiam;
Nem se lhe via o corpo ensanguentado,
Que todos os maribondos lhe cobriam.
Corria o negro sangue derramado
Das cruéis picaduras que lhe abriam;
E ele, imóvel entanto em tosco assento,
Parecia insensível no tormento.

LX

Vendo Diogo o infeliz quanto padece


No modo de penar mais desumano,
Maior a tolerância lhe parece
Do que possa caber num peito humano.
E, como autor do crime reconhece
Do cruel sogro o coração tirano,
Oferece a Bambu, que a morte ameaça,
Socorro amigo na cruel desgraça.

LXI

«Perdes comigo o tempo (disse o fero);


Ao que vês, e ainda a mais vivo disposto.
A liberdade, que me dás, não quero,
E da dor, que tolero, faço gosto.
Assim vingar-me do inimigo espero.
Disse; e, sem se mudar do antigo posto,
As picadas cruéis tão firme atura,
Como se penha fora, ou rocha dura.

LXII

«Se o motivo, diz Diogo, por que temes,


É porque escravo padecer receias,
34
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

E tens por menos mal este, em que gemes,


Do que uma vida em míseras cadeias,
Depõe o susto, que sem causa tremes;
Penhor te posso dar, por onde creias,
Depondo a obstinação do torpe medo,
Que a vida e liberdade te concedo.

LXIII

Aqui da fronte o bárbaro desvia


Dos insetos coa mão a espessa banda;
E a Diogo, que assim se condoía,
Um sorriso em resposta alegre manda.
«De que te admiras tu? Que serviria
Dar ao vil corpo condição mais branda?
Corpo meu não é já; se anda comigo,
Ele é corpo em verdade do inimigo.

LXIV

O espírito, a razão, o pensamento


Sou eu e nada mais; a carne imunda
Forma-se cada dia do alimento,
E faz a nutrição, que se confunda.
Vês tu a carne aqui, que mal sustento?
Não a reputes minha: só se funda
Na que tenho comido aos adversários;
Donde minha não é, mas dos contrários.

LXV

Da carne me pastei continuamente


De seus filhos e pai; dela é composto
Este corpo, que animo de presente.
Por isso dos tormentos faço gosto.
E, quando maior pena a carne sente,
Então mais me consolo, do suposto
Do me ver no inimigo bem vingado,
Neste corpo, que é seu, tão mal tratado.
Fonte: Durão (2003, p. 131-132).

O índio Bambu, ensanguentado e com todos os insetos o cobrindo, afronta Diogo, não aceitando
a liberdade. O corpo que sofre dor física não mais pertence ao índio, mas ao inimigo. Bambu alegra-se

35
Unidade I

com os próprios tormentos, pois lhe serve de consolo saber que pode ver-se “no inimigo vingado, / Nesse
corpo, que é seu, tão mal tratado”.

Segundo a leitura de Bastos (2011, p. 94):

Apenas uma vez os índios são representados como medrosos. É quando


Diogo aparece-lhe vestido com a armadura e demais apetrechos de combate
– o escudo, a alabarda, a espada e a espingarda (Canto II, VIII) – e é tomado
por um demônio, “anhangá”. O medo, neste caso, é compreensível, dada à
sobrenaturalidade suposta daquela visão.

De forma geral, a aparência dos índios é ressaltada como feroz e amedrontadora, principalmente dos
chefes, além dos seus hábitos incivilizados, como a gula, que, segundo o poeta Durão, não distinguia feras
dos homens. As mulheres indígenas também são descritas como torpes, feias, com imagem “propriíssima
do diabo” (Canto I, LXXX). Somente as jovens, incluindo Paraguaçu, são consideradas formosas.

Paraguaçu, em especial, devido a seu papel de heroína, é caracterizada por sua superioridade sobre
as outras índias.

LXXVIl

Perguntá-lo dos bárbaros quisera;


Mas, como o aceno e língua muito engana,
Acaso soube que a Gupeva viera
Certa dama gentil brasiliana;
Que em Taparica um dia compreendera
Boa parte da língua lusitana;
Que português escravo ali tratara,
De quem a língua, pelo ouvir, tomara.

LXXVIII

Paraguaçu gentil (tal nome teve)


Bem diversa de gente tão nojosa,
De cor tão alva como a branca neve,
E donde não é neve, era de rosa;
O nariz natural, boca mui breve,
Olhos de bela luz, testa espaçosa;
De algodão tudo o mais, com manto espesso,
Quanto honesta encobriu, fez ver lhe o preço (DURÃO, 2003, p. 65-66).

Ela, antes mesmo de conhecer Diogo, já dominava a língua portuguesa, por ter contato com um
escravo português. A aparência física é absolutamente desprovida de seu mundo natural. Ela é, em
primeiro lugar, diferente da “gente tão nojosa”; sua pele é alva, branca como a neve, e seus traços finos,
36
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

semelhantes à pastora do imaginário arcadista europeu, não faltando sequer o clichê transatlântico da
neve. A brancura extrema com matizes de rosa é inconcebível ao povo ameríndio.

Junto à beleza, suas qualidades morais são exaltadas e, igualmente, em desacordo com o meio.
Contrariamente ao ardor e desenvoltura das outras apaixonadas índias, Paraguaçu não hesita em
guardar-se (a conselho de Diogo) para o matrimônio cristão; ela é casta e jura-lhe obediência e fidelidade
(Canto II):

XC

Esposa (a bela diz), teu nome ignoro,


Mas não teu coração, que no meu peito,
Desde o momento em que te vi, que o adoro:
Não sei se era amor já, se era respeito,
Mas sei do que então vi, do que hoje exploro,
Que de dois corações um só foi feito.
Quero o batismo teu, quero a tua igreja,
Meu povo seja o teu, teu Deus meu seja.

XCI

Ter-me-ás, caro, ter-me-ás sempre a teu lado


Vigia tua, se te ocupa o sono;
Armada sairei, vendo-te armado,
Tão fiel nas prisões como num trono.
Outrem não temas que me seja amado;
Tu só serás senhor, tu só meu dono:
Tanto lhe diz Diogo, e ambos juraram;
E em fé do juramento as mãos tocaram (DURÃO, 2003, p. 67).

Na interpretação de José Veríssimo (BASTOS, 2011), o frade Santa Rita Durão transformou Diogo
e Paraguaçu em esposos castos como dita a lenda cristã, tornando Caramuru triste e grave como um
monge. Não é surpresa, portanto, a completa conversão de Paraguaçu à religião dos brancos europeus,
incluindo o batismo e a troca de nome – passa a ser Catarina –, e sua renúncia aos direitos tupinambás,
como herdeira dos seus maiores principais.

A trajetória de Paraguaçu atende ao propósito ideológico da colonização, que é a submissão simbólica


do Brasil a Portugal, comprovada na fala de Paraguaçu:

LXVIII

Esta insigne progênie o céu promete,


Brasil agora rude, aos teus vindouros!
O colo humilde entanto ao rei submete,
37
Unidade I

E oferece-lhe contente os teus tesouros.


E entre tantas nações, que ao jugo mete
À sombra Portugal dos verdes louros,
Sem provares da guerra o furor vário,
Chega ao trono a humilhar-te voluntário.

LXIX

E, se princesa me chamais sublime


Dos vossos principais nascida herdeira,
Se ao grão-Caramuru, que o raio imprime,
Jurastes vassalagem verdadeira,
Ele da sujeição tudo hoje exime,
Cedendo ao trono luso a posse inteira,
E eu do monarca na real pessoa
Cedo todo o direito e entrego a c’roa (DURÃO, 2003, p. 238).

A poesia épica do século XVIII, de forma geral, não poderia excluir o índio de sua temática. A razão é
o compromisso com a história e a celebração da vitória do colonizador português.

Observação

A produção literária do século XVIII no Brasil/Portugal é denominada


Arcadismo. Os autores dessa escola literária inspiraram-se no cenário
bucólico da mitológica Arcádia.

Contrariamente à poesia épica, porém, a lírica do Arcadismo não dedicou atenção especial ao índio.
Causa espanto, uma vez que essa escola literária apregoava a vida em contato direto com a natureza,
contemporânea à exaltação do homem natural por Rousseau, em texto de 1754, que aconselhava:

Retomai, posto que depende de vós, vossa antiga e primeira inocência,


ide aos bosques esquecer o espetáculo e a memória dos crimes de vossos
contemporâneos e não temais aviltar vossa espécie renunciando às suas
luzes para renunciar a seus vícios (apud BASTOS, 2011, p. 118).

Levando em conta que os poetas do século XVIII tinham como herói o pastor localizado em espaço
sereno bucólico, os poetas, então, desconsideraram a crispação dramática da selva americana, bem
como o homem natural dessa selva, que era visto como rústico, bruto ou animalesco.

Nas exceções em que aparece a figura indígena, o leitor depara-se com o poema de Alvarenga
Peixoto:

38
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

O sonho

Oh que sonho! Oh! que sonho eu tive n’esta,


Feliz, ditosa e socegada sésta!
Eu vi o Pão de Assucar levantar-se
E no meio das ondas transformar-se
Na figura de um indio o mais gentil,
Representando só todo o Brazil.
Pendente ao tiracol de branco arminho
Concavo dente de animal marinho
As preciosas armas lhe guardava;
Era thesoiro e juntamente aljava.
De pontas de diamante eram as setas,
As hásteas d’oiro, mas as pennas pretas;
Que o indio valeroso altivo e forte
Não manda seta, em que não mande a morte,
Zona de pennas de vistosas côres
Guarnecida de barbaros lavores,
De folhetas e perolas pendentes,
Finos chrystaes, topazios transparentes,
Em recamadas pelles de sahiras,
Rubins, e diamantes e saphiras,
Em campo de esmeralda escurecia
A linda estrella, que nos traz o dia.
No cocar... oh que assombro! oh que riqueza!
Vi tudo quanto póde a natureza.
No peito em grandes letras de diamante
O nome da augustissima imperante.
De inteiriço coral novo instrumento
As mãos lhe occupa, em quanto ao doce accento
Das saudosas palhetas, que afinava,
Pindaro americano assim cantava.
            Sou vassallo e sou leal,
                   Como tal,
                   Fiel constante,
            Sirvo á glória da imperante,
            Sirvo á grandeza real.
            Aos elysios descerei
            Fiel sempre a Portugal,
            Ao famoso vice-rei,
            Ao illustre general,
            Ás bandeiras, que jurei,
            Insultando o fado e a sorte,
            E a fortuna desigual,
            Qu’a quem morrer sabe, a morte
            Nem é morte, nem é mal (COSTA et al. 1996, p. 941).

39
Unidade I

Ressalta-se que o poeta não via o Brasil separado de Portugal, embora tivesse alguma preocupação
nativista. No poema anterior, o Pão de Açúcar transforma-se na “figura do índio mais gentil” e, nesta
condição, como um “Píndaro Americano”, presta a mais explícita vassalagem à “Augustíssima Imperante”,
a rainha de Portugal D. Maria I.

Essa figura mais gentil não é especificamente o índio, mas o Brasil como um todo. Os atributos
“valeroso, ativo e forte” estendem-se a todos os brasileiros. O autor adotou o índio para a representação
do Brasil, mas poderia ter recorrido a qualquer outro componente da paisagem brasileira. A figura do
índio, marcada pela opulência das penas coloridas, de perolas, cristais etc., torna-se, portanto, apenas
uma alegoria.

Outro poema que faz menção ao índio é a Carta Décima das Cartas chilenas, de Tomás Antonio
Gonzaga:

Talvez prezado amigo, que nós, hoje,


Sintamos os castigos dos insultos
Que nossos pais fizeram; estes campos
Estão cobertos de insepultos ossos
De inumeráveis homens que mataram.
Aqui ou europeus se divertiam
Em andarem à caça dos gentios
Como à caça das feras, pelos matos.
Havia tal que dava, aos seus cachorros,
Por diário sustento, humana carne,
Querendo desculpar tão grave culpa
Com dizer que os gentios, bem que tinham
A nossa semelhança, enquanto aos corpos,
Não eram como nós, enquanto às almas.
Que muito, pois, que Deus levante o braço
E puna os descendentes de uns tiranos
Que, sem razão alguma e por capricho,
Espalharam na terra tanto sangue (GONZAGA, 2006, p. 174-175).

O poeta fala de castigos por crimes passados, cujas marcas, os “insepultos corpos / de inumeráveis
homens que [os europeus] mataram”, são ainda visíveis no momento do poeta. Ele fala dos europeus
que se divertiam com a caça aos índios, chegando, um deles, à infâmia de alimentar os cães com a carne
humana dos índios. O motivo dos crimes devia-se ao fato de os europeus não acreditarem na existência
de alma dos indígenas.

De acordo com Bastos (2011), nenhum outro texto do século XVIII assumiu um posicionamento
indiscutivelmente condenatório do tratamento dispensado pelos europeus aos índios.

40
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Exemplo de Aplicação

I. O poema a seguir é do português e padre Sousa Caldas, publicado em 1783. Em que o poema
se difere das poesias dos três primeiros séculos de colonização no que diz respeito à figura do índio
brasileiro?

Ode ao Homem Selvagem

[...]
Que Augusta imagem de esplendor subido
Ante mim se figura!
Nu; mas de graça e de valor vestido
O homem natural não teme a dura
Feia mão da Ventura:
No rosto a Liberdade traz pintada
De seus sérios prazeres rodeada.
[...]
Eu vejo o mole sono sussurrando
Dos olhos pendurar-se
Do frouxo Caraíba que, encostando
Os membros sobre a relva, sem turbar-se,
O Sol vê levantar-se,
E nas ondas, de Tétis entre os braços,
Entregar-se de Amor aos doces laços.
Ó Razão, onde habitas?... na morada
Do crime furiosa,
Polida, mas cruel, paramentada
Com as roupas do Vício, ou na ditosa
Cabana virtuosa
Do selvagem grosseiro?... Dize... aonde?
Eu te chamo, ó filósofo! responde.
Qual o astro do dia,
Que nas altas montanhas se demora,
Depois que a luz brilhante e criadora,
Nos vales já sombria,
Apenas aparece; assim me prende
O Homem natural, e o Estro acende.
Fonte: Sousa Caldas (apud HOLANDA, 1979, p. 398-399).

41
Unidade I

2 EPOPEIA NO BRASIL COLONIAL: UMA ILUSTRAÇÃO

Assinale as obras consideradas epopeias:

( ) A divina comédia, de Dante Alighieri.

( ) Os lusíadas, de Camões.

( ) Odisseia, de Homero.

( ) O Uraguai, de Basílio da Gama.

Se você assinalou todas as obras indicadas, ou tem boa memória ou é um excepcional leitor
literário que já leu quase ou todas elas. Afinal, não possuímos mais autores épicos em nosso mundo
contemporâneo, preocupado com novidades e velocidade, incluindo aí a própria leitura. Ler mais de oito
mil versos d’Os lusíadas, por exemplo, quando podemos ler um microconto com 140, 170 caracteres?

No Brasil setecentista, encontramos uma onda camoniana, ou seja, produção de vários poemas
épicos escritos no país, seguindo literalmente ou com modificações a estrutura do épico de Camões.
Entre esses poemas, temos a obra O Uraguai, de Basílio da Gama, publicada em 1769.

O interesse por essa obra atende a dois aspectos. Primeiro, esta disciplina trata da literatura poética,
que abrange a lírica, ou seja, os poemas, mas também a epopeia. Afinal, uma epopeia é toda estruturada
em versos. Segundo, a obra de Gama representa “a única manifestação realmente viva de poesia épica
no período colonial brasileiro” (TEIXEIRA apud BASTOS, 2011, p. 77).

A epopeia é uma forma culta proveniente da Grécia antiga, com ressalva de que a palavra propriamente
dita – o substantivo epopeia – só é encontrada na língua francesa do início do século XVII.

A corrente teórico-crítica dominante atualmente, segundo Vania Chaves (2000), identifica epopeia
com o poema épico de dimensão alargada e reconhece a diversidade de suas formas históricas. A epopeia
pode ser criação oral e popular ou erudita e individual, religiosa ou de mitos, lendas que narram guerras
e feitos históricos ou que inventam aventuras romanescas.

Na época do autor Basílio da Gama, no século XVIII, a epopeia era reconhecida pelas características
de herança do mundo greco-latino, em especial do modelo do grego Homero, cuja poesia era vista como
mais nobre e perfeita.

De forma geral, um modelo típico de epopeia clássica é estabelecido e seus traços essenciais, nem
sempre presentes em sua totalidade nos textos concretos, são (CHAVES, 2000):

• coexistência do heroico, do maravilhoso e do didático;

• mundo estável, onde o herói triunfa com a ajuda de forças sobrenaturais;


42
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

• grandiosidade, produto da mitificação do real e da intervenção de divindades;

• assunto de fonte histórica ou lendária;

• ação em geral de natureza guerreira e de importância nacional;

• narrador é onisciente e onipresente, sustentado pelo saber e poder de divindades protetoras;

• preponderância das fábulas, com única ação central com múltiplos episódios;

• certa autonomia dos episódios;

• digressões históricas ou mitológicas, com função política, moral ou religiosa;

• personagens como seres excepcionais por seu nascimento, valor guerreiro, patriotismo, sentimento
religioso, dotes intelectuais ou virtudes morais;

• estilo solene e grandiloquente;

• fixidez e serenidade da visão do narrador;

• vivacidade e tensão dramáticas, possibilitadas pelos diálogos;

• emprego de formas exteriores de construção, como a divisão em livros ou cantos e a quadripartição


em proposição, invocação, dedicatória e narração;

• início in medias res;

• antecipações e retrospecções;

• propósito de intervenção social, política ou religiosa.

Historicamente, a epopeia sofre modificações. Em Portugal, o autor de Os lusíadas, não obstante as


influências greco-latinas, realizou uma fórmula original, viva e moderna de poesia épica, sobrepujando
os demais arquétipos, e impôs sua forma e matéria à produção épica de língua portuguesa. Como não
podia ser diferente, enquadram-se nesse quadro de seguidores camonianos as poucas criações épicas
da colônia brasileira: Prosopopeia (1601), de Bento Teixeira, Caramuru (1781), de Santa Rita Durão, Vila
Rica (1773), de Claudio Manuel da Costa, e O Uraguai, de Basílio da Gama.

43
Unidade I

Saiba mais

Foi encontrado, em catálogo da Companhia de Jesus e divulgado pelo


padre Serafim Leite, na sessão da Academia Brasileira de Letras em 1941, o
registro que está em Roma sobre o poeta Basílio da Gama.

Para saber mais sobre o poeta, sua notoriedade em Roma, sua expulsão
da Companhia de Jesus, entre tantos outros aspectos interessantes, leia
o livro de Vania Pinheiro Chaves – O despertar do gênio brasileiro: uma
leitura de O Uraguai de José Basílio da Gama. Campinas: Unicamp, 2000.

2.1 Construção épica de O Uraguai

O poeta de O Uraguai seguiu a orientação dominante da época clássica e foi seu assunto em um
acontecimento de projeção nacional, inspirando-se, sobretudo, nos eventos que ocorrem em torno da
assinatura e execução do tratado de 1750 a respeito dos limites territoriais coloniais entre Portugal e
Espanha. Essas metrópoles tentaram trocar a colônia de Sacramento, pertencente à Coroa portuguesa,
pelo território espanhol situado na margem esquerda do rio Uruguai, em que a Companhia de Jesus
tinha instalado sete povos missioneiros. Para demarcar as novas fronteiras, foram enviados militares
chefiados pelo general português Gomes Freire de Andrade, pelo marquês espanhol Valdelirios e pelo
general José de Andonaegui. Esses comandantes combateram contra milhares de indígenas; de um lado,
dois exércitos poderosos e modernos, de outro, índios com arcos, flechas e rústicas armas de fogo. O
resultado foi a morte de milhares de indígenas.

O poeta era contemporâneo a esse evento histórico e, ao escolher tal assunto, não seguiu o caminho
mais usado pelos autores de epopeia, que é resgatar o passado. Contudo, o poeta não trata de assuntos
sucedidos até a data da produção de seu poema. Ele retoma a tentativa de demarcação das fronteiras,
as lutas geradas, a ocupação do território missioneiro, a expulsão dos padres e a sujeição temporária
dos índios rebelados.

Existe diferença entre os fatos históricos daqueles poéticos, nos quais o poeta fez supressões,
deformações e invenções não resultantes da ignorância do conflito, mas para atender às exigências
próprias da criação épica.

Ao submeter o poema às normas de composição da epopeia clássica, o autor introduziu alterações


na cronologia real dos eventos, além de selecionar fatos e personagens. Nesse sentido, Gama atribui
ao general português Andrade o papel de herói principal, mas que, na realidade, serviu de auxiliar
ao general espanhol Andonaegui. Outras alterações foram feitas para caracterizar positivamente os
ameríndios e pintar com cores negativas os jesuítas.

44
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Basílio da Gama, assim como o Marquês de Pombal, era antijesuíta. A obra O Uraguai serviu como
denúncia do império clandestino que a Companhia de Jesus teria criado na América, do treinamento
militar dado aos indígenas e da opressão e miséria em que os manteria. Assim, uma das mudanças entre
a realidade e a ficção foi a criação do episódio no poema épico sobre a tentativa de fuga dos padres
Balda e Tedeo, quando o exército luso-espanhol chega de surpresa ao povoado onde ambos estão. O
comportamento é considerado vergonhoso devido ao abandono dos índios pelos padres.

O Uraguai é composto por 1.377 versos distribuídos em cinco curtos cantos. Todavia, sua extensão não
infringe a norma poética épica. Quanto a sua forma exterior, o poema apresenta os componentes típicos
da epopeia clássica: proposição, invocação, dedicatória, início da narração in medias res, retrospecção,
prospecção, epílogo. Tais componentes são manipulados. O exórdio, por exemplo, foge à tradição, pois
faz preceder a invocação e a proposição:

Canto I

Fumão ainda nas desertas praias


Lagos de sangue tépidos, e impuros,
Em que ondeão cadáveres despidos,
Pasto de corvos, Dura inda nos vales
O rouco som da irada artilharia (GAMA, 2009, p.1-5).

Essa cena lança o leitor no espaço tétrico de uma batalha recém-terminada e ainda não identificada.
Só então o poeta pede auxílio à Musa para celebrar o vencedor da refrega:

Canto I

Musa, honremos o Heroe, que o povo rude


Subjugou do Uraguay, e no seu sangue
Dos decretos reaes lavou a affronta.
Ai tanto custas, ambição de império! (GAMA, 2009, p. 6-9).

Não vemos, nessa voz, a grandiloquência das epopeias. O autor funde a invocação e a proposição
numa “frase curta e singela” (CHAVES, 2000, p. 75), colocando o herói e seu feito em um plano mais
humano. Tanto que fecha o discurso com voz dissonante que lamenta o acontecido e o atribui à ambição
de poder.

Na explicação de Chaves (2000, p. 75):

Assim, complexos e contraditórios, os versos iniciais de O Uraguai assinalam


já os aspectos significativos da composição geral da obra, entre os quais se
destacam: a mistura de elementos tradicionais e novidades; a conjugação
de aspectos épicos, líricos, trágicos e satíricos; a simpatia pelos vencidos; as
intervenções do poeta, restringindo o distanciamento épico; o realismo; a
plasticidade; a musicalidade; a simplicidade de expressão.
45
Unidade I

A obra tem temática bélica, seguindo a fórmula típica: o relato de uma ação central de natureza
heroica, realizada em curto espaço de tempo por um herói principal, enriquecida por episódios ligados
ou não à trama central. Por conseguinte, o poema de Basílio da Gama é uma narrativa de ação militar
comandada pelo general português Andrade, que, auxiliado pelo exército espanhol, procura dar
cumprimento ao decreto real, que passava para Portugal a posse do território do Uraguai, tendo o efeito
de subjugar os nativos, conduzidos à rebelião pelos seus padres, tirânicos e usurpadores. O poema inclui
episódio lírico amoroso – o suicídio de Lindoia, bem como dois outros episódios: um do governo do
conde de Oeiras e outro da ação maléfica da Companhia de Jesus em todo o mundo.

O Canto I engloba, além dos elementos típicos do exórdio (proposição, invocação e dedicatória), os
antecedentes e primeiros movimentos da ação, como a decisão da partida do comandante Andrade à
fronteira, marcação de data e lugar, entre outros.

O Canto II inicia-se com a localização dos índios rebelados por Andrade e a tentativa deste de
dissuadi-los da luta. É o canto mais propriamente bélico do poema, tanto pelas conversações dos
caciques Cepé e Cacambo com Andrade para tentar evitar a guerra quanto pela descrição da batalha,
que termina com a retirada dos índios derrotados e na qual morre o cacique Cepé.

O Canto III tem natureza prospecta e não está imediatamente preso à ação central. O eixo da ação é
deslocado para o espaço indígena, cabendo a Cepé a ideia e a Cacambo a execução da peripécia nuclear:
o incêndio do acampamento luso-espanhol. O incêndio dá ocasião ao assassinato de Cacambo pelo
padre Balda, quando o índio retorna à aldeia para informá-lo do seu feito.

A morte de Cacambo leva a feiticeira Tanajura a tentar consolar Lindoia com a antevisão do castigo
do assassino do marido desta. Essa visão é um episódio complementar desse canto, bem como é
complementar a narrativa dos feitos louvados do “grande conde”, que, pelo contexto, sabemos ser
Pombal, então conde de Oeiras.

O Canto IV mostra a guerra como pano de fundo e os invasores deleitando-se com a visão do
panorama do local, depois de transporem uma montanha guardada pelos índios e destes serem
afugentados. A narrativa desloca-se para o espaço indígena, falando do anúncio da chegada
das tropas ao povoado e a decisão do padre Balda de incendiá-lo antes de fugirem e de nele
deixarem aprisionada Tanajura. O canto conclui com a chegada de Andrade e suas tropas à aldeia
incendiada e com sua contemplação, entre admirada e horrorizada, da igreja devastada e das
pinturas de sua abóbada.

O Canto V dá continuidade à contemplação da abóbada pintada, que serve de suporte para


episódio complementar: o relato dos malefícios atribuídos à ação da Companhia de Jesus em
diversas partes do mundo. A sequência final engloba a tomada do povoado por Andrade e seus
exércitos, a prisão dos padres, prestes a fugirem, abandonando os índios à própria sorte, e a
sujeição desses mesmos índios.

46
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

I. A. Linha de ação nuclear: espaço de atuação do sujeito (Andrade)


Querer/Fazer [1] Tentativa de ocupar o território índio
[2] Novos preparativos para a conquista
[3] Encontro com aliados espanhóis

Frustrado [4] Conversações frustradas com índios e decisão de guerra


[5] Batalha vitoriosa
[6] Penetração no território índio
[9] Extinção do incêndio
[12] Aproximação do primeiro povo índio
[16] Tomada do primeiro povo e vista das pinturas do templo
Realizado:
obtenção do
objeto
[17] Conquista do segundo povo e proteção dos índios

II. B. Linha de ação complementar


Sujeito secundário 2
(A Companhia)
Querer/Fazer realizado
Crimes da Companhia no mundo

I. B. Linha de ação nuclear: espaço de atuação do oponente (índios, padres)

Querer/Fazer [1] Rebelião índia


[4] Conversações frustradas com Andrade e decisão da guerra
[5] Batalha perdida
[7] Aparição de Cepé exortando Cacambo ao ataque
[8] Incêndio do acampamento de Andrade por Cacambo
[10] Morte de Cacambo por ação de Balda
[11] Sofrimento e visões de Lindoia
[13] Festa de casamento de Lindoia
[14] Suicídio de Lindoia
[15] Incêndio do povo e fuga para outro povo por decisão de Balda
Frustrado:
perda do [17] Prisão dos padres e sujeição dos índios
objeto
II. A. Linha de ação complementar
Sujeito secundário 1
(O grande Conde)
Querer/Fazer realizado

Governo salvador do grande Conde

Figura 2 – Estrutura da ação em O Uraguai

47
Unidade I

O contraste entre as forças dos dois grupos em luta mostra-se com maior precisão no combate entre
Cepé e o governador espanhol, constituindo talvez o auge da criação épica de O Uraguai. Sua estrutura
comporta primeiramente a apresentação do guerreiro índio, que estimula os seus com exemplo e
palavras:

Canto II

Já tinha despejado a aljava toda,


E destro em atirar, e irado, e forte
Quantas settas da mão voar fazia,
Tantas na nossa gente ensanguentava.
Settas de novo agora recebia,
Para dar outra vez princípio à guerra (GAMA, 2009, p. 313-318).

Depois, a estrutura mostra o combate entre eles, frustrado, porque a arma do indígena falha. O tema
da arma que falha é característico das epopeias:

Canto II

Cepé, que o vio, tinha tomado a lança,


E atrás deitando a hum tempo o corpo, e o braço,
A despedio. Por entre o braço, e o corpo
Ao ligeiro Hespanhol o ferro passa:
Rompe, sem fazer damno, a terra dura,
E treme fóra muito a hatea (GAMA, 2009, p. 324-329).

A seguir, vêm os golpes do espanhol, dando sequência à narrativa e à morte de Cepé. A passagem
da morte do guerreiro é belíssima, segundo leitura de Chaves (2000), e inclui reduplicação do motivo da
arma que falha, sugerindo o sentido de engano trágico do acontecimento, pois antes as flechas atiradas
por Cepé tinham ensanguentado os inimigos. A descrição do ferimento provocado pelo tiro que abate
Cepé reitera a ideia de poder bélico dos luso-espanhóis e da fragilidade do índio que o enfrenta de peito
nu:

Canto II

Era pequeno o espaço, e fez o tiro


No corpo desarmado estrago horrendo.
Vião-se dentro pelas rotas costas
Palpitar as entranhas (GAMA, 2009, p. 347-350).

Esse ferimento não determina o encerramento do combate, que integra ainda três tentativas de
Cepé para soerguer-se. Nessa passagem, o autor repete o tema típico do ferido que cai e recupera o
motivo tradicional da triplicação das ações:

48
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Canto II

Quis três vezes


Levantar-se do chão: cahio três vezes,
E os olhos já nadando em fria morte
Lhe cubrio sombra escura, e férreo sono (GAMA, 2009, p. 350-353).

A descrição tem objetivo evidente de realçar o heroísmo do guerreiro índio, inspirando-se em


processos usados por autores da época medieval, que, influenciados pela simbologia antiga ou cristã
dos números, davam significação especial ao número três.

Um dos aspectos mais originais na criação épica de Basílio da Gama das peripécias do combate é o
da utilização pelos ameríndios da técnica da queimada para impedir o avanço do inimigo:

Canto III

conservação sempre
secas as torradissimas campinas,
Nem consentião, por fazer-nos guerra,
Que a chama bemfeitora, e a cinza fria
Fertilizasse o árido terreno (GAMA, 2009, p. 31-35).

O abandono da prática agrícola tradicional da queimada fertilizadora permite aos índios manter as
pastagens crestadas pelo calor, conseguindo, assim, cortar a alimentação dos animais utilizados pelo
exército luso-espanhol e, em consequência, dificultar sua marcha.

Assim, o poeta mineiro constrói um poema épico culto e patriótico, que exalta façanhas heroicas
e enquadra o choque de culturas e do império missioneiro dos jesuítas. Contudo, os motivos usados
para realçar os heróis e acentuar os temas da dor, do incêndio e da destruição fazem da obra, em certa
medida, uma epopeia dos vencidos.

2.2 Desdobramento do herói e do antagonista em O Uraguai

Andrade é o único personagem da história central de O Uraguai que recebe o nome de herói. Ele é
apresentado como protagonista na proposição do poema:

Canto I

Musa, honremos o Heroe, que o povo rude


Subjugou do Uraguay, e no seu sangue
Dos decretos reaes lavou a affronta.
Ai tanto custas, ambição de império! (GAMA, 2009, p. 6-9).

49
Unidade I

Andrade é indicado também como sujeito de um canto épico pelo narrador:

Canto I

Arrebatado de furor divino


Do seu Heroe Matusio celebrava
Altas emprezas dignas de memória,
Honras futuras lhe promette, e canta
Os seus brazões, e sobre o forte escudo
Já de então lhe afigura, e lhe descreve
As perolas, e o titulo de Grande (GAMA, 2009, p.141-147).

Fazendo ou mandando fazer, Andrade é o agente principal da operação que comanda. É ele quem
inicia a ação:

• é informado da decisão espanhola de retomar a empresa;

• é informado da chegada do material bélico de que necessita;

• responde prontamente;

• determina lugar e tempo para o encontro dos dois exércitos;

• faz desfilar sua tropa;

• observa o seu desempenho;

• convida todos os militares para um banquete;

• faz a narração dos motivos e primeiros eventos da campanha;

• promove seus oficiais;

• batiza o local (CHAVES, 2000, p. 113-114).

Ele é quem mais se esforça para realizá-la:

• percebe antes dos demais a proximidade dos índios;

• busca meios para submetê-los por brandura;

• liberta e trata os prisioneiros com cortesia;

• recebe afetuosamente os embaixadores índios;


50
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

• ordena a batalha;

• dispõe as tropas para o combate;

• sofre com a mortandade provocada pela guerra;

• comanda a marcha para dentro do território indígena;

• atalha o incêndio;

• avizinha-se dos povos missioneiros, após afugentar os guardiões da montanha;

• penetra na aldeia que o padre Balda mandou queimar;

• entra na igreja incendiada, desviando o olhar, irado e compadecido;

• vê as pinturas da abóbada do templo;

• planeja o ataque surpresa a outro povoado.

Ele é ainda quem conclui vitoriosamente a campanha contra os rebeldes:

• realiza a marcha noturna;

• retém os padres prontos para a fuga;

• entra no povoado;

• surpreende os índios;

• encaminha-se para o templo.

Andrade é quem ampara os índios derrotados:

• reprime a licença militar;

• sossega o tumulto;

• descobre as astúcias dos padres;

• derruba a sua república;

• faz os índios sujeitarem-se ao poder do rei.

51
Unidade I

No poema, não há caracterização física, idade nem genealogia de Andrade. A omissão de seus
traços físicos contribui para o desenho de um retrato exclusivamente psicológico que se contrapõe ao
dos heróis épicos do passado, cuja vitória devia-se em grande parte aos prodigiosos atributos físicos.
Andrade, então, distingue-se do guerreiro tradicional da poesia épica, sobretudo do herói épico de
Homero, como vemos a seguir:

Quadro 3

Herói homérico Andrade


Descendente de deuses e de reis. Origem humana apenas ilustre.
Físico vigoroso, estatura e/ou beleza invulgar. Traços físicos não referidos.
Força prodigiosa. Força física não mencionada.
Força equivalente à do adversário. Armamento mais poderoso.
Ação gloriosa e glorificada. Ação pouco gloriosa, mas exaltada.
Ação sobre-humana. Ações no nível humano.
Auxiliado por seres divinos e humanos. Auxiliado apenas por humanos.
Psicologia multifacetada. Psicologia pouco complexa.
Guerreiro com vida pessoal. Apenas militar, devoto à sua missão.
Não modelo de comportamento. Figura exemplar (ideologia da época).
Defeitos e qualidades. Só qualidades.
Qualidade principal: fortaleza. Qualidade principal: sapiência.
Supremacia da honra. Prioridade para o êxito da missão.
Perece se necessário. Admissão de recuo tático.
Ação em primeiro plano. Ação nem sempre evidenciada.
Ação direta na luta. Ação indireta de comando.
Combate com os melhores adversários. Não atuação no combate.
Discurso para estimular os aliados. Discurso para dissuadir o adversário.
Entrega total à luta. Luta a contragosto.
Intuito de glória pessoal. Objetivo patriótico e humanitário.
Ideal heroico individual. Ideal político e social.

Fonte: Chaves (2000, p. 120).

Com base no quadro comparativo anterior, o herói principal nas epopeias é auxiliado em sua empresa
por outros heróis. No caso de Andrade, é assessorado em seu esforço para apossar-se do território
do Uraguai por dois grupos de heróis, sendo eles os exércitos português e espanhol, cujas ações e
qualificações fundamentais, contudo, diferem-se, pois o autor Basílio da Gama destaca o exército
português, dando-lhe posição de superioridade frente ao exército espanhol.

Na obra, o exército português mostra-se mais atuante que o espanhol e, também, mais identificado
com o ser e o fazer de seu general, revelando igual perseverança no cumprimento da tarefa e igual
hesitação no recurso à violência.

52
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

A maior valorização do exército português, em face do espanhol, evidencia-se, segundo Chaves


(2000), na sequência em que os traços peculiares do grupo compõem o exército português:

• Os dos batedores da vanguarda:

Canto I

Ligeira, e leve
Passou primeiro a guarda, que na guerra
He primeira a marchar, e que a seu cargo
Tem descubrir, e segurar o campo (GAMA, 2009, p. 60-63).

• Os dos engenheiros:

Canto I

Depois desta se segue a que descreve,


E dá ao campo a ordem, e a figura,
E transporta, e edifica em hum momento
O leve tecto, e as movediças casas,
E a praça, e as ruas da Cidade errante (GAMA, 2009, p. 64-68).

• Os dos artilheiros e granadeiros:

Canto I

Atrás dos forçosíssimos cavallos


Quentes sonoros eixos vão gemendo
Co’ peso da funesta artilheria
[...]
Intrépidos, e immoveis nas fileiras,
Com grandes passos, firme a testa, e os olhos
Vão marchando os mitrados Granadeiros,
Sobre ligeiras rodas conduzindo
Novas espécies de fundidos bronzes,
Que amiudão de promptas mãos servidos
E multiplicão pelo campo a morte (GAMA, 2009, p. 69-84).

• Os da infantaria:

Canto I

Toda essa guerreira Infanteria,


A flor da mocidade, e da nobreza,
Azul, e branco, e ouro vestem (GAMA , 2009, p. 92-94).
53
Unidade I

• E dos da cavalaria:

Canto I

Os últimos, que em campo se mostrarão,


Forão fortes dragões de duros peitos,
Promptos para dous gêneros de guerra,
Que pelejão a pé sobre as montanhas,
Quando o pede o terreno; e quando o pede,
Erguem nuvens de pó por todo o campo
Co’ tropel dos magnânimos cavallos (GAMA, 2009, p. 126-132).

A função de tal sequência descritiva não é apenas dar colorido à cena pitoresca, mas também
mostrar a sobrevalorização das tropas portuguesas e, principalmente, dar forma à sua força prodigiosa.

Do lado espanhol, as ações traduzem a falta de persistência na ação contra os rebeldes, bem como
a violência empregada em sua execução. O governador espanhol, por exemplo, age de forma brutal ao
matar Cepé, no combate que travam durante a batalha. Com furor guerreiro semelhante ao dos antigos
heróis épicos, o comandante lança-se alegremente contra o guerreiro índio, passando, indiferente, por
cima dos mortos e feridos. Ataca-o depois de caído e dispara a curta distância sua pistola sobre o
adversário, que se apresenta despido e armado apenas com arco e flechas. A narrativa destaca o aspecto
desumano e covarde do reencontro:

Canto II

Era pequeno o espaço, e fez o tiro


No corpo desarmado estrago horrendo (GAMA, 2009, p. 347-348).

Os traços que ressaltam essa ação consistem em covardia e ferocidade.

A diferença entre os exércitos destaca-se no fato de que, nos combates em que explicitamente estão
envolvidas individualidades portuguesas, nenhuma morte ocorre do lado indígena, como no episódio
sobre os índios que guardavam o acesso à montanha ou foram afugentados ou ficaram apenas feridos.
Tal ocorrência é um ganho para a tropa portuguesa, visto que Gama valoriza ações menos violentas e
atitudes de brandura.

Ressalta-se que os exércitos identificam-se com o protagonista; agora, precisamos ver seus
antagonistas.

Nas epopeias clássicas, o herói e seu grupo defrontam adversários cujas ações e qualificações não
diferem inteiramente das suas. Em epopeias bélicas, os protagonistas e antagonistas são guerreiros
dotados de grandes qualidades marciais. Em O Uraguai, esse tipo de antagonista é o indígena, cuja
heroicidade se revela na luta travada contra Andrade e seu exército. A oposição dos nativos é,
todavia, enfraquecida pelo fato de eles se apresentarem como simples instrumentos dos verdadeiros
antagonistas: os padres.
54
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Apesar de serem os verdadeiros oponentes, os padres não participam diretamente na ação militar,
ou seja, não entram em confronto direto e corporal com o herói, tornando-os o tipo mais vulgar de
antagonista. Eles também não apresentam as qualidades heroicas que seus pares normalmente revelam
em outras epopeias, caracterizando-se apenas por traços negativos, destituídos, portanto, de qualquer
traço elevado. Eles apresentam apenas facetas baixas e negativas, dando-lhes pelo narrador certo tom
satírico.

De forma geral, na obra, os padres não têm uma identidade individual, sendo referidos como os
Padres ou, mais geral e abstrato, Império, República. O papel mais destacado cabe ao padre Balda, cujas
ações e atributos metonimizam o ser e o fazer de todo o grupo.

Lembrete

Metonímia é a figura de linguagem que substitui o sentido de uma palavra


pelo sentido da outra. Entre os vários efeitos de sentido, há a substituição
da parte pelo todo. Exemplo: várias pernas passavam apressadamente (=
várias pessoas passavam apressadamente).

A personagem coletiva (os padres, de forma geral) só intervém em três breves sequências narrativas:
a do ataque índio a um forte português, a da divulgação da morte de Cacambo e a da vitória final das
forças de Andrade.

A ação criminosa dos religiosos, desobedecendo aos reis e preparando os índios para a rebelião, está
realçada no discurso narrativo:

Canto IV

Que negue agora a pérfida calunia,


Que se ensinava aos bárbaros gentios
A disciplina militar, e negue
Que mãos traidoras a distantes povos
Por ásperos desertos conduziam
O pó sulfúreo, as sibilantes balas,
E o bronze, que rugia nos seus muros (GAMA, 2009, p. 9-15).

Assim, há uma crítica aberta ao comportamento dos padres, e a alocução de Andrade a Cacambo e
Cepé discrimina vários crimes dos jesuítas:

Canto II

Esse absoluto
Império ilimitado, que exercitam
Em vós os Padres, como vós, vassalos,
55
Unidade I

He império tyrannico, que usurpão


Nem são Senhores, nem vós sois Escravos
[...] Os rebeldes
Eu sei que não sois vós; são os bons Padres
Que vos dizem a todos, que sois livres,
E se servem de vós como de escravos.
Armados de orações vos põem no campo
Contra o fero trovão da artilheria,
Que os muros arrebata, e se contentão
De ver de longe a guerra: sacrificão
Avarentos do seu o vosso sangue (GAMA, 2009, p. 128-148).

No caso do padre Balda, ele desfruta do mundo indígena e intervém na revolta nativa:

• prisão e assassinato de Cacambo;

• imposição a Lindoia (depois de viúva) do casamento com Baldeta (talvez filho ilegítimo de Balda),
o que provoca o suicídio da jovem;

• recusa de permissão aos índios para sepultarem Lindoia;

• incêndio de uma aldeia das Missões e de seu templo;

• aprisionamento de Tanajura no povoado em chamas;

• fuga para outra aldeia;

• abandono dos índios, sozinhos em face do inimigo.

Tais ações configuram o padre Balda como ser despótico, impiedoso, destruidor, vingativo,
covarde e assassino. Esses traços sêmicos não formam uma personagem densa, complexa,
verdadeiramente humana, mas um tipo de vilão. O narrador antipatiza com sua personagem
e utiliza expressões depreciativas (duro, obstinado, indiferente, vingativo, em tanta cólera, vis
astúcias) e de cunho irônico (grande, bom, santo, compassivo, cauteloso, engenhoso, sutil). Em
resumo, o que distingue o padre Balda das personagens típicas épicas é o fato de ele ser destituído
de qualquer traço de grandeza.

Sobre os índios, a obra escapa do maniqueísmo das obras triviais, que caracterizam o protagonista com
todo o heroísmo e o antagonista com todos os aspectos negativos. Na obra, os índios são caracterizados
de forma heterogênea. Em um primeiro momento, o general português considera os índios rudes e sem
valor, mas constata, em seguida, a disciplina militar deles.

As qualidades guerreiras dos ameríndios são apontadas em situações belicosas, em que os índios ora
insultam e provocam os adversários, ora atacam audaciosamente suas posições:
56
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Canto I

Não sofrem tanto os Indios atrevidos:


Juntos hum nosso forte em tanto assaltão
[...]
Por toda a oposta margem se descobre
De Barbaros o numero infinito,
Que ao longe nos insulta, e nos espera (GAMA, 2009, p. 182-183, 196-198).

Daí que seus traços essenciais são a bravura, a fragilidade, a inocência. Ingênuos e frágeis, deixam-
se tiranizar pelos padres, mas revelam bravura ao enfrentar o exército luso-espanhol. Por causa dessa
valentia, os índios se identificam com os heróis guerreiros da épica tradicional, mas se diferenciam por
não possuírem força poderosa.

As personagens indígenas que se destacam pelas virtudes guerreiras são Cepé e Cacambo. Em
comum, têm a missão, a posição social elevada e a indumentária:

Canto II

Já para nosso campo vem descendo,


Por mandado dos seus dois dos mais nobres,
Sem arcos, sem aljavas, mas as testas
De varias, e altas pernas coroadas,
E cercadas de penas as cinturas,
E os pés, e os braços, e o pescoço (GAMA, 2009, p. 39-44).

A Cacambo, cacique dos guaranis, cabe a primazia nas negociações, e ele assume uma atitude mais
cortês e conciliadora que a do chefe tape que o acompanha. Procura dissuadir o avanço português,
enquanto Cepé, mais agressivo, “sem mostras nem sinal de cortezia” (Canto II, 45), corta qualquer
hipótese de entendimento com Andrade e prenuncia a irreversibilidade da guerra. Ao tentar, por meio do
diálogo, uma solução pacífica, Cacambo aproxima-se dos heróis épicos tradicionais sábios e moderados,
como Eneias. Ao contrário, Cepé, que entende ser a violência guerreira a única solução, encarna a
valentia intempestiva dos heróis do tipo de Aquiles.

Tais traços aproximam os guerreiros dos heróis tradicionais, mas marcam diferença entre os dois
indígenas. Outra diferença entre ambos é a maneira como morrem.

A grande proeza militar de Cacambo é o incêndio que ateia no acampamento adversário, feito
considerado equivalente aos combates travados por heróis, uma vez que representa um ato solitário de
valentia e no qual o herói arrisca a própria vida. Cacambo, todavia, difere do herói no que diz respeito ao
resultado da proeza, pois tal ação tem interferência de Andrade, herói vitorioso do poema, que intervém
prontamente, abrindo caminho que impede o alastramento do fogo.

57
Unidade I

Cacambo difere-se do herói tradicional pelo tipo de morte que tem, pois ela não resulta de qualquer
ato do adversário; ao contrário, é produto da vontade do chefe religioso (padre Balda). Essa morte
inglória é explicitada pelo poeta, que lamenta o fato:

Canto III

Quanto seria mais ditoso! Quanto


Melhor lhe fora o acabar a vida
Na frente do inimigo, em campo aberto
Ou sobre os restos de abrazadas tendas
Obra do seu valor! (GAMA, 2009, p. 152-156).

Cepé é também caracterizado positivamente, sendo referido como grande Cepé, Cepé valente, Tape
altivo, um dos mais nobres, caro amigo. Ele não tem a sapiência ou prudência de Cacambo, mas a
intempestiva valentia, revelada plenamente tanto no combate singular que trava com o governador
espanhol quanto na aparição fantasma em que empurra Cacambo para uma incursão solitária no
acampamento inimigo. Ao ultrapassar seus próprios limites, como os outros heróis de sua têmpera,
tem como os demais um destino trágico. Cepé acaba por morrer cedo nas mãos de um adversário mais
poderoso.

Segundo Chaves (2000), Cepé é uma personagem de comprovada base histórica, advinda da pessoa
real José Tiaraju, corregedor da aldeia de São Francisco Xavier. A criatura fictícia tem o apelido e o
papel predominante da pessoa real; assim, seu reaparecimento sobrenatural revela a intuição do autor
sobre o que havia de grandioso na figura daquele guerreiro índio, que foi se tornando mítico para as
pessoas do Rio Grande do Sul. O cacique José Tiaraju transformou-se em São Sepé na tradição gaúcha,
e sua canonização pelo povo foi imediata, pois ainda no século XVIII já aparece registrado, em 1773, no
Compêndio noticioso de Francisco João Roscio.

Convido você, caro aluno, à leitura na íntegra dessa epopeia para conhecer outras personagens
indígenas e como elas são caracterizadas. De forma geral, o poema consegue apresentar, com concisão,
variedade e expressividade seus ameríndios.

2.3 A valorização do espaço americano n’O Uraguai

Vejamos agora a importância do espaço na obra O Uraguai, no corpo da narrativa, no título e na


abertura e no fechamento do texto. O título é formado pelo nome do território em que se passa a
história e não pelo do herói ou da ação descrita. Essa escolha foge dos moldes das épicas tradicionais e
sugere, na concepção de Chaves (2000), que o poeta está menos interessado na história guerreira ou em
seus agentes (luso-espanhóis, ameríndios e jesuítas) do que no espaço em que as personagens efetuam
suas peripécias.

Para a estudiosa, o poeta parece querer chamar a atenção do leitor para a vasta região do Uruguai,
que o Tratado de Madri tornava o limite meridional dos domínios portugueses no Novo Mundo e cuja
conquista sua obra estaria celebrando.
58
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

A valorização do mundo americano é ressaltada pela integração de componentes significativos do


espaço. A paisagem concreta e real do Uruguai é transformada num campo de batalha abstrato, coberto
de mortos e feridos; o espaço acede à condição de espaço épico, tão convencional, tão majestoso e tão
poético como o das outras epopeias clássicas.

A obra é, ao mesmo tempo, herdeira da tradição ocidental e produto peculiar da bárbara terra
americana, indicando uma percepção antecipadora, em Basílio da Gama, da dupla formação da literatura
brasileira. Dividida, pois, entre os modelos da tradição épica e as novas tendências da literatura do
presente, a construção do espaço em O Uraguai denota o engenho do autor ao conseguir criar um
equilíbrio entre as formas convencionais e a representação poética do real. Pelo esquema a seguir,
podemos verificar que vários espaços estão representados no poema, ora por meio de sucintas notações
geográficas, ora por meio de pequenas descrições estilizadas.

Quadro 4 – Espaços da história principal (expressões/termos utilizados e sua frequência)

Europa Europa [7]; vosso Mundo


Portugal Pátria [2]
Espanha Enganada Madrid; Hespanha [2]
América Novo Mundo
Maranhão; vossa América; dilatadíssimos caminhos; remotas
Território português partes; altas minas; caudalosos/Rio de áreas de ouro; nosso forte;
quartéis
Território espanhol terras, Buenos Aires, Correntes, estes vastos climas, Montevidio
Zonas de troca e do
conflito Colonia [2]; Praça, que avassala
Colônia do Sacramento O Gigante das águas; largo rio/limite, e raia
Rio da Prata Onde a estéril costa, E o cerro de Castilhos o mar lava; monte mais
Vizinho; as vertentes/os termos do domínio
Novas fronteiras
Lugar [2]; plano; campo (largo [2], das mercês, seu, nosso) [10],
Acampamentos de pavilhão (purpúreo) [3]; tendas (poucas, abrazadas) [4]; Villa
Andrade errante; praia oposta; margem guarnecida; barracas
Desertas praias; vales; campo (aberto [2]) [11]; montes [2]; estas
Campo de batalha campinas; aqueles ares; grutas pelo chão cavadas; terreno; terra
(dura) [3]; campanha; chão
Nossas terras; Pátria (doce) [2]; império (premeditado oculto,
Uraguai/Missões ilimitado, tyrannico) [3]; infame república
Espaço imenso [2]; paiz (deserto, Todo aquele) [2]; desertos
[Espaço físico] (ásperos) [3]; terras (este ângulo da, nossa, estas [2], Inimiga, e
infiel, sofredora de cultura, dura) [8]; terreno (forma do, árido) [3]
Uraguay (fértil, soberbo) [3]; Rio (arrebatado, e caudaloso,
profundo, largo, mais manso e quieto, pátrio, fundo) [9]; ribeiro
[Águas] (sereno, manso, tremido) [3]; ondas (negras, vizinhas) [3]; escumas;
águas (mais serenas) [7]; grossa enchente; urna; lagos (cristalinos)
[2]; fontes (claras, licor puro de viva) [2]
Área (ruiva) [2]; margem (oposta, esquerda, outra, do rio) [6];
de huma e de outra banda; montanhas; larga, ventajosa colina,
[Terras] escarpada, e sobranceira; monte [6]; escarpado cume; aquela
altura; sitio forte; altos precipícios; vales [5]; planície imensa

59
Unidade I

Incultas várgeas; enfadonhas, estéreis, campos [8]; campina [7];


bosques [4]; arvoredo [2]; verdes, irregulares, torcidas, ruas, praças;
[Vegetação] verde teatro; verde relva; verde tronco; sombras da verdura; varias
plantas; palustres; herva; folha; dous lenhos; palhas [2]
[Grutas] Pátrias grutas; medonha gruta, onde ardem sempre; limosa gruta
Diversas estradas; muitas léguas de áspero caminho; veredas
[Caminhos] ocultas
Vento [2]; região que não perturba o vento; céu (sereno, envolto)
[Ar, céu] [5]; lua prateada; climas [2]; ar [3]; noite; sol [4]; nuvens; o cruzeiro;
constelação; coroda manhã serena; horizontes
Povo (confinantes, sete, rebelados, vexados, nossos, distantes) [12];
[Povoados] lugar [2]; terra (mal segura, perigosa) [2]; este sítio; deserto
[Ruas] Ruas
[Praça] Praça [2]
[Prisão] Escura prizão
Jardim; sombras do arvoredo; mais remota; lapa cavernosa; rouca
[Jardim] fonte; curva latada de jasmins; branda relva; mimosas flores;
cipreste; campo; fronteira gruta; espessura
[Templos] Templo; porta; desmedidos arcos
[Casas] Casas; choupana; nobres edifícios

Fonte: Chaves (2000, p. 181-184).

O esquema ajuda a perceber que o espaço construído na obra é, sobretudo, o território americano,
configurado por meio de diversos aspectos da natureza – rios, ribeiros, lagos, fontes, montanhas,
outeiros, precipícios, vales, grutas, planícies, campos, bosques –, embora integre também elementos
arquitetônicos e paisagísticos produzidos pela ação humana – estrada, povoados, ruas, praças, casas,
igrejas, jardins, prisões. Na síntese de Chaves (2000, p. 185), o espaço físico é abrangente e “caracterizado
como um país imenso e pouco habitado, com vastíssimas campinas, altas montanhas e rios soberbos e
caudalosos”. Entre as designações poéticas, temos a descrição da América:

Canto V

Via-se a Liberdade Americana,


Que arrastando enormíssimas cadeias,
Suspira, e os olhos, e a inclinada testa
Nem levanta, de humilde, e de medrosa,
Tem diante riquíssimo tributo,
Brilhante pedraria, e prata, e ouro,
Funesto preço, por que compra os ferros (GAMA, 2009, p. 35-41).

O território do Uraguai – imenso e, em certos trechos, desértico e selvagem – não é apenas


a natureza inculta enaltecida pelos primeiros colonizadores em seus escritos. Ele é também um
espaço trabalhado pelo homem – com sua agricultura, pecuária, indústria e povoações. Trata-se da
representação de uma civilização nascente no espaço brasileiro, com louvor ao desenvolvimento
da pátria, deixando para trás a contemplação extasiada da terra virgem, que caracteriza as obras
dos antecessores de O Uraguai.
60
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Exemplo de Aplicação

I. A obra O Uraguai, de Basílio da Gama, é uma das mais respeitadas entre os leitores e críticos
literários, mas também uma das que causam mais polêmica se é ou não epopeia, se o herói é o general
português Andrade ou os índios, entre outros aspectos.

Procure em obras de críticas literárias brasileiras, por exemplo, de Massaud Moisés, Antonio Candido,
Alfredo Bosi, e verifique o que cada um diz sobre o poema épico de Basílio da Gama. Faça um quadro
sinóptico das ideias de cada crítico.

Quadro 5

Crítico 1:

Crítico 2:

Crítico 3:

II. Leia O Uraguai na íntegra. Pode ser de qualquer editora/edição. Inicie uma discussão reflexiva
e comparativa entre suas ideias sobre a obra (no geral) ou episódio (ou personagem) e a dos autores
selecionados no exercício 1. Compartilhe com seus colegas de curso, em fórum, blogs etc.

III. Vivemos em uma sociedade imagética, em que várias obras literárias são transformadas em
histórias em quadrinhos. Que tal você escolher um episódio da obra O Uraguai e recriá-lo em quadros
grandiosos, como um gibi? Você poderá, dependendo do resultado, procurar editoras brasileiras e fazer
uma proposta de publicação de seu trabalho inédito e visual da famosa obra épica brasileira.

3 LITERATURA E IDENTIDADE NACIONAL: A POESIA ROMÂNTICA

Caro aluno, em nossa contemporaneidade, o que representa e ratifica o sentimento de nacionalidade?


O que fazemos ou valorizamos para ajudar na firmação da identidade de nosso país?

No século XIX, nossos poetas viram na literatura uma maneira de valorização do país, aliando-se
ao empenho da época em consolidar o país como nação recém-independente, fornecendo a mitologia
61
Unidade I

pátria de que a jovem nação carecia para fortalecer o esforço centralizador do império e garantir a tão
desejada unidade nacional.

Daí a característica mais marcante assumida pelo movimento entre os poetas românticos: o
nacionalismo. Os poetas contribuíram para a adoção de uma mitologia nacional, uma literatura e uma
historiografia próprias, capazes de garantir condições mínimas para a inserção do Brasil nas nações
civilizadas.

A literatura romântica volta-se fortemente, então, para a consolidação de um projeto identitário,


tanto da nação quanto dela própria, pois, até então, os poetas estavam sob o jugo estético português-
europeu de produção literária. Afinal, o Brasil, como sociedade escravocrata, ainda conservava modelos
europeus, das metrópoles, havendo a consciência de que precisaria passar por um movimento inverso,
ou seja, “pela elaboração de mecanismos visando à reapropriação do que foi violado” (BERND, 2011, p.
16).

A busca da identidade não pode se transformar em etnocentrismo, erigindo, de maneira indevida,


valores próprios da sociedade à qual o poeta pertence, em valores universais. Ao falar em identidade, é
preciso levar em conta a alteridade, não negando, portanto, o outro. A busca identitária na literatura
pode funcionar de duas maneiras diferentes:

a. como sistema de vasos estanques, que origina cristalizações


discursivas que desconsideram a literariedade dos textos, pois a
inquietação da linguagem é a própria essência do literário; ou

b. como processo em permanente movimento de construção e


desconstrução, criando espaços dialógicos e interagindo na trama
discursiva sem paralisá-la. Nessa segunda maneira, a identidade se
sustenta logicamente e se revela útil para iluminar leituras de textos
que, produzidos em situações de cruzamento e de dominação cultural,
procuram reencontrar ou redefinir seu território (BERND, 2011, p. 18).

A busca da identidade por um indivíduo ou por uma comunidade pode caracterizar duas funções
da literatura, como aponta o poeta e crítico Édouard Glissant (apud BERND, 2011, p. 19) ao estudar a
formação das literaturas nacionais:

Há a função de dessacralização, função de desmontagem das engrenagens


de um sistema dado, de pôr a nu os mecanismos escondidos de desmitificar.
Há também uma função de sacralização, de união da comunidade em torno
de seus mitos, de suas crenças, de seu imaginário ou de sua ideologia.

Assim, uma literatura que se atribui o propósito de articular o projeto nacional, de fazer emergir
os mitos fundadores e de recuperar sua memória coletiva, passa a exercer a função sacralizante,
unificante.

62
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

No Brasil, o Romantismo revolucionou a estética ao querer dar à literatura brasileira o caráter de


literatura nacional, agindo como força sacralizante e trabalhando somente no sentido da recuperação
e solidificação de seus mitos.

Conforme o crítico contemporâneo e notório Antonio Candido (2000), o poeta Gonçalves Dias e
o prosador José de Alencar, dois expoentes do Romantismo, criaram a literatura nacional. O próprio
Alencar, no prefácio do romance Sonhos d’ouro (1872), emprega a expressão literatura nacional:

A literatura nacional, que outra coisa não é senão a alma da pátria, que
transmigrou para este solo virgem como uma raça ilustre, aqui se impregnou
da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço, e cada dia se
enriquece ao contato de outros povos e ao influxo da civilização (apud
BERND, 2011, p. 51).

Nesse nível, o texto literário incorpora seu amor à pátria, com manifestações ufanistas, exalta o que
existe de melhor na terra (na nação), que é a natureza, e valoriza seu povo nativo, levando à invenção
da uma imagem inventada do índio – o indianismo.

3.1 Devoção à natureza

Na poesia do século XIX, em especial, da escola do Romantismo, contemplam-se o contato, a relação,


o entrelaçamento do poeta com a natureza, do homem com a terra.

O termo natureza abrange sua biodiversidade e seus ambientes, os biomas. São os elementos do
ciclo da vida do planeta e sua inter-relação com o humano. A natureza é considerada, aqui, em sua
diversidade: a água, em suas manifestações diversas, como oceanos, rios, lagos e nascentes; a terra em
sua forma de cordilheiras e montanhas, vales, esplanadas, campos, matas, florestas, vastidões desérticas,
regiões geladas; flora, composta pelas árvores, ervas rasteiras, arbustos; a fauna em sua variante básica,
com mamíferos, aves, répteis, peixes e insetos, além das vidas dos moluscos, aracnídeos, batráquios
e tanta outras. Não podemos deixar de fora o ar, o vento, a chuva, o fogo; os raios e relâmpagos,
tempestades, terremotos, maremotos, erupções vulcânicas, avalanches, enchentes; o equilíbrio entre o
sol e demais estrelas.

No Romantismo, a relação poeta e natureza é um sentimento de nativismo extremado, em que não é


possível dissociar o homem da natureza, sendo estes enleados na devoção do solo pátrio, acima de tudo.
A esse sentimento, conforme diz Cruz (2011), junta-se uma religiosidade sincera e laica, que acaba por
transformar cada espaço natural em uma catedral ou templo: é a sacralidade.

A aplicação da essência da natureza à do homem nos textos poéticos e a noção de sacralidade


da natureza não são novas. Na era greco-romana, já encontramos textos que enfocam o homem e
sua relação com o universo. No texto De Rerum Natura (Da Natureza e das Coisas), de Lucrécio (Titus
Lucretius Carus), essa relação é dada pela realidade que cerca o homem. Embora com base filosófica,
a obra poética destaca o temor do homem diante do desconhecido e das forças naturais. A criação
das forças naturais e dos elementos terrenos como a água, o vento, o sol e a escuridão é abordada em
63
Unidade I

outro famoso poema: a Teogonia, de Hesíodo. Nesse texto, a gênese do mundo é narrada pelo prisma
dos deuses do Olimpo; cada divindade é correlacionada a determinado elemento natural. Outro livro é
a própria Bíblia, cujo primeiro livro, creditado a Moisés, detalha a criação do mundo. Assim, da mesma
forma, outras civilizações e mitologias, como a hindu, a chinesa, a indo-americana (maia, incaica,
asteca, zapoteca, tupi-guarani, navaja, moicana), a aborígine (australiana, neozelandesa e silvícolas
do oceano Pacífico) e a africana convergiram para a mesma narrativa a respeito do surgimento da
natureza sobre a face da Terra. As mesmas mitologias procuraram, também, explicar o surgimento de
medo que acompanha o homem em sua jornada sobre a terra; o medo que o faz inclinar-se diante da
majestade hierática da natureza e, ao mesmo tempo, adentrar a natureza em expedições e epopeias de
desbravamento.

Sobre a sacralidade da natureza, essa noção sempre se impôs na relação entre o homem e o desconhecido,
ocasionando, justamente, a criação dos mitos em todas as culturas e religiões. Cada elemento da natureza
sempre teve seu guardião imaginário ou ente representante perante os deuses. Essa noção atinge também
o elemento humano ligado a cada elemento natural, isto é, silvícolas e aborígines. Com base nisso,
Rousseau (apud CRUZ, 2011, p. 19) assina a famosa tese do bom selvagem: “o homem é bom, a sociedade
é que o corrompe”. Esse conceito chega a nós, hoje, cuja sociedade midiática incentiva detrimentos, como
santuários ecológicos, paraíso dos turistas, aquamarinos e ambientalistas de todos os matizes.

No século XIX, nas produções poéticas do Romantismo, a natureza afigura-se patriótica, ou seja, na
ânsia de firmar a identidade do país, à parte de Portugal, os poetas encaram a natureza brasileira de
forma sublime. Vejamos o início do poema Tempestade, do poeta Gonçalves Dias:

Tempestade

Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz;
E trêmulo
E puro
Se aviva,
S’esquiva
Rutila,
Seduz!

Vem a aurora
Pressurosa,
Cor de rosa,
Que se cora
De carmim;
A seus raios
As estrelas,
64
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Que eram belas,


Tem desmaios,
Já por fim.

O sol desponta
Lá no horizonte,
Doirando a fonte,
E o prado e o monte
E o céu e o mar;
E um manto belo
De vivas cores
Adorna as flores,
Que entre verdores
Se vê brilhar (DIAS, 1998, p. 112).

A beleza desse poema encontra-se tanto na seleção lexical e sua combinação para a exaltação
da natureza quanto no ritmo virtuoso, em que o poeta alinha todos os metros portugueses usados
até o Romantismo, do bissílabo, cuja lepidez abre o poema de forma fulminante, até a sinfonia dos
endecassílabos, que orquestram o clímax da procela por meio de um rico jogo de timbres:

Nos últimos cimos dos montes erguidos


Já silva, já ruge do vento o pegão;
Estorcem-se os leques dos verdes palmares,
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares,
Até que lascados baqueiam no chão (DIAS, 1998, p. 112).

Observação

O poema Tempestade é longo, constituído por quase 200 versos, e está


disponível na internet. Devido a sua extensão, não o transcrevi aqui na
íntegra, mas o convido à leitura do poema. O tempo da leitura é o tempo
do prazer frente a um texto tão poético.

A sensibilidade romântica dá uma nova marca à natureza: o sentimento de mistério. Para o poeta
romântico, a natureza é, sobretudo, uma fonte de mistério, inacessível, contra a qual a limitação
do homem vem bater inutilmente. O poeta, então, procura-a nos aspectos mais desordenados que,
negando a ordem aparente, permitem uma visão mais profunda. Procura mostrá-la como algo convulso:
tempestade, furacão, raio, treva, crime, desnaturalidade, desarmonia, contraste. Nas palavras de Antonio
Candido (2000, p. 29, v. 2), o poeta “adora-a e renega-a, sucessivamente, sem desprender-se do seu
fascínio nem pacificar-se ao seu contato”. Ainda para Candido,

a natureza é algo supremo que o poeta procura exprimir e não consegue:


a palavra, o molde estreito de que ela transborda, criando uma consciência
65
Unidade I

de desajuste. Boa parte do mal do século provém desta condição estética:


desconfiança da palavra em face do objeto que lhe fora exprimir.

Essa natureza convulsa, violenta e relacionada à vida e à morte, é encontrada no poema de Álvares
de Azevedo, transcritas aqui as duas primeiras partes:

Crepúsculo nas montanhas

Além serpeia o dorso pardacento


Da longa serrania,
Rubro flameia o véu sanguinolento
Da tarde na agonia.

No cinéreo vapor o céu desbota


Num azulado incerto,
No ar se afoga desmaiando a nota
Do sino do deserto...

Vim alentar meu coração saudoso


No vento das campinas,
Enquanto nesse manto lutuoso
Pálida te reclinas.

E morre em teu silêncio, ó tarde bela,


Das folhas o rumor...
E late o pardo cão que os passos vela
Do tardio pastor!

II

Pálida estrela! o canto do crepúsculo


Acorda-te no céu:
Ergue-te nua na floresta morta
Do teu doirado véu!

Ergue-te!... eu vim por ti e pela tarde


Pelos campos errar,
Sentir o vento, respirando a vida
E livre suspirar.

É mais puro o perfume das montanhas


Da tarde no cair...
66
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Quando o vento da noite agita as folhas


É doce o teu luzir!

Estrela do pastor, no véu doirado


Acorda-te na serra,
Inda mais bela no azulado fogo
Do céu da minha terra! (AZEVEDO, 1968, p. 18-19).

O léxico selecionado reforça a imagem de natureza convulsa:

• cores e figuras: rubro, flameia, sanguinolento;

• sons, ruídos: agonia, rumor, vento, canto, ruge.

Na ordem da natureza, fazem parte também as queimadas que arrasam florestas inteiras, como
vemos no poema a seguir:

A queimada

MEU NOBRE perdigueiro! vem comigo.


Vamos a sós, meu corajoso amigo,
Pelos ermos vagar!
Vamos lá dos gerais, que o vento açoita,
Dos verdes capinais n’agreste moita
A perdiz levantar!...

Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos...


Aqui, meu cão!... Já de listrões vermelhos
O céu se iluminou.
Eis súbito da barra do ocidente,
Doudo, rubro, veloz, incandescente,
O incêndio que acordou!

A floresta rugindo as comas curva...


As asas foscas o gavião recurva,
Espantado a gritar.
O estampido estupendo das queimadas
Se enrola de quebradas em quebradas,
Galopando no ar.

E a chama lavra qual jiboia informe,


Que, no espaço vibrando a cauda enorme,
Ferra os dentes no chão...
Nas rubras roscas estortega as matas...,
67
Unidade I

Que espadanam o sangue das cascatas


Do roto coração!...

O incêndio — leão ruivo, ensanguentado,


A juba, a crina atira desgrenhado
Aos pampeiros dos céus!...
Travou-se o pugilato... e o cedro tomba...
Queimado..., retorcendo na hecatomba
Os braços para Deus.

A queimada! A queimada é uma fornalha!


A irara — pula; o cascavel — chocalha...
Raiva, espuma o tapir!
... E às vezes sobre o cume de um rochedo
A corça e o tigre — náufragos do medo —
Vão trêmulos se unir!

Então passa-se ali um drama augusto...


N’último ramo do pau-d’arco adusto
O jaguar se abrigou...
Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares...
E após... tombam as selvas seculares...
E tudo se acabou!... (ALVES, 1968, p. 89-90).

A natureza, na obra de Castro Alves, sugere quase sempre imensidade e infinitude, de acordo com
Bosi (1991, p. 136), “pois transpõe para seus poemas os espaços, os astros, o oceano, o sertão (vasto), o
universo (vasto), os tufões, as procelas, os alcantis, os Andes, a águia, o condor e assim por diante”. No
poema A queimada, temos um espaço com imensas dimensões, que é a floresta, com destaque para sua
variada e rica fauna (jiboia, corça, tigre...), sendo o próprio incêndio comparado a ela. O incêndio é:

• o cavalo (ou outro animal de porte grande) que galopa: “o estampido estupendo das queimadas /
galopando no ar”;

• a jiboia, pela sua extensão longilínea: “a chama lavra qual jiboia... / vibrando a cauda enorme”;

• o leão, pela cor: “o incêndio – leão ruivo, ensanguentado / a juba, a crina atira desgrenhado”.

O incêndio, tomado aqui como elemento natural, monta o palco para “um drama augusto”, ou seja,
de proporção grandiosa e “hecatomba”.

Exemplo de Aplicação

1. Tomando por referência as discussões sobre a relação do poeta com a natureza, redija um
comentário a respeito do poema a seguir, de Álvares de Azevedo:
68
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Meditação

O dia descobre a terra: a noite descortina os céus.

Marquês de Maricá

Eu creio, amigo, que a existência inteira


É um mistério talvez: mas n’alma sinto,
De noite e dia respirando flores,
Sentindo as brisas, recordando aromas
E esses ais que ao silêncio a sombra exala
E enchem o coração de ignota pena,
Como a íntima voz de um ser amigo...
Que essas tardes e brisas, esse mundo
Que na fronte do moço entorna flores,
Que harmonias embebem-lhe no seio,
Têm uma alma também que vive e sente...

A natureza bela e sempre virgem,


Com suas galas gentis na fresca aurora,
Com suas mágoas na tarde escura e fria...
E essa melancolia e morbideza
Que nos eflúvios do luar ressumbra,
Não é apenas uma lira muda
Onde as mãos do poeta acordam hinos
E a alma do sonhador lembranças vibra.

Por essas fibras da natura viva,


Nessas folhas e vagas, nesses astros,
Nessa mágica luz que me deslumbra
E enche de fantasia até meus sonhos,
Palpita porventura um almo sopro,
— Espírito do céu que as reanima!
E talvez lhes murmura em horas mortas
Estes sons de mistério e de saudade,
Que lá no coração repercutidos
O gênio acordam que enlanguesce e canta!

Eu o creio, Luís! também às flores


Entre o perfume vela uma alma pura,
Também o sopro dos divinos anjos
Anima essas corolas setinosas!
No murmúrio das águas no deserto,
Na voz perdida, no dolente canto
69
Unidade I

Da ave de arribação das águas verdes,


No gemido das folhas na floresta,
Nos ecos da montanha, no arruído
Das folhas secas que estremece o outono,
Há lamentos sentidos, como prantos
Que exala a pena de subida mágoa.

E Deus? — eu creio nele como a alma


Que pensa e ama nessas almas todas,
Que as ergue para o céu e que lhes verte,
Como orvalho noturno em seus ardores,
O amor, sombra do céu, reflexo puro
Da auréola das virgens de seu peito!
Essa terra, esse mundo, o céu e as ondas,
Flores, donzelas — essas almas cândidas,
Beija-as o senhor Deus na fronte límpida,
Arreia-as de pureza e amor sem nódoa...
E à flor dá a ventura das auroras,
Os amores do vento que suspira...
Ao mar a viração, o céu às aves,
Saudades à alcion, sonhos à virgem
E ao homem pensativo e taciturno,
À criatura pálida que chora
— Essa flor que ainda murcha tem perfumes,
Esse momento que suaviza os lábios,
Que eterniza na vida um céu de enleio...
O amor primeiro das donzelas tristes.

São ideias talvez... Embora riam


Homens sem alma, estéreis criaturas,
Não posso desamar as utopias,
Ouvir e amar, à noite, entre as palmeiras,
Na varanda ao luar o som das vagas,
Beijar nos lábios uma flor que murcha,
E crer em Deus como alma animadora
Que não criou somente a natureza,
Mas que ainda a relenta em seu bafejo,
Ainda influi-lhe no sequioso seio
De amor e vida a eternal centelha!
Por isso, ó meu amigo, à meia-noite
Eu deito-me na relva umedecida,
Contemplo o azul do céu, amo as estrelas,
Respiro aromas... e o arquejante peito
Parece remoçar em tanta vida,
70
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Parece-me alentar-se em tanta mágoa,


Tanta melancolia! e nos meus sonhos,
Filho de amor e Deus, eu amo e creio!
Fonte: Azevedo (2002, p. 68).

II. Você conhece algum poema brasileiro, contemporâneo de nossa sociedade, que fala da natureza?
Transcreva-o (se for muito longo, apenas um trecho) e faça um comentário sobre o texto: há reminiscências
românticas nele? Há influência do mundo capitalista que incentiva o turismo ou uma atividade radical?

3.2 Idealização do ameríndio: o indianismo

A forma mais reputada da literatura nacional foi o indianismo, cujo período áureo corresponde às
décadas de 1840 e 1860, tendo como expoentes Gonçalves Dias (na poesia) e José de Alencar (na prosa).
Não podemos esquecer que o tema já encontrava antecedentes na épica árcade das obras de Basílio da
Gama e de Santa Rita Durão. Além disso, a imagem do índio passava a ser cada vez mais empregada como
alegoria nacional, inclusive nas festas do Brasil de Dom João, intensificando-se com a Independência,
quando se tornou frequente a prática de adotar nomes e atribuir títulos indígenas. O período, enfim,
estimulou os poetas do Romantismo a fazer a reavaliação de nossa tradição e contribuição ao tema,
levando a reinterpretar um Basílio e um Durão segundo as aspirações românticas (BOSI, 1991; CANDIDO,
2000; BUENO, 2007).

Obviamente, a imagem heroica que emerge de um poema de Gonçalves Dias, por exemplo, não
corresponde à realidade e à cultura indígena. Para que o índio fosse elevado à condição de mito
nacional, era necessário submetê-lo a uma espécie de deformação idealizada, depurando tudo aquilo
que pudesse contrariar o estatuto de herói e os valores morais e cristãos da civilização ocidental. Para
esse herói e essa tradição nacionais, efetivamente inventados, foram tomados de empréstimos atributos
do cavaleiro medieval e da ética cortês, de modo a fazer o índio (antepassado brasileiro) semelhante
qualitativamente ao conquistador europeu-português.

As principais características herdadas do cavaleiro medieval (logo, europeu) pelo índio criado pelos
poetas românticos podem ser resumidas assim, de acordo com Mello e Souza (1979, p. 78):

• nobreza – o cavaleiro está colocado no ápice da hierarquia aristocrática


e é equiparável a um rei;

• coragem – não devendo evitar nenhum perigo, o cavaleiro se submete


a um conjunto de provas, durante a busca aventurosa em que se
empenha, a fim de sublinhar o sentido heroico de sua vida;

• lealdade – o cavaleiro é um personagem simpático, que vai de torneio


em torneio em busca de aventuras, medindo lealmente a sua força

71
Unidade I

com a dos companheiros; por outro lado, a defesa da honra dos


companheiros deve incitá-lo ao combate;

• verdade – recusa a mentira;

• justiça – o cavaleiro deve assumir sempre a defesa dos fracos; e

• desprendimento – o cavaleiro deve ignorar qualquer proveito pessoal.

Na concepção de Treece (2008), essa representação idealizada do índio na literatura romântica,


longe de ser uma invenção desvinculada da realidade da época, constitui, na verdade, uma reflexão
problemática e persistente a respeito da formação simbólica e sociopolítica da nação brasileira. Esse
crítico identifica três imagens do índio na produção literária do período, as quais encontram equivalência
e fundamentação históricas em três momentos da evolução política brasileira do século XIX.

A primeira imagem, compreendendo o período de 1835 a 1850, é a do índio como vítima das
consequências militares e sociais da Conquista, tal como ele aparece na poesia de Gonçalves Dias. Sua
motivação histórica é encontrada no período de conflito aberto e instabilidade que se seguiu à abdicação de
Pedro I, levando, assim, os sucessivos governos regenciais a se confrontar com violentas revoltas provinciais,
tais como Abrilada e Cabanada em Pernambuco (1832), Cabanagem no Pará (1835), Balaiada no Maranhão
(1838-45), Sabinada na Bahia (1837-38), Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul (1835-45) e Revolução
Praieira no Recife (1848), que pleiteavam a descentralização do poder e as reformas liberais.

A promessa de mudanças fundamentais no sistema e nas políticas do governo com a Independência


do Brasil não deu em nada, uma vez que as oligarquias tradicionais de ascendência portuguesa
mantinham sua influência com base ainda no poder colonial arcaico, levando, por conseguinte, a uma
reação violenta contra aquela contínua dominação ética e de classe que se estendeu por 18 anos.

Esse sentimento de classe e antilusitanismo que animaram a massa de revoltosos dessas insurreições
provinciais (composta por membros das camadas médias e pobres da sociedade, incluindo pequenos
proprietários rurais, negros, mestiços, índios tapuios) parece ter contagiado o indianismo do poeta
Gonçalves Dias (ele também mestiço, filho ilegítimo de português com uma cafuza), que vivenciou
de perto, em sua Caxias natal, o processo todo da Balaiada, dedicando, inclusive, mais de um poema
ao levante e à repressão, descritos nos mesmos termos apocalípticos com que tratou o trauma da
Conquista em seus poemas indianistas.

A segunda imagem, compreendendo o período de 1850 a 1870, é a do índio como aliado do branco
conquistador, muitas vezes à custa do sacrifício de sua própria vida ou mesmo de toda sua tribo. Sua
motivação histórica residiria na política de Conciliação do Segundo Reinado, buscando acomodar os
novos interesses liberais aos velhos interesses do poder escravocrata e latifundiário (herança de nosso
passado colonial). Essa imagem do aliado comparece em forma de mito sacrificial na Confederação dos
Tamoios, de Gonçalves de Magalhães.

A terceira e última imagem é a do índio como rebelde, compreendendo o período de 1870 a 1888, tendo
como exemplos obras por longo tempo marginalizadas pela historiografia oficial, como O índio Afonso e o
72
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

poema obsceno O elixir do pajé, ambos de Bernardo Guimarães; o Guesa errante, de Sousândrade; e Os escravos
vermelhos, de Melo Morais Filhos. Para o crítico inglês Treece (2008), as motivações para essa terceira mudança
na figuração do índio do século XIX podem ser encontradas no Realismo, cujas propostas estéticas e polêmicas
começam a aportar aqui, combatendo a infidelidade histórica e a idealização do índio promovidas pelo
Romantismo, no republicanismo, que, ao se voltar contra a monarquia, acaba por rejeitar toda a mitologia a ela
associada, e no abolicionismo, que, com sua principal reivindicação libertária, acabava também por reconhecer
a decisiva contribuição africana para a fisionomia nacional que a imagem literária oficial tratava de ocultar em
face da condição servil do negro.

Na obra poética de Gonçalves Dias, o leitor depara-se com a dimensão trágica da colonização, que
vitimou toda uma raça, evidenciada já na própria lógica da sequência com que foram dispostos os
primeiros poemas americanos no livro de estreia Primeiros cantos, de 1846:

O canto do guerreiro

Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
– Ouvi-me, Guerreiros.
– Ouvi meu cantar.

II

Valente na guerra
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
– Guerreiros, ouvi-me;
– Quem há, como eu sou?

III

Quem guia nos ares


A frecha imprumada,
Ferindo uma presa,
Com tanta certeza,
Na altura arrojada
73
Unidade I

Onde eu a mandar?
– Guerreiros, ouvi-me,
– Ouvi meu cantar.

IV

Quem tantos imigos


Em guerras preou?
Quem canta seus feitos
Com mais energia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
– Guerreiros, ouvi-me:
– Quem há, como eu sou?

Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.
– Quem há mais valente,
– Mais destro do que eu?

VI

Se as matas estrujo
Co os sons do Boré,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
– Quem é mais valente,
– Mais forte quem é?

VII

Lá vão pelas matas;


Não fazem ruído:
74
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

O vento gemendo
E as malas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
São eles – guerreiros,
Que faço avançar.

VIII

E o Piaga se ruge
No seu Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.

IX

E então se de novo
Eu toco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
– Guerreiros, dizei-me,
– Tão forte quem é?
Fonte: Dias (1997, p. 28-31).

Neste, como em outros poemas de Gonçalves Dias, evidencia-se a aproximação entre poesia e
música, que, segundo Candido (2000), é característica do Romantismo. No caso específico do Canto do
guerreiro, essa aproximação se justifica pela isorritmia das redondilhas menores – com acento invariável
na 2ª. e na 5ª. sílabas – extremamente adequada à ideia de movimento e ao assunto guerreiro.

Posto na abertura dos primeiros poemas americanos, o canto anterior ressalta as virtudes e destrezas
bélicas do índio, estando de acordo com o que já demonstravam muitos dos primeiros cronistas, não
sem uma boa dose de preconceitos eurocêntricos, como vemos em Gândavo e outros. Gonçalves Dias
baseia-se neles, mas sem julgamento negativo.

75
Unidade I

O poema traz à cena um guerreiro que se dirige diretamente a seus iguais de maneira que parece,
à primeira vista, um tanto exibicionista ou mesmo arrogante, devido ao modo como enumera suas
qualidades e competência guerreira. Fala, insistentemente, da sua valentia na guerra e de sua destreza
no manejo do tacape (II); da precisão e da força para empunhar a lança ou a flecha e alcançar o alvo
a longas distâncias (III); da competência não só para lutar, mas também para cantar com energia seus
feitos de guerra (IV); da obediência e temor que impõe não só aos homens, mas também aos animais
(V); do espírito de liderança exercido sobre seus homens, que obedecem de pronto ao som que ele extrai
do boré para iniciar a batalha, da qual participam com ânimo inflado, lamentando quando têm de
abandonar o campo.

O modo como o guerreiro enfatiza suas qualidades visa justificar a posição de chefia e liderança que
ele ocupa em sua tribo. E também incitar o espírito guerreiro daqueles que interpela diretamente, ao
final de quase toda estrofe, ao modo de refrão.

Justamente porque sua nação indígena conta com um líder dessa envergadura é que ela gera “bravos”
e não “escravos, / que estimem a vida / sem guerra e lidar”. Cantar façanhas de bravos é estimular
a repetição dessas façanhas. É manter o espírito belicoso, diante das possíveis ameaças, que vêm se
confirmar no poema indianista.

Como ponto de curiosidade visual, as cenas da batalha descritas no Canto guerreiro por Gonçalves
Dias comparecem em termos nas sequências de pranchas de Jean-Baptiste (1768-1848):

Sinal de combate Sinal de retirada

Figura 3

De acordo com informações obtidas por Debret, o chefe indígena, segundo os costumes de sua
cultura, dá sinal de combate ao som da trombeta, e continua a tocar esse instrumento até o momento
em que deseja ordenar o término das hostilidades. O silêncio do chefe torna-se, assim, necessariamente
o sinal da retirada, em virtude da qual todos seus partidários voltam a reunir-se em torno de seu general,
trazendo do campo de batalha os feridos e os mortos. A prancha à esquerda mostra os efeitos do sinal
76
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

de combate: os companheiros armados descem pelas ravinas que conduzem a um rio já atravessado a
nado por alguns soldados do chefe Tacupecuxiari, o qual é representado com sua vestimenta completa
e soprando sua trombeta militar. Sua mulher mantém-se perto dele com as armas prontas para um caso
de necessidade.

O assunto da outra prancha é o sinal de retirada, dado por um chefe da mesma nação, de pé numa
colina, a caminho de suas florestas. Sua mulher, que não o abandonou, carrega as armas e a criança;
inúmeros companheiros trepam pelos rochedos carregando nos ombros mortos e feridos; um dos
guerreiros, que já atingiu um ponto mais elevado, transporta armas colhidas no campo de batalha. O
dardo que o chefe segura é uma arma usada nessa região do Brasil.

Durante os combates, o chefe coloca-se sempre em lugar elevado, que domine o campo de batalha,
e, não se prestando o terreno, sobe em uma árvore para ver e dirigir a ação.

Exemplo de Aplicação

Considerando o que vimos com David Treece (2008), a respeito das diferentes imagens do índio
como vítima, rebelde ou aliado, analise o seguinte poema de Gonçalves Dias, destacando e comentando
as passagens mais representativas de seus versos:

Deprecação

Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto


Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz!

Tupã, ó Deus grande! teu rosto descobre:


Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos
Teus filhos que choram tão grande mudança.

Anhangá impiedoso nos trouxe de longe


Os homens que o raio manejam cruentos,
Que vivem sem pátria, que vagam sem tino
Trás do ouro correndo, voraces, sedentos.

E a terra em que pisam, e os campos e os rios


Que assaltam, são nossos; tu és nosso Deus:
Por que lhes concedes tão alta pujança,
Se os raios de morte, que vibram, são teus?

Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto


Com denso velâmen de penas gentis;
77
Unidade I

E jazem teus filhos clamando vingança


Dos bens que lhes deste da perda infeliz.

Teus filhos valentes, temidos na guerra,


No albor da manhã quão fortes que os vi!
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco Tupi!

E hoje em que apenas a enchente do rio.


Cem vezes hei visto crescer e baixar...
Já restam bem poucos dos teus, qu'inda possam
Dos seus, que já dormem, os ossos levar.

Teus filhos valentes causavam terror,


Teus filhos enchiam as bordas do mar,
As ondas coalhavam de estreitas igaras,
De frechas cobrindo os espaços do ar.

Já hoje não caçam nas matas frondosas


A corça ligeira, o trombudo quati...
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco Tupi!

O Piaga nos disse que breve seria,


A que nos infliges cruel punição;
E os teus inda vagam por serras, por vales,
Buscando um asilo por ínvio sertão!

Tupã, ó Deus grande! descobre o teu rosto:


Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande tardança.

Descobre o teu rosto, ressurjam os bravos,


Que eu vi combatendo no albor da manhã;
Conheçam-te os feros, confessem vencidos
Que és grande e te vingas, qu'és Deus, ó Tupã!
Fonte: Dias (1997, p. 34-36).

78
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

3.3 Amor à pátria

Caro aluno, quase todos nós, brasileiros, conhecemos, pelo menos, estes versos:

“Nossos bosques têm mais vida


Nossa vida (em teu seio) mais amores”.

São versos que integram a letra do Hino Nacional e eles foram retirados da Canção do exílio, de
Gonçalves Dias. O texto, muito mais que qualquer comentário, fala por si mesmo:

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras,


Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,


Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,


Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá (DIAS, 1997, p. 27).

O poema foi criado em Coimbra, em 1843, quando o poeta passou um período em Portugal. Assim,
as “aves que aqui gorjeiam” referem-se ao lugar em que o poeta se encontra, distante de sua terra, que
“tem palmeiras” e “onde canta o Sabiá”.
79
Unidade I

Na Canção do exílio, o poeta enumera as qualidades da sua terra, que está distante, “lá”, ou seja,
do território brasileiro: o céu mais estrelado, o canto das aves (que é mais bonito que o da Europa), os
primores e amores. É o ufanismo tradicional brasileiro.

Esse poema abre o livro Primeiros cantos, de 1847, tornando-se a peça mais famosa de toda a poesia
brasileira, símbolo pátrio comparável à bandeira ou ao Hino Nacional (BUENO, 2007). Como diz Cyntrão
(2004, p. 91):

A arte é um dos meios pelos quais mais claramente os povos pensam a


sua identidade, e é exatamente nos momentos de crise nacional em que
os poetas, sobretudo estes, mais expressam a autoconsciência de seu
ser político, por meio de um sistema simbólico que se integra à camada
conotativa-expressiva da linguagem. Essas analogias representam a relação
dialética entre a vida nacional e a expressão literária criada por ela.

O poema Canção do exílio de Gonçalves Dias deve ser valorizado como exemplo por ter tido ele o
mérito de, como este poeta, ser o primeiro dos nossos autores a criar uma obra válida esteticamente em
sua totalidade, fundamentada na nacionalidade.

Gonçalves Dias nasceu em 1823, um ano após a Independência do Brasil, em meio ao grande
entusiasmo produzido por esse marco histórico. É, portanto, natural que o sentimento nacional, de
amor à terra, esteja presente em sua obra.

O nacionalismo de Gonçalves Dias não apenas traduziu o furor ativista pós-independência ou o


sentimento saudosista de um jovem exilado. O poeta transcendeu espaço e tempo: seu lirismo abriu
caminhos na sensibilidade do século XX, perpetuando-se até hoje.

O poema, símbolo de nacionalismo, tornou-se matriz de outras canções de poetas das mais diferentes
épocas e estilos. Na contemporaneidade de Gonçalves Dias, foram publicados dois poemas: Canção do
exílio I e Canção do exílio II, de Casimiro de Abreu.

Canção do exílio

Eu nasci além dos mares:


Os meus lares,
Meus amores ficam lá!
– Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá!

Oh que céu, que terra aquela,


Rica e bela
Como o céu de claro anil!
Que seiva, que luz, que galas,
80
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Não exalas
Não exalas, meu Brasil!

Oh! que saudades tamanhas


Das montanhas,
Daqueles campos natais!
Daquele céu de safira
Que se mira,
Que se mira nos cristais!

Não amo a terra do exílio,


Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país,
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras,
E as palmeiras tão gentis!

Como a ave dos palmares


Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho,
Sem carinho;
Sem carinho e sem amor!

Debalde eu olho e procuro...


Tudo escuro
Só vejo em roda de mim!
Falta a luz do lar paterno
Doce e terno,
Doce e terno para mim.

Distante do solo amado


– Desterrado –
A vida não é feliz.
Nessa eterna primavera
Quem me dera,
Quem me dera o meu país! (ABREU, 1999, p. 11).

O poema de Casemiro de Abreu traz marcas de incompreensão e retoma o nativismo e o sentimento


de exílio de Gonçalves Dias. De forma mais lancinante, com um nacionalismo extremado e uma devoção
aos elementos naturais do país, o leitor verifica em versos como “Oh! que céu, que terra aquela”.

Explicitamente, o poeta declara: “Não amo a terra do exílio, / sou bom filho, / Quero a pátria, o meu
país”.
81
Unidade I

Vimos a importância assumida pelo nacionalismo no Romantismo, devido ao desejo de afirmação de


identidade e autonomia da nação recém-independente em relação a Portugal.

Esse anseio nacionalista levou poetas românticos a criar poemas ufanistas, como verdadeiras
declarações de amor ao país, a exortar a natureza, a qual sempre causou fascínio nos europeus, mas
agora como elemento da nação a ser valorizada, e a valorizar o ameríndio como símbolo nacional.

Para encerrar esta parte do livro-texto, recorremos a Antonio Candido (1995, p. 305):

Se entendermos por nacionalismo a exclusão das fontes estrangeiras, caímos


no provincianismo; mas se o entendermos como cautela contra a fascinação
provinciana por estas fontes, estaremos certos. Se nacionalismo for aversão
contra outros países, mesmo imperialistas, será um erro desumanizador; mas,
se for valorização dos nossos interesses e componentes, na sua pluralidade,
além de defesa contra a dominação por parte desses países, será um bem.
Se entendermos por nacionalismo o desconhecimento das raízes europeias,
corremos o risco de atrapalhar o nosso desenvolvimento harmonioso; mas,
se o entendermos como consciência da nossa diferença e critério para
definir a nossa identidade, isto é, o que nos caracteriza a partir das matrizes,
estamos garantindo o nosso ser, que é não apenas "crivado de raças” (como
diz um poema de Mário de Andrade), mas de culturas.

Exemplo de Aplicação

I. Canção do exílio, de Gonçalves Dias, tornou-se matriz para tantas outras (re)criações de poetas
brasileiros do século XX. Entre elas, podemos destacar Nova canção do exílio, de Carlos Drummond de
Andrade, Canção do exílio, de Murilo Mendes, Canto de regresso à pátria, de Oswald de Andrade. Procure
estes e outros poemas que fazem intertexto com a Canção de Gonçalves Dias. Identifique-os (título e
autor). Discuta se cada texto mantém ou refuta a ideia original.

Quadro 6

Autor Título

II. Seja você um poeta ufanista: escreva um texto poético (no formato que desejar) sobre seu país. O
que você valorizaria dele: a natureza, o convívio entre as pessoas, os centros de compras, a facilidade de
locomoção, o agito da cidade, as oportunidades para as mulheres?

82
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

4 HISTORIOGRAFIA E ESCOLARIZAÇÃO DA POESIA BRASILEIRA

Com o evento histórico Independência do Brasil, três importantes fatos sobre a literatura no país
precisam ser destacados:

1. sentimento patriótico: os poetas passaram a tematizar sobre o país ao valorizar sua natureza e
idealizar seu povo nativo (não descendente dos europeus);

2. conscientização sobre a literatura nacional: discussão sobre o que é literatura nacional, quais
autores são brasileiros, há literatura distinta e autônoma, entre outras questões, levando a estudos
sistematizados sobre a história da literatura no Brasil;

3. escolarização da literatura: o ensino de literatura nos colégios passou a ser mais


sistematizado, devido à produção e adoção de compêndios sobre a literatura (história,
autores, movimentos).

Os estudos históricos sobre a literatura e a escolarização da literatura repercutem todo o século XIX
e XX, influenciando e tornando tradição as críticas literárias, os manuais didáticos literários e o ensino
da literatura brasileira.

Temos estudiosos – notáveis e respeitados (precisamos destacar para não haver dúvidas) –, como
Alfredo Bosi (1991) e Bueno (2007), que ajudaram a firmar a tradição da abordagem da literatura pela
sua história: desde 1500 até a atualidade, dividindo suas obras segundo o aparecimento de cada estilo
na linha do tempo. Os autores de manuais didáticos, por sua vez, baseiam-se nos livros, compêndios,
dos críticos literários historiográficos e apresentam a literatura segundo seus estilos em linha temporal,
com apresentação breve da biografia do poeta, trecho e características da obra inerentes ao movimento
estético a que pertence o poeta.

Essa abordagem historiográfica é também adotada pela nossa Instituição de ensino e reflete neste
livro-texto.

4.1 Historiografia da literatura brasileira

Segundo Souza (2007), a literatura é necessária para que uma nação se declare como tal: nação. É
concretizada em livros e como disciplina inscrita no currículo da escola.

No Brasil, a literatura nacional é institucionalizada a partir do início do século XIX e, por meio
de análise dos programas, o Colégio Pedro II serve como modelo para um sistema educacional a ser
implantado no país.

Esse colégio foi fundado em 1837, sendo uma instituição de Ensino Médio destinada à formação de
bacharéis em um período de sete anos. Devido ao fato de não existir curso superior de Letras, o qual só
passou a existir em 1934, o Pedro II preenchia essa lacuna.

83
Unidade I

Em 1862, foi criado o primeiro compêndio, Curso elementar de literatura nacional, pelo professor do
colégio, o cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro. Em 1877, além desse livro, livros estrangeiros
também foram adotados pelo governo da época.

Além do próprio nome da disciplina, História da literatura brasileira, e da presença majoritária no


programa da literatura, outro sinal de sua plena institucionalização era o livro adotado para o ensino:
História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, obra nacional de 1888 apta para a consolidação
institucional da disciplina.

Durante o século XIX, o processo histórico que conduziu à legitimação da literatura nacional foi
lento. Essa legitimação ocorreu por meio de uma de suas vias privilegiadas, a do sistema de ensino, que
não só a institucionalizou, como também canonizou certas obras literárias.

Inicialmente, observamos que o estudo literário no Brasil implicou um contraponto entre a visada
universalista da literatura (chamada literatura, literatura geral ou história literária) e a perspectiva
nacional. Observamos também o status privilegiado jamais subtraído à literatura portuguesa; situação
essa que se prolongou século XX afora. Ainda hoje, nossos currículos universitários em geral equiparam
literatura brasileira e literatura portuguesa, concedendo a ambas a condição de disciplinas obrigatórias
nos cursos de Letras, privilégio não estendido às outras literaturas nacionais de língua portuguesa. Por
fim, verificamos como a ideia do nacional, no século XIX, foi conquistando posição, principalmente com
a inserção, em 1860, no programa escolar, da nova disciplina chamada Literatura Nacional.

A existência da literatura brasileira como matéria de ensino é uma construção histórica, encetada
após a Independência e concluída nas imediações da Proclamação da República. A formação da história
da literatura brasileira como disciplina processou-se num período situado entre 1805 e 1888. A primeira
data corresponde à publicação de uma obra alemã, de Friedrich Bouterwek, em que a presença do Brasil,
então colônia, se restringe à menção de dois escritores nascidos no país, Antônio José da Silva e Cláudio
Manuel da Costa.

No que diz respeito aos autores brasileiros que passaram a tratar da literatura nacional, temos o
seguinte resultado, segundo Souza (2007):

• Inicialmente, antologias de poesia, chamadas parnasos ou florilégios.

• Ensaios com princípios sobre a ideia de literatura brasileira.

• Estudos sobre a vida dos escritores, constituindo as chamadas galerias.

• Edições de textos constituídas de biografia sobre os autores literários, juízos críticos e notas
explicativas.

• Periodizações e sínteses historiográficas sobre a história da literatura (do panorama das épocas
sucessivas).

84
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Entre as antologias, a mais antiga é o Parnaso brasileiro (1829-1832), de Januário da Cunha Barbosa.
Entre os ensaios com princípios sobre a ideia de literatura brasileira, figuram verdadeiros manifestos
românticos, empenhados tanto em avaliar o passado literário do país quanto em projetar um futuro
em que a submissão à Europa fosse superada. Nesse tipo de texto, consta o Ensaio sobre a história da
literatura do Brasil (1836), de Domingos José Gonçalves de Magalhães. Na modalidade de galerias,
destaca-se, por exemplo, Plutarco brasileiro (1847), de João Manuel Pereira da Silva. Entre as edições
de textos, constam trabalhos de pessoas responsáveis por diversas edições de poetas de seu século e do
século anterior. Por fim, entre as narrativas do processo literário, constam as histórias da literatura com
propósito didático, tal como a obra Curso elementar de literatura nacional (1862), de Joaquim Caetano
Fernandes Pinheiro.

À procura dos ensaios fundadores de nossa historiografia literária, Souza (2007) descobriu um
estudo no tomo três da revista O Guanabara (1855), estudo pioneiro não só sobre a história da literatura
brasileira, como também por tratar exclusivamente da nossa literatura, sem considerá-la uma espécie
de apêndice da literatura de Portugal.

Em verdade, a literatura portuguesa nunca foi considerada propriamente estrangeira em nosso país,
conforme compreensão que se firmou já no século XIX.

Na passagem do século XIX para o XX, os referenciais brasileiros no campo dos estudos literários
foram: Tristão de Alencar Araripe Júnior, Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero e José Veríssimo
Dias de Matos, os famosos Araripe, Romero e Veríssimo, cujas contribuições foram decisivas no processo
de consolidação da disciplina.

A obra História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, publicada em 1888, constitui a consolidação
da disciplina homônima, que, deste então, se instalou plenamente no sistema de ensino do país, sob
aquele nome ou, mais usualmente, sob a forma abreviada Literatura Brasileira.

O século XX deu sequência à tradição, surgindo obras que falavam da história da literatura. Por
exemplo:

• Pequena história da literatura brasileira, de Ronald de Carvalho, de 1919;

• História da literatura brasileira, de Artur Mota, de 1930;

• Noções de história da literatura brasileira, de Afrânio Peixoto, de 1931;

• História da literatura brasileira, de Nelson Werneck Sodré, de 1938.

Até a década de 1940, o modelo oitocentista permaneceu, em geral, como referência teórica para as
histórias literárias, com exceção de Werneck. Na década de 1950, surgiram dois livros com revisão das
bases conceituais vigentes até então. Trata-se das obras A literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho, e
Formação da literatura brasileira, de 1959, de Antonio Candido.

85
Unidade I

No estudo de Antonio Candido, figura a necessidade de conciliação entre as perspectivas histórico-


sociais e estéticas, dedicando-se aos períodos do Arcadismo (1750-1836) e Romantismo (1836-1880).

Os anos 1960 foram marcantes pelo lançamento dos seis volumes da série A literatura brasileira, da
editora Cultrix:

• Manifestações literárias da era colonial, de José Aderaldo Castello;

• O Romantismo, de Antônio Soares Amora;

• O Realismo, de João Pacheco;

• O Simbolismo, de Massaud Moisés;

• O Pré-modernismo, de Alfredo Bosi;

• O Modernismo, de Wilson Martins.

A década de 1970 assiste, entre seus lançamentos, que não assinalam novidades metodológicas
em relação aos volumes mencionados, a obra de Alfredo Bosi, intitulada História concisa da literatura
brasileira, que aliás não é tão concisa assim, considerando a extensão do volume. Esse livro é sucesso
acadêmico evidenciado no prodigioso número de reedições, sendo a quadragésima de 2002.

A partir de 1983, inicia-se a publicação da História da literatura brasileira, de Massaud Moisés, com
volumes distintos intitulados, respectivamente, Origens, Barroco e Arcadismo, Romantismo, Realismo,
Simbolismo, Modernismo. Na década de 1990, há vários livros publicados na vertente tradicional da
história, como o volume O cânone colonial (1997), de Flávio R. Kothe.

Por fim, como exemplo de obra historiográfica da primeira década dos anos 2000, temos Uma história
da poesia brasileira (2007), de Alexei Bueno, indicada entre os livros da bibliografia deste livro-texto.

A história da literatura fornece um mapa do tempo (SOUZA, 2007) e, no caso do Brasil, tornou-se
tradicional estudar os domínios da nossa literatura, distinguindo o estilo (ou escola), autores e principais
características (ou traços). Podemos, então, enquadrar da seguinte forma, explicando que o quadro
Centro significa cidade, região em que a tendência artística se apresentou primeiro ou mais fortemente,
ou a região que patrocinou a briga pela implantação do estilo.

Quadro 7

Estilo (nome) Época Centro Autores Traços


Litoral brasileiro, Literatura afinada com
nas pequenas Os viajantes: Caminha,
Literatura objetivos pragmáticos
Século XVI vilas estabelecidas Léry, os padres, padre
informativa (relatos para o leitor
(extração de pau- Anchieta. europeu ou catequese).
brasil).

86
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Bahia (açúcar), vida Ainda objetivos


urbana rala, sem Gregório de Matos, pragmáticos, mas já com
Barroco Século XVII edição e com pouca padre Vieira. ideias estéticas: cultivo de
circulação de livros. antíteses, paradoxos.
Cláudio Manoel da Costa, Reverência às formas
Minas Gerais, as
Século XVIII Tomás Antônio Gonzaga, e aos temas clássicos
Arcadismo primeiras grandes
(metade) Basílio da Gama, convencionados:
cidades brasileiras. Silva Alvarenga. bucolismo, carpe diem.
Gonçalves Dias, Busca da identidade
Século XIX até Rio de Janeiro, capital Álvares de Azevedo,
Romantismo nacional (índio, natureza) e
os anos 1870 do novo país. Fagundes Varela, individualismo.
Castro Alves...
Exame da realidade
Realismo e Machado de Assis,
1880-1922 Rio de Janeiro popular, com lente
Naturalismo Aluísio de Azevedo... darwinista.
Olavo Bilac, Classicismo, afastamento
Parnasianismo 1880-1922 Rio de Janeiro Alberto de Oliveira, da realidade social,
Raimundo Correia. refinamento.
Cruz e Sousa, Temas espirituais e
Alphonsus de
Simbolismo 1880-1922 Várias cidades. filosóficos, trabalho formal
Guimaraens, expressivo.
Eduardo Guimaraens.
Mario de Andrade, Grande experimentação na
São Paulo, cidade
Modernismo 1922-1930 Oswald de Andrade, busca de nova definição da
industrial, moderna. Manuel Bandeira... identidade nacional.
Carlos Drummond de
Andrade, Traço filosófico, ampla
Vinicius de Moraes,
1930-1945 Rio de Janeiro liberdade formal e
Mario Quintana, temática.
Cecília Meireles,
Murilo Mendes.
João Cabral de Melo Poesia seca, contida.
Neto.
Haroldo de Campos,
São Paulo, Vanguarda formal, com
Concretismo 1945-1960 Décio Pignatari,
Rio de Janeiro. aspirações cosmopolitas.
Augusto de Campos.
Poesia fragmentada e
Ferreira Gullar e outros, de resistência contra a
nos anos 1960; ditadura nos anos 1960;
Poesia marginal 1960-1970 Grandes cidades. poesia marginal, próxima poesia de celebração, mais
da canção. singela e comunicativa,
nos anos 1970.

Alguns estudiosos da literatura brasileira designam o momento literário a partir de 1980 como Pós-
Modernidade, Contemporâneo, Geração 00. Schøllhmmer (2009), por exemplo, ao fazer um mapeamento
das últimas gerações, indica a década de 1980 como marco de mudança de processo literário, cuja
condição principal residiria no desenvolvimento de uma economia de mercado que integrou as editoras
e profissionalizou a prática do escritor nacional. Uma das características é a combinação de qualidades
de best-sellers com as narrativas épicas clássicas. Outro traço é o texto metarreflexivo, ou seja, a
literatura trata sobre a literatura. Todavia, a principal particularidade é a dimensão híbrida, resultado
da interação entre a literatura e outros meios de comunicação, como fotografia, cinema, publicidade,
vídeo e a produção da mídia em geral. As gerações posteriores (na verdade, nossas gerações, uma vez
que trata do fim do século XX e início do XXI) intensificaram o hibridismo literário, fazendo cruzamentos
com outras linguagens.
87
Unidade I

Desse modo, a literatura brasileira é transformada em matéria escolar entre nós pelo menos desde 1858.
No ensino universitário, consagrou-se também como disciplina obrigatória a partir de 1962. Neste início
de século XXI, continua reconhecida essa disciplina no programa escolar tanto no Ensino Básico quanto na
universidade (curso de Letras), quase 200 anos depois. Como defende Souza (2007, p. 152),

num livro de história da literatura, em vez dos raciocínios abstratizantes de


um tratado de teoria, acompanhamos a movimentação de um enredo, no
qual se vê um efeito semelhante ao de um romance: não faltam personagens
– os autores e obras – nem um conflito – a luta de uma cultura literária em
busca de sua autenticidade nacional –, tudo isso narrado sob a forma de
episódios – os períodos ou épocas –, configurando uma progressão em que
há início, meio e fim, dos prenúncios da literatura de um país à consumação
de seu destino.

Exemplo de Aplicação

I. A seguir, constam dois ensaios historiográficos sobre a literatura brasileira. O primeiro é o notório
texto Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade, de Machado de Assis, publicado
em 1873. O segundo é A geração de 45 na poesia brasileira (uma apreciação histórica), de 1988. Como
cada texto contribui com a historiografia literária?

Ensaio I

Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade

Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço,
certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento
buscam vestir-se com as cores do país, e não há como negar que semelhante preocupação
é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves Dias, Porto Alegre e
Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela que ainda agora madruga,
como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Escusado é dizer
a vantagem deste universal acordo. Interrogando a vida brasileira e a natureza americana,
prosadores e poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia
própria ao pensamento nacional.

Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se
fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração
nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.

Sente-se aquele instinto até nas manifestações da opinião, aliás malformada ainda,
restrita em extremo, pouco solícita, e ainda menos apaixonada nestas questões de poesia e
literatura. Há nela um instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que trazem os
toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste ponto uma questão de legítimo

88
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

amor-próprio. Nem toda ela terá meditado os poemas de Uruguai e Caramuru com aquela
atenção que tais obras estão pedindo; mas os nomes de Basílio da Gama e Durão são citados
e amados, como precursores da poesia brasileira.

A razão é que eles buscaram em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram
os primeiros traços de nossa fisionomia literária, enquanto outros, Gonzaga por exemplo,
respirando aliás os ares da pátria, não souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem dos
preceitos do tempo. Admira-se-lhes o talento, mas não se lhes perdoa o cajado e a pastora,
e nisto há mais erro que acerto.

Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim a defesa
do mau gosto dos poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola produziu nas
literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece, todavia, justa a censura aos nossos poetas
coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não haverem trabalhado para a
independência literária, quando a independência política jazia ainda no ventre do futuro,
e mais que tudo a metrópole e a colônia criara a história a homogeneidade das tradições,
dos costumes e da educação. As mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes
ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não
existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.

Reconhecido o instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes últimos


tempos, conviria examinar se possuímos todas as condições e motivos históricos de uma
nacionalidade literária, esta investigação (ponto de divergência entre literatos), além de
superior às minhas forças, daria em resultado levar-me longe dos limites deste escrito. Meu
principal objeto é atestar o fato atual; ora, o fato é o instinto de que falei, o geral desejo de
criar uma literatura mais independente.

A aparição de Gonçalves Dias chamou a atenção das musas brasileiras para a história
e os costumes indianos. Os Timbiras, I-Juca Pirama, Tabira e outros poemas do egrégio
poeta acenderam as imaginações; a vida das tribos, vencidas há muito pela civilização, foi
estudada nas memórias que nos deixaram os cronistas, e interrogadas dos poetas, tirando-
lhes todos alguma coisa, qual um idílio, qual um canto épico.

Houve depois uma espécie de reação. Entrou a prevalecer a opinião de que não estava
toda a poesia nos costumes semibárbaros anteriores à nossa civilização, o que era verdade,
– e não tardou o conceito de que nada tinha a poesia com a existência da raça extinta, tão
diferente da raça triunfante, – o que parece um erro.

É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele
recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos
da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, não é menos certo que tudo é
matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de que ele
se compõe. Os que, como o Sr. Varnhagen, negam tudo aos primeiros povos deste país,
esses podem logicamente excluí-los da poesia contemporânea. Parece-me, entretanto, que,
89
Unidade I

depois das memórias que a este respeito escreveram os Srs. Magalhães e Gonçalves Dias,
não é lícito arredar o elemento indiano da nossa aplicação intelectual. Erro seria constituí-lo
um exclusivo patrimônio da literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua absoluta
exclusão. As tribos indígenas, cujos usos e costumes João Francisco Lisboa cotejava com o
livro de Tácito e os achava tão semelhantes aos dos antigos germanos, desapareceram, é
certo, da região que por tanto tempo fora sua; mas a raça dominadora que as frequentou
colheu informações preciosas e no-las transmitiu como verdadeiros elementos poéticos.
A piedade, a minguarem outros argumentos de maior valia, devera ao menos inclinar a
imaginação dos poetas para os povos que primeiro beberam os ares destas regiões,
consorciando na literatura os que a fatalidade da história divorciou.

Esta é hoje a opinião triunfante. Ou já nos costumes puramente indianos, tais quais os
vemos n’Os Timbiras, de Gonçalves Dias, ou já na luta do elemento bárbaro com o civilizado,
tem a imaginação literária do nosso tempo ido buscar alguns quadros de singular efeito
dos quais citarei, por exemplo, a lracema, do Sr. J. Alencar, uma das primeiras obras desse
fecundo e brilhante escritor.

Compreendendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira,
mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos escritores a
essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo
de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo. Não menos
que eles, os convida a natureza americana, cuja magnificência e esplendor naturalmente
desafiam a poetas e prosadores. O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses
elementos de invenção, a que devemos, entre outros, os livros dos Srs. Bernardo Guimarães,
que brilhante e ingenuamente nos pinta os costumes da região em que nasceu, J. de
Alencar, Macedo, Sílvio Dinarte (Escragnolle Taunay), Franklin Távora e alguns mais. Devo
acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é
a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a
ser exata, limitaria muito os cabedais da nossa literatura. Gonçalves Dias, por exemplo, com
poesias próprias, seria admitido no panteão nacional; se excetuarmos Os Timbiras, os outros
poemas americanos e certo número de composições, pertencem os seus versos pelo assunto
a toda a mais humanidade, cujas aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente
cantam; e excluo daí as belas Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à
literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta extraiu dos historiadores lusitanos,
mas até pelo estilo que ele habilmente fez antiquado.

O mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais tem por teatro o Brasil. Iria
longe se tivesse de citar outros exemplos de casa, e não acabaria se fosse necessário recorrer
aos estranhos. Mas, pois que isto vai ser impresso em terra americana e inglesa, perguntarei
simplesmente se o autor do Song of Hiawatha não é o mesmo autor da Golden Legend, que
nada tem com a terra que o viu nascer, e cujo cantor admirável é; e perguntarei mais se o
Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa
nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio
universal, um poeta essencialmente inglês. Não há dúvida que uma literatura, sobretudo
90
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a
sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam.

O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no
espaço. Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson,
com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre
de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito
acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora
apenas superficial. Estes e outros pontos cumpria à crítica estabelecê-los, se tivéssemos
uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países.
Não a temos. Há e tem havido escritos que tal nome merecem, mas raros, a espaços, sem a
influência quotidiana e profunda que deveram exercer.

A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura; é
mister que a análise corrija ou anime a invenção, que os pontos de doutrina e de história se
investiguem, que as belezas se estudem, que os senões se apontem, que o gosto se apure e
eduque, e se desenvolva e caminhe aos altos destinos que a esperam.

[...]

A Poesia

A ação de crítica seria sobretudo eficaz em relação à poesia. Dos poetas que apareceram
no decênio de 1850 a 1860, uns levou-os a morte ainda na flor dos anos, como Álvares
de Azevedo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, cujos nomes excitam na nossa mocidade
legítimo e sincero entusiasmo, e bem assim outros de não menor porte. Os que sobreviveram
calaram as liras; e se uns voltaram as suas atenções para outro gênero literário, como
Bernardo Guimarães, outros vivem dos louros colhidos, se é que não preparam obras de
maior tomo, como se diz de Varela, poeta que já pertence ao decênio de 1860 a 1870. Neste
último prazo outras vocações apareceram e numerosas, e basta citar um Crespo, um Serra,
um Trajano, um Gentil-Homem de Almeida Braga, um Castro Alves, um Luís Guimarães, um
Rosendo Moniz, um Carlos Ferreira, um Lúcio de Mendonça, e tantos mais, para mostrar que
a poesia contemporânea pode dar muita coisa; se algum destes, como Castro Alves, pertence
à eternidade, seus versos podem servir e servem de incentivo às vocações nascentes.

Competindo-me dizer o que acho da atual poesia, atenho-me só aos poetas de


recentíssima data, melhor direi a uma escola agora dominante, cujos defeitos me parecem
graves, cujos dotes – valiosos e que poderá dar muito de si, no caso de adotar a necessária
emenda.

Não faltam à nossa atual poesia fogo nem estro. Os versos publicados são geralmente
ardentes e trazem o cunho da inspiração. Não insisto na cor local; como acima disse,
todas as formas a revelam com mais ou menos brilhante resultado, bastando-me citar
91
Unidade I

neste caso as outras duas recentes obras, as Miniaturas de Gonçalves Crespo e os Quadros
de J. Serra, versos estremados dos defeitos que vou assinalar. Acrescentarei que também
não falta à poesia atual o sentimento da harmonia exterior. Que precisa ela então? Em
que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto, peca na
intrepidez às vezes da expressão, na impropriedade das imagens na obscuridade do
pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvaira e se perde, chegando à
obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza. Isto na alta
poesia lírica, – na ode, diria eu, se ainda subsistisse a antiga poética; na poesia íntima e
elegíaca encontram-se os mesmos defeitos, e mais um amaneirado no dizer e no sentir, o
que tudo mostra na poesia contemporânea grave doença, que é força combater.

Bem sei que as cenas majestosas da natureza americana exigem do poeta imagens e
expressões adequadas. O condor que rompe dos Andes, o pampeiro que varre os campos do
Sul, os grandes rios, a mata virgem com todas as suas magnificências de vegetação, – não
há dúvida que são painéis que desafiam o estro, mas, por isso mesmo que são grandes,
devem ser trazidos com oportunidade e expressos com simplicidade.

Ambas essas condições faltam à poesia contemporânea, e não é que escasseiem modelos,
que aí estão, para só citar três nomes, os versos de Bernardo Guimarães, Varela e Álvares de
Azevedo. Um único exemplo bastará para mostrar que a oportunidade e a simplicidade são
cabais para reproduzir uma grande imagem ou exprimir uma grande ideia. N’Os Timbiras,
há uma passagem em que o velho Ogib ouve censurarem-lhe o filho, porque se afasta dos
outros guerreiros e vive só. A fala do ancião começa com estes primorosos versos:

São torpes os anuns, que em bandos folgam.

São maus os caititus que em varas pascem:

Somente o sabiá geme sozinho,

E sozinho o condor aos céus remonta.

Nada mais oportuno nem mais singelo do que isto. A escola a que aludo não
exprimiria a ideia com tão simples meios, e faria mal, porque o sublime é simples. Fora
para desejar que ela versasse e meditasse longamente estes e outros modelos que a
literatura brasileira lhe oferece. Certo, não lhe falta, como disse, imaginação; mas esta
tem suas regras, o estro leis, e se há casos em que eles rompem as leis e as regras, é
porque as fazem novas, é porque se chamam Shakespeare, Dante, Goethe, Camões.

Indiquei os traços gerais. Há alguns defeitos peculiares a alguns livros, como por exemplo,
a antítese, creio que por imitação de Vítor Hugo. Nem por isso acho menos condenável o
abuso de uma figura que, se nas mãos do grande poeta produz grandes efeitos, não pode
constituir objeto de imitação, nem sobretudo elementos de escola.

92
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Há também uma parte da poesia que, justamente preocupada com a cor local, cai muitas
vezes numa funesta ilusão. Um poeta não é nacional só porque insere nos seus versos muitos
nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e nada
mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os seus toques, e que
estes sejam naturais, não de acarreto. Os defeitos que resumidamente aponto não os tenho
por incorrigíveis; a crítica os emendaria; na falta dela, o tempo se incumbirá de trazer às
vocações as melhores leis. Com as boas qualidades que cada um pode reconhecer na recente
escola de que falo, basta a ação do tempo, e se entretanto aparecesse uma grande vocação
poética, que se fizesse reformadora, é fora de dúvida que os bons elementos entrariam em
melhor caminho, e à poesia nacional restariam as tradições do período romântico. [...]

Fonte: Assis (1959, p. 28-34)

Ensaio II

A geração de 45 na poesia brasileira (uma apreciação histórica)

[...]

Sempre “in progress”

E agora, duas curiosidades, a mostrar, ou reiterar, que 45 continua “in progress”:

No seu livro de poemas de 1977, Arte de Armar (atente-se para o título, muito expressivo),
Gilberto Mendonça Teles insere um poema que tem por título “45” e dedicado a Domingos de
Carvalho da Silva, em que diz: “Sou da geração / de quarenta e cinco / ou tenho na mão / a porta
sem trinco? / (Nem sei quantas são / as telhas de zinco / que cobrem meu chão de quarenta e
cinco). / Semeei meu grão? / fui ao fim do afinco? / pesquei a paixão / de quarenta e cinco? / Tudo
é sim e não / em quarenta e cinco. / E a melhor lição / forma sempre um vinco / de interrogação /
no tempo, onde brinco / procurando um vão / entre o 4 e o 5.”

G.M.T, aliás, que é arguto ensaísta, ao prefaciar a Antologia Poética de Afonso Felix de
Sousa (1979), expandiu estas considerações de grande pertinência: “Acontece que, a nosso
ver e levando-se em consideração a produção poética que conscientemente se inscreveu
sob o rótulo de “Geração de 45”, não há como desprezar hoje o legado estilístico dessa
fase, sobretudo agora, em que alguns poetas da geração estão lançando os seus poemas
reunidos. Ela representa uma linha natural das transformações estéticas do modernismo.”

De sua parte, o poeta Fernando Py, no livro Vozes do Corpo (1981), inclui um poema
igualmente intitulado Quarenta e Cinco e dedicado a G.M.T., o qual contém estas estrofes:
“Esta é a geração / que me antecedeu / ou nela me insiro malgrado meu? / [...] Tanto rejeitei /
essa geração / e afinal agora / estendo a mão? / Aos quarenta e cinco / cedo chegarei / e vejo:
de novo / nada criei. [...] Essa geração: / escarmento meu: / se me impõe agora / desde a antiga
aurora / com sua lição / sua danação / de um outro eu.”
93
Unidade I

Os exemplos citados, de dois poetas que poderiam ser considerados, etariamente, da


Geração de 60, mostram que a Geração de 45 continua em aberto, “in progress”, com seu fôlego
de sete gatos, isto é, a sua longevidade, já denunciada anteriormente pelo crítico Temístocles
Linhares. E por quê? Porque a Geração de 45, em verdade, não é nem revolucionária e nem
reacionária, a despeito do emprego desses rótulos, antes e depois. Também ela não é uma
escola, uma doutrina e, muito menos, uma seita de poetas. É um movimento, ou melhor,
uma corrente de poetas cujo primado é o da renovação plástica da linguagem, mediante a
revalorização constante da imagem e da metáfora, independentemente da índole própria
de cada poeta. E é por igual uma corrente que, a par do apuro formal, procura valorizar, sem
preconceitos, os chamados temas eternos: o amor, a morte, a vida, a existência de cada um
de nós, a nossa própria condição humana, enfim.

Ledo Ivo, num artigo de mais de 20 anos (1965), recordava, com muita propriedade, que o
timbre da Geração de 45 é “a procura e a conquista de uma nova liberdade, através da disciplina,
do rigor e da concentração”. E, além disso, “um continuado empenho de pesquisa da criação e
linguagem poéticas e de uma larga preocupação pela formação e informação cultural”.

Isto posto, podemos concluir que esses princípios e esses postulados dos poetas de 45
são, em última análise, os da própria grande poesia universal. E essa é a Poesia que conta e
que, afinal, permanece.
Fonte: Rodrigues (1988, p. 22-23).

4.2 Panorama dos estilos literários brasileiros na poesia: fase colonial

São cinco séculos de poesia, com muitas realizações e entusiasmo no espírito de nossos escritores.
Assim, torna-se uma questão melindrosa a escolha de poetas e obras destes para um compêndio de um
crítico literário ou para um livro-texto como este nosso. Contudo, os historiadores da nossa literatura
dividiram-na em estilos e já canonizaram muitos poetas.

O objetivo deste capítulo, que se delimita à poesia, por razões óbvias, é mostrar como esses
historiadores mapearam a literatura brasileira. A prosa será tratada em outro livro-texto.

Do período colonial (de 1500 a 1822), a literatura recebeu tais nomes:

• Literatura Informativa
• Barroco
• Arcadismo

Literatura Informativa – relaciona-se obviamente com a chegada dos portugueses ao Brasil, visto
como Mundo Novo. Nele, além da sua certidão de nascimento na Carta de Caminha a D. Manuel, teve
o nosso país sua verdadeira porta de entrada na poesia universal, pois é pela mão de Camões que a
encontramos, na oitava 140 do último canto de Os lusíadas (BUENO, 2007, p. 15):
94
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Mas cá onde mais se alarga, ali tereis


Parte também, co pau vermelho nota;
De Santa Cruz o nome lhe poreis;
Descobri-la-á a primeira vossa frota.
Ao longo desta costa, que tereis,
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães, no feito, com verdade,
Português, porém não na lealdade.

Quatro anos depois da publicação da epopeia, em 1576, reencontramos nos versos do poeta de outro
Magalhães, Pero de Magalhães Gandavo, na elegia que abre a História da Província de Santa Cruz que
vulgarmente chamamos Brasil (edição de 1980, p. 23):

Depois que Magalhães teve tecida


A breve história sua, que ilustrasse
A Terra Santa Cruz, pouco sabida,

Enquanto toda essa produção acontecia na metrópole, na Terra Santa Cruz começava, de fato,
a escrever-se poesia, por obra dos jesuítas. Do padre José de Anchieta (1534-1597), os arquivos da
Companhia de Jesus, em Roma, guardam o caderno manuscrito das poesias, escritas em latim e em
português, mas, sobretudo, em tupi e em espanhol, assim como na Biblioteca Pública e no Arquivo
Distrital de Évora está guardado o único exemplar do primeiro poema brasileiro – que é também, segundo
Bueno (2007), a primeira epopeia do Novo Mundo – De Gestis Mendi de Saa, impresso em Coimbra, em
1563. Com muito lirismo, há poesias religiosas singelas, como essas redondilhas a Santa Inês:

A santa Inês
Cordeirinha linda,
Como folga o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Cordeirinha santa,
De Jesus querida,
Vossa santa vida
O Diabo espanta.
Por isso vos canta
Com prazer o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Nossa culpa escura
Fugirá depressa,
Pois vossa cabeça
Vem com luz tão pura.
95
Unidade I

Vossa formosura
Honra é do povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.
Virginal cabeça,
Pela fé cortada,
Com vossa chegada
Já ninguém pereça;
Vinde mui depressa
Ajudar o povo,
Pois com vossa vinda
Lhe dais lume novo.
Vós sois cordeirinha
De Jesus Fermoso;
Mas o vosso Esposo
já vos fez Rainha.
Também padeirinha
Sois do vosso Povo,
pois com vossa vinda,
Lhe dais trigo novo.
Não é de Alentejo
Este vosso trigo,
Mas Jesus amigo
É vosso desejo.
Morro, porque vejo
Que este nosso povo
Não anda faminto
Deste trigo novo.
Santa Padeirinha,
Morta com cutelo,
Sem nenhum farejo
É vossa farinha
Ela é mezinha
Com que sara o povo
Que com vossa vinda
Terá trigo novo.
O pão, que amassasses
Destro em vosso peito,
96
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

É o amor perfeito
Com que Deus amastes.
Deste vos fartasses,
Deste dais ao povo,
Por que deixe o velho
Pelo trigo novo.
Não se vende em praça,
Este pão da vida,
Porque é comida
Que se dá de graça.
Oh preciosa massa!
Oh que pão tão novo
Que com vossa vinda
Quer Deus dar ao povo!
Oh que doce bolo
Que se chama graça!
Quem sem ela passa
É mui grande tolo,
Homem sem miolo
Qualquer deste povo
Que não é faminto
Deste pão tão novo
Fonte: Anchieta (1989, p. 39).

O poema anuncia a nova terra, o nascimento de uma nação, mas leva a refletir também sobre a
morte e a efemeridade da vida nessa nova terra ainda na infância e, ao mesmo tempo, incute aos índios
o tão ibérico terror do inferno.

Além de Anchieta, outro poeta indicado pelos historiadores é Bento Teixeira (1560-1600), radicado
no Brasil, cuja obra Prosopopeia exalta o governador de Pernambuco Jorge de Albuquerque Coelho
com muitas citações mitológicas, em que o leitor pode encontrar uma descrição do porto do Recife e a
etimologia da terra:

Em meio desta obra alpestre e dura,


Uma boca rompeu o Mar inchado,
Que na língua dos bárbaros escura,
Paranambuco, de todos é chamado.
De Paraná, que é Mar; Puca, rotura,
Feita com fúria desse Mar salgado,
Que, sem no derivar cometer míngua,
Cova do Mar se chama em nossa língua (TEIXEIRA, 1969, p. 22).
97
Unidade I

Essa obra compõe o primeiro poema brasileiro escrito em português. Foi impressa em 1601, ano
exato dos últimos traços renascentistas, para dar lugar ao Barroco e a outras vertentes, momento em
que apareceu o primeiro poeta realmente grande do Brasil.

Barroco – trata-se de um modo de fazer arte ligado às ideias católicas da Contrarreforma. Nascido
na Itália, floresceu nos países em que a religião de Roma triunfava, tendo pouca presença em países em
que as religiões protestantes venceram, como no mundo anglo-saxão. Itália, Espanha e Portugal serão
os grandes espaços barrocos; nas igrejas desses países, realizava-se uma espécie de festival do estilo –
a arquitetura, a pintura, a escultura, as artes decorativas, a música e a arte literária, todas produzidas
segundo a mesma tensão.

A arte barroca trabalha sobre uma tensão, dicotomia, quase uma dilaceração. De um lado, as
determinações católicas contrarreformistas – a obrigação de tratar dos temas bíblicos e da vida de
santos; a perspectiva teocêntrica, que considera Deus como o centro do mundo, o eixo da vida. De
outro, as solicitações do mundo humano – os temas da vida real, como as conquistas, as maravilhas
inventadas pelos homens, tudo configurando uma forte ideia de liberdade na produção da arte, segundo
a perspectiva antropocêntrica, que considera o homem como medida de todas as coisas. Daí aparecerem,
na arte barroca, tensões entre o divino e o humano, o tema religioso e o tema mundano, o sublime e o
profano, o alto e o baixo etc.

Gregório de Matos Guerra (1633-1695) é considerado o primeiro grande poeta do Brasil e o maior
do período barroco. Fato inegável é sua fama entre seus contemporâneos, tendo em vista a eficácia
arrasadora de suas obras satíricas. A série de sátiras é contra a pureza de sangue da nova nobreza e dos
novos ricos da Colônia, bem como da mesquinhez da vida na capital.

O poeta descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia

A cada canto um grande conselheiro,


Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem frequente olheiro,


Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,


Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,

Estupendas usuras nos mercados,


Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia (MATOS, 1990, p. 21).
98
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

A posição ideológica de Matos é a do homem letrado, de boa origem e de puro sangue reinol,
honesto ou, ao menos, posto à margem da corrupção generalizada, pretérito pelos mestiços e arrivistas
da Colônia. Na crítica à sociedade baiana, ao contrário da figura indígena, que é pretexto para satirizar
as figuras baianas, como já vimos no primeiro capítulo, o negro, o mulato são fontes de crítica. Como
homem seiscentista, o poeta recorre, sem pudor, a todas as pretensas inferioridades, sejam raciais,
culturais, sociais, físicas, sexuais, de seus desafetos.

Há outros poetas barrocos, como Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711), o primeiro brasileiro a ter
obra publicada ainda em vida. Sem ter sido grande poeta, revela indiscutível nativismo ao fazer uma
curiosa listagem de alimentos vegetais em seu poema mais famoso (BUENO, 2007, p. 32):

Dela se faz também com mais cuidado


O beiju regalado,
Que feito tenro por curioso amigo
Grande vantagem leva ao pão de trigo.
Os aipins se aparentam
Co’a mandioca, e tal favor alentam,
Que tem qualquer, cozido, ou seja, assado,
Das castanhas da Europa o mesmo agrado.

À medida que o século XVIII avançava para o final, preparavam-se os pastores e as pastoras da
Arcádia, que encontrariam nas Minas Gerais seu território.

Arcadismo – tem origem em Arcádia, região montanhosa da antiga Grécia, onde alguns montes alcançam
2.400 metros. A região, segundo a mitologia, teria sido o lugar do próprio Zeus, pai de Arcás, ou Arcádio,
ancestral lendário da região e de seus habitantes, os quais se dedicavam ao pastoreio, numa vida simples,
próxima da natureza, afastada da polis grega, a cidade-matriz de toda a civilização urbana ocidental.

Trata-se de uma moda literária nascida na Itália, exportada para Portugal e finalmente para a colônia
brasileira. Os poetas desse tempo tiveram na Arcádia o símbolo de sua concepção poética e nome de sua
organização, porque os poetas árcades, embora fossem habitantes das cidades, nas poesias fantasiavam-
se de personagens-pastores, vivendo em campos bucólicos, onde corriam riachos magníficos e pastavam
animais mansos; a fantasia se complementava com a figura de uma personagem pastora, no lugar da
mulher amada. As expressões latinas usadas eram carpe diem (aproveite o dia), fugere urbem (fugir da
cidade) e locus amoenus (local aprazível).

O primeiro dos líricos do período foi Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), cuja linguagem fugiu do
estilo artificial do outros árcades. Assim, para um soneto como “Transforma-se o amador na coisa amada
/ Por virtude do muito a imaginar”, de Camões, encontramos a resposta setecentista:

Faz a imaginação de um bem amado,


Que nele se transforme o peito amante;
Daqui vem, que a minha alma delirante
Se não distingue já do meu cuidado.
99
Unidade I

Nesta doce loucura arrebatado


Anarda cuido ver, bem que distante;
Mas ao passo, que a busco neste instante
Me vejo no meu mal desenganado.

Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,


E por força da idéia me converto
Na bela causa de meu fogo ativo;

Como nas tristes lágrimas, que verto,


Ao querer contrastar seu gênio esquivo,
Tão longe dela estou, e estou tão perto (COSTA, 1996, p. 39).

O soneto de Cláudio Manuel da Costa apresenta forma sintética e invariável correção, fugindo dos
maneirismos da poesia camoniana.

No entanto, quem domina esse período é Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). Nascido no Porto,
mudou-se para o Brasil quando era criança e estabeleceu-se em Vila Rica. Nessa cidade, conheceu a
adolescente Maria Doroteia Joaquina de Seixas, 20 anos mais nova do que o poeta, que a transformou
na lendária Marília, em sua produção poética Marília de Dirceu, transformando-se ele próprio no não
menos lendário Dirceu:

Lira I

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,


Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’ expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos inda não está cortado:
Os pastores, que habitam este monte,
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha,
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Mas tendo tantos dotes da ventura,
100
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Só apreço lhes dou, gentil Pastora,


Depois que teu afeto me segura,
Que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
De um rebanho, que cubra monte, e prado;
Porém, gentil Pastora, o teu agrado
Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Os teus olhos espalham luz divina,
A quem a luz do Sol em vão se atreve:
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual tesouro.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Leve-me a sementeira muito embora
O rio sobre os campos levantado:
Acabe, acabe a peste matadora,
Sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso:
Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
Para viver feliz, Marília, basta
Que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Irás a divertir-te na floresta,
Sustentada, Marília, no meu braço;
Ali descansarei a quente sesta,
Dormindo um leve sono em teu regaço:
Enquanto a luta jogam os Pastores,
E emparelhados correm nas campinas,
Toucarei teus cabelos de boninas,
Nos troncos gravarei os teus louvores.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Depois de nos ferir a mão da morte,
Ou seja neste monte, ou noutra serra,
Nossos corpos terão, terão a sorte
De consumir os dois a mesma terra.
Na campa, rodeada de ciprestes,
101
Unidade I

Lerão estas palavras os Pastores:


“Quem quiser ser feliz nos seus amores,
Siga os exemplos, que nos deram estes.”
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Fonte: Bueno (2007, p. 42-43).

Nessa obra, já podemos ver o distanciamento do Arcadismo decadente, ou seja, o poeta foge do
estilo forçado da época, usando pouca mitologia, levando para a característica locus amenus (paisagem
bucólica, tranquila e, para nossa concepção, improvável) outro olhar. Junto com o fator histórico, faz da
obra um dos momentos centrais da poesia brasileira.

A grande obra satírica de Gonzaga é Cartas chilenas, poema inacabado, composto de treze cartas,
em decassílabos. O texto ridiculariza violentamente os desmandos do governador Luís da Cunha
Meneses, travestido em Fanfarrão Minésio, do mesmo modo que o Brasil se traveste em Chile, Vila Rica
em Santiago e Coimbra em Salamanca. É um exemplo típico de sátira do final do século atacando o
atraso do regime colonialista.

Outros árcades famosos são: Silva Alvarenga, Basílio da Gama, Frei José de Santa Rita Durão.

4.3 Panorama dos estilos literários brasileiros na poesia: fase da identidade


nacional

No século XIX, no Brasil pós-1822, havia todo um país para ser pensado. A literatura marcou-se,
então, pela busca da identidade da nação e, nos fins do século, expandiu suas preocupações a situações
e classes sociais até então fora da literatura.

Nesse século, os estilos literários eram:

• Romantismo;

• Parnasianismo;

• Simbolismo.

Romantismo – esse período é dividido em:

Primeira geração romântica: tem como característica principal a religiosidade, o indianismo, o


apego à natureza. Fazem parte Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias.

Na primeira obra desse estilo, Suspiros poéticos e saudades, o autor, Gonçalves de Magalhães, procurou
substituir a mitologia pagã, vigente então no Arcadismo, pela cristã; a presença do nacionalismo; forte
subjetividade, como vemos a seguir:

102
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

O dia 7 de setembro em Paris

Longe do belo céu da Pátria minha,


Que a mente me acendia,
Em tempo mais feliz, em qu’eu cantava
Das palmeiras à sombra os pátrios feitos;
Sem mais ouvir o vago som dos bosques,
Nem o bramido fúnebre das ondas,
Que n’alma me excitavam
Altos, sublimes turbilhões de idéias;
Com que cântico novo
O Dia saudarei da Liberdade?

Ausente do saudoso, pátrio ninho,


Em regiões tão mortas,
Para mim sem encantos, e atrativos,
Gela-se o estro ao peregrino vate.
Tu também, que nos trópicos te ostentas
Fulgurante de luz, e rei dos astros,
Tu, oh sol, neste céu teu brilho perdes (MAGALHÃES, 1986, p. 87).

O poema demonstra amor à pátria, marcando o nacionalismo como tema do texto por meio, por
exemplo, de expressões “palmeira”, “bosques”, “bramido fúnebre”, “turbilhoes de ideias”, “pátrio ninho”,
“peregrino vate”. Tais expressões representam a natureza e a pátria, sendo a pátria o ser mais belo; frente
à pátria e de sua beleza, até o sol perde seu brilho em terras estrangeiras. A tônica do texto é a visão
subjetiva do poeta.

Segunda geração romântica: chamada também de ultrarromântica ou mal do século, caracteriza-


se pelo excesso dos sentimentos do poeta, sendo o pessimismo e o desencanto pela vida as principais
temáticas. Os principais poetas são: Álvares de Azevedo, Casemiro de Abreu e Fagundes Varela.

Casemiro de Abreu (1839-1860) nasceu em Barra de São João, no Rio de Janeiro. Em 1859, publicou
As primaveras e faleceu, vítima da tuberculose. Ele é autor de versos simples e intensa musicalidade.
Procura no cotidiano sua temática, recheando seus textos de sentimentalidade própria do estilo
romântico. Entre sua vasta produção, temos:

Minh’alma é triste

III
Minh’alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!

103
Unidade I

E como a flor que solitária pende


Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh’alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!

Amei outrora com amor bem santo


Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.

Oh! quantas vezes a prendi nos braços!


Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços
Ambos choramos mas num só gemido!

Dizem que há gozos no viver d’amores,


Só eu não sei em que o prazer consiste!
— Eu vejo o mundo na estação das flores
Tudo sorri — mas a minh’alma é triste! (ABREU, 1999, p. 11).

Nessa segunda parte do poema, a tristeza da alma é comparada com a flor que morre. Ambas
murcham; a flor porque não recebe carícias da brisa, a alma porque está solitária, sem amor. Os versos
“Oh! quantas vezes a prendi nos braços! / Que o diga e fale o laranjal florido!” falam de um amor
fracassado e, no poema de forma geral, a natureza (flor, riacho, sabiá, brisa, laranjal) relaciona-se com o
sofrimento do poeta. O texto resulta na desilusão, nos três últimos versos.

Terceira geração romântica: marcada pela poesia social, devido ao desejo de transformação da
sociedade, leva o poeta a se ver como um missionário. O poeta dessa fase é Castro Alves (1847-1871), cujas
obras foram publicadas postumamente, exceto Espumas flutuantes, de 1870. Sua obra é vasta, abrangendo
desde poemas de cunho social e líricos amorosos, com erotismo presente. Falou com vigor dos africanos
vindos ao Brasil para servirem de escravos, demonstrando indignação. Sua poesia serviu de luta contra a
escravidão, pois seu tom de elevação era propício para récitas em praças, salões de leitura etc.

O poeta aproxima-se da realidade social, conservando, porém, o idealismo e o subjetivismo


românticos. Vejamos um trecho da obra:

O navio negreiro

Mas que vejo eu ali... que quadro de amarguras!


Que cena funeral!... Que tétricas figuras!
Que cena infame e vil!... Meu Deus! meu Deus! Que horror!

Era um sonho dantesco... O tombadilho


Que das luzernas avermelha o brilho,
104
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

   Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
   Horrendos a dançar... (ALVES, 2000, p. 94).

O poema (longo) é eloquente e evidencia a vida miserável dos escravos. O exagero na pintura dos
horrendos quadros marca o caráter hiperbólico do texto, dando mais força às ideias e soando como um
grito de rebeldia contra a situação desumana vivida pelos africanos.

A visão é a dos infernos. O navio negreiro era, na realidade, um fantasma a navegar pelo oceano,
espalhando gritos lancinantes dos aprisionados levados para terras estranhas.

Parnasianismo – esse nome deriva de uma antologia, Parnasse Contemporain, publicada a partir
de 1866, na França. Seus poemas revelam gosto pela descrição nítida, por metrificação tradicional,
preocupação formal e um ideal de impessoalidade. No Brasil, depois da poesia de Luís Guimarães Júnior
e Teófilo Dias, essa escola literária firmou-se definitivamente com Raimundo Correia (Sinfonias, 1883),
Alberto de Oliveira (Meridionais, 1884) e Olavo Bilac (Relicário, 1888).

Figura 4 – A trindade parnasiana: Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac

Foge ao excessivo sentimentalismo romântico, mas não exclui o subjetivismo. Na construção


do poema, do ponto de vista da arquitetura estrutural do texto, forma, os parnasianos preferem o
soneto, os versos alexandrinos, as rimas ricas. Quanto ao assunto, caracteriza-se pela objetividade, pelo
universalismo e esteticismo. O ideal de Arte pela arte move os poetas parnasianos.

Antônio Mariano Alberto de Oliveira (1857-1937), aos poucos, em suas publicações poéticas,
adaptou-se aos cânones do movimento parnasiano, consagrando-se em nossa literatura. Entre seus
poemas, ele apresenta dois vasos:

105
Unidade I

Vaso grego

Esta de áureos relevos, trabalhada


De divas mãos, brilhante copa, um dia,
Já de aos deuses servir como cansada,
Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.

Era o poeta de Teos que a suspendia


Então, e, ora repleta ora esvazada,
A taça amiga aos dedos seus tinia,
Toda de roxas pétalas colmada.

Depois… Mas o lavor da taça admira,


Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas
Finas hás de lhe ouvir, canora e doce,

Ignota voz, qual se da antiga lira


Fosse a encantada música das cordas,
Qual se essa voz de Anacreonte fosse (OLIVEIRA, 1912, p. 50).

Nesse soneto, encontramos elementos marcantes do Parnasianismo, como o uso da ordem inversa,
que se torna exagerado, a perfeição formal, a impassibilidade, a visão de uma Grécia perfeitamente
imaginária. Em suma, é uma poesia ornamental, de excelente artesanato.

De sintaxe mais simples, contudo de estética igual, era o outro vaso, que, como o primeiro, causou
furor por todo o país:

Vaso chinês

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o.


Casualmente, uma vez, de um perfumado
Contador sobre o mármor luzidio,
Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,


Nele pusera o coração doentio
Em rubras flores de um sutil lavrado,
Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,


Quem o sabe?... de um velho mandarim
Também lá estava a singular figura;

Que arte em pintá-la! a gente acaso vendo-a,


Sentia um não sei quê com aquele chim
De olhos cortados à feição de amêndoa (OLIVEIRA, 1912, p. 50).
106
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Na leitura de Bueno (2007), é um perfeito exemplo da pintura em versos, uma pequena natureza
morta, em tudo semelhante às que, com pincéis, realizam os bons pintores acadêmicos do mesmo
período.

Simbolismo – para os críticos literários, em sua maioria, é impossível referir-se ao Simbolismo sem
reverenciar seus dois grandes expoentes: Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens.

João da Cruz e Sousa (1861-1898), chamado de Cisne negro ou Dante negro, é a figura mais
importante do Simbolismo brasileiro. Teve apenas um livro publicado em vida, Broquéis, que apresenta
uma evolução importante: à medida que abandona o subjetivismo e a angústia iniciais, avança para
posições mais universais — sua produção inicial fala da dor e do sofrimento do homem negro (colocações
pessoais, pois era filho de ex-escravos), mas evolui para o sofrimento e a angústia do ser humano.

Sua obra inicia-se por um poema de intensa beleza:

Antífona

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras


De luares, de neves, de neblinas!
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras,


De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,


Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,


Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,


Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades


Que fuljam, que na Estrofe se levantem
107
Unidade I

E as emoções, todas as castidades


Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros


Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça


De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,


Desejos, vibrações, ânsias, alentos
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas


De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,


Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte... (SOUSA, 1961, p. 73).

Já Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) preferiu manter-se fiel a um triângulo que


caracterizou toda a sua obra: misticismo, amor e morte. A crítica o considera o mais místico
poeta de nossa literatura. O amor pela noiva, morta às vésperas do casamento, e sua profunda
religiosidade e devoção por Nossa Senhora geraram, e não poderia ser diferente, um misticismo
que beirava o exagero.

O poeta baiano Pedro Kilkerry (1885-1917) seria, talvez, desconhecido totalmente se outro poeta,
Augusto de Campos, não tivesse, em suas pesquisas, se deparado com seus poemas. Na mesma Salvador
onde vivia morreu quase anônimo, vitimado pela tuberculose. Kilkerry nada deixou publicado em livro,
restaram somente as contribuições em revistas de cunho simbolista. A produção do artista ganhou
evidência em 1970, quando Augusto de Campos organizou uma seleção de poemas, publicando-os sob
o título Revisão de Kilkerry.

Observe no poema a seguir a musicalidade, a provocação aos sentidos realizada pela troca
metonímica.

108
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Ad veneris lacrimas

Em meus nervos, a arder, a alma é volúpia... Sinto


Que Amor embriaga a Íon e a pele de ouro. Estua,
Deita-se Íon: enrodilha a cauda o meu Instinto
aos seus rosados pés... Nyx se arrasta, na rua...

Canta a lâmpada brônzea? O ouvido aos sons extinto


Acorda e ouço a voz ou da alâmpada ou sua
O silêncio anda à escuta. Abre um luar de Corinto
Aqui dentro a lamber Hélada nua, nua.

Íon treme, estremece. Adora o ritmo louro


Da áurea chama, a estorcer os gestos com que crava
Finas frechas de luz na cúpula aquecida...

Querem cantar de Íon os dois seios, em coro...


Mas sua alma – por Zeus! – na água azul doutra Vida
Lava os meus sonhos, treme em seus olhos, escrava (KILKERRY, 1985, p. 94).

4.4 Panorama dos estilos literários brasileiros na poesia: fase de


transgressão e inovação

Os críticos literários sistematizam a história da literatura identificando autores, suas obras e as


características de cada estilo até meados das décadas de 1960 e 70. A partir daí, a história começa
a causar dificuldades para os estudiosos; primeiro, devido à própria proximidade do historiador com
seu tempo, que ainda não oferece um distanciamento mais seguro para qualquer conhecimento
esquematizado; segundo, porque se ampliou e diversificou-se muito a produção poética.

Assim, no século XX, temos o Modernismo. Esse estilo começou com a Semana de Arte Moderna,
realizada durante os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Cada
dia da Semana foi dedicado a um tema: pintura e escultura, poesia e literatura e, por fim, música.
O projeto modernista visava atualizar culturalmente o país, colocando-o no mesmo nível dos
países que haviam atingido a independência tanto no plano político quanto no cenário das artes
plásticas, da música e da literatura. O Modernismo foi subdividido em três fases.

Primeira fase, de 1922 a 1930: foi, evidentemente, de grande efervescência, pois ainda
enfrentava, muito próximo e frontalmente, o paradoxismo de uma metrópole provinciana, os
estilos e os críticos favoráveis à estética e às ideias contra as quais os modernistas se insurgiam.
O período foi permeado por movimentos como o desvairismo, o Prefácio Interessantíssimo, criado
por Mário de Andrade ao publicar Paulicéia Desvairada (1922), discurso contra o Parnasianismo e
o Simbolismo e a favorável busca por novos caminhos para a expressão estética, mais condizente
com os novos tempos. Nessa fase, surge também o movimento Pau-Brasil (1924), propondo
uma literatura autenticamente nacionalista, e o Verdeamarelo (1925), movimento conservador,
109
Unidade I

contravento aos ventos do modernismo, pois não acolhia uma ruptura radical com o passado,
numa demonstração de conservadorismo.

Saiba mais

O movimento modernista, na sua fase inicial, tem muita influência


das vanguardas europeias – Futurismo, Dadaísmo etc. –, e os poetas
modernistas, para consolidarem as ideias inovadoras da época, lançaram
muitos manifestos.

Para lê-los na íntegra, bem como conhecer as vanguardas, temos a obra


de Teles (1997). Sobre o estudo do manifesto como gênero textual e sua
repercussão na América Latina, indica-se a obra de Gelado (2006).

GELADO, Viviana. Poéticas da transgressão: vanguarda e cultura


popular nos anos 20 na América Latina. Rio de Janeiro: 7Letras; São Carlos:
EDUFSCAR, 2006.

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro:


apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências
vanguardistas, de 1857 a 1972. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

No Manifesto Pau-Brasil, de 18 de março de 1924, Oswald de Andrade ironiza e critica a visão


oficial da história brasileira, contrapondo-a a uma visão paródica e bem-humorada. Em 1928, lança
o Manifesto Antropófago, uma resposta ao nacionalismo do grupo Anta. A marca dessa primeira fase
é a dicotomia integradora, pois contém simultaneamente o desejo e o projeto formal inovador ao
lado da proposta de resgate dos elementos da cultura tradicional. Concilia linguagens importadas das
vanguardas modernistas europeias com um conteúdo nativista que resgata as raízes culturais brasileiras.
A proposta não abrange somente o campo da arte literária; o movimento envolvia todas as formas de
manifestações artísticas.

Segunda fase, de 1930 a 1945: foi envolvida fortemente pelo clima político da ditadura Vargas
e pela crise gerada pela quebra da Bolsa de Nova York em 1929 (em termos de ambiente político
semelhante, o país conheceria mais tarde a Ditadura Militar, iniciada em 1964, e o mundo, no aspecto
econômico, a crise envolvendo o setor bancário dos EUA, em 2008, que se alastrou pelo mundo). Foi
a época de uma literatura politizada, crítica da situação político-social vigente. Ao lado da literatura
moderna urbana da segunda geração, a primeira fase regionalista se iniciava.

Terceira fase, de 1945 a 1956: coincidiu com dois eventos políticos. No cenário mundial, o fim
da Segunda Guerra Mundial; no nacional, o fim da ditadura Vargas. No plano literário, a poesia volta a
buscar as formas estéticas, retomando-se o conceito de arte pela arte; porém, nem tanto arte pela arte,
já que operava com temas sociais, como é o caso de João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar. Além
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LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

disso, no período de 1956 a 1970, podemos observar a influência direta dos poetas Décio Pignatari e
dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, os quais, em contato com Oswald de Andrade, participam do
Clube da Poesia e publicam seus primeiros livros de poesia pelo clube.

Assim, em 1956, foi lançado oficialmente o movimento da poesia concreta, na busca por novas
formas e desintegração total do verso tradicional; foi um movimento visto, entretanto, como produto
de uma juventude desorientada, ao estilo do rock’n roll. No entanto, foi tomando consistência, sofrendo
adesões de diversos artistas e se tornou conhecido até no exterior. Suas formas não eram apenas escritas,
mas também visuais.

Finalizo essa apresentação, ressaltando:

• Essa perspectiva histórica da literatura foi e continua sendo sistematizada pelos estudiosos
(críticos) da literatura brasileira.
• A perspectiva histórica foi adotada na escola no século XIX e vigora até hoje nos manuais didáticos
e no cotidiano da escola e da universidade.
• A apresentação da história da literatura, ora nos manuais didáticos, ora neste livro-texto, é apenas
um panorama. No caso do livro-texto, a apresentação é extremamente superficial, pois serve
apenas para ilustrar o resultado da historiografia e da escolarização da literatura brasileira.

Para uma pesquisa ou atuação em sala de aula, como professor de literatura, você precisa consultar
e estudar os livros historiográficos, como os de Antonio Candido (2000), Alfredo Bosi (1991) e outros
notáveis que temos em nossa esfera acadêmica.

Exemplo de Aplicação

I. Na apresentação de autores literários, informações sobre sua vida e obra são tradicionais no estudo
da literatura. Com base nessa tradição, mas, ao mesmo tempo, rompendo-a, apresenta-se, a seguir, o
signo de alguns poetas brasileiros, cujo nome você precisa descobrir e preencher o espaço sublinhado.
Boa diversão!

Áries (21/3 – 20/4) – _______________________. Nasceu em 19 de abril de1886, no Recife e morreu


em 13 de outubro de 1968, no Rio de Janeiro. Poeta que provavelmente foi a principal figura do Modernismo
brasileiro, embora tenha se recusado a participar da Semana da Arte Moderna de 1922, em São Paulo.

Touro (21/4 – 20/5) – ________________________. Nascida em 21 de abril de 1930, essa famosa


poeta publicou seu primeiro livro em 1950, intitulado Presságio. Os assuntos abordados em suas obras
são ditos controversos socialmente. Faleceu aos 73 anos, em 4 de fevereiro de 2004.

Gêmeos (21/5 – 20/6) – __________________________. Poeta do Arcadismo brasileiro, ele


nasceu em 5 de junho de 1729. Arte do equilíbrio e harmonia, busca do racional, retorno às concepções
renascentistas, vida bucólica são alguns dos motivos poéticos desse autor.

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Unidade I

Câncer (21/6 – 20/7) – _______________________________. Notório, famoso, expoente e outros


sinônimos para esse escritor romancista que tem também produção poética. Nasceu no Rio de Janeiro
em 21 de junho de 1729. Filho de família pobre e mulato, superou as dificuldades da época e tornou-se
o maior símbolo de escritor brasileiro. Ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras.

Leão (21/7 – 22/8) – _________________________. Poeta, nasceu em Caxias, Maranhão, em 10


de agosto de 1823. Pela obra lírica e indianista, é um dos mais típicos representantes do Romantismo
brasileiro e forma com José de Alencar a dupla que conferiu caráter nacional à literatura brasileira.

Virgem (23/8 – 22/9) – _______________________________, pseudônimo de José Ribamar


Ferreira, nasceu em 10 de setembro de 1930. Abandonou o movimento da poesia concreta para fazer
parte de uma literatura engajada.

Libra (23/9 – 22/10) – _______________________________. Nasceu no dia 9 de outubro de


1893, em São Paulo. Escreveu em brasileiro, sem os vícios de uma língua importada. Sua obra Macunaíma
repercutiu em todo o país. Ele escreveu também poesias.

Escorpião (23/10 – 21/11) – _______________________________. Nasceu em Itabira, Minas


Gerais, em 31 de outubro de 1902. Teve várias obras traduzidas para o espanhol, inglês, francês, italiano,
tcheco, entre outras línguas, e foi seguramente o poeta mais influente da literatura brasileira.

Sagitário (22/11 – 21/12) – _______________________________. Poeta barroco brasileiro,


nascido em Salvador, Bahia, em 20 de dezembro de 1623, foi o mais amado e odiado, conhecido
como Boca do Inferno, em função da sua poesia satírica, muitas vezes com termos chulos em
ataques violentos pessoais.

Capricórnio (22/12 – 20/01) – _______________________________. Esse poeta nasceu no


Recife, em 9 de janeiro de 1920, e morreu no Rio de Janeiro em 1999. Poeta e diplomata, inaugurou
uma nova forma de fazer poesia. O leitor que espera sentimentalismo ou emoção em poesia estranha a
linguagem cerebral, objetiva, construtivista de suas poesias.

Aquário (21/1 – 19/2) – _______________________________. Nasceu no Rio de Janeiro, em


23 de janeiro, e foi registrada com o nome de Rosemary Barreto. Ainda menina, foi para a Bahia, onde
estudou e criou raízes profundas. A característica marcante da obra da sua poesia é o equilíbrio exato
do erotismo, nem exageradamente vulgar nem sutilmente pudica.

Peixes (20/2 – 20/3) – _______________________________. Nasceu em Salvador, Bahia, em


10 de março de1885. Esse poeta não publicou em vida e apenas em 1971, sob a responsabilidade
de Augusto de Campos, 36 de seus poemas foram a público. Conseguiu fazer associação imagética
e demonstrou grande capacidade de síntese, mais do que qualquer outro poeta do Simbolismo
brasileiro.

II. Identifique no álbum cada poeta pertencente à literatura brasileira.

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___________________ ____________________ __________________


Autor de Primeiros cantos Autor de Lira dos vinte anos Autor de Noturnas

___________________ ________________________ __________________


Autor de Espumas flutuantes Autor de Broquéis Autor do poema Quadrilha

Fonte: Bueno (2007, p. 58, 84, 118, 132, 215, 329).

Resumo

A disciplina Literatura brasileira: poesia serve para mostrar ao aluno a


história da nossa literatura, em especial da poesia. Assim, com abordagem
historiográfica, foram selecionados alguns pontos importantes dessa
história.

Em primeiro lugar, o início da nossa literatura. Existem controvérsias


entre os críticos, mas de forma geral todos indicam que a política e a língua
marcam o início da arte. Sendo assim, a nossa literatura tem início em
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Unidade I

1500, quando vieram para cá os portugueses e, junto com eles, os jesuítas,


que escreveram os primeiros textos poéticos (claro que catequéticos) no
novo país.

Os primeiros séculos literários no Brasil foram marcados pela não


dissociação entre a Colônia e a Metrópole. Não havia a ideia de separar
o que era literatura portuguesa e o que era literatura brasileira; ideia, na
verdade, inconcebível na época, pois seria questionada a separação política
Brasil-Portugal.

Com a Independência do Brasil, a identidade da literatura passou a ser


questionada. Os poetas, então, criaram poemas que ajudavam a criar e
consolidar a identidade cultural nacional. Além disso, estudos para resgate
do passado brasileiro foram realizados, resultando na historiografia da
literatura brasileira, cujo panorama histórico foi escolarizado pelo ensino
escolar desde então.

Exercícios

Questão 1. Considere os versos a seguir, extraídos do poema Navio negreiro, de Castro Alves e, em
seguida, leia as afirmativas:

Era um sonho dantesco!... o tombadilho,


Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

I – O poema denuncia os horrores do tráfico negreiro e as condições sub-humanas a que eram


submetidos os escravos.

II – Por seu caráter realista e sua linguagem essencialmente denotativa, o poema não faz parte do
Romantismo brasileiro.

III – Os versos brancos do poema são característicos do movimento literário a que pertence.

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LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Está correto o que se afirma somente em:

A) I.

B) II.

C) III.

D) I e II.

E) I e III.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das afirmativas

I) Afirmativa correta.

Justificativa: o poema descreve as terríveis condições do navio negreiro.

II) Afirmativa incorreta.

Justificativa: o poema faz parte da terceira fase do Romantismo e a linguagem não é essencialmente
denotativa.

III) Afirmativa incorreta.

Justificativa: os versos não são brancos, pois apresentam rimas.

Questão 2. Considere os versos e as afirmativas a seguir.

Goza, goza da flor da mocidade,


que o tempo trata a toda ligeireza,
e imprime em toda flor sua pisada.
Ó não aguardes, que a madura
idade,
te converta essa flor, essa beleza,
em terra, em cinza, em pó,
em sombra, em nada.

(Gregório de Matos)

Meu canto de morte,


Guerreiros, ouvi:
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Unidade I

Sou filho das selvas,


Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

(Gonçalves Dias)

I– O poema de Gregório de Mattos faz parte do Romantismo brasileiro, uma vez que se refere à
natureza.

II – O poema de Gregório de Mattos faz uso da metáfora e da antítese, figuras comuns no Barroco,
e aborda a efemeridade da vida.

III – O poema de Gonçalves Dias, da primeira fase do Romantismo brasileiro, enaltece a figura do
índio.

Está correto o que se afirma somente em:

A) I.

B) II.

C) III.

D) I e III.

E) II e III.

Resolução desta questão na plataforma.

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