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03/04/2020 Desaparecido no deserto

EDIÇÃO 1 | OUTUBRO_2006

internacional

DESAPARECIDO NO DESERTO
Mistérios do seqüestro do engenheiro brasileiro no Iraque
SILVIO FERRAZ

ILUSTRAÇÃO: GUAZZELLI_2006

A
o tocar a pista do aeroporto de Guarulhos, em fevereiro, o Boeing
747 da Air France, procedente de Paris, trazia uma carga de
esperança. Para a família Vasconcellos, de Juiz de Fora, os
passageiros que poderiam vir com a boa-nova eram um engenheiro da
Odebrecht e um empreiteiro jordaniano, embarcados em Amã. Eles
traziam uma pequena caixa de isopor, hermeticamente lacrada, com um
dedo mínimo envolto em gelo seco. Amputado de uma mão direita, o
dedo saíra de um vilarejo na fronteira do Iraque com o Irã. Ele foi levado
com rapidez para Campinas, para o Centro Médico Especializado
Professor Walter Pinto Jr., onde uma equipe de legistas retirou-lhe
diversas amostras, para serem comparadas ao sangue dos pais do
engenheiro João José Vasconcellos Júnior. Se o DNA deles fosse
compatível, haveria finalmente a prova de que o engenheiro, seqüestrado
no Iraque em 19 de janeiro de 2005, estaria vivo. Em outubro de 2005, um
outro funcionário da Odebrecht trouxera de Amã um chumaço de cabelos
que, supostamente, seria de Vasconcellos. Ao recebê-lo, porém, os
legistas descartaram-no logo como material capaz de identificar o DNA:
o cabelo fora cortado rente, mas sem os bulbos, imprescindíveis para o
exame.

A incerteza quanto ao destino do engenheiro, raptado na estrada de 180


quilômetros que liga a cidade de Beiji à capital do Iraque, Bagdá,
assombra os dias e as noites de sua mulher Tereza, e de seus três filhos
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Rodrigo, Tatiana e Gustavo. Militares britânicos, que atuam na área do


seqüestro, descartam a possibilidade de que Vasconcellos Júnior tenha
escapado de seus raptores e fugido pelo deserto. Nas areias iraquianas, as
temperaturas atingem 46 graus centígrados durante o dia, e a umidade
não passa de 10%. À noite, o termômetro pode cair abaixo de zero. É
freqüente o forte sopro do vento Shamal, que provoca tempestades de
areia e inutiliza os aparelhos de GPS – Global Position System –
essenciais à orientação na região.

Em São Paulo, no bairro de Vila Olímpia, o irmão do engenheiro, Luís


Henrique Vasconcellos, diretor de um empreendimento imobiliário às
margens do rio Pinheiros, fala sobre o seqüestro com cautela. Para abrir a
conversa, ele pede cafés expressos à secretária, e de passagem nega
qualquer divergência da família com o governo e com a Odebrecht.
Diante de uma exposição sobre a viagem do chumaço de cabelo que
pertenceria a seu irmão, pensa longamente antes de falar: “Essa
reportagem não vai ajudar em nada”. Cala-se novamente, e pouco depois
confirma a história. A história do dedo é mencionada. Luís Henrique
passa as mãos abertas no rosto, aperta os olhos, empurra os óculos para a
testa. Com vagar, baixa as mãos, ajeita os óculos confirma também o caso
do dedo decepado e corrige o número de amostras: “Não foram cinco
amostras, foram 12”. Nega ter ido a Dubai. Mas depois de alguns
segundos em silêncio, confirma que, sim, esteve na maior cidade dos
Emirados Árabes Unidos. Para buscar o corpo? “É”, responde.

Um grupo de funcionários da Odebrecht conhecido como “célula de


inteligência” reúne-se periodicamente na sede da empresa, no Rio de
Janeiro. Eles se recusam a dizer qualquer coisa sobre suas investigações a
respeito do paradeiro de Vasconcellos. Um deles explica: a divulgação de
informações, mesmo que irrelevantes, poderia “romper o tênue fio de
interlocução” que pessoas ligadas à empreiteira mantêm com “um grupo
extremista”, cujo nome não revela. Depois da entrevista frustrada, um
dos integrantes da célula de inteligência esclarece, reservadamente, o
significado das palavras tênue fio de interlocução: “Jamais se chegou a
qualquer negociação concreta”.

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C
om vinte anos de Odebrecht, João José Vasconcellos Júnior é respeitado
na empresa. Sua ligação estreita com a empreiteira é
incompreendida por alguns de seus familiares. “Por que o João foi
para uma região conflagrada, deixando para trás mulher, três
filhos, seus pais e uma família unida, que já havia sofrido a perda
prematura de um filho?”, indaga sua irmã Isabel Cristina. Cabelos negros
compridos e gestos eloqüentes, ela atua, segundo sua própria definição,
como a pedra no sapato da Odebrecht e do Ministério das Relações
Exteriores, o Itamaraty. Na confortável casa do Vale do Ipê, bairro
tradicional de Juiz de Fora, ela tenta organizar protestos contra o
seqüestro. Ao longo da conversa, Isabel Cristina perde a convicção
paulatinamente, até reconhecer: “Não tenho mais esperanças”. Casada
com um libanês, conta que o marido conhece bem os costumes islâmicos
e ressalta, entre eles, o de sempre se devolver o corpo de um adversário
na guerra. “Os muçulmanos nunca enterram um inimigo”, diz Isabel
Cristina. “Eles acreditam que, assim, enterrariam o inimigo no seio de sua
família, e com ele, todas as suas maldições.”

Entre os parentes e amigos de Vasconcellos, variam as interpretações


sobre a sua transferência para o Iraque, em plena insurgência contra a
ocupação anglo-americana. Para uns, ele aceitou a missão para acelerar e
melhorar a aposentadoria. Um engenheiro, em cargo de chefia numa
grande obra, numa região conturbada, chega a ganhar US$ 70 mil
mensais, além de um polpudo seguro de vida. Também adquire o direito
a se aposentar mais cedo, e incorpora certas vantagens salariais. Para
outros, o engenheiro, que tinha 50 anos quando desapareceu, apenas foi
atrás do que sabia fazer –construir – já que em terras brasileiras pouco se
constrói em sua área de especialização: estradas, aeroportos, barragens.

Seu irmão, também engenheiro, acha que ele embarcou na aventura


iraquiana por crer que os Estados Unidos dariam conta da fatura bélica e
política em poucos meses. “Quando João partiu, não havia a onda de
atentados terroristas a que assistimos diariamente”, diz Luís Henrique.
“Ele não mergulhou num caos, com probabilidade mínima de voltar, o
cenário era outro, muito mais favorável.” Antonio Caiado, diretor-geral
da Odebrecht nos Emirados Árabes Unidos em Abu Dhabi, tido pela
família como um irmão de João, foi testemunha do entusiasmo com que o
amigo encarou a transferência. “João estava no Equador, fazendo os

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trabalhos preliminares para a construção do aeroporto de Quito, quando


recebeu o convite para dirigir as obras no Iraque”, lembra. “Conversamos
sobre o assunto. Eu achava uma loucura, mas nada pude fazer. O João
parecia uma criança convidada para ir à Disney.”

Em dezembro passado, o “tênue fio de interlocução” entre extremistas e a


empreiteira registrou uma novidade: em troca de dinheiro, o corpo do
engenheiro poderia ser devolvido. As conversações seriam iniciadas em
Dubai. Marcelo Odebrecht, presidente da empreiteira, voou para Brasília,
ao encontro do chanceler Celso Amorim, para expor a situação. O
ministro lhe disse que a empresa deveria assumir o risco de pagar pelo
resgate. “É melhor vocês darem o dinheiro para tentar obter o corpo; se
for do João, tudo bem, se não for, paciência”, disse Amorim na conversa,
presenciada por dois familiares do engenheiro.

I
sabel Cristina conta que a empreiteira colocou à disposição do irmão
US$ 1 milhão, para pagar o resgate nos Emirados Árabes. “Antes de
Luís Henrique partir para Dubai, foi acertada uma série de
providências”, diz ela. “O corpo seria entregue ao responsável pela
embaixada do Brasil em Bagdá, o único funcionário a permanecer na
região conflagrada.” Segundo ela, definiu-se até o tipo de avião que
resgataria o cadáver: “Tinha de ser um avião que pudesse aterrissar no
aeroporto de Juiz de Fora, sem criar alarde”. Nada disso aconteceu. O
corpo não foi devolvido, nem qualquer interlocutor apareceu. Luís
Henrique regressou e fez com que o milhão de dólares voltasse a quem
de direito. Desde então, a família parece ter perdido qualquer esperança.
Em todas as conversas, em algum momento, cada um deles deixa
escapar: “Para mim, o João está morto”.

O dedo trazido do Iraque não serviu para nada. As amostras não eram
compatíveis com o DNA dos pais do engenheiro. Maria de Lourdes, sua
mãe, completou 80 anos, recentemente, na maior tristeza. “A cada dia
sem notícias, morro mais um pouco”, diz ela, “Por que não dizem logo
que o João morreu?”, pergunta o pai, choroso. Em agosto, a Interpol
iniciou a “divulgação amarela” – um alerta geral para todas as suas
agências, com amostras de sangue dos filhos e dos pais do engenheiro,

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além de um modelo da sua arcada dentária. A posição oficial da


Odebrecht é a de aguardar alguma iniciativa dos raptores. Mas na célula
de inteligência, que mantém contatos com o Itamaraty e empresas de
segurança da Inglaterra e dos Estados Unidos, além dos serviços secretos
de países da região, os olhares desalentados mostram que as esperanças
são inexistentes.

Antonio Caiado diz que continua mantendo o nome do amigo em sua


lista de endereços virtuais do MSN, tanto no computador de mesa como
no laptop. “Ainda não sei por que faço isso, pois no fundo não acredito
mais que ele volte, que esteja vivo”, diz. Caiado aponta para a realidade
no Iraque como justificativa para o seu pessimismo: “São mais de 30
mortos diariamente, muitos seqüestrados. Acho muito, mas muito difícil
mesmo, que se consiga resgatar uma prova do corpo, e muito mais difícil
que esteja vivo”.

João Vasconcellos Júnior liderava um consórcio da Odebrecht com a


firma americana Austin para a reconstrução de uma termoelétrica,
bombardeada pela aviação americana no início da invasão. O contrato, no
valor de US$ 64 milhões, fora assinado com o Corpo de Engenheiros do
Exército americano. Um relatório dos militares resume a necessidade da
obra: “Com a aproximação de março, a temperatura no Iraque sobe e a
necessidade de energia aumenta”. Tratava-se de conseguir cerca de 270
megawatts – o suficiente para abastecer uma cidade com 200 mil casas –
para reforçar a energia de Bagdá. Vasconcellos e sua equipe se
empenhavam em reconstruir duas turbinas, de 135 megawatts cada, e
construir duas linhas de transmissão.

Autora de um livro sobre o sumiço do irmão – Do outro lado do


seqüestro, inédito – Isabel Cristina levanta questões surgidas da leitura
do relatório feito pela Janusian, empresa britânica de segurança que
trabalha para a Odebrecht. Ela e João conversavam diariamente por meio
do Skype, o telefone via internet. Em 15 de janeiro de 2005, três dias antes
do seu desaparecimento, ele parecia tenso. “João me explicou que o
nervosismo era o normal na véspera de entregar uma grande obra, mas
que a tensão se agravara porque o seu laptop havia sido roubado do
canteiro de obras, em Beiji”, conta. Todas as informações financeiras da
termoelétrica estavam no computador portátil. “Ele só não entrou em

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pânico porque tinha todos os dados armazenados em outro computador,


mas mesmo assim, ficou extremamente nervoso”, diz sua irmã.

No dia seguinte, 48 horas antes do seqüestro, Isabel ligou novamente


para o irmão, e ele respondeu: “Agora, não posso”. À noite, João chamou-
a, e brincou: “Que irmã doida é essa que eu tenho? Eu digo que não posso
atender, e ela responde ótimo“. “É porque assim sei que você está vivo”,
devolveu Isabel. O engenheiro contou que, depois de entregar a obra,
queria “apanhar as malas e voar para o Brasil, e dessa vez é para valer,
Isabel”. Na última viagem a Juiz de Fora, Vasconcellos dera à mulher, a
psicóloga Tereza, um relógio com dois mostradores, um com a hora do
Brasil e outro com a de Bagdá. “Assim você vai poder ficar contando as
horas”, brincou.

N
o dia 18 janeiro, Isabel tentou falar com o irmão “20 vezes”. Sem
êxito. “Considerando o fuso horário, cinco horas a mais no Iraque,
acho que ele já estava nas mãos dos guerrilheiros, ou morto”,
acredita. Logo que foi informada do desaparecimento de seu funcionário,
a diretoria da Odebrecht mandou um funcionário a Juiz de Fora para
informar os pais dele. Simultaneamente, no Rio, um outro diretor, Enio
Silva, providenciou o embarque para Miami da mulher Tereza e dos seus
filhos. Os diretores da empreiteira acreditavam que, em Miami, a família
poderia acompanhar melhor o desdobramento do atentado, pois é o
escritório da Odebrecht na Flórida que controla a obra no Iraque. Todas
as informações sobre o seqüestro seriam concentradas lá. Ainda em
estado de choque, Tereza embarcou para Miami e foi instalada num hotel
luxuoso. Seus filhos acharam que o pai não gostaria que se hospedassem
num hotel caro, e a família toda se mudou para um outro, mais barato.
“Papai era do tipo informal, que nas férias queria andar de bermudas e
chinelo”, explica Rodrigo, o filho mais velho.

O embaixador do Brasil na Tunísia, Sergio Telles, soube do seqüestro pela


televisão, depois de jantar com a mulher e os três filhos na sua casa, em
Tunis. Consternado, saiu até o jardim para fumar. Minutos depois, voltou
e, no escritório, escreveu um telegrama para o chanceler Celso Amorim,
se oferecendo para participar da missão de resgate. Telles havia sido

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embaixador em Beirute por quase cinco anos. Conhecia bem generais que
comandavam o serviço secreto libanês, tido como eficiente. Duas
semanas se passaram antes do diplomata receber a autorização do
Itamaraty. Pegou então a mala, que já estava arrumada, e partiu para
Beirute, onde se encontrou com ministros, generais do serviço secreto e
com o presidente do país, Émile Lahoud. Dos generais amigos ouviu a
seguinte recomendação: siga todas as pistas possíveis. Do presidente
Lahoud, quando se despediam, escutou um apelo: “Embaixador, não se
deixe seqüestrar, por favor”.

Telles partiu em seguida para Bagdá, fazendo escala em Amã. Na capital


iraquiana, foi recebido por um representante da empreiteira brasileira. Já
no caminho para a casa da Odebrecht, no chamado setor verde, onde se
localizam as embaixadas e escritórios das Forças Armadas americanas, o
embaixador ouviu histórias pavorosas. Um representante da Janusian,
que o acompanhava, aconselhou-o a andar com escolta permanente.
Preço da segurança: US$ 50 mil. O Itamaraty ordenou que não aceitasse a
proposta. O embaixador se abrigou na casa da Odebrecht, um misto de
bunker e escritório. “Parecia um acampamento de fuzileiros, igual ao que
se vê em filmes”, lembra. Na sala, curdos fortíssimos, com metralhadoras
de último tipo ao alcance das mãos, faziam exercícios em aparelhos de
ginástica.

O representante brasileiro entrou em contato com monsenhor Audi, o


chefe da igreja greco-ortodoxa no Iraque, considerado um negociador
hábil. O monsenhor ouviu a história de Telles sem interrompê-lo. Disse-
lhe que iria manter abertos seus canais próprios para agir nessas
circunstâncias. E recomendou que o governo brasileiro patrocinasse
algumas inserções na programação das televisões árabes, pedindo a
libertação de Vasconcellos. Sugeriu-lhe até o tom a ser usado nessas
mensagens: “Não pode ser muito súplice, tampouco arrogante”. A
Odebrecht custeou as inserções publicitárias.

Telles procurou os embaixadores da França, Itália, Japão, Líbano e China,


que também tiveram cidadãos seqüestrados. Todos se mostraram
preocupados. Acharam que era mau sinal os guerrilheiros só terem
enviado à empresa uma carteirinha de mergulhador de Vasconcellos
Júnior e algumas cédulas de reais. O embaixador francês estranhou que

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os seqüestradores não tivessem passado para o segundo ato: o pedido de


resgate, acompanhado do envio de uma fita de vídeo com o seqüestrado
pedindo clemência. Com a tarimba de quem havia, recentemente,
contribuído para resgatar três compatriotas, o embaixador japonês
interrompeu o brasileiro com um eufemismo, quando ele disse que os
seqüestradores não haviam entrado em contato: “Isso quer dizer que o
seqüestrado não está mais disponível”. Em outras palavras, Vasconcellos
Júnior estava morto.

P
assado um ano e meio do seqüestro, o embaixador Telles mora em
São Paulo. Ele se aposentou e, na cozinha de sua casa, que está em
obras, considera que o ataque na estrada de Beiji a Bagdá não
visava o engenheiro brasileiro. Mexe com as pontas dos dedos as pedras
de gelo de seu uísque e conta que, depois de tudo que apurou, acredita
que o atentado buscava sabotar a obra da hidrelétrica, pois, em poucos
dias, ela levaria 270 megawatts a mais de eletricidade a Bagdá. “A tensão
política carregava a atmosfera naqueles dias”, diz. Ele recorda o seu
encontro com o xeque Ha-Ridth al-Dhari, chefe supremo dos sunitas, na
principal mesquita de Bagdá. “Com um pesado colete à prova de bala sob
o paletó, saí da casa da Odebrecht para entrar no carro blindado e me
encontrar com o xeque. Qual não foi minha surpresa, quando ouvi o
chefe dos guarda-costas falar: ‘Lá nós não vamos’. Não tem problema,
respondi, vou de táxi. ‘O senhor vai se arriscar nos cinco quilômetros
mais perigosos do planeta? Isso é loucura’, me disse o motorista
iraquiano. Quando viram minha disposição de ir de qualquer forma, dois
deles resolveram me acompanhar.”

Ao chefe espiritual dos sunitas, facção do islã à qual pertence Saddam


Hussein, o embaixador disse que Brasília não tinha qualquer contencioso
com nenhum país árabe. Enfatizou que o Brasil sempre recebera árabes
de todos os países com a mesma hospitalidade. O xeque al-Dhari
balançou a cabeça, concordando – e não fez qualquer promessa concreta.
Telles falou com políticos que formariam dentro em pouco o atual
governo iraquiano. Eles acreditavam ter havido um erro: Vasconcellos
não seria o alvo.

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“As propostas que recebi foram as mais disparatadas possíveis”, recorda


o embaixador. Foi procurado por um cidadão que lhe pediu US$ 20 mil
para resolver a questão. Perguntado como o faria, explicou que
compraria 70 carneiros, daria uma imensa festa para os chefes de clãs.
“Enquanto comem, vou circular, conversando com todos”, disse.
“Garanto-lhe que, no final da festa, terei o segredo desvendado.” O
embaixador considera que o seu inimigo principal, em Bagdá, foi a
incerteza. “Como costuma ocorrer no Oriente, tudo era absolutamente
verdade, e tudo era absolutamente falso.”

No dia seguinte ao seqüestro, Isabel Cristina lembra que conversava com


Rodrigo quando uma voz entrou na linha, e perguntou, em inglês, o
nome do pai do engenheiro, da mãe, e onde ele nascera. “Depois de
responder, aproveitei para avisar que João tomava remédio para
tireóide.” O intruso saiu da linha dizendo: “Já sabemos tudo o que
precisamos saber”. Na época, Isabel conversou com o ex-presidente
Itamar Franco, então embaixador do Brasil em Roma. Engenheiro, ex-
prefeito de Juiz de Fora e velho amigo da família Vasconcellos, Itamar
prontificou-se a entrar em contato com o serviço secreto italiano, que
tivera êxito em libertar a jornalista Giuliana Sgrena. Ressalvou que só
poderia atuar se fosse autorizado pelo Itamaraty. Itamar disse a amigos,
posteriormente, que não recebeu autorização da chancelaria. Mesmo
assim, pediu à família do engenheiro que lhe enviasse documentos e
preenchesse um questionário, preparado pelo serviço secreto italiano,
com informações sobre o seqüestrado.

Houve uma ocasião em que a Odebrecht procurou a família Vasconcellos


para obter sua concordância em relação a um projeto específico: a
contratação de uma equipe de resgate, que tentaria libertar o engenheiro.
Porta-vozes da empresa disseram então que nem a equipe de resgate nem
a empresa teriam qualquer responsabilidade. O seqüestrado poderia ser
resgatado vivo, ou morrer durante a operação. A família respondeu que
esse era um problema exclusivo da empresa. O engenheiro assinara um
contrato com a Odebrecht e, portanto, cabia a ela decidir. Um diretor da
empresa explica que a proposta de resgate à força foi apresentada pela
Janusian, a empresa britânica de segurança que trabalha para a
Odebrecht ao preço de US$ 1 milhão ao ano. Ela não deu qualquer
detalhe do plano ou indício do local onde o engenheiro estaria. Pelo sim,

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pelo não, a Odebrecht resolveu repassar a proposta à família, para depois


não ser acusada de não ter feito tudo que era possível.

A versão mais aceita do que aconteceu na estrada de Beiji a Bagdá está


num relatório da Janusian. O relatório informa que os veículos usados
pela Odebrecht viajavam num comboio. No único posto de gasolina da
estrada, uma enorme fila de carros aguardava o abastecimento. Ela era
tão grande que bloqueava uma pista da estrada. Os carros dos
funcionários da empreiteira contornaram o posto pela contramão e
superaram o engarrafamento. Quinze quilômetros adiante, foram
atacados. Os dois primeiros automóveis do comboio já haviam
ultrapassado os atacantes quando os tiros espocaram. O terceiro carro era
um BMW blindado, com vidros escurecidos por insulfilm, no qual
viajava Vasconcellos. Como todos, ele vestia um colete à prova de bala. O
BMW e o quarto veículo receberam fogo pesado. Os dois seguranças que
viajavam com o engenheiro, um iraquiano e um britânico, tombaram
mortos. A Janusian acredita que os atacantes eram combatentes
(“mujahedin”) ligados à Al-Qaeda, a rede terrorista liderada por Osama
bin Laden.

O embaixador brasileiro, com informações obtidas junto a diversos


serviços secretos, contradiz em parte o relatório da firma inglesa. “O
comboio tinha quatro carros”, diz. “Quando o primeiro carro passou, os
terroristas o isolaram do comboio com uma caminhonete. O segundo
carro foi separado do BMW não-blindado onde viajava João Júnior, por
um caminhão. Sobre o carro de João e o último do comboio convergiu um
enxame de balas das armas pesadas dos terroristas que, por sua violência,
não deveriam estar interessados em deixar ninguém vivo.”

A
pesar do tiroteio, não foi encontrada nenhuma mancha de sangue
no estofamento do carro em que estava o engenheiro. Há a hipótese
de que os passageiros tenham conseguido sair do carro junto com os
seguranças, que buscariam uma melhor posição para responder aos
disparos, enquanto aguardavam reforços. O relatório da Janusian,
corroborando a hipótese, afirma que seus guardas sustentaram o tiroteio
com o inimigo durante 20 minutos. “Só se fossem Rambos”, comenta

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ironicamente Isabel Cristina, apontando, na única foto que possui, para o


tamanho dos rombos feitos no automóvel. “João pode ter saído do carro,
ou ter sido feito prisioneiro, ou fuzilado ali mesmo”, deduz.

Passados mais de 500 dias do seqüestro, Rodrigo Vasconcellos, de 27


anos, camisa de seda de mangas compridas, fartos cabelos penteados
para trás, come um hambúrguer em São Conrado, no Rio. Ele não
acredita que seu pai estivesse no Iraque em busca de uma boa
aposentadoria. “Onde tinha obra, papai estava lá”, diz. Rodrigo conta que
a família acompanhou o pai em obras até na Patagônia. Os filhos
estudaram em Buenos Aires quando o engenheiro se encontrava à frente
de obras na Argentina e no Uruguai. Depois do Iraque, recorda Rodrigo,
o plano do pai era trabalhar em Portugal. A ida ao Iraque foi uma
coincidência. Vasconcellos desenvolvera um projeto de casas pré-
fabricadas que foi apresentado ao Exército americano. O projeto foi
elogiado e começaram as tratativas para a empresa desenvolvê-lo no
Iraque. Atuando nos Estados Unidos há 15 anos, a Odebrecht recebeu
uma permissão especial para participar da reconstrução do país,
privilégio que só as empresas dos países que participam militarmente da
invasão têm direito. No meio do caminho, tornou-se prioritária a
reconstrução da termoelétrica que havia sido bombardeada.

A família Vasconcellos estava habituada às longas ausências do


engenheiro. Ele virava então um pai virtual. “Quando estava do outro
lado do mundo, ele era o namorado virtual de minha mãe”, diz Rodrigo.
Ele conta que o pai comprou webcams para a família e para si próprio.
Assim, poderiam se ver a qualquer hora. O engenheiro controlava os
fusos horários e telefonava durante o jantar. “Aí, ele aparecia na tela do
computador e nos contava o que havia feito durante o dia, perguntava o
que tínhamos feito”, lembra Rodrigo. Sempre que vinha ao Brasil, era
para estadias curtas. Ele logo avisava: “Só não quero saber de carne de
carneiro”, o prato de resistência da culinária iraquiana. Ele levava de
volta para o Iraque camisas da seleção brasileira, com o número de
Ronaldo. Disse que os iraquianos sabiam que o Brasil era contra a guerra,
e sempre fora tratado com amabilidade. Mesmo assim, Isabel Cristina
insistia para que ele usasse uma camiseta da seleção brasileira por baixo
da camisa. “Isabel, você acha que vou pagar um mico desses?” –
perguntou o irmão recusando a idéia.

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Rodrigo se formará em Informática no fim do ano. Ele administra o


salário do pai, pago pela empreiteira com pontualidade, como se o
engenheiro ainda trabalhasse. Paga as despesas de casa, dá para a mãe,
psicóloga, o que ela pede, e mesadas aos irmãos. Sua irmã, Tatiana,
formou-se em Odontologia e começará a clinicar em breve. Seu irmão
Gustavo começou um cursinho pré-vestibular. “Eu e meu irmão nos
aproximamos muito com a crise”, diz Rodrigo. “Converso com ele
diariamente, trato de afastar seus medos e consolá-lo. Lá em casa,
dividimos as tarefas. Tatiana paga as contas pela internet, Gustavo
rastreia informações nos sítios árabes, e mamãe, ainda se restabelecendo
do choque, recomeçou seu trabalho no consultório.”

Para deixar aberto noite e dia um canal de informações sobre o paradeiro


do pai, Rodrigo mantém um blog. No dia em que o seqüestro completou
um ano, ele recebeu 7.600 mensagens de solidariedade. “É um número
expressivo que se iguala ao acesso de um sítio comercial”, avalia.

Ele diz que a família tem dificuldade em aceitar a idéia de que seu pai
morreu. “Não podemos ficar sem saber nada, sem termos um fim para a
trágica história de meu pai”, raciocina. “Se o governo e a empresa
acreditam que meu pai não está vivo, cabe a eles tomar providências para
que a morte seja declarada jurídica e oficialmente. Enquanto isso não for
feito, continuamos a achar que há uma esperança.” No último réveillon
em liberdade, Vasconcellos pediu aos filhos que apontassem a webcam
em direção aos fogos, no Rio. Enquanto os rojões explodiam, iluminando
o céu e a multidão em Copacabana, o engenheiro nada falou. Depois do
show, com a voz comovida, disse: “Esta noite estou para lá de Bagdá”.

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