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EDIÇÃO 1 | OUTUBRO_2006
internacional
DESAPARECIDO NO DESERTO
Mistérios do seqüestro do engenheiro brasileiro no Iraque
SILVIO FERRAZ
ILUSTRAÇÃO: GUAZZELLI_2006
A
o tocar a pista do aeroporto de Guarulhos, em fevereiro, o Boeing
747 da Air France, procedente de Paris, trazia uma carga de
esperança. Para a família Vasconcellos, de Juiz de Fora, os
passageiros que poderiam vir com a boa-nova eram um engenheiro da
Odebrecht e um empreiteiro jordaniano, embarcados em Amã. Eles
traziam uma pequena caixa de isopor, hermeticamente lacrada, com um
dedo mínimo envolto em gelo seco. Amputado de uma mão direita, o
dedo saíra de um vilarejo na fronteira do Iraque com o Irã. Ele foi levado
com rapidez para Campinas, para o Centro Médico Especializado
Professor Walter Pinto Jr., onde uma equipe de legistas retirou-lhe
diversas amostras, para serem comparadas ao sangue dos pais do
engenheiro João José Vasconcellos Júnior. Se o DNA deles fosse
compatível, haveria finalmente a prova de que o engenheiro, seqüestrado
no Iraque em 19 de janeiro de 2005, estaria vivo. Em outubro de 2005, um
outro funcionário da Odebrecht trouxera de Amã um chumaço de cabelos
que, supostamente, seria de Vasconcellos. Ao recebê-lo, porém, os
legistas descartaram-no logo como material capaz de identificar o DNA:
o cabelo fora cortado rente, mas sem os bulbos, imprescindíveis para o
exame.
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C
om vinte anos de Odebrecht, João José Vasconcellos Júnior é respeitado
na empresa. Sua ligação estreita com a empreiteira é
incompreendida por alguns de seus familiares. “Por que o João foi
para uma região conflagrada, deixando para trás mulher, três
filhos, seus pais e uma família unida, que já havia sofrido a perda
prematura de um filho?”, indaga sua irmã Isabel Cristina. Cabelos negros
compridos e gestos eloqüentes, ela atua, segundo sua própria definição,
como a pedra no sapato da Odebrecht e do Ministério das Relações
Exteriores, o Itamaraty. Na confortável casa do Vale do Ipê, bairro
tradicional de Juiz de Fora, ela tenta organizar protestos contra o
seqüestro. Ao longo da conversa, Isabel Cristina perde a convicção
paulatinamente, até reconhecer: “Não tenho mais esperanças”. Casada
com um libanês, conta que o marido conhece bem os costumes islâmicos
e ressalta, entre eles, o de sempre se devolver o corpo de um adversário
na guerra. “Os muçulmanos nunca enterram um inimigo”, diz Isabel
Cristina. “Eles acreditam que, assim, enterrariam o inimigo no seio de sua
família, e com ele, todas as suas maldições.”
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I
sabel Cristina conta que a empreiteira colocou à disposição do irmão
US$ 1 milhão, para pagar o resgate nos Emirados Árabes. “Antes de
Luís Henrique partir para Dubai, foi acertada uma série de
providências”, diz ela. “O corpo seria entregue ao responsável pela
embaixada do Brasil em Bagdá, o único funcionário a permanecer na
região conflagrada.” Segundo ela, definiu-se até o tipo de avião que
resgataria o cadáver: “Tinha de ser um avião que pudesse aterrissar no
aeroporto de Juiz de Fora, sem criar alarde”. Nada disso aconteceu. O
corpo não foi devolvido, nem qualquer interlocutor apareceu. Luís
Henrique regressou e fez com que o milhão de dólares voltasse a quem
de direito. Desde então, a família parece ter perdido qualquer esperança.
Em todas as conversas, em algum momento, cada um deles deixa
escapar: “Para mim, o João está morto”.
O dedo trazido do Iraque não serviu para nada. As amostras não eram
compatíveis com o DNA dos pais do engenheiro. Maria de Lourdes, sua
mãe, completou 80 anos, recentemente, na maior tristeza. “A cada dia
sem notícias, morro mais um pouco”, diz ela, “Por que não dizem logo
que o João morreu?”, pergunta o pai, choroso. Em agosto, a Interpol
iniciou a “divulgação amarela” – um alerta geral para todas as suas
agências, com amostras de sangue dos filhos e dos pais do engenheiro,
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N
o dia 18 janeiro, Isabel tentou falar com o irmão “20 vezes”. Sem
êxito. “Considerando o fuso horário, cinco horas a mais no Iraque,
acho que ele já estava nas mãos dos guerrilheiros, ou morto”,
acredita. Logo que foi informada do desaparecimento de seu funcionário,
a diretoria da Odebrecht mandou um funcionário a Juiz de Fora para
informar os pais dele. Simultaneamente, no Rio, um outro diretor, Enio
Silva, providenciou o embarque para Miami da mulher Tereza e dos seus
filhos. Os diretores da empreiteira acreditavam que, em Miami, a família
poderia acompanhar melhor o desdobramento do atentado, pois é o
escritório da Odebrecht na Flórida que controla a obra no Iraque. Todas
as informações sobre o seqüestro seriam concentradas lá. Ainda em
estado de choque, Tereza embarcou para Miami e foi instalada num hotel
luxuoso. Seus filhos acharam que o pai não gostaria que se hospedassem
num hotel caro, e a família toda se mudou para um outro, mais barato.
“Papai era do tipo informal, que nas férias queria andar de bermudas e
chinelo”, explica Rodrigo, o filho mais velho.
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embaixador em Beirute por quase cinco anos. Conhecia bem generais que
comandavam o serviço secreto libanês, tido como eficiente. Duas
semanas se passaram antes do diplomata receber a autorização do
Itamaraty. Pegou então a mala, que já estava arrumada, e partiu para
Beirute, onde se encontrou com ministros, generais do serviço secreto e
com o presidente do país, Émile Lahoud. Dos generais amigos ouviu a
seguinte recomendação: siga todas as pistas possíveis. Do presidente
Lahoud, quando se despediam, escutou um apelo: “Embaixador, não se
deixe seqüestrar, por favor”.
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assado um ano e meio do seqüestro, o embaixador Telles mora em
São Paulo. Ele se aposentou e, na cozinha de sua casa, que está em
obras, considera que o ataque na estrada de Beiji a Bagdá não
visava o engenheiro brasileiro. Mexe com as pontas dos dedos as pedras
de gelo de seu uísque e conta que, depois de tudo que apurou, acredita
que o atentado buscava sabotar a obra da hidrelétrica, pois, em poucos
dias, ela levaria 270 megawatts a mais de eletricidade a Bagdá. “A tensão
política carregava a atmosfera naqueles dias”, diz. Ele recorda o seu
encontro com o xeque Ha-Ridth al-Dhari, chefe supremo dos sunitas, na
principal mesquita de Bagdá. “Com um pesado colete à prova de bala sob
o paletó, saí da casa da Odebrecht para entrar no carro blindado e me
encontrar com o xeque. Qual não foi minha surpresa, quando ouvi o
chefe dos guarda-costas falar: ‘Lá nós não vamos’. Não tem problema,
respondi, vou de táxi. ‘O senhor vai se arriscar nos cinco quilômetros
mais perigosos do planeta? Isso é loucura’, me disse o motorista
iraquiano. Quando viram minha disposição de ir de qualquer forma, dois
deles resolveram me acompanhar.”
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pesar do tiroteio, não foi encontrada nenhuma mancha de sangue
no estofamento do carro em que estava o engenheiro. Há a hipótese
de que os passageiros tenham conseguido sair do carro junto com os
seguranças, que buscariam uma melhor posição para responder aos
disparos, enquanto aguardavam reforços. O relatório da Janusian,
corroborando a hipótese, afirma que seus guardas sustentaram o tiroteio
com o inimigo durante 20 minutos. “Só se fossem Rambos”, comenta
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Ele diz que a família tem dificuldade em aceitar a idéia de que seu pai
morreu. “Não podemos ficar sem saber nada, sem termos um fim para a
trágica história de meu pai”, raciocina. “Se o governo e a empresa
acreditam que meu pai não está vivo, cabe a eles tomar providências para
que a morte seja declarada jurídica e oficialmente. Enquanto isso não for
feito, continuamos a achar que há uma esperança.” No último réveillon
em liberdade, Vasconcellos pediu aos filhos que apontassem a webcam
em direção aos fogos, no Rio. Enquanto os rojões explodiam, iluminando
o céu e a multidão em Copacabana, o engenheiro nada falou. Depois do
show, com a voz comovida, disse: “Esta noite estou para lá de Bagdá”.
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