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01/04/2020 Folha de S.

Paulo - "Consenso de Washington" foi longe demais, diz seu ideólogo - 03/10/1999

São Paulo, Domingo, 03 de Outubro de 1999

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"Consenso de Washington" foi longe


demais, diz seu ideólogo

Autor do receituário neoliberal para a AL revê modelo, mas


diz que o Brasil não vai a "lugar nenhum" sem terminar as
reformas que começou em 94

FERNANDO CANZIAN
Editor de Brasil

Dez anos depois de cunhar a expressão "Consenso de


Washington", o economista John Williamson, 62, afirma que
"talvez" a interpretação de suas medidas tenha ido "longe
demais".
Em entrevista à Folha, o economista inglês afirma que
"muitos colocaram coisas no "Consenso" que não faziam
parte do original".
O termo "Consenso de Washington" ("Washington
Consensus") nasceu na preparação de uma conferência
organizada pelo Institute for International Economics (IIE), de
Washington, há exatos dez anos.
A expressão serviu para resumir uma série de medidas que os
países ricos consideravam necessárias para o desenvolvimento
das nações mais pobres.

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Na ocasião, os Estados Unidos preparavam-se para lançar o


Plano Brady -referência ao ex-secretário do Tesouro dos EUA
Nicholas Brady, no governo George Bush (1989-92)-, que
refinanciaria a dívida externa de vários países latino-
americanos. Como contrapartida à renegociação, o Congresso
dos EUA cobrava uma série de reformas dos países que
seriam beneficiados.
"Na preparação da conferência, coloquei em um pedaço de
papel os preceitos que julgávamos necessários que a América
Latina seguisse para realizar as suas reformas econômicas",
lembra.
Privatizações, abertura da economia, desregulamentação e
rígido controle da inflação e do déficit público,
principalmente, faziam parte do receituário. ""Em 1989, os
preceitos eram realmente um consenso", diz.
Hoje, Williamson considera "uma trágica verdade" o fato de a
cartilha ter sido "mal interpretada" em vários de seus
aspectos.
Sobre o Brasil, afirma que o país está em um "nó" que pode
ter consequências "muito infelizes" se o presidente Fernando
Henrique Cardoso não conseguir recompor seu apoio no
Congresso e levar a cabo as reformas estruturais. "O país não
vai chegar a lugar nenhum assim", resume.
Anteontem, Williamson aposentou-se do Banco Mundial,
onde trabalhava como economista-chefe para o sul da Ásia.
Ele voltará na próxima semana ao IIE, ao qual sempre esteve
ligado.
Leia a seguir trechos de entrevista telefônica que Williamson
concedeu à Folha de sua casa em Washington, na sexta-feira
pela manhã, na qual fala sobre o "Consenso", da nova ênfase
"social" do FMI e sobre o Brasil.

Folha - Qual a avaliação que o sr. faz do resultado das


reformas liberais na América Latina em um momento em
que o próprio Banco Mundial admite que as desigualdades
aumentaram? O que deu errado?
John Williamson - Não podemos colocar todas as reformas
em uma mesma categoria. Muitos países estão fazendo boas
reformas. Reformas como a abertura de mercado foram

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benéficas para todos os países. O mesmo vale para os


programas de combate à inflação. Mas há coisas que os países
fizeram errado, como sustentar uma taxa de câmbio fixa como
âncora contra a inflação.
O Brasil, por exemplo, estaria em uma situação muito melhor
se tivesse tornado a sua taxa de câmbio mais competitiva há
mais tempo. A liberalização da conta de capitais também foi
prematura, com a atração de fortes investimentos de curto
prazo. Essas duas coisas em particular estão por trás da crise
que o Brasil enfrenta hoje.

Folha - Mas o sr. reconhece algo de verdadeiro na opinião


dos críticos dessas reformas? Afirma-se que elas
contribuíram para aumentar a distância entre pobres e
ricos.
Williamson - Não, eu não acho que as reformas fizeram essa
diferença aumentar. A diferença apenas continuou a aumentar.
Isso ocorreu não só dentro dos países, mas entre os países.
Nós ainda não conseguimos entender exatamente o que está
por trás disso, mas parece que boa parte da explicação se deve
à tecnologia. A procura por pessoas com determinados
conhecimentos cresce muito mais rapidamente do que por
outros que não têm esses conhecimentos.
Mas há um outro ponto em que as reformas podem ter
contribuído para o aumento dessa diferença, que é a
mobilidade de capitais. Ela permitiu que pessoas com muito
dinheiro pudessem vir a tirar esse dinheiro de seus países. E
isso levou muitos países a reduzir os impostos sobre o capital
dos ricos para evitar que o dinheiro fosse embora.
Há também um problema no ritmo que as reformas tomaram,
que não é exatamente o mesmo das reformas que o "Consenso
de Washington" pregava.

Folha - O sr. concorda que o "Consenso de Washington"


está em xeque no momento?
Williamson - Talvez ele tenha ido longe demais. Eu nunca
pretendi que o "Consenso" fosse um manifesto político para
que os países fizessem reformas por todos os lados, mas ele
foi interpretado dessa maneira. Muitas pessoas acreditaram
que a total liberalização da conta de capitais, por exemplo, era
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parte do acordo. Ou que era parte do acordo algum tipo de


manutenção de uma determinada política para a taxa de
câmbio. Isso não estava na minha concepção original.

Folha - O sr. diria, então, que o seu "Consenso de


Washington" foi mal interpretado?
Williamson - Sim, foi usado em diferentes sentidos por
pessoas diferentes. É uma trágica verdade.

Folha - Se o sr. pudesse voltar no tempo, o sr. mudaria algo


nos conceitos gerais do "Consenso de Washington"?
Williamson - Como eu disse, acho que muitas pessoas
colocaram coisas ali ao longo dos anos que não faziam parte
do que eu disse originalmente. Mas, de um modo geral, todas
as políticas do "Consenso" foram benéficas. As sugestões
para a abertura de mercado, para o controle da inflação e a
adoção de disciplinas fiscais foram altamente benéficas. Se eu
tivesse a oportunidade de ser mais específico, sobre
privatizações, por exemplo, diria hoje que seus benefícios
dependem muito da maneira como elas são realizadas. Muitas
foram altamente benéficas. Outras, nem tanto.
Eu também seria um pouco menos entusiasta sobre a
liberalização financeira. Vimos várias situações em que essa
liberalização levou a crises, especialmente no caso de
liberalizações muito prematuras. A liberalização da conta de
capitais pode ser muito benéfica, mas também é muito
perigosa.

Folha - Em um artigo seu escrito em 1982, ""As Políticas


de Empréstimos do FMI", o sr. sustentava que os créditos
do Fundo deveriam estar relacionados a políticas que
trouxessem também benefícios aos pobres dos países
tomadores, desde que isso não comprometessem a
possibilidade de o FMI ter o dinheiro de volta. O sr. acha
que o FMI vem fazendo o contrário até agora? Vai haver
uma mudança daqui para frente, a partir do discurso do
presidente do Fundo, Michel Camdessus, na semana
passada, dizendo que a pobreza merece maior atenção?
Williamson - O Fundo vem adotando essa postura nos últimos

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anos. E eu não acusaria o FMI de deliberadamente desenhar


políticas que prejudicam os pobres.

Folha - Mas o que o sr. achou do discurso com maior ênfase


contra a pobreza feito pelo sr. Camdessus? Ele vai conduzir
a ações efetivas ou é apenas um punhado de palavras para
minimizar as mais recentes críticas ao Fundo?
Williamson - A burocracia leva tempo para que as intenções
do topo sejam transformadas em ações na base. Eu ficaria
surpreso se todas as missões do Fundo levassem esse discurso
em consideração a partir da próxima semana. Mas creio que
ele vai ter um efeito ao longo do tempo. Creio que o Fundo
deverá fazer esforços concretos nesse sentido, mas sem
abandonar outros compromissos. Eles não vão deixar de
pressionar por uma disciplina fiscal ou coisas do gênero, mas
talvez passem a ter uma outra sensibilidade em relação às
políticas de gastos públicos.
Creio que vão deixar de responder "tudo bem, a escolha é
sua" se o país disser que vai cortar pesado gastos com saúde e
educação para cumprir metas. Essa costumava ser a atitude.
Mas o FMI vem mudando nesse sentido e, esperamos, esse
discurso de Camdessus vai reforçar um novo comportamento.
Não foi o primeiro discurso dele nesse sentido, mas foi o mais
forte até agora.

Folha - E em que medida o Banco Mundial vem


influenciando essa mudança de atitude?
Williamson - Durante um longo período o Banco Mundial
vem buscando com suas missões formas de minimizar a
pobreza, mas agora isso está firmemente estabelecido como
uma política a ser adotada pelo banco. Muitas pessoas na
instituição acreditam hoje que isso implica uma prioridade ao
crescimento, na qualidade do crescimento, com muita ênfase
aos setores sociais. Por isso há vários novos programas de
microcréditos destinados exclusivamente para os pobres, que
é um novo elemento nas linhas de empréstimos do banco.
Mas a chave contra a pobreza continua sendo o crescimento
sustentado das economias.

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Folha - E como fica o Brasil? Durante o primeiro governo


do presidente Fernando Henrique Cardoso, o país produziu
uma série de reformas econômicas, da privatização à
abertura de seu mercado. Agora, com uma popularidade
muito baixa, o presidente não está conseguindo encaminhar
as reformas estruturais que ficaram faltando, como a fiscal
e a previdenciária. Que futuro o sr. vê para nós, com um
mercado aberto, com déficits comerciais, uma dívida pública
crescente e sem conseguir arrumar as questões estruturais?
Williamson - Bem, de fato isso é um nó. É muito ruim. E as
consequências para o país podem ser muito infelizes. Começa
a parecer com a Argentina durante os anos 80. Não vejo o
risco de uma hiperinflação, mas o país e a economia não vão
chegar a lugar nenhum se o sistema político demonstrar-se
incapaz de uma recomposição.
Se o presidente não puder liderar e se não existir nenhum líder
no Congresso capaz de fazê-lo, ou se o Congresso não
apresentar por si só uma pauta alternativa, o fim pode ser
ruim. Isso é claro. Não há dúvida sobre isso.

Folha - Para manter o país dentro das metas acertadas com


o FMI, o Brasil está promovendo cortes nas verbas de
programas sociais. O sr. acha que o Brasil deveria tentar
uma renegociação do acordo com o Fundo?
Williamson - Eu acho é que o país deveria ter cortado parte
do dinheiro dos aposentados (referindo-se à derrota do
governo no Supremo Tribunal Federal na quinta-feira na
questão dos inativos) e mantido o dinheiro para os pobres. O
Brasil não está em condições políticas de renegociar nada
com o FMI agora. Você não pode tentar renegociar algo sobre
o que você não tem um acordo dentro do próprio país. Se
houvesse um acordo dentro do país, um pacote acertado, claro
que haveria chances de renegociação. Mas isso não existe.

Folha - O sr. acredita que a crise brasileira pode


desembocar em um governo de esquerda nas próximas
eleições?
Williamson - Os governos de esquerda estão se tornando
muito criteriosos no mundo de hoje. Eu não sei, mas não

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descartaria totalmente a possibilidade de um governo de


esquerda bem organizado. É uma possibilidade.

Folha - E algo parecido com o sr. Hugo Chávez na


Venezuela?
Williamson - Ele não é propriamente um presidente de
esquerda. É um oportunista.

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