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A tecnologia reverteu o relógio da produtividade

Folha de São Paulo20 de março de 2021

O relógio da economia começou a rodar para trás? O fato mais determinante da história
econômica é que, ao longo do tempo, os seres humanos foram capazes de produzir muito mais
de todos os bens e serviços que apreciam. Em “A Riqueza das Nações”, Adam Smith não teve
dúvida de que a base desse crescimento econômico atordoante foi a especialização —a divisão
de trabalho.
Mas grande parte do trabalho do conhecimento moderno não é especializado. Poderia isso
explicar por que todos parecemos trabalhar tanto enquanto reclamamos de fazer tão pouco?
Como escreve Philip Coggan em sua história épica “More: The 10,000 Year Rise of the World
Economy” (Mais: 10.000 anos de ascensão da economia mundial, na tradução literal), o livro de
Smith, de 1776, não foi o primeiro a notar os ganhos de produtividade resultantes da
especialização. Xenofonte fez comentários parecidos em 370 a.C.
Mas por que a divisão de trabalho aumentou a produtividade? Smith apontou três
vantagens: os trabalhadores se aperfeiçoaram em técnicas específicas; eles evitaram o atraso e a
distração de mudar de uma tarefa para outra; e usaram ou mesmo inventaram equipamentos
especializados.
O trabalhador do conhecimento moderno não se encaixa bem nesse retrato. A maioria das
pessoas não usa equipamento especializado: usamos computadores capazes de fazer qualquer
coisa, de contabilidade e mensagens instantâneas a filmes e edição de vídeos. E se alguns
trabalhos em escritório têm um claro fluxo de produção muitos não o têm: são um borrão colorido
de atividades que se misturam umas às outras.
Percebi isso pela primeira vez 20 anos atrás. Na época, os economistas estavam quebrando
a cabeça sobre por que os computadores não pareciam aumentar a produtividade. Enquanto isso,
eu tinha um emprego em escritório com uma incrível variedade de responsabilidades. Às vezes
eu fazia pesquisa e análise, às vezes decidia que fonte usar em um slide de PowerPoint.
O trabalho em escritório está ficando cada vez mais generalista. Hoje, todo o mundo faz
sua digitação, e muitos elaboram pedidos de verbas, criam apresentações e administram suas
agendas. Todos temos acesso a software de fácil utilização, então por que não?
Em 1992, o economista Peter Sassone publicou um estudo de fluxo de trabalho em grandes
escritórios corporativos dos Estados Unidos. Ele descobriu que, quanto mais velha a pessoa,
maior a probabilidade de que fizesse um pouco de tudo. Os assistentes administrativos não faziam
gerência, mas os gerentes faziam administração. Sassone chamou isso de “lei da especialização
redutora”.
Essa lei certamente está mais forte hoje. Os computadores tornaram mais fácil criar e
distribuir mensagens escritas, marcar viagens, desenhar páginas da web. Em vez de aumentar a
produtividade, essas ferramentas tentam pessoas altamente treinadas e bem pagas a perder tempo
fazendo slides ruins. A variedade é agradável, e tudo bem fazer pão ou tricotar suéteres como
hobby —mas um emprego bem remunerado em escritório não é lugar para amadores.
Isso é um problema real? Pode ser. Adam Smith descreve uma fábrica de alfinetes que
emprega dez especialistas para produzir 48 mil alfinetes por dia. Um único generalista, operando
sem equipamento especializado, “mal conseguiria, talvez, com sua melhor disposição, fazer um
alfinete por dia, e certamente não conseguiria fazer 20”. Ninguém esperaria um aumento de
produtividade de 4.800 vezes se os trabalhadores com conhecimento moderno passassem um
pouco menos tempo coordenando reuniões por email e um pouco mais concentrados nos
aspectos-chave de suas funções. Mas mesmo um aumento de duas vezes deveria ser levado a
sério.
O novo livro de Cal Newport, A World Without Email (Um mundo sem email), é abrasador
sobre esse ponto. Examinando estudos científicos de gerenciamento do início do século 20,
Newport defende a tese de que os industriais analisaram e consertaram seus processos inúteis um
século atrás. Os ganhos foram drásticos. Por exemplo: nas fábricas Pullman, perto de Chicago,
pessoas de vários departamentos entravam nas oficinas e perturbavam os metalúrgicos até
conseguirem o que queriam. Depois de uma reorganização do sistema, muitos funcionários foram
contratados como guardas de porta ou para planejar e agendar o trabalho. A produtividade
disparou.
Newport afirma que o trabalho de conhecimento está muito atrasado para uma reavaliação
semelhante. Com que frequência o trabalho em escritório é distribuído e priorizado por
importunação aleatória? Certas disciplinas, incluindo a produção de um jornal diário,
desenvolveram um fluxo de trabalho claro e que não depende de longas cadeias de email. Muito
trabalho de conhecimento, porém, ainda está na fase do “perambular e importunar”.
Newport afirma que os gerentes e administradores deveriam proteger os especialistas da
distração, e que podemos fazer muito melhor se repensarmos nossos processos a partir do zero.
Transformar o escritório em mais uma linha de montagem não parece divertido. Smith,
como se sabe, temia que a especialização simples e repetitiva levasse o trabalhador a se tornar
“tão idiota e ignorante quanto é possível uma criatura humana ser”. Em uma fábrica de alfinetes
do século 18 talvez, mas nem tanto para o trabalho do conhecimento do século 21.
Um trecho muito diferente de “A Riqueza das Nações” está mais próximo do objetivo: “Os
homens são muito mais inclinados a descobrir métodos mais fáceis e rápidos para alcançar
qualquer meta quando toda a atenção de suas mentes se dirige para aquele objetivo, do que
quando está dissipada”.
Ninguém está querendo a volta da fábrica de alfinetes. O trabalho de conhecimento
moderno não é nada parecido com fabricar alfinetes, e a variedade que decorre de uma
dependência hiperativa do email não é do tipo que nos permite florescer. Meu próprio ideal é o
que eu chamo de “multitarefas em câmera lenta”: ter diversos projetos em progresso, permitindo
que eles se fertilizem mutuamente. Mas fazer uma coisa de cada vez.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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