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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE HISTÓRIA

PATRIMÔNIO EM PERIGO! A RETÓRICA DA PERDA E OUTRAS POSSIBILIDADES


DE PATRIMÔNIO.

Disciplina: História e Patrimônio


Profa.: Juliana Assis do Nascimento
Graduando: Saulo Castilho Pereira
DRE: 113276556
Introdução
Neste ensaio, pretendo demonstrar como ocorre a relação entre a criação do
patrimônio nacional e a retórica da perda. Para tanto, será preciso colocar o que é cada
uma delas, ao mesmo tempo em que identificarei a maneira como estas se entrelaçam,
ou seja, como a preservação e a retórica da perda operaram de maneira
interdependente no processo de construção dos patrimônios nacionais. Por fim, irei
apontar o declínio da retórica da perda, na medida em que o conceito de patrimônio é
alargado pelas crises do regime de historicidade e as novas concepções de cultura, e
os novos desafios que surgem para a patrimonialização.

A nação, o patrimônio e o tempo histórico


A nação é uma invenção. O que começou ainda no século XVIII como uma ideia
de subversão1, como aponta Thiesse (2001), tornou-se o mote para projetos que
procuravam, através da ideia de nação, legitimar os estados nacionais e
consequentemente, as formas de poder. Para que o objetivo de criar uma identidade
nacional fosse possível, era preciso conectar o presente a um passado histórico,
mítico, do qual restariam objetos que são testemunhas materiais daquele tempo e que
são capazes de sintetizar, ou melhor, de materializar, criar uma imagem de nação.
Neste contexto surge o patrimônio, como um inventário destes objetos que
caracterizam uma determinada identidade nacional. Muito mais que inventariar, a
escolha destes determinados objetos inventou a nação. A seleção que define o que
fará parte do patrimônio a ser inventado se projeta mais para o futuro, ou seja, a nação
que será criada, e menos para o passado que supostamente estes objetos fazem parte.
O patrimônio nacional opera como uma metonímia da nação, ou como propõe
Gonçalves (2002), uma alegoria da nação. Faz parte de uma construção ficcional que
busca um objeto de desejo inalcançável: um passado intrinsecamente coerente, uma
realidade dotada de sentido que se projeta para o futuro. A exclusão, ou esquecimento,
se dá na maneira em que um determinado objeto é ou não parte da construção
narrativa do patrimônio. Um exemplo da dialética lembrança e esquecimento é o caso

1
Subversiva porque representava o terceiro estado francês.
1
do Brasil durante o segundo reinado, onde a nação era representada “pelo rei, a
natureza e seus belos naturais” (SCHWARCZ, 2014), ao passo que os negros
escravizados eram excluídos, esquecidos.
A forma de percepção temporal é um elemento fundamental para se
compreender a relação entre a preservação e a perda. Em oposição ao regime clássico
de tempo, onde o passado pode ser projetado diretamente no presente; o regime
moderno pensa o tempo como continuidade e se projeta para o futuro (KOSELLECK,
2006). O tempo mítico é aquele onde o patrimônio existiu integralmente, o presente é
tempo em que o patrimônio se encontra ameaçado e fragmentado, a preservação é,
portanto, a escolha dos objetos que dão sentido a uma narrativa construída para o
futuro (GONÇALVES, 2002), no sentido de evitar que eles se percam.

Do passado ao futuro, a retórica da perda


Essa concepção de tempo, na qual tudo se destina a destruição e
desaparecimento, é parte fundamental na construção do patrimônio nacional. Sendo o
patrimônio aquilo que deve ser preservado, resguardado da ação destruidora do tempo,
ele somente se sustenta dentro da concepção em que a passagem do tempo significa
também o inexorável desaparecimento das coisas. Em suma, o patrimônio é criado e
fundamentado no mesmo discurso da perda. A perda não é exógena ao discurso da
preservação, ela é parte dele e o legitima. Os objetos transformados em patrimônio são
assim recontextualizados, produzindo valores que são objetificados, transformando a
nação em uma realidade objetiva, ainda que fragmentada, através da retórica da perda
(GONÇALVES, 2002).
O exemplo brasileiro que Gonçalves coloca traz duas perspectivas diferentes de
articulações da retórica da perda: a de Rodrigo de Melo Franco de Andrade e de
Aloísio Magalhães, ambos à frente do Sphan/Iphan2. Para Rodrigo, o Sphan era
necessário para proteger o que restou do patrimônio cultural de sua destruição,
dispersão e evasão. Paradoxalmente, o intelectual também aponta que uma das
maiores ameaças ao patrimônio nacional está na ignorância da maioria da população,
2
Sphan - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que depois se tornou Iphan - Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
2
que desconhece o valor destes objetos. Para Aloísio, tal perda se dá na medida em
que a modernização, as novas tecnologias e os efeitos da reprodutibilidade técnica na
circulação de imagens levariam a uma homogeneização da cultura. Aloísio também
diverge de Rodrigo quanto à indiferença da população em relação ao patrimônio, para
ele, a causa desta indiferença se encontra nas políticas culturais que valorizam
somente os bens culturais das elites (GONÇALVES, 2002).

Outras percepções do tempo e o alargamento do conceito de patrimônio


Ao discutir sua reflexão sobre a retórica da perda, Gonçalves (2012) aponta a
questão do tempo como fundamental para repensar o conceito de patrimônio. O
deslocamento da percepção de tempo teria colocado no presente toda a valorização
que antes estava no futuro, o patrimônio seria a forma como o passado invade o
presente. Os estudos que consideram o tempo histórico como construído
historicamente também contribuíram para o declínio da retórica da perda no processo
de construção do patrimônio. Gonçalves assevera que a retórica da perda pode ser
percebida então como uma “modalidade entre outras de representação do patrimônio”
(GONÇALVES, 2012).
O alargamento do conceito de patrimônio é paralelo ao alargamento do conceito
de cultura pela antropologia. A cultura deve ser pensada como historicamente
construída, e as formas de apreensão da realidade social não podem ser deslocadas
da história. Outro ponto a se considerar é a maneira como “outros grupos lidam com o
tempo e como entendem as mudanças” (DE ALMEIDA, 2003), neste sentido, o caso do
Hune Kuĩ é exemplar (LIMA; KAXINAWA; MATOS; FERREIRA, 2014). O contato entre
o Iphan e os Hune Kuĩ obrigou à instituição a abrir a suas percepções acerca dos
conceitos de cultura e patrimônio. Assim, nem toda cultura pode ser considerada
coletiva, homogênea, destituída de individualidade, ela pode ser também forma de
diferenciação. Gonçalves propõe uma solução para o conceito de patrimônio:
considerá-lo de maneira ampliada, fora do espectro binário material-imaterial, como
sistemas simbólicos e sociais que operam uma “mediação sensível entre o passado, o
presente e o futuro” (GONÇALVES, 2015).

3
Conclusão
A questão do patrimônio é um campo de disputas e também de muitas
possibilidades. Se por um lado, foi a nação que institucionalizou a preservação do
patrimônio (FONSECA, 2009), como nos casos francês e brasileiro, a possibilidade de
reivindicação de um patrimônio por grupos além do estado também contribuiu com o
alargamento do conceito. Os processos de patrimonialização se complexificaram na
medida em que foi necessário considerar outras concepções de tempo, cultura, e
formas de conhecimento. A questão das diferentes formas de conhecimento é também
exemplar nas conversas com os Hune Kuĩ, para quem o conhecimento é apreendido
pelo corpo, diferente da concepção universalizante que relaciona a mente ao
conhecimento (LIMA; KAXINAWA; MATOS; FERREIRA, 2014). Outro aspecto
indispensável à questão do patrimônio é compreender qual o seu propósito. Serve ele a
uma política nacional? Identitária? Turística? Se ele está a serviço do Estado ou de
outros grupos da sociedade civil? Responder essas questões é algo indispensável
(GONÇALVES, 2012).
A retórica da perda foi parte fundamental no discurso que legitimou a construção
de um patrimônio nacional, tanto na primeira fase do Iphan com Rodrigo de Melo
Franco de Andrade, quanto na segunda, de Aloísio Magalhães. Todavia, o discurso da
perda deixou de ser o fundamento do patrimônio, e foi deslocado para uma modalidade
entre as muitas possíveis, na medida em que as crises das percepções do tempo, o
deslocamento do conceito de cultura pela antropologia e a própria prática da
patrimonialização, impuseram como necessidade o alargamento no conceito de
patrimônio. A complexidade de possibilidades da patrimonialização traz também a
urgência de se pensar em um chão comum do conceito de patrimônio, para além do
esquematismo binário (GONÇALVES, 2015). Além disso, essa forma ampliada do
conceito também estabeleceu como necessidade repensar as formas de atuação das
instituições, na medida em que elas se colocam, referenciando Gonçalves (2015),
como mediadoras na encruzilhada dos tempos.

4
Bibliografia
DE ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses indígenas: identidade e
cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Presidencia Da Republica Arquivo
Nacional, 2003.
FONSECA, Maria Cecília Londres. A construção do patrimônio: perspectiva histórica. O
patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil, v.
2, 2009.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do
patrimônio cultural no Brasil. Editora UFRJ, 2002.
___________. As transformações do patrimônio: da retórica da perda à reconstrução
permanente. TAMASO, I. e LIMA FILHO, M. Antropologia e patrimônio cultural:
trajetórias e conceitos. Brasília: ABA, p. 59-73, 2012.
___________. O mal-estar no patrimônio: identidade, tempo e destruição. Estudos
Históricos, v. 28, n. 55, p. 211-211, 2015
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2006.
LIMA, J. M; Kaxinawa, J. B. F.; MATOS, M. A.; FERREIRA, R. N. In: CUNHA, Manuela
Carneiro. Políticas culturais e povos indígenas: uma introdução.. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2014.
SCHWARCZ, L. K. M.. Nacionalidade e patrimônio. Revista do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Brasília, v. 34, p. 337-359, 2012.

__________. Lendo e agenciando imagens: o rei, a natureza e seus belos naturais.


Sociologia & Antropologia, v. 4, n. 2, p. 391, 2014.
THIESSE, Anne-Marie. Ficções criadoras: as identidades nacionais. Anos 90, v. 9, n.
15, 2001.

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