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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO


DEPARTAMENTO DE LETRAS

INGRID NASCIMENTO FERNANDES

O SISTEMA DE CASO DO YAATHÊ: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE FORMAL

Recife
2019
INGRID NASCIMENTO FERNANDES

O SISTEMA DE CASO DO YAATHÊ: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE FORMAL

Monografia apresentada aos Curso de


Bacharelado em Letras da Universidade
Federal de Pernambuco como requisito parcial
para obtenção do título de Bacharel em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Luisa Freitas

Recife
2019
2
FOLHA DE APROVAÇÃO

INGRID NASCIMENTO FERNANDES

O SISTEMA DE CASO DO YAATHÊ: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE FORMAL


Monografia apresentada ao curso de Bacharelado em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco como requisito parcial para obtenção do título de licenciatura em
Letras/Bacharelado.

Data: __/__/____

______________________________________
Profa. Dra. Maria Luisa Freitas

______________________________________
Prof. Dr. Rafael Nonato

______________________________________
Profa. Dra. Otávia Pinheiro Pedrosa Fernandes

3
Agradecimentos

Escrever os agradecimentos é um exercício interessante de repassar um instante da


vida. De repente, convertem-se as memórias em uma narrativa boa. Vou correr o risco óbvio
de deixar alguém importante de fora, ao insistir em utilizar a definitude de uma maceioense
sempre saudosa. Começo agradecendo a toda minha família. Sobretudo, à Luísa (voinha
Nena), Luciana (a mainha), Cláudio (o painho), Claudinho, JV e Gui (os irmãos) e tia Andréa
(a dinda). Sem vocês, nada em minha vida seria possível, nem sequer faria sentido. Este
trabalho é o concluir de algo, algo que não teria nem começado sem o campo aberto de
possibilidades que sempre me proporcionaram e sem que tivessem, sem qualquer vacilo,
acreditado e confiado em mim. Muito obrigada pelo cuidado e por todo apoio dado.
Aos amigos de Maceió, que permanecem na minha vida já há longos anos e com
quem sei que posso contar a qualquer momento: principalmente, à Malu (meu anjo desde os
tempos de Marista), Mari, Elisa e Ícaro (este de quem me aproximei este ano, conforme
fomos trocando boas ideias num processo de apoio mútuo).
Aos amigos que fiz na Paraíba, durante os anos em Campina Grande. Sobretudo à
Bárbara (amiga-irmã) e Maria Helena (amiga-mãe), muito obrigada pelo apoio afetivo e
pragmático que tenho continuamente recebido das duas. Sou também grata pelos nossos
reencontros, repletos de trocas e bons momentos.
Aos amigos que ganhei em Recife e que fizeram esses quatro anos aqui extremamente
significativos. André, este em quem achei um outro irmão mais novo. Doug, um amigo suave
de coração enorme, compartilhamos juntos muitas (des)aventuras. Júlia, cujos
enfrentamentos, acredito, me fizeram um pouco mais crítica. A esses três, que me ouviram
longamente (socorro), que me deram bons conselhos e que me acompanham/ajudam em
vários eventos da vida desde 2016. Glória, flor braba com quem andei por entre essas ruas e
altos. Bell, aprendemos juntas um pouco sobre a realidade indígena e compartilhamos as
primeiras experiências: obrigada por sempre me incluir. Ao Roberto, que além de se tornar
um marido acadêmico tornou-se também um grande amigo. Kaio, Danilo e Túlio, tornaram-
se amigos logo de cara, com eles troquei muitas ideias malucas e babaquices interessantes (e
ri bastante). Ana, a maior machadiana em linha reta, nos aproximamos de última hora, mas
já o suficiente pra tê-la no coração com carinho. Ao Lucas, que me ajudou em alguns
perrengues, com quem conversei bastante sobre a vida e aprendi, entre várias coisas, algumas
sobre computação. À Dona Sandra e ao Seu Hamilton, os pais pernambucanos que adotei e
que também me tomaram por filha.
4
À minha orientadora Malu. Não sei se por coincidência ou axé, os bons ventos nos
encaminharam a esse encontro pelo qual sou inteiramente grata. Através dela conheci a
linguística e as línguas indígenas e me senti extremamente instigada a me aventurar na
pesquisa científica. Gratidão também pela orientação atenta que contemplou não apenas a
pesquisa que culminou neste trabalho, mas a própria vida. À professora Stella, de quem sou
grande admiradora. À professora Fábia Fulni-ô, com quem tirei dúvidas a respeito do Yaathê:
muito obrigada pelas respostas pacientes. Aos professores Andrea Knöpfle, Marcelo Sibaldo
e Rafael Nonato, pesquisadores que me inspiram, que contribuíram com e deram muito mais
sentido à minha formação. Aos bons professores que tive durante esses quatro anos de Letras-
Bacharelado, aqueles que desempenham com capricho e amor o seu papel, a despeito de
condições, certas vezes, bem desfavoráveis.
À Betinha, primeira a me receber aqui em Recife. Como mãe me incluiu em seu lar,
a despeito do meu jeito mais recolhido de ser. Dona Lenira, seu Araken, Janine e João, família
sossegada, muita obrigada pelas prosas e comunhões (elas bem contrastaram com a
experiência soturna da refeição solitária).
Aos colegas de sanga que encontrei no CEBB-Várzea e que me ajudaram
enormemente num momento cheio de inconciliações e inquietações.
A todos (mencionados ou não) com quem compartilho/compartilhei esses
(des)encontros: meu muito obrigada!

Recife, 11 de novembro de 2019

5
Resumo

Este trabalho discorre sobre o Sistema de Caso da língua Yaathê. Descreve tal aspecto de sua
gramática com base na tipologia linguística de viés funcionalista (COMRIE, 1989 [1981],
DIXON, 1994) e, sobre ele, apresenta uma proposta preliminar de análise formal, com base
na primeira versão do Programa Minimalista (CHOMSKY, 2015 [1995]).
Concomitantemente à descrição, realiza-se a comparação, com foco no aspecto em questão,
com outras línguas também do Tronco Macro-Jê, a saber: Mebengokre (SILVA, 2001),
Bororo (NONATO, 2008) e Maxakalí (CAMPOS, 2009). Os dados do Yaathê que serviram
aos fins desta pesquisa foram acessados sobretudo na tese de doutoramento de Costa (1999)
e, depois, anotados morfologicamente no software FieldWorks Language Explorer (FLEx),
passo metodológico para implementação da pesquisa. Como se verá, Sistema de Caso diz
respeito aos alinhamentos morfossintáticos que ocorrem entre os argumentos nucleares das
sentenças (DIXON, 1994) e Caso, a uma propriedade que todo sintagma nominal
pronunciado deve trazer, tendo em vista a boa formação das sentenças na língua
(CHOMSKY, 1981). As línguas estudadas tendem a uma semelhante ergatividade. Propõe-
se que o Sistema de Caso do Yaathê, em específico, pode ser parcialmente capturado por um
sistema morfologicamente ergativo, nos termos de Duarte (2012), o qual checa três Casos
abstratos distintos.

Palavras-chave: Sistema de Caso; Yaathê; Macro-Jê; Tipologia Linguística; Programa


Minimalista.

6
Abstract

This monograph studies the Yaathê Case System. It describes such an aspect of its grammar
based on the functionalist approach of linguistic typology (COMRIE, 1989 [1981], DIXON,
1994) and presents a preliminary proposal of formal analysis, based on the first version of
the Minimalist Program (CHOMSKY, 2015 [1995]). At the same time a comparison is made,
focusing on this same aspect in question, with other languages also from the Macro-Je
linguistic stock, namely: Mebengokre (SILVA, 2001), Bororo (NONATO, 2008) and
Maxakalí (CAMPOS, 2009). The Yaathê data that served the purposes of this research were
accessed largely in Costa’s doctoral dissertation (1999) and then parsed morphologically in
the FieldWorks Language Explorer (FLEx) software, the methodological approach for
implementation of the research. Case System refers to the morphosyntactic alignments that
occur between the nuclear arguments of the sentences (Dixon, 1994) and Case is a feature
that every pronounced noun phrase must bring in order to construct a good sentence in the
language (CHOMSKY, 1981). The languages studied show a tendency to a similar ergativity.
The Yaathê Case System, in particular, is partially captured by a morphologically ergative
system (DUARTE, 2012), which checks three distinct abstract Cases.

Key-words: Case System; Yaathê; Macro-Je; Linguistic Typology; Minimalist Program.

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Lista de figuras

Figura 1 - Classificação dos verbos no FLEx 18


Figura 2 - Anotação de uma sentença 18
Figura 3 - Primitivos e alinhamentos Ergativo e Nominativo 22
Figura 4 - Respetivamente: Sistemas Acusativo, Ergativo e Cindido 23
Figura 5 - Gráfico do Percentual de línguas em cada Sistema de Caso 25
Figura 6 - Modelo-T segundo GB 30
Figura 7 - Estrutura arbórea da sintaxe 30
Figura 8 - Estrutura vP-VP 38
Figura 9 - Tipos de Caso 40
Figura 10 - Posições de checagem dos Casos não estruturais 41
Figura 11 - Checagem de Caso em língua morfologicamente ergativa 42
Figura 12 - Checagem de Caso em língua sintaticamente ergativa 44
Figura 13 - Voice Head 45

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Lista de tabelas

Tabela 1 - Valor absoluto e percentual de línguas em cada Sistema de Caso 24


Tabela 2 - Clíticos de pessoa em Yaathê 48
Tabela 3 - Alinhamento dos clíticos de terceira pessoa singular 51
Tabela 4 - Sistemas de Caso do Bororo, Maxakalí, Mebengokre e Yaathê 68

9
Lista de abreviaturas

1 primeira pessoa
2 segunda pessoa
3 terceira pessoa
A sujeito transitivo
ABS absolutivo
ACC acusativo
Adv advérbio
AG agentivo
AGR concordância
ANTPASS antipassivizador
AOR aoristo/perfeito
AUX auxiliar
CAUS causativo
COMP complementizador
CONJ conjunção
CRS estado atualmente relevante (currently relevant state)
DAT dativo
DEF definido
DIM diminutivo
ERG ergativo
EXPL expletivo
FOC foco
FP forma plena
FR forma reduzida
INAT inativo
IND indicativo
INST instrumental
LOC locativo
m masculino
M modo
MI modo irrealis
N negação
10
NEUT neutro
NOM nominativo
NOMN nominalizador
O objeto
OBL oblíquo
P posposição
PAS passivizador
PAT paciente
pl plural
POSS possessivo
PROSPEC aspecto prospectivo
PST passado
Q marcador de questão
REFL reflexivo
REL relativizador
s singular
S sujeito intransitivo
Sa sujeito inergativo
So sujeito inacusativo
Suf sufixo
T tempo
V verbo

11
Sumário

1. Introdução........................................................................................................................... 13

2. Metodologia ........................................................................................................................ 17

3. Como as Teorias de Gramática abordam Caso e Sistema de Caso? ............................. 19


3.1 Caso e Sistema de Caso segundo a Tipologia ..................................................................... 19
3.2 Caso e Sistema de Caso segundo a Teoria Gerativa ........................................................... 28
3.2.1 Teoria de Regência e Ligação ..................................................................................... 29
3.2.2 Programa Minimalista ................................................................................................. 32
3.2.2.1 A estrutura complexa vP-XP ....................................................................... 36
3.2.3 Tipologia de Caso segundo Woolford (2006) ............................................................. 39
3.2.4 Ergatividade Sintática vs. Ergatividade Morfológica segundo Duarte (2012) ............ 41
3.2.5 Causativas segundo Pylkkänen (2000) ........................................................................ 44

4. Sistema de Caso do Yaathê e de outras línguas Macro Jê .............................................. 45


4.1 Yaathê ............................................................................................................................ 46
4.2 Bororo ............................................................................................................................ 58
4.3 Maxakalí ......................................................................................................................... 61
4.4 Mebengokre.................................................................................................................... 64
4.5 Breves considerações ..................................................................................................... 67

5. Esboçando uma análise para o Sistema de Caso do Yaathê: algumas hipóteses .......... 69
5.1 Estrutura argumental ...................................................................................................... 69
5.2 Checagem de Caso ......................................................................................................... 72
5.3 Causativização................................................................................................................ 78
5.4 Ordem dos constituintes ................................................................................................. 79

6. Considerações finais ........................................................................................................... 81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 83

12
1. Introdução

Yaathê, que quer dizer ‘nossa língua’, é o falar ancestral dos Fulni-ô,
autodenominação que se traduz para ‘o que tem rio’ (SILVA, 2016). Esse povo se
concentrou próximo à margem esquerda do Rio Ipanema, afluente do Rio São Francisco,
numa região de passagem do agreste para o sertão, ao lado de Águas Belas, cidade
pernambucana circunscrita pelo território indígena Fulni-ô (SILVA, 2016). A sobrevivência
do idioma Yaathê, a despeito da devastação linguística causada pela colonização, sobretudo
no Nordeste, é constantemente associada à imersão do povo na aldeia do Ouricuri, o que
ocorre todos os anos durante três meses. Nesse período, a língua desempenha um papel
fundamental nos rituais e é utilizada majoritariamente em detrimento do português. Trata-se,
por outro lado, de uma língua voterna (comunicação pessoal1), pois sua manutenção pauta-
se também na passagem do conhecimento internalizado dos avós aos netos, enquanto seus
pais se ausentam para trabalhar. Segundo dados do Siasi/Sesai (2014)2, existem 4689
indígenas de etnia Fulni-ô. Não existem informações claras a respeito do número de falantes
de Yaathê, esta, que é uma língua isolada dentro de seu tronco linguístico, o Macro-Jê
(RODRIGUES, 1986), por não possuir línguas irmãs - pelo menos não com base em
semelhanças lexicais. Além disso, está também isolada geograficamente, isto é, foi o único
idioma ancestral que se manteve vivo (em uso) no Nordeste do Brasil3.
Esta pesquisa, portanto, toma por objeto o fenômeno de uma língua em uso, cuja
compreensão não pode ser menos relevante do que a compreensão de fenômenos de outras
línguas humanas costumeiramente pesquisadas, como o são as indo-europeias. Um idioma é
por si só traço sociocultural muito importante de um comunidade de falantes e estudá-lo é
entrar em contato com conhecimentos de imensurável valor, que nos remetem a saberes
ancestrais. Por outro lado, o estudo e descrição da gramática da língua é um contributo
determinante à sua própria manutenção, já que pode ser utilizado na elaboração de gramáticas
pedagógicas a serem aplicadas no ensino e estudo dessa língua pelo povo, no âmbito da
Educação Escolar Indígena (EEI), por exemplo.
Em sua tese de doutorado, Fábia Silva, linguista e Fulni-ô, fala sobre a importância
de se estudar uma língua em uso como o Yaathê:

1
Na ocasião da mesa sobre Línguas Indígenas, na V Semana de Letras da UFPE (2017), as professoras
Januacele Costa e Fábia Silva falaram, entre outras coisas, sobre o processo de manutenção do Yaathê.
2
Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Fulni-%C3%B4#O_ritual_do_Ouricuri.
3
As línguas indígenas faladas no Maranhão não são levadas em conta aqui. Isso porque esse estado está incluído
na Região Geopolítica da Amazônia.
13
O fato de a língua Yaathê constituir-se como uma língua viva, preservando
todas as funções que se acredita que uma língua precisa cumprir em uma
comunidade, é por si só merecedor de atenção, pois, como sabemos, na
região Nordeste, a maioria foi esmagada pelo processo colonizador,
perdendo todo ou parte do seu equipamento cultural de identificação étnica,
sendo a língua um fator muito importante dessa identificação. Por isso, uma
das características mais notáveis da situação dos índios Fulni-ô é a
sobrevivência da língua, uma vez que todas as outras línguas indígenas
faladas nessa parte do país já são extintas (Cf. OLIVEIRA Jr., M.; COSTA,
J. F. e FULNI-Ô F., 2014 apud SILVA, 2016, p. 4).

Além disso, os diferentes estudos que tenham por foco aspectos da gramática dessa
língua inevitavelmente se inscrevem dentro de um projeto que procura acurar as linhas de
parentesco entre ela e outras línguas ameríndias, especificamente aquelas do Macro-Jê. Isso
porque os resultados de tais estudos servem à compreensão cada vez mais refinada do idioma
e podem ser tomados por abordagens comparativa e filogenética de estudos linguísticos. A
pesquisa aqui proposta não foge a essa regra: a ideia é enriquecer as informações sobre o
Yaathê e refinar a descrição e análise sobre o seu Sistema de Caso, uma propriedade de
gramática altamente determinante à organização interna de qualquer língua. De posse dessas
informações, contrapô-las às informações já registradas de outras línguas, pelo viés
comparativo, de modo a possivelmente, tornar mais precisa a constatação de suas afinidades
com outras línguas do tronco.
O termo Macro-Jê foi inicialmente proposto por Mason (1950 apud RODRIGUES,
1999) e recobria línguas relativas à família linguística Jê, faladas no Brasil. Constantemente
reformulada, uma hipótese consensualmente adotada para esse tronco é aquela pensada por
Rodrigues (1986), segundo o quesito de semelhança lexical. Rodrigues (1999) retoma sua
hipótese e reflete sobre outras propriedades prototípicas dessas línguas, entre as quais estão
características morfológicas e sintáticas, como marcação de concordância no verbo, ordem
dos constituintes em declarativas, ergatividade, mudança de valência, entre outras. Não
estuda esses aspectos como possíveis fontes de refinamento genético, mas antes como forma
de caracterizá-las prototipicamente apenas, apontando a pertinência dessas características
para as línguas incluídas no tronco.
Rodrigues (1999) relembra ainda a divisão do tronco em Macro-Jê Central, Ocidental
e Oriental, subgrupos geográficos em que são distribuídas suas famílias: Jê, Kamakã,
Maxakalí, Krenak, Puri, Karirí, Yaathê, Karajá, Ofayé, Bororo, Guató e Rikbaktsa. Das
línguas aqui estudadas, o Maxakalí (Família Maxakalí) e o Yaathê pertencem ao Macro-Jê
Oriental, embora aquele, distanciando-se deste, seja falado no Leste de Minas, Norte do
Espírito Santo e Sudeste da Bahia. O Bororo (Família Bororo) pertence ao Macro-Jê
14
Ocidental, enquanto o Mebengokre (Família Jê, Ramo Setentrional) encontra-se no grupo
Central. Sendo assim, a escolha das línguas a serem comparadas pauta-se em seu
espalhamento geográfico, de modo a capturar representativamente suas propriedades
compartilhadas, levando em conta os contatos com outros agrupamentos linguísticos,
decorrentes de sua separação.
A propriedade aqui em estudo é o sistema de organização dos argumentos nucleares
da sentença. Pretendeu-se, no entanto, pensá-lo também em termos mais abstratos de
checagem de Caso, ou seja, buscando-se apoio na Teoria Gerativa (CHOMSKY, 2015
[1995]). Sistema de Caso, deve ser dito, é um aspecto da gramática do Yaathê nunca estudado
sob o viés formal-gerativo. Ao cabo, devido às pequenas variações notadas entre o Yaathê e
demais línguas contrapostas, uma análise (micro)paramétrica fica como sugestão, revelando-
se questão pertinente a pesquisas futuras. Acredita-se que a profundidade temporal que separa
essas línguas é consideravelmente maior que aquela que separa línguas do tronco Tupi
(RODRIGUES, 1999). Assim, a comparação fonológica, sozinha, não se mostra eficaz na
comprovação de plausíveis filogenias, uma vez que traços fonológicos não resistem à
profundidade temporal e estão sujeitos a efeitos secundários, como os de contato linguístico.
Nesse sentido, parâmetros sintáticos parecem alternativa interessante às abordagens
exclusivamente fonológicas e lexicais (KAZAKOV et al., 2018).
Algumas questões específicas nortearam o desenvolvimento deste trabalho, de modo
a se chegar a uma análise pertinente: (i) Quais os princípios que regulam o Sistema de Caso
do Yaathê, isto é, qual o modelo que melhor explica as checagens de Caso nessa língua? (ii)
Quais núcleos são capazes de checar Caso e em que estruturas se inserem, segundo a proposta
de Woolford (2006)? (iii) Quais são os tipos de Casos abstratos checados em Yaathê? E, por
fim, (iv) o modelo teórico proposto é pertinente às demais línguas em estudo? Ou, em outros
termos, as línguas estudadas podem ser reunidas em uma mesmo tipo?
Tais questões foram parcialmente respondidas através de certos passos
metodológicos: (i) o enriquecimento de uma base de dados no FLEx, construída a partir de
elementos lexicais e sentenciais encontrados na tese de Costa (1999); (ii) estudo que procurou
acurar a descrição do sistema de Caso do Yaathe, com apoio na tipologia linguística de viés
funcionalista (iii) comparação entre os Sistemas de Caso do Yaathê e das demais línguas
Macro-Jê escolhidas.
Ao fim, constatou-se que as línguas tendem todas à ergatividade. As línguas Yaathê,
Bororo e Maxakalí possuem um sistema ergativo-ativo, enquanto o Mebengokre é
parcialmente ergativo-absolutivo. Em termos de suas checagens, acredita-se que o Yaathê
15
aproxime-se mais do Maxakalí, pois, assim como ele, checa três Casos distintos, o ergativo,
o nominativo e acusativo, e possui um sistema ergativo-ativo tripartido.
Este trabalho está organizado da seguinte maneira: a segunda seção discorre sobre a
metodologia, com foco no método de anotação das sentenças em Yaathê. A terceira seção
discute os pressupostos teóricos que serviram de base à realização da pesquisa e procura
responder à questão “Como a tipologia linguística e a teoria gerativa abordaram/abordam as
ideias de Caso e Sistema de Caso?” A seção 4 revê as descrições e análises feitas sobre os
Sistemas de Caso das línguas Yaathê (COSTA, 1999), Bororo (NONATO, 2008), Maxakalí
(CAMPOS 2009) e Mebengokre (SILVA, 2001) e detém-se, sobretudo, na língua Yaathê,
tendo em vista uma atualização de sua descrição. Ao fim, faz-se considerações sobre os
pontos de intersecção e divergência entre os sistemas das línguas. A seção 5 esboça uma
análise do sistema de checagem de Caso para o Yaathê e traz à luz algumas hipóteses.

16
2. Metodologia

A pesquisa foi, primeiramente, implementada através da anotação dos dados


disponíveis na tese de Costa (1999). A anotação consiste na separação dos componentes
morfossintáticos das sentenças, uma espécie de segmentação em diferentes níveis. Os
elementos são separados em morfemas, aos quais correspondem uma glossa específica, uma
determinada informação gramatical, uma dada categoria e a tradução/equivalência na
metalinguagem utilizada, o português. A base de dados foi alocada no software FieldWorks
Language Explorer (FLEx), disponibilizado pelo Summer Institute of Linguistics (SIL), que
faz a segmentação de forma automática depois da devida alimentação com informações da
língua. Isso facilita a busca por construções específicas, sobretudo quando se trabalha com
uma grande quantidade de dados.
Duas interfaces foram suficientes para o trabalho em questão: ‘Léxico’ e ‘Textos e
Palavras’. Aquele foi enriquecido com lexemas (raízes, morfemas, clíticos, partículas etc.),
os quais correspondem a entradas lexicais. Cada entrada possui informações como: forma do
lexema, tipo de morfema, glossa, definição, variantes, categoria, entre muitas outras. Estas
citadas foram as que, normalmente, procurou-se preencher. O Léxico alcançou um total de
867 entradas.
A segunda interface foi enriquecida com sentenças e suas respectivas traduções;
geralmente sentenças simples contendo apenas os argumentos nucleares, sentenças com
advérbios, sentenças relativas, sentenças subordinadas e coordenadas. Alimentando o FLEx
nessa ordem, quando deu-se entrada com as sentenças elas já foram sendo segmentadas quase
automaticamente, precisando de uma natural revisão do usuário e de sua atenção para
observar as variações, os morfemas que não foram segmentados e realizar o restante do
trabalho artesanalmente. 674 sentenças foram (total ou parcialmente) anotadas.
A título de exemplo a informação gramatical dos verbos variou entre transitivo e
intransitivo. Em Grammar Notes especificou-se os intransitivos em ne-verbs (inergativos) e
inacusativos apoiando-se no trabalho de descrição de Costa (1999). Eles somaram juntos 32
entradas (sem contar as variantes), as quais apareceram em 119 sentenças.

17
Figura 1 - Classificação dos verbos no FLEx.

Fonte: autoria nossa.

O segundo momento constituiu o processo de descrição do Sistema de Caso da língua,


a partir das ferramentas da tipologia-funcional. Buscou-se sentenças simples (transitivas,
intransitivas ativas e estativas), causativas, coordenadas, relativas e sentenças com advérbios
que pudessem caracterizar seguramente o sistema da língua, em termos morfológicos e
sintáticos. Depois, de posse dessa descrição, comparou-se àquela feita por Costa (1999). Os
resultados encontram-se na seção 4.

Figura 2 - Anotação de uma sentença.

Fonte: autoria nossa.

18
3. Como as Teorias de Gramática abordam Caso e Sistema de Caso?

Nesta seção revisita-se os conceitos de Caso e Sistema de Caso, nos termos da


Tipologia Linguística (COMRIE, 1989 [1981], DIXON, 1994) e da Teoria Gerativa
(CHOMSKY, 1981, 2015 [1995]). Faz-se apontamentos a respeito das mutações sofridas por
certos conceitos, partindo-se da Teoria de Regência e Ligação, para se chegar ao Programa
Minimalista. Isso porque a análise da língua em foco (seção 5), o Yaathê, é feita nas bases
deste último.

3.1. Caso e Sistema de Caso segundo a Tipologia

Tradicionalmente, caso foi compreendido em termos semânticos, sintáticos e até


pragmáticos, de modo a demarcar certo papel dado a um determinado sintagma nominal
(COMRIE, 1989). Nessa perspectiva, caso pode ser observado através de morfologia, em
línguas como o latim, que apresentam morfemas explícitos para a atribuição de funções
sintáticas/semânticas aos nomes: o locativo indica localização, o ablativo, por seu turno,
expressa movimento, enquanto o nominativo, a função de sujeito, e assim por diante.
Contudo, como se perceberá na seção descritiva, em línguas que não apresentam marcação
morfológica de caso, ele é observado através de epifenômenos como a ordem dos
constituintes ou concordância verbal. O português é um exemplo de língua nominativo-
acusativo que, no entanto, não possui marcação morfológica de caso - exceto talvez por um
resquício do latim em seu paradigma pronominal, que continua (com boas ressalvas)
distinguindo nominativo-acusativo-oblíquo. A discussão feita mais à frente esclarece melhor
o que é um sistema nominativo-acusativo. Por ora, observe-se apenas:

(1) O homem ama a mulher. (4) *A mulher o homem amou.


(2) A mulher ama o homem. (5) *A mulher amar o homem.
(3) O homem veio aqui. (6) *A mulher o homem atingir.

É automaticamente evidente para um falante nativo da língua que, tanto em (1) como
em (3), o homem é o sujeito da sentença. Assim como está claro que a mulher em (1) é o objeto
da sentença, mas em (2) passa a ser o sujeito, enquanto o homem passa a ser objeto. Não há,
nos sintagmas nominais, uma marca explícita de caso e a função sintática dos argumentos é
indicada pela sua posição na sentença (sujeito é elemento pré-verbal e objeto, pós-verbal) e
19
pela concordância (o verbo concorda com o sujeito e não, com o objeto). Demais, em sentenças
intransitivas, o sujeito permanece em concordância com o verbo e em posição pré-verbal4, o
que possivelmente indica a sua função sintática. A agramaticalidade de (4), (5) e (6) corrobora
as asserções, visto que em uma sentença de ordem não canônica (desprovida de certa prosódia),
as funções sintáticas dos argumentos não estão claras; o mesmo ocorre na ausência de flexão
verbal.
Conforme Comrie (1989), há marcações de caso que extrapolam essas relações (de base
semântica, sintática e pragmática) e que parecem ser aplicadas tendo em vista uma função
específica em “circunstâncias limitadas” (COMRIE, 1989, p. 124). Segundo o autor, a função
do Sistema de Caso estaria relacionada à distinção primordial entre sujeito transitivo e objeto,
explicando por isso a predominância dos sistemas ergativo e nominativo entre as línguas do
mundo, os quais, o leitor perceberá, fazem essa distinção de forma mais acentuada. Sendo
assim, a organização entre os argumentos mais elementares da sentença é um fenômeno
linguístico geral, percebido através da observação de um grande contingente de línguas e que
não teria sido notado apenas pelo estudo de uma língua abstratamente (COMRIE, 1989).
Nessa perspectiva tipológico-funcional a descrição do Sistema de Caso está centrada
na identificação dos alinhamentos que ocorrem entre os argumentos verbais conforme eles são
codificados em termos de caso. Os tais argumentos, entendidos como primitivos, são, em suma,
objeto (O), sujeito transitivo (A) e sujeito intransitivo (S). Desse modo, as línguas poderiam
ser tipologizadas a partir de, ao menos, cinco combinações logicamente5 possíveis,
pressupondo que elas tratam tais primitivos de forma mais ou menos homogênea.

(7) [A S] [O] (10) [A] [S] [O]


(8) A [S O] (11) [A O] [S]
(9) [A S O]

(7) refere-se a um sistema nominativo-acusativo e (8), a um sistema ergativo-


absolutivo, os dois tipos mais comuns: 27,37% e 16,84%, respectivamente, das 190 línguas

4
Sabe-se que isso não é categórico, dado que sujeitos de certos verbos intransitivos (inacusativos) podem aparecer
em posição pós-verbal, como em Chegaram as cartas. Demais, mesmo a concordância entre esses verbos e o
sujeito não ocorre de forma sistemática e homogênea. Chegou as cartas é igualmente aceitável.
5
Para um conjunto de elementos C = {A, O, S}, há o seu conjunto das partes P(C), contendo todas os subconjuntos
possíveis a partir dos elementos de C:
P(C) = {∅, {A}, {O}, {S}, {A, S}, {A, O}, {S, O}, {A, S O}}

20
elencadas em termos de Sistema de Caso, no WALS6. (9) representa o tipo neutro, 51,58%
entre essas mesmas línguas7. (10) representa o tipo tripartite, 2,11% das línguas - uma espécie
de combinação entre os tipos acusativo e ergativo, cf. argumenta Comrie (1989). Não há, nos
dados acessados, registros sobre línguas que se organizam de acordo com (11), o que aponta
sua ausência como possível sistema, manifestado apenas em casos de mudança (COMRIE,
1989). Além disso, (11) é ineficiente em termos funcionais, uma vez que não faz a distinção
mais necessária, aquela entre objeto e sujeito transitivo (COMRIE, 1989), o que (7) e (8) fazem
de forma clara.
Na prática, os tipos de sistemas não são estritamente aqueles logicamente possíveis (7-
11). Exemplifica-se aqui cada um dos tipos observados empiricamente nas línguas do mundo
em conformidade com Comrie (1989, 2013) e Dixon (1994).
Uma língua possui um sistema neutro se A, O e S, isto é, os argumentos de verbos
transitivos e intransitivos, não forem diferenciados morfologicamente através de marcas que
indiquem explicitamente suas funções sintáticas. Um exemplo clássico é o mandarim, língua
isolante:

(12) Mandarim (THOMPSON, 1981, p. 20 apud COMRIE, 2013)

a. rén lái le b. zhāngsān mà lĭsì le ma


person come CRS Zhangsan scold Lisi CRS Q
‘The person has come.’ ‘Did Zhangsan scold Lisi?’

Uma língua será nominativo-acusativa, quando de modo generalizável A e S receberem


o mesmo caso (ou o mesmo tratamento gramatical), o nominativo, enquanto ao O é atribuído
o acusativo. Em línguas desse tipo, costumeiramente, o nominativo é o caso menos marcado
(o latim, por exemplo), enquanto é mais raro o nominativo marcado8 (COMRIE, 2013) (cf.

6
Fonte: https://wals.info/chapter/98.
7
“[A]s a system, it is, of course, widespread in the languages of the world but most languages with this system
have other means, such as verb agreement or word order, to indicate which noun phrase is A and which is P in
the transitive construction.” (COMRIE, 1989, p. 125). Assim, no limite, o português, uma língua nominativo-
acusativa, seria uma língua neutra, tendo em vista a ausência de marcas morfológicas de caso. As línguas neutras
são muitas vezes línguas nominativo-acusativas ou ergativo-absolutivas, quando observadas outras estruturas e
fenômenos em seu interior. O que leva a se considerar que tal número de neutras distribui-se consideravelmente
em nominativo-acusativas e ergativo-absolutivas.
8
Esse fenômeno é captado pelo 38º Universal de Greenberg: “where there is a case system, the only case which
ever has zero allomorphs is the one which includes among its meanings that of the subject of the intransitive
verb.” (COMRIE, 1989, p. 126). Se S é o não marcado, no sistema nominativo, A será não marcado (ao se alinhar
a S), enquanto que no sistema ergativo, O será não marcado (pois, nesse sistema, ele que se alinha a S).

21
tabela 1). O japonês, língua nominativo-acusativa, possui marca explícita para ambos os casos
nucleares:

(13) Japonês (WALS9)


a. taroo ga tui ta b. taroo ga ziroo o mi ta
Taro NOM arrive PST Taro NOM Jiro ACC see PST
‘Taro arrived’ ‘Taro saw Jiro’

Os sintagmas nominais que assumem a função de sujeito são acompanhados pela


partícula /ga/ (Taroo ga), a despeito de serem sujeitos de verbo transitivo ou intransitivo. Por
outro lado, o sintagma nominal na função de objeto é seguido pelo /o/, responsável pela
marcação do acusativo (Ziroo o).
Por outro lado, uma língua será ergativo-absolutiva, quando S e O forem codificados
igualmente, através do absolutivo, diferenciando-se de A, ao qual será atribuído o ergativo
(normalmente, o caso mais marcado nesse tipo de sistema). Vejamos o exemplo do Hunzib,
pertencente à família de línguas do Nordeste do Cáucaso, no ramo Tsezic:

(14) Hunzib (VAN DEN BERG, 1995, p. 122 apud COMRIE, 2013)

a. kid y-ut'-ur b. oždi-l kid hehe-r


girl-ø CL2-sleep-PST boy-ERG girl-ø hit-PST
‘The girl slept.’ ‘The boy hit the girl.’

A imagem abaixo sintetiza os sistemas ergativo-absolutivo e o nominativo-acusativo e


mostra os alinhamentos entre os primitivos A, S e O:

Figura 3 - Primitivos e alinhamentos Ergativo e Nominativo.

Fonte: adaptado de Dixon (1994)

9
Fonte: https://wals.info/valuesets/98A-jpn.

22
Há ainda a possibilidade de um sistema linguístico manifestar uma cisão em seu
Sistema de Caso, desde que os sujeitos de certos verbos intransitivos comportam-se
semelhantemente ao objeto de transitivos, enquanto sujeitos de outros verbos intransitivos
comportam-se semelhantemente aos sujeitos transitivos, devido à influência de fatores sintático
e/ou semânticos. Em um sistema do tipo ativo-inativo, por exemplo, os predicados verbais são
caracterizados pelo traço semântico de atividade e seu sujeito, portanto, será mais agentivo
(Sa), marcado assim como A - alinhamento [A Sa] -, ou são caracterizados pelo traço semântico
de inatividade e seu sujeito será do tipo mais afetado (So), marcado assim como O -
alinhamento [O So]. Cf. os dados do WALS, 2,1% das línguas registradas possuem o sistema
ativo-inativo. Veja-se o exemplo do georgiano, língua do tipo cindido:

(15) Georgiano (HARRIS, 1981, p. 40 apud COMRIE, 2013)


a. vaxt’ang-i ekim-i iqo
Vakhtang-PA.So doctor-PAT be.AOR.3SG
‘Vakhtang was a doctor.’

b. nino-m daamtknara
Nino-AGT.Sa yawn.AOR.3s
‘Nino yawned.’

c. nino-m ačvena surat-eb-i gia-s


Nino-AGT.A show.AOR.3s>3s>3s picture-PL-PAT.O Gia-DAT
‘Nino showed the pictures to Gia.’

Assim, um sistema com cisão nos intransitivos, em comparação aos sistemas


meramente acusativo e ergativo, é sintetizado na imagem abaixo:

Figura 4 - Respetivamente: Sistemas Acusativo, Ergativo e Cindido

Fonte: Adaptado de Dixon (1994).

23
Um sistema tripartite, por fim, seria um sistema em que A, S e O são codificados
através de formas diferentes entre si. O WALS aponta que 2,1% das línguas registradas
possuem um alinhamento tripartite. Veja-se os exemplos do hindi, língua indo-ariana:

(16) Hindi (MCGREGOR, 1977 apud COMRIE, 2013)


a. laRkaa kal aay-aa b. laRke ne laRkii ko dekh-aa
boy-ø yesterday come.AOR-SG.M boy.OBL ERG girl ACC see-SG.M
‘The boy came yesterday.’ ‘The boy saw the girl.’

Em (5a) o sujeito de verbo intransitivo não explicita marca, enquanto em (5b), o sujeito
transitivo é acompanhado por um elemento /ne/, que marca ergatividade, e também por uma
marca de caso oblíquo - reforçando a diferenciação; o objeto é acompanhado pela posposição
/ko/, que marca o acusativo.
A tabela abaixo resume os dados retirados no WALS quanto à distribuição dos tipos de
Sistema de Caso entre 190 línguas registradas:

Tabela 1 - Valor absoluto e percentual de línguas em cada Sistema de Caso.


Sistema N %
Neutro 98 51,58

Nominativo-acusativo (padrão) 46 24,21


Nominativo-acusativo (nominativo marcado) 6 3,16
Ergativo-absolutivo 32 16,84
Tripartite 4 2,105
Ativo-inativo 4 2,105
Total: 190 100,00
Fonte: autoria nossa com base nos dados retirados do WALS, https://wals.info/chapter/98.

24
Figura 5 - Gráfico do Percentual de línguas em cada Sistema de Caso.

Fonte: autoria nossa com base nos dados retirados do WALS, https://wals.info/chapter/98.

Na forma como os argumentos são codificados estão implícitos certos propósitos


sintáticos, os quais podem ser observados na relação entre sentenças coordenadas ou em
construções (anti)passivizadas, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, as línguas podem
apresentar um alinhamento no nível da morfologia e um outro no nível da sintaxe, de modo
que através de um não se pode necessariamente prever o outro. Sobre isso, Comrie (1989)
observa:

[I]t is misleading to classify a language as being either ergative or not, rather


one must ask: to what extent, and in what particular constructions is the
language ergative, i.e., where does its syntax operates on an ergative-
absolutive basis. (p. 114)

Desse modo, torna-se igualmente interessante (mais, importante) estudar como as


línguas comportam-se no nível da sintaxe, em termos dos alinhamentos entre os argumentos,
para melhor caracterizá-las tipologicamente, ultrapassando mesmo o nível dos alinhamentos
devidos à morfologia de caso. Apontando-se, inclusive, quais são os tipos de cruzamentos de
tipos de sistemas que elas empreendem. Mas veja-se, por ora, quais as supostas implicações
supramencionadas, para a sintaxe, advindas dos alinhamentos arrolados acima.
Tome o contexto em que duas sentenças coordenadas, uma transitiva e a seguinte,
intransitiva, compartilham um argumento correferente e ele é omitido na sentença intransitiva.

25
Numa língua do tipo nominativo-acusativo, como o é o português, sabe-se que os sujeitos
transitivo e intransitivo, da primeira e segunda sentenças respectivamente são os mesmos. E
essa intuição de correferência, parece, independe da aparição morfológica de caso já que, nessa
língua, o alinhamento é observado pela concordância com o verbo.

(17) O homem amou a mulher.


(18) O homem veio aqui.
(19) A mulher veio aqui.
(20) O homem amou a mulher e veio aqui.

(20) é antes o resultado da coordenação entre (17) e (18) e dificilmente o falante de


português a interpreta como coordenação entre (17) e (19). Numa língua que expressa esse tipo
de comportamento, cf. Comrie (1989), duas restrições são colocadas: (i) semanticamente, os
dois SNs devem ser correferentes; (ii) sintaticamente, os dois SNs devem ser A e S.
Em contrapartida, numa língua ergativo-absolutiva como o Dyirbal, é possível que uma
sentença como aquela em (20) seja resultado da coordenação entre aquelas de (17) e (19). O
sujeito omitido na sentença intransitiva é interpretado como como objeto da sentença transitiva
anterior:

Dyirbal (COMRIE, 1989, p. 113)


(21) balan dʸugumbil baŋgul yaraŋgu balgan
woman-ABS man-ERG hit
‘The man hit the woman’

(22) bayi yara baninʸu


man-ABS came-here
‘The man came here’

(22) balan dʸugumbil baninʸu


woman-ABS came-here
‘The woman came here’

26
(23) balan dʸugumbil baŋgul yaraŋgu balgan, baninʸu
woman-ABS man-ERG hit came-here
(= (21) + (22))
‘The man hit the woman, and the woman came here’

Nessa língua o segundo requerimento se converte em: (ii) os SNs devem ser O e S. É
possível, no entanto, que uma língua ergativo-absolutiva comporte-se tal como uma nominativa
em contextos de coordenação entre transitiva e intransitiva que compartilham SNs
correferentes (e vice-versa).
As línguas apresentam diferentes estratégias morfossintáticas de codificação dos
mesmos papéis semânticos, i.e., elas possuem, muitas vezes, ao menos duas diferentes vozes e,
nota-se, comportamentos mais ou menos sistemáticos quanto a essas estruturas, assim como no
caso das coordenadas. Línguas nominativo-acusativas costumam recorrer às passivas, estrutura
em que objeto (argumento acusativo) é convertido em sujeito (nominativo) e sujeito passa a ser
um adjunto, no caso do português, preposicionado; os argumentos não sofrem modificações
quanto aos papéis temáticos:

(24) A mulher foi amada pelo homem.


(25) A mulher foi amada pelo homem e veio aqui.

Além disso, nesse exemplo, a mulher passa a ser o sintagma nominal correferente entre
as duas sentenças, isto é, trata-se do sujeito intransitivo da primeira e segunda sentenças. A
leitura de (24) se assemelha àquela em (23), na voz ativa de uma língua ergativa como o
Dyirbal. Esta se utiliza, por outro lado, de antipassivas, estrutura em que o sujeito transitivo
(caso ergativo) passa a ser um sujeito intransitivo (absolutivo) e o objeto passa a ser o elemento
oblíquo, um adjunto.

Dyirbal (COMRIE, p. 115-116)


(26) bayi yara bagun dʸugumbilgu balgalŋanʸu
man-ABS woman-DAT hit-ANTPASS
‘The man hit the woman’

27
(27) bayi yara baninʸu, bagun dʸugumbilgu balgalŋanʸu
man-ABS came-here, woman-DAT hit-ANTPASS
‘The man came here and (he) hit the woman’

Da junção entre (22) e (26) resulta (27), uma coordenação entre sentenças intransitivas,
em que o elemento correferenciado é sujeito das duas sentenças, numa estrutura que se
assemelha àquela em (20), uma coordenada de vozes ativas numa língua nominativa. A ordem,
contudo, deve mudar, a intransitiva ativa vem antes da antipassiva, o que não acontece em (25),
em que a passiva aparece antes da intransitiva ativa.
Além das (anti)passivas e coordenadas, estruturas de controle e relativas são formas
pertinentes de diferenciar línguas em sintática ou morfologicamente ergativas (DUARTE,
2012). Essa diferenciação, inclusive, parece igualmente pertinente para uma análise de
checagem de Caso. Recupera-se tais noções nas seções 4.1 e 5, no processo de descrição e
análise do Yaathê.

3.2. Caso e Sistema de Caso segundo a Teoria Gerativa

O grau de compreensão que se obtém a respeito de uma língua e, por conseguinte, de


sua gramática (ou de certo aspecto de sua gramática) dependerá do nível de adequação a que
se propõe o empreendimento científico. Além disso, a compreensão de dado aspecto em certo
nível deve pressupor a sua compreensão no interior de outro(s) nível(is) a ele anterior(es). Nos
termos de Chomsky (1965, 1981), um nível de adequação observacional se detém na
catalogação das sentenças possíveis (aceitáveis, gramaticais?) na língua e se situa no início da
pesquisa linguística. Esse nível desconsidera os mecanismos que tornam (im)possíveis certas
construção numa dada língua. Este último, por assim dizer, é um trabalho situado no domínio
da adequação descritiva, quando procura-se descrever “(...) não só os dados, mas o sistema
gramatical que gera os dados e as relações entre eles, constituindo-se num modelo abstrato da
competência do falante nativo.” (GUIMARÃES, 2017, p. 81). No nível de adequação descritiva
tenciona-se abarcar os mecanismos/propriedades estruturais que prevêem a (im)possibilidade
dos dados catalogados no momento de observação. Um nível de adequação explicativa, por
seu turno, preocupa-se com compreender porque o falante utiliza-se de certo conjunto de
mecanismos, negando um outro conjunto que seria também possível frente à experiência

28
linguística. A adequação explicativa é, assim, um dos pontos centrais10 da teoria gerativa, visto
que ela deseja, entre outras coisas, entender o que está por trás do processo de aquisição, ao
mesmo tempo que explica a possibilidade de variação entre as línguas.
Tendo-se essas noções em mente, pode-se objetivar a compreensão de Caso
abstratamente, em nível de adequação descritiva, a partir dos pressupostos e postulados da
teoria gerativa, que nos mune de uma arquitetura dotada de propriedades e mecanismos que
apontam, desde já, para um nível de adequação explicativa. Ao menos num caminho entre os
níveis de adequação descritiva e explicativa, deve-se chegar a um sistema que descreva o
sistema de checagem de Caso da língua, capaz de prever a (a)gramaticalidade de dados
anteriormente catalogados. Esse nível de adequação, na presente pesquisa, é buscado para a
língua Yaathê, tendo em vista a formulação de uma estrutura abstrata para o Sistema de Caso
que torne possíveis os dados arrolados.

3.2.1. Teoria de Regência e Ligação

Por que todos os seres humanos adquirem língua, a despeito da forma


desorganizada/assistemática com que a ela são expostos, desde os primeiros anos de vida?
Sabe-se que, salvo raras exceções (como casos de problemas cognitivos severos que retardam
ou inibem a aquisição), aproximadamente aos quatro anos de idade todos nós já somos capazes
de usar a língua materna com precisão, sem que para isso tenhamos recebido qualquer instrução
formal. Esse conhecimento de língua internalizado, a que chamaremos Competência (ou
Língua-I), é conformado no processo de aquisição, mas o fato de essa conformação se dar de
forma tão generalizada e homogênea entre os seres humanos, seja qual for sua origem e o tipo
de sua língua materna, sugere a existência de algo apriorístico que, de certo modo, possibilita
que dominemos com tamanha facilidade e tão prematuramente uma gramática. Essas seriam
evidências de que a Faculdade da Linguagem (Language Faculty - LF) é uma capacidade inata
ao homem e a Gramática Universal (Universal Grammar - UG), uma teoria do seu estado
primeiro cujos princípios abstratos todas as línguas possuem, que, no entanto, são realizados
de formas variadas entre elas - e essas variações são, em certos aspectos, predizíveis pela
própria natureza da UG (CHOMSKY, 1981).

10
Não se envereda, aqui, na questão da adequação em nível supraexplicativo (GUIMARÃES, 2017), com a qual
bastante se compromete atualmente o Programa Minimalista e outras vertentes da Biolinguística, a exemplo da
Hipótese da Integração. O nível de adequação supraexplicativa compreende os níveis de adequação
neurofisiológica e evolutiva.

29
A Teoria de Princípios e Parâmetros (Principles and Parameters - P&P), arquitetura da
Teoria de Regência e Ligação (Government and Binding - GB), proposta por Chomsky em
1981, capta os aspectos universais da linguagem humana, os seus Princípios, e suas variações
predizíveis, os Parâmetros (que são especificados pela experiência). Uma sentença gerada pode
ser representada em diferentes interfaces da gramática, que são fases pelas quais ela passa, num
processo de formação, em que vai se modificando derivacionalmente até chegar à forma tal
como é pronunciada e compreendida pelo falante. A cada interface estão associadas certas
regras, que nela serão avaliadas, garantindo, assim, sua gramaticalidade (ou pertinência da
sentença à língua, conforme as regras de formação).
Essa organização constitui uma gramática em Modelo-T, com quatro interfaces de
representação. Além disso, as sentenças das línguas são analisadas em uma estrutura arbórea
binária11, cujas características são dadas na Teoria-X’ (X’-Theory), um dos módulos dessa
gramática. As relações básicas de uma sintaxe em X’ são aquelas entre núcleo e complemento
(Comp) e entre núcleo e especificador (Spec).

Figura 6 - Modelo-T segundo GB Figura 7 - Estrutura arbórea da sintaxe

Fonte: adaptadas de Hornstein, Nunes e Grohmann (2005) .

Cf. Fig. 5, o primeiro passo da derivação sintática é a inserção dos elementos do léxico
que acaba por gerar a Estrutura Profunda (Deep Structure - DS), onde as demandas semânticas
de um núcleo predicativo (como um verbo) são cumpridas e onde se organiza, desde já, as
regras do componente categorial dos elementos na estrutura X’ (CHOMSKY, 1981). Uma raiz
verbal na posição de núcleo (X, cf. Fig. 6), como comer, solicita pelo menos dois argumentos:
o “algo a ser comido” deve preencher a posição de complemento de X, enquanto o “alguém
que come” deve preencher a posição de especificador de X. Em DS, portanto, posições

11
Esse tratamento estrutural hierárquico encontra evidência em dados como: (i) Instinctively, eagles that fly swim.
‘Instintivamente, águias que voam nadam’. (ii) Can eagles that fly swim? ‘Águias que voam podem nadar?’
(CHOMSKY, 2015 [1995]), os quais mostram que existe entre advérbio e verbo e entre auxiliar e verbo,
respectivamente, uma relação que não é esclarecida pela mera linearidade da sentença.

30
temáticas devem ser ocupadas. Posteriormente, operações de movimento (Move-⍺) dos
elementos em DS, os quais deixam para trás seus vestígios, resultam na Estrutura Superficial
(Surface Structure - SS), nível que disponibiliza as sentenças das línguas tais como elas devem
estar para serem interpretadas pelas Forma Fonológica (Phonological Form - PF) e Forma
Lógica (Logical Form - LF), as quais recebem uma cópia do produto de SS (CHOSMKY,
1981). PF e LF garantem que a sintaxe mantém, na sentença, a associação som-significado
(HAEGEMAN; LOHNDAL, 2011), tão essencial ao funcionamento de uma língua. PF e LF
fazem interface com os sistemas Articulatório-Perceptual e Conceitual-Intencional,
respectivamente. As movimentações se devem a uma série de interações entre os sistemas no
Modelo-T e módulos como a Teoria de de Fronteira, Regência, Ligação, Papel Temático, Caso
e Controle (CHOMSKY, 1981), nos quais encontram-se princípios como o de que toda
sentença possui sujeito12 e, por outro lado, a necessidade de atribuição de Caso aos sintagmas
nominais, que, por exemplo, determina como pronomes devem ser pronunciados, em
português.
Na Gramática Gerativa, portanto, Caso não é uma propriedade exclusiva das línguas
que o exibem na morfologia, mas um primitivo que faz parte dos critérios de boa formação da
estrutura. Sendo assim, em GB, para que um sintagma nominal (ou, mais especificamente, um
Determiner Phrase - DP) realizado seja bem formado ele deve receber Caso abstrato13 de um
predicado, isto é, de um verbo, preposição ou flexão verbal que estabeleça com esse DP uma
relação estreita. É nesse sentido que, em uma sentença bem formada (aceitável), todo DP tem
Caso abstrato, que pode ou não se manifestar morfologicamente, através de marcas explícitas,
os morfemas de caso. Em suma, Caso abstrato não é a mesma coisa de caso morfológico; aquele
diz respeito às relações estabelecidas na estrutura abstrata e subjacente da gramática, este, à
materialização, na morfologia, de tais relações estruturais. Caso abstrato é necessário para se
ter caso morfológico, mas o contrário não é verdade.
Nessa teoria modular, as regras relativas a Caso são reunidas na Teoria de Caso,
segundo a qual ele será atribuído na Estrutura Superficial (Surface Structure - SS), interface do
modelo de gramática da GB que possui grande importância empírica e descritiva: é ela que, em
boa parte, dá conta das variações entre as línguas, pois SS, como vimos no Modelo-T, marca a
fronteira entre os movimentos abertos (de DS para SS) e cobertos (em LF) (HORNSTEIN;
NUNES; GROHMANN, 2005). Além disso, é em SS que vários módulos, além da Teoria de

12
Princípio de Projeção Estendido (Extended Projection Principle - EPP): toda sentença tem uma posição sujeito.
13
Filtro de Caso (Case Filter): Todo NP pronunciado deve receber Caso abstrato. (HAEGEMAN, 1994)

31
Caso, serão inspecionados: certos aspectos da Teoria de Ligação são verificados, operadores
nulos são identificados, aspectos do Princípio de Categoria Vazia (Empty Category Principle -
ECP) são executados e a Subjacência é garantida (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN,
2005). Fatos que acabam por torná-la uma interface extremamente entrelaçada à teoria de
Regência e Ligação.
O componente transformacional dessa arquitetura realiza-se através apenas de dois
mecanismos, movimento (move) e ligação (binding). Aquele diz respeito às movimentações -
em tese, qualquer coisa pode se mover para qualquer lugar, deixando vestígios por onde
passa14; este diz respeito às indexações possíveis entre os constituintes ocupando os nós e seus
vestígios (ou mesmo entre DPs correferentes). Regência (government) é uma relação central
para a teoria, embora não seja uma relação primitiva. Sua importância deve-se ao fato de que
ela coaduna os módulos, uma vez que sua aplicabilidade dá-se majoritariamente em termos de
regência. Assim como Ligação, ECP, Subjacência, Papel-theta são verificados/atribuídos a
partir de regência, também Caso o será. Essa é a relação estreita, como supramencionado, que
deve, portanto, ser estabelecida entre um predicado e um certo DP para que este último receba
sua marcação de Caso abstrato. Um DP deve receber Caso de um núcleo regente dentro de um
certo domínio.15

3.2.2. Programa Minimalista

A teoria de Princípios e Parâmetros capta questões de variação e tipologia através das


possibilidades paramétricas. E nela a aquisição é compreendida como um processo de fixação
de parâmetros no correr da experiência (CHOMSKY, 2015 [1995]). Conforme esse mesmo
linguista, PP foi uma forma razoável de se resolver o problema de inconciliação entre
adequação descritiva e explicativa, isto é, uma forma simultaneamente flexível e restrita de
lidar com a riqueza dos fenômenos linguísticos frente à ideia de faculdade inata de linguagem.
Sendo assim, os pressupostos de que lançou mão a teoria gerativa desde o seu gérmen e a
arquitetura que foi levada a cabo com a GB não são abandonados com novas reformulações.
PP será tomada como lugar fronteiriço já que, sendo pertinente no nível de adequação

14
Esse postulado é muito motivado pelo fenômeno de deslocamento em que um dado constituinte pode ser
interpretado em mais de uma posição: em O que você comeu?, o que, embora esteja na periferia esquerda da
sentença, é compreendido como complemento do verbo comer, que ocuparia a periferia direta da sentença.
15
A definição de regência passou por seguidas reformulações, a partir da postulação de relações como c-comando,
m-comando e barreira. Sua primeira definição (HAEGEMAN, 1994):
Regência:
𝛂 rege 𝛃 se e somente se: (i) 𝛂 c-comanda 𝛃 e; (ii) 𝛃 c-comanda 𝛂.

32
explicativa, abre espaço para avaliação interna à própria teoria. Nesse contexto, o Programa
Minimalista (Minimalist Program - MP) promoverá uma espécie de autoavaliação, numa
tentativa de aplicação mais ampla e exaustiva de critérios de simplicidade, parcimônia,
elegância e naturalidade à UG (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005). Àquilo que é
entendido como inegáveis propriedades da linguagem humana (ou da competência
linguística)16 devem ser conciliados princípios como o de Economia Metodológica e Economia
Substantiva. Por um lado, recorre-se à Navalha de Occam, dando preferência a um menor
número de postulados; por outro, entende-se que a gramática se organiza de modo a maximizar
seus recursos, ao mesmo tempo que deve, naturalmente, compreender os fatos linguísticos
incontestáveis. Portanto, “minimalism is a project: to see just how well designed the faculty of
language is, given what we know about it.” (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005, p.
14)
Mas como se vê, porque GB lança luz sobre uma problemática central e, para além
disso, se mostra eficiente na captura da realidade empírica das línguas, uma atitude inteligente
é encará-la como ponto de partida na formulação de outras teorias, agora mais atentas à sua
possível simplicidade interna, isto é, questionando a pertinência de seus postulados/conceitos.
A começar, facilmente poderia-se contestar a existência de diferentes níveis de representação
ou interfaces e, desse modo, a utilidade de DS e SS. Um das características imediatamente
evidentes entre as línguas é o fato de que as sentenças conjugam em si forma e sentido, do que
dariam conta PF e LF. Todavia, não há fatos claramente evidentes que atestem a existência
daqueles outros dois níveis de derivação sintática. A ausência de DS e SS, ademais, não impede
a explicação de dados empíricos17, quando o modelo sofre as devidas modificações. Desse
modo, a arquitetura poderia adquirir um novo desenho, mantendo apenas as interfaces de PF e
LF. Além disso, uma vez que por hipótese as condições cognitivas estabelecem certas restrições
ao módulo da linguagem, essas interfaces seriam justamente o contato externo com os módulos
articulatório-perceptual e conceitual-intencional, como já mencionado. Uma gramática ótima
deve devolver um output legível por essas interfaces, dando conta através de suas

16
“F1: Sentences are basic linguistic units; F2: Sentences are pairings of form (sound/signs) and meaning; F3:
Sentences are composed of smaller expressions (words and morphemes); F4: These smaller units are composed
into units with hierarchical structure, i.e. phrases, larger than words and smaller than sentences. F5: Sentences
show displacement properties in the sense that expressions that appear in one position can be interpreted in
another. F6: Language is recursive, that is, there’s no upper bound on the length of sentences in any given natural
language.” (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005, p. 7)
17
A exemplo da distinção entre estruturas de alçamento e estruturas de controle, que em GB explica-se através
dos mecanismos de DS para SS.

33
derivações/movimentos/operações da checagem de traços por elas não interpretáveis,
satisfazendo suas condições.
DS costumeiramente esteve associada a uma importante propriedade da língua, a
recursividade. Inclusive, quando esta é levada às últimas consequências, visualiza-se o
tamanho de seu refinamento, o que a alça a característica altamente diferenciadora da
linguagem humana em comparação às linguagens de outras espécies. Uma proposta sob o
guarda-chuva de MP, que subtrai DS do modelo, encontra na Concatenação (Merge) uma
solução que compreende o fato linguístico de recursividade. Merge é a operação que une
elementos retirados do léxico em constituintes dentro duma estrutura arbórea em acordo com
a Teoria-X’ (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005).

(28) André viu que Ingrid dançou.


(29) a. 𝑑𝑎𝑛ç𝑜𝑢 → [𝑉𝑃 𝑑𝑎𝑛ç𝑜𝑢]
b. 𝑉𝑃 +𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝐼𝑛𝑓𝑙 → [𝐼′ 𝐼𝑛𝑓𝑙 [𝑉𝑃 𝑑𝑎𝑛ç𝑜𝑢]]
c. 𝐼′ +𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝐼𝑛𝑔𝑟𝑖𝑑 → [𝐼𝑃 𝐼𝑛𝑔𝑟𝑖𝑑 [𝐼′ 𝐼𝑛𝑓𝑙[𝑉𝑃 𝑑𝑎𝑛ç𝑜𝑢]]]
d. 𝐼𝑃 +𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝑞𝑢𝑒 → [𝐶𝑃 𝑞𝑢𝑒 [𝐼𝑃 𝐼𝑛𝑔𝑟𝑖𝑑 [𝐼′ 𝐼𝑛𝑓𝑙[𝑉𝑃 𝑑𝑎𝑛ç𝑜𝑢]]]]
e. 𝐶𝑃 +𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝑣𝑒𝑟 → [𝑉𝑃 𝑣𝑖𝑢 [𝐶𝑃 𝑞𝑢𝑒 [𝐼𝑃 𝐼𝑛𝑔𝑟𝑖𝑑 [𝐼′ 𝐼𝑛𝑓𝑙[𝑉𝑃 𝑑𝑎𝑛ç𝑜𝑢]]]]]
f. 𝑉𝑃 +𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝐼𝑛𝑓𝑙 → [𝐼′ 𝐼𝑛𝑓𝑙[𝑉𝑃 𝑣𝑖𝑢[𝐶𝑃 𝑞𝑢𝑒 [𝐼𝑃 𝐼𝑛𝑔𝑟𝑖𝑑 [𝐼′ 𝐼𝑛𝑓𝑙[𝑉𝑃 𝑑𝑎𝑛ç𝑜𝑢]]]]]]
g. 𝐼′ +𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝐴𝑛𝑑𝑟é → [𝐼𝑃 𝐴𝑛𝑑𝑟é [𝐼′ 𝐼𝑛𝑓𝑙[𝑉𝑃 𝑣𝑖𝑢[𝐶𝑃 𝑞𝑢𝑒 [𝐼𝑃 𝐼𝑛𝑔𝑟𝑖𝑑 [𝐼′ 𝐼𝑛𝑓𝑙[𝑉𝑃 𝑑𝑎𝑛ç𝑜𝑢]]]]]]]

Através da repetida aplicação de Merge e da incorporação, através dessa operação, de


elementos por elementos de mesma natureza (um VP incorpora outro VP, um I’ incorpora outro
I’), captura-se a recursividade, sem que para tanto recorra-se à ideia de estrutura profunda.
Essencialmente, Merge combina elementos formando com eles um conjunto sem que entre eles
se estabeleça uma relação de ordem/hierarquia. Esses elementos só poderão ser objeto de nova
concatenação desde que os seus constituintes estabeleçam uma relação assimétrica do tipo
Spec-Núcleo, modificação ou complementização. Dito de outra forma, um desses elementos
deve ser aquele que projeta uma posição que solicita o outro, de modo que ele será responsável
pela rotulação da estrutura formada e pelas propriedades gerais do constituinte (HORNSTEIN;
NUNES; GROHMANN, 2005).

(30) a. 𝑎𝑡 ⇔𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝐽𝑜ℎ𝑛 ⇒ {𝑎𝑡, 𝐽𝑜ℎ𝑛}, a mera concatenação forma um conjunto.


b. 𝑎𝑡 ⇔𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝐽𝑜ℎ𝑛 ⇒ {𝑎𝑡, {𝑎𝑡, 𝐽𝑜ℎ𝑛}}, mas quando faz-se a partir de um núcleo.

34
c. {𝑎𝑡, {𝑎𝑡, 𝐽𝑜ℎ𝑛}} ⇔𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝑙𝑜𝑜𝑘𝑒𝑑 ⇒ {𝑙𝑜𝑜𝑘𝑒𝑑, {𝑙𝑜𝑜𝑘𝑒𝑑, {𝑎𝑡 {𝑎𝑡, 𝐽𝑜ℎ𝑛}}
d.
{𝑙𝑜𝑜𝑘𝑒𝑑, {𝑙𝑜𝑜𝑘𝑒𝑑, {𝑎𝑡 {𝑎𝑡, 𝐽𝑜ℎ𝑛}} ⇔𝑀𝑒𝑟𝑔𝑒 𝑀𝑎𝑟𝑦 ⇒ {𝑙𝑜𝑜𝑘𝑒𝑑, {𝑀𝑎𝑟𝑦, {𝑙𝑜𝑜𝑘𝑒𝑑, {𝑙𝑜𝑜𝑘𝑒𝑑, {𝑎𝑡 {𝑎𝑡, 𝐽𝑜ℎ𝑛}}

Ambas as relações, Núcleo-Comp e Spec-Núcleo, serão apenas permitidas no contexto


em que o núcleo projeta e, portanto, etiqueta ambas as concatenações resultantes.
Como supramencionado, é em SS que muitos módulos de GB são executados, entre
eles, a própria Teoria de Caso. Repensar um desenho de gramática sem SS pede, portanto, entre
outras coisas, que se repense a própria Teoria de Caso, verificando o que nela se modifica e o
que dela se mantém quando excluído esse nível de representação. A ideia, portanto, é que se
abandone certas tecnologias de GB, como a noção de atribuição, que será substituída por
checagem (e, posteriormente, valoração). Em GB, um elemento lexical, a exemplo de um
nome, entra na derivação desprovido de Caso, que receberá por meio da regência apropriada
de um núcleo (lexical ou funcional) ao longo das operações sintáticas. Isso se perde, no
Programa Minimalista, se considerarmos que esses elementos lexicais passam a entrar na
derivação já providos de seus traços morfossintáticos, entre eles, o traço de Caso, que será
checado ao longo da derivação, por meio de operações de Merge e Move, isto é, concatenação
e movimento. Um elemento se move desde que deva se mover para dar match, através de seus
traços, com outro elemento. A noção de regência, pressuposto da atribuição, é tomada como
uma redundância, uma vez que os traços podem ser verificados através das duas relações locais
mais elementares, Núcleo-Comp e Spec-Núcleo. Isso porque ela mobiliza além das relações
primitivas de c-comando e m-comando a noção de barreira, tendo em vista Marcação
Excepcional de Caso, o que vai de encontro com o que sugere a Navalha de Occam. Assim,
com checagem tem-se:

(31) Ele foi visto


a. “DS”: [𝐼𝑃 𝛥 𝑓𝑜𝑖 + 𝐼𝑛𝑓𝑙𝑁𝑂𝑀 [𝑉𝑃 𝑣𝑖𝑠𝑡𝑜 𝑒𝑙𝑒𝑁𝑂𝑀 ]]
b. “SS”: [IP ele NOM foi + Infl NOM [VP visto ]]

O DP ele entra na derivação com a especificação de Nominativo e é concatenado ao


núcleo verbal visto, formando a projeção máxima VP. Contudo, ele não pode checar o Caso
Acusativo com esse núcleo, uma vez que se trata de verbo passivizado, incapaz de atribuir tal
Caso. ele, portanto, é movido à posição Spec de Infl, núcleo com o qual será capaz de checar o
Caso Nominativo. O Caso do DP é licenciado através de um match entre os seus traços e os

35
traços do núcleo de IP. Essa pequena mudança de atribuição para checagem, torna, assim,
desnecessário o nível SS - pelo menos no que diz respeito à Teoria de Caso.
Caso passará a ser checado a partir da relação Spec-Núcleo, já que a relação Núcleo-
Comp se depara com problemas conceituais, uma vez que o nominativo não é captado por ela.
A cisão de IP em TP (para tempo) e AgrP (para concordância com sujeito) (POLLOCK, 1989
apud HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005), associada à proposta de duas projeções
de concordância, AgrSP (sujeito) e AgrOP (objeto) (CHOMSKY, 1991 apud HORNSTEIN;
NUNES; GROHMANN, 2005) é o primeiro passo para se apreender, além da concordância
com o objeto, a sua checagem do Caso acusativo, já que agora ambos os Casos são checados
sob Spec-Núcleo.

3.2.2.1. A estrutura complexa vP-XP

Contudo, uma solução mais elegante para o fenômeno de concordância e Caso, tanto
com objeto como com sujeito, parece ser aquela encontrada na proposta de concha-vP (HALE;
KEYSER, 1993, CHOMSKY, 1995 apud HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005). v é
uma espécie de verbo leve, que pode estar vazio foneticamente; inicialmente postulado para
dar conta de verbos ditransitivos, ele encontra respaldo também em verbos transitivos simples
e em sentenças causativizadas. Trata-se de um verbo cujo sentido depende acentuadamente do
seu complemento e, com ele, forma um tipo de complexo. O verbo take, nas sentenças abaixo,
pode ser entendido como verbo leve, visto sua mudança de sentido, a depender do DP em
posição de complemento:

(32) a. John took a shower.


b. John took a nap.

Entre outros ganhos promissores, a concha-vP explica a distinção entre argumentos


interno e externo: aquele surge dentro de VP, enquanto este, na posição [Spec vP]. A hipótese
está em acordo com a Generalização de Burzio 18, mostrando-se, por conseguinte, alternativa
interessante para possivelmente tratar da distinção entre verbos inacusativos e verbos

18
Generalização de Burzio:
“(i) A verb which lacks an external argument fails to assign ACCUSATIVE case.” (BURZIO, 1986, p. 178-9 apud
HAEGEMAN, 1994, p. 321)
“(ii) A verb which fails to assign ACCUSATIVE case fails to theta-mark an external argument.” (BURZIO, 1986,
p. 184 apud HAEGEMAN, 1994, p. 321)

36
inergativos, o que pode se revelar profícuo na análise da língua Yaathê. Um verbo leve
representado por v ao mesmo tempo que atribui papel-θ ao argumento externo, permite a
checagem do Caso do argumento interno (em sua posição de origem ou movendo-se para [Spec
vP]). O argumento externo, que surge em [Spec vP], pode ali permanecer ou ser movido a uma
posição mais acima (fase CP/TP), como uma posição [Spec TP]. O verbo pleno V (ou o núcleo
de outra categoria lexical), cuja projeção máxima está na posição de complemento de v, deve
atribuir papel-θ ao argumento interno. A ausência de v marca a fronteira entre inergativo e
inacusativo. Sem a fase vP, o argumento interno necessariamente tem que ser alçado para fora
do VP, de modo a checar seu Caso.
Além disso, uma estrutura contendo duas camadas (vP e VP) pode discernir também
entre estruturas transitivas (ou causativas) (contêm as duas projeções) e incoativas (contêm
apenas uma projeção):

(33) a. [𝑣𝑃 [𝐷𝑃 𝑎 𝑚𝑒𝑛𝑖𝑛𝑎] [𝑣′ 𝑣 [𝑉𝑃 𝑞𝑢𝑒𝑏𝑟𝑜𝑢 [𝐷𝑃 𝑜 𝑗𝑎𝑟𝑟𝑜] ] ] ]


b. [𝑉𝑃 𝑞𝑢𝑒𝑏𝑟𝑜𝑢 [𝐷𝑃 𝑜 𝑗𝑎𝑟𝑟𝑜] ]

Outras duas pertinentes evidências para a postulação de v, tendo em vista os fins do


presente trabalho, são línguas cuja estrutura causativa possui uma marca morfológica no verbo
que a indica, a exemplo do Kannada, língua falada no Sudoeste da Índia, em que o infixo /-is-
/ realiza uma causativização (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005, p. 103):

(34) Kannada
a. Neer kud-i-tu.
water.ACC boil-PST-1.S.NEUT
‘The water boiled.’

b. *Naan-u neer-annu kud-id-e.


I-NOM water-ACC boil-PST-1.S
‘I boiled the water.’

c. Naan-u neer-annu kud-is-id-e.


I-NOM water-ACC boil-CAUS-PST-1.S
‘I boiled the water.’

37
E línguas que possuem o verbo leve realizado foneticamente mesmo em sentenças transitivas
simples, a exemplo do Basco (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005, p. 104):

(35) Basque
Jonek Aitorri min egin dio.
Jon.ERG Aitor.DAT hurt do AUX
‘Jon hurt Aitor.’

De acordo com Hornstein, Nunes e Grohmann (2005, p. 104), a estrutura contendo VP


e vP será, portanto:

Figura 8 - Estrutura vP-VP.

Fonte: Hornstein, Nunes, Grohmann (2005)

Em que X é um núcleo lexical (verbo, nome, adjetivo) capaz de formar com v um


predicado complexo.
Quanto a distinção entre verbos ditransitivos/transitivos/inergativos e inacusativos, os
autores concluem:

(...) the external argument of ditransitive, simple transitive and unergative


constructions is generated in the specifier of a projection headed by a light
verb, whereas internal arguments are generated within the shell structure
headed by the contentful verb. (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005,
p. 110)

De modo que para estruturas inergativas e inacusativas tem-se, respectivamente:

(36) [𝑉𝑃 𝑉 𝐷𝑃]


(37) [𝑣𝑃 𝐷𝑃 [𝑣′ 𝑣 [𝑉𝑃 𝑉 ]]

38
A ausência de uma concha-vP em (36), estrutura de um inacusativo, impede a checagem
do acusativo para o DP em posição de complemento. Este, alternativamente, poderá ser alçado
à posição [Spec IP] onde checará seu traço de Caso.
No Basco, o verbo leve se materializa tanto em sentenças transitivas simples (cf. 35),
como em ergativas, mas não se manifesta em inacusativas. Mais uma importante evidência para
a postulação dessas estruturas (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005, p. 109):

(38) Basco (construção inergativa)


Emakumeak barre egin du.
woman.DEF.ERG laugh do AUX
‘The woman has laughed.’

(39) Basco (construção inacusativa)


Emakumea erori da.
woman.DEF.ABS fallen AUX
‘The woman has fallen.’

Duas questões que possuem implicações para a análise devem ainda ser discutidas. Por
um lado, qual a repercussão, nessas estruturas, quando pensa-se em um sistema ergativo. E por
outro lado, quais os tipos de Caso abstrato que se irá checar, tendo em vista as suas propriedades
e o modo (posições de checagem, relação com papel-θ) como eles devem aparecer no interior
dessas estruturas.

3.2.3. Tipologia de Caso segundo Woolford (2006)

Woolford (2006) apresenta uma importante tipologia de Casos, atualização das noções
de casos Estrutural e Não Estrutural (CHOMSKY, 1986 apud WOOLFORD, 2006); este
último passará a ser dividido em Casos Lexical e Inerente:

39
Figura 9 - Tipos de Caso.

Fonte: Woolford (2006).

Em essência, todo Caso é estrutural, uma vez que sempre é atribuído (checado?) através
de uma relação local (Spec-Núcleo). Mas, especificamente, quando proposto por Chomsky
(1986 apud WOOLFORD 2006), os Casos não estruturais, de forma geral, se diferenciavam
dos casos estruturais por serem atribuídos em conjunto com a atribuição de papel temático, o
que não era verdade para estes últimos. Essa associação entre Caso e Papel-θ, comum ao Caso
não estrutural, mantém-se em Woolford (2006), sendo que em vez de ocorrer pela via de uma
estrutura profunda, a linguista recorre às estruturas de VP próprio e vP, em consonância com
propostas de representação mais atualizadas. Como indica a Fig. 8, os casos não estruturais
seriam de dois tipos. Casos não estruturais inerentes estão associados à estrutura vP, enquanto
os casos não estruturais lexicais associam-se à VP.
Os Casos Inerentes são aqueles mais predizíveis/regulares, por estabelecerem uma
relação de coocorrência recorrente com determinados Papeis-θ; os Lexicais, mais peculiares,
são menos previsíveis, pois costumam ser selecionados por raízes lexicais específicas
(preposições e verbos específicos). Esses dois tipos de Caso não estrutural estão em
distribuição complementar.
O Lexical é checado em posições argumentais temáticas/internas a VP, a exemplo do
dativo em Islandês:

(40) Bátnum hvolfdi


boat-DAT capsized
‘The boat capsized’

O Inerente ocorre em posições argumentais externas a VP, a exemplo da posição


relativa aos sujeitos agentivos, que surgem em [Spec vP], onde recebem o ergativo; ou aquela
associada a DPs-alvo deslocados, argumento de verbos ditransitivos (cf. 41). Estes surgem em
(ou são alçados para) posição externa ao VP, em outro [Spec vP].

40
(41) Ég skilaði henni peningunum
I returned her-DAT the money-DAT

Em contraste a este último, há o DP alvo em posição de complemento de uma


preposição realizada (cf. 42.), que costuma checar Caso Lexical (que é específico para cada
preposição).

(42) Ég skilaði peningunum til hennar


I returned the money-DAT to her19

A distinção entre Caso Inerente associado ao argumento mais externo, Caso Inerente
associado a DPs alvo-deslocados e Caso Lexical é captada pela estrutura abaixo, em
conformidade com as propostas de McGinnis (1996, 1998, 2001 apud WOOLFORD, 2006) e
Marantz (1989 apud WOOLFORD, 2006) para a estrutura vP e adaptada segundo o que foi
discutido até aqui.

Figura 10 - Posições de checagem dos Casos não estruturais.

Fonte: adaptada de Woolford (2006)

3.2.4. Ergatividade Sintática vs. Ergatividade Morfológica segundo


Duarte (2012)

Numa contraposição mais global, línguas acusativas diferenciam-se de ergativas pelo


fato de que naquelas os sujeitos de verbos transitivos e intransitivos devem, normalmente,

19
Os exemplos (41) e (42) foram retirados de Woolford (2006). A autora não registra a glossa com sua respectiva
tradução.

41
checar o Caso nominativo em [Spec TP]. Em alguns contextos, T entra na derivação sem Caso
estrutural e o sujeito terá de checar esse traço de forma excepcional. Em línguas ergativas,
contrariamente, os sujeitos transitivos (e alguns intransitivos), desde que associados ao papel-
θ de agente, checa o Caso inerentemente através do núcleo v, em [Spec vP], cf. Fig. 11 acima.
O Caso ergativo não é disponibilizado em línguas nominativas, segundo Duarte (2012).
Línguas ergativas podem, ainda, ser de ao menos dois tipos, conforme esse mesmo autor.
Línguas morfologicamente ergativas diferenciam-se pelo fato de poderem apresentar
cisão quanto ao Caso estrutural de argumentos nucleares. Nessas línguas, portanto: v checa o
ergativo do argumento externo (sujeito transitivo e inergativo) e um Caso estrutural (acusativo)
ao argumento interno (objeto). Enquanto T checa o nominativo para sujeitos intransitivos
(inasucativos) e sujeitos de verbos antipassivizados, pois, nestes casos, v (o que pode, na
verdade, decorrer da sua ausência) está impossibilitado de checar o absolutivo (acusativo,
especificamente). Veja-se na figura seguinte uma síntese para o sistema morfologicamente
ergativo:

Figura 11 - Checagem de Caso em língua morfologicamente ergativa.

Fonte: Duarte (2012).

Já línguas sintaticamente ergativas se distinguem, sobretudo, em duas


características. Elas possuem uma série de operações sintáticas que se dão apenas sobre o
argumento que checa o absolutivo, o qual, segundo Duarte (2012), comporta-se de forma
semelhante a sujeitos de línguas nominativas: (i) em construções de controle, o argumento
absolutivo é que pode controlar20 o sujeito (PRO21) da encaixada; (ii) em coordenadas, o

20 “The term control is used to refer to a relation of referencial dependency between an unexpressed subject (the
controlled element) and an expressed or unexpressed constituent (the controller). The referencial properties of
the controler elemento (...) are determined by those of the controller.” (BRESNAN, 1982, p. 327 apud
HAEGEMAN, 1994, p. 263).
21
PRO, cf. Haegeman (1994), é quase equivalente a um pronome. Ele recupera um referente específico ou é
interpretado como pronome arbitrário (PROARB). Aparece, costumeiramente, num contexto de sentença
encaixada cujo verbo está no infinitivo (como em (i) acima). Trata-se de uma categoria vazia cuja matriz de traços

42
argumento absolutivo coindexa/antecede o sujeito da encaixada; (iii) em relativas, o argumento
absolutivo é que pode encabeçar a oração relativa. Embora Duarte (2012) não faça tal
apontamento, seus exemplos sugerem que o NP/DP coindexa/correferencia um outro ou
controla um sujeito implícito, desde que eles compartilhem o mesmo Caso (ainda que
potencialmente, como é no caso do PRO), o absolutivo/nominativo. Assim como sujeitos
transitivo e intransitivo, num sistema nominativo-acusativo, que compartilham o mesmo Caso,
o nominativo. Essas operações, que servem como forma de teste, em muito dialogam com as
constatações de Comrie (1989) (cf. seção 3.1).

(i) A mãe beijou o pai para (ele) voltar.


(ii) A mãe viu o pai e (o pai) voltou.
(iii) A mulher que vejo está sentada. / A mãe viu o pai que estava voltando.

Nessas línguas, o núcleo v não pode checar o acusativo e, assim, assume-se que ele
possui um traço EPP que o leva para a margem esquerda de vP-VP e, posteriormente, para a
fase CP-TP. Assim, nessas línguas o absolutivo não pode aparecer em sentenças infinitivas, o
que não é verdade para línguas morfologicamente ergativas. Por fim, essas línguas, por não
poderem checar o acusativo, acabam por não possibilitar a cisão entre objeto e sujeitos
inacusativos (a cisão de Caso estrutural).

Em suma, conclui-se que, em sentenças transitivas, antipassivas e intransitivas,


o Caso absolutivo é sistematicamente atribuído pelo núcleo T, situação que nos
permite propor que esse Caso equivale uniformemente ao nominativo nas
línguas sintaticamente ergativas, já que v não atribui Caso estrutural.
(DUARTE, 2012, p. 282)

A estrutura que representa a checagem de Casos numa língua sintaticamente ergativa é


a que se segue:

é [+Anafórica, + Pronominal]. PRO é referencialmente dependente de um outro NP (Noun Phrase), por isso
mesmo, é controlado por este.

43
Figura 12 - Checagem de Caso em língua sintaticamente ergativa.

Fonte: Duarte (2012).

3.2.5. Causativas segundo Pylkkänen (2000)

Para representar construções causativas, Pylkkänen (2000) começa por dar a elas uma
interpretação bieventiva (cf. 44) e opta pela utilização de dois núcleos funcionais. De modo
que, para a autora, o argumento externo não é um argumento do verbo, mas de um núcleo
funcional específico, cf. Kratzer (1994 apud Pylkkänen, 2000), e o evento causador e seu
agente podem ser introduzidos através de núcleos distintos. Sendo assim, recorre a Voice para
ser o núcleo introdutor do argumento externo em causativas e recorre ao Cause para ser o
núcleo responsável pela introdução do evento causador.

(43) John melted the ice.


(44) John was an agent of some event that caused a melting of the ice.

“(...) [W]e can treat causation and the external theta-role as forming a lexical unit, i.e.
a morpheme, or we can have the two relations enter the syntax separately.” (PYLKKÄNEN,
2000, p. 134).
Essas escolhas compreendem línguas como o Japonês e o Finlandês que possuem
causativas (de adversidade e desiderativas, respectivamente) sem argumento externo, mas que
possuem uma espécie de causa implícita. Essas causativas falham nos testes de identificação
de argumento externo, como as passivas; Pylkkänen as denomina causativas inacusativas.
Há, contudo, línguas em que as causativas necessariamente introduzem um argumento
externo e, consequentemente, não possuem as tais causativas inacusativas. Esse é o caso do

44
inglês, o qual Pylkkänen também procura contemplar, com base na assunção de que as
variações entre as línguas deve-se à variação na forma de se mapear traços funcionais nos
núcleos sintáticos. Tome-se o exemplo dos traços de concordância e tempo verbal, que podem
ser captados em mais de um núcleo, ArgP e TP, ou em apenas um núcleo, IP. Utiliza-se, além
disso, dos pressupostos da Morfologia Distribuída (HALLE; MARANTZ, 1993 apud
PYLKKÄNEN, 2000), em que a um morfema corresponde um nó terminal composto por um
conjunto de traços. Sendo assim, Voice pode ser um núcleo que mapeia dois traços
interpretáveis em um só morfema:

Figura 13 - Voice Head.

Fonte: Pylkkänen (2000)

A proposta de Pilkkänen (2000) é utilizada na análise de causativas do Yaathê. Uma


forma de diferenciá-las do processo de aumento de valência de verbos inacusativos através do
núcleo /-ne/.

4. Sistema de Caso do Yaathê e de outras línguas Macro-Jê

Esta seção é dedicada à revisão de descrições dos Sistemas de Caso das línguas Yaathê
(COSTA, 1999, 2005), Bororo (NONATO, 2008), Maxakalí (CAMPOS, 2009) e Mebengokre
(SILVA, 2001). Sempre que possível, faz-se apontamentos sobre aspectos referentes à
checagem de Caso abstrato nessas línguas (i.e., sempre que os respectivos autores tiverem
chegado a este nível de análise e desde que tal apontamento seja pertinente). Por fim, elabora-
se uma comparação entre as línguas. Observou-se que elas apresentam uma tendência
semelhante em seus alinhamentos, aproximando-se devido à sua ergatividade. Naturalmente,
essa ergatividade se manifestará diferentemente entre elas.

45
4.1. Yaathê

Ao observar aspectos morfológicos e semânticos, Costa (1999) discerne quatro


subcategorias verbais em Yaathê. São elas: (i) a de verbos em cujas raízes não há qualquer
peculiaridade morfológica (o que recobre verbos mono, bi e trivalentes), geralmente verbos de
ação e processo;

(45) a. e kili-ka ‘subir’


b. e ki-ka ‘tirar’
c. e ko-ka ‘dar’

(ii) verbos que denotam reciprocidade, os quais possuem uma forma cristalizada sempre
iniciada pela marca /sa-/. Algumas formas (não cristalizadas), contudo, ainda podem ser
depreendidas, i.e., separadas do /sa-/. Este ocupava uma posição argumental, o qual teria
passado por uma espécie de incorporação pelo verbo. A autora nada diz sobre sua valência;

(46) a. sawe-ka ‘brigar’


b. saːtʰate-ka ‘conversar’
c. samake-ka ‘casar’
d. satʃidʒone-ka ‘namorar’

(iii) outras formas verbais cristalizadas, as quais contêm, em seu interior, o sufixo /-ne/,
expressam atividade, são monovalentes e parecem ter sido originadas de uma construção que
anteriormente continha ne-ka ‘fazer’ seguido por objeto, o qual teria sido incorporado (isso é
o que sugerem, sincronicamente, certos empréstimos. Como se verá na sequência, tal marca é
também associada a processos de aumento de valência e de cisão no Sistema de Caso da língua;

(47) a. lɛːne-ka ‘arrancar’


b. feetone-ka ‘trabalhar’
c. tfone-ka ‘caçar’

(iv) raízes adjetivais que recebem flexões (costumeiramente) associadas a verbos e comuns em
construções copulativas. São caracterizadas como verbos de estado ou predicados estativos (cf.

46
48a-c); e, por fim, (v) a categoria, também constituída por verbos de raiz adjetival, mas que
indicam uma mudança de estado ou predicação descritiva (cf. 49a-c).

(48) a. e kaka ‘ser bom’ (49) a. e kaka-ka ‘ficar bom’


b. e kaka-he ‘será bom’ b. e kaka-ka-he ‘ficará bom’
c. e kaka-se ‘foi bom’ c. e kaka-ka-se ‘ficou bom’

Compreendamos, agora, como o sistema de marcação de pessoa na língua comporta-se


em combinação com tais verbos. Em Yaathê, o paradigma de clíticos de pessoa, usados na
marcação de sujeito e objeto, revela um sincretismo acentuado. Isso quer dizer que,
excetuando-se a terceira do singular, cada pessoa terá apenas um clítico responsável por
marcar, igualmente, os sujeitos transitivo e intransitivo e o objeto. Para que fique mais claro,
observe-se os dados abaixo:

(50) [i kfafᶺka] (51) [i feetõːkʸa i tʃi᷈ma]


i kfafa-ka i feeto-ne-ka i tʃĩma
1s dormir-IND 1s trabalhar-CAUS-IND 1s acordar
‘eu durmo’ ‘eu trabalho quando eu acordar’

(52) [i klekeyniːso wkʸase] (53) [ɔtska i kʰetkʸase]


i klekeyniːso we-ka-se ɔtska i kʰete-ka-se
1s onça matar-IND-PST homem 1s achar-IND-PST
‘eu matei a onça’ ‘o homem me achou’

(54) [a kafafᶺka] (55) [a kineʃi]


a kafafa-ka a kine-ʃi
2s dormir-IND 2s sentar-IMP
‘tu dormes’ ‘senta’

(56) [ɔtska a kʰetkʸase] (57) [a klekeyniːso wkʸase]


ɔtska a kʰete-ka-se a klekeyniːso we-ka-se
homem 2s achar-IND-PST 2s onça matar-IND-PST
‘o homem te achou’ ‘tu mataste a onça’

47
O mesmo comportamento se espraia para as primeira, segunda e terceira pessoas do
plural. Isso quer dizer que o sistema de marcação de pessoa pode ser resumido, parcialmente,
com a tabela abaixo:

Tabela 2 - Clíticos de pessoa em Yaathê.


Número Pessoa Sujeito/Objeto
1 i
2 a
Singular 3 -
1 ja
2 wa
Plural 3 tʰa
Fonte: autoria nossa.

Nos exemplos acima vê-se que, a despeito da valência ou semântica do verbo, os


constituintes são marcados com os mesmos elementos. O alinhamento morfológico expresso,
nessas pessoas, é [A S O], neutro, sendo as funções sintáticas codificadas através da ordem dos
constituintes. A marcação para a terceira pessoa singular, contudo, requer uma discussão mais
detalhada.
Segundo Costa (2005), quando um argumento é de terceira pessoa singular, ele será
marcado através de duas formas distintas entre si, a depender da sua função sintática. Isto é,
nos verbos transitivos, o /ta/ marca o sujeito e o /e/ marca o objeto, na ausência do sintagma
nominal (cf. exemplos 59, 60 e 61). Em se tratando de verbos transitivos, quando os
argumentos são expressos através de SNs plenos, geralmente as marcas de pessoa não
aparecem, i.e., não há coocorrência entre SN e clítico (cf. 58) - o que se aplica também às
demais pessoas.

(58) [ɔtska itʰlo wkʲase]


ɔtska itʰlo we-ka-se
homem cachorro matar-IND-PST
‘o homem matou o cachorro’

Mas, na ausência de SNs:

48
(59) [tɛːwkʲa] (60) [tɛːkika] (61) [tɛːkɛːka]
ta e we-ka ta e ki-ka ta e keha-ka
3s.A 3s.O matar-IND 3s.S 3s.O tirar-IND 3s.A 3s.O comer-IND
‘ele o mata’ ‘ele tira algo’ ‘ele come algo’

Muitos verbos intransitivos, por seu turno, apresentam argumento majoritariamente


codificado pelo clítico de terceira pessoa do singular /e/, o mesmo que serve para identificar o
objeto nas sentenças transitivas. Em síntese, tal clítico aparece de forma recorrente (mas não
de forma categórica) paralelamente ao SN argumento do verbo intransitivo. Sendo assim, tem-
se:

(62) [e tʃⁱkʲa] (63) [e kfafᶺka] (64) [ekaka]


e tʃi-ka e kfafa-ka e kaka
3s.So chegar-IND 3s.So dormir-IND 3s.So bom
‘ele chega’ ‘ele dorme’ ‘ele é bom’

E também:

(65) [i tfe e tʃikʸase hle] (66) [klekeyniːso e tʰkʷase]


i tfe e tʃi-ka-se hle klekeyni:so e tʰkʷa-se
1s pai 3s.So chegar-IND-PST já onça 3s.So morrer-PST
‘meu pai já chegou’ ‘a onça morreu’

Contudo, ainda de acordo com Costa (2005), uma análise mais acurada dos verbos
monoargumentais revela algumas nuances morfológicas não encontradas em verbos transitivos
da língua. Tal idiossincrasia pode ser discutida tanto em termos sincrônicos como diacrônicos.
Veja-se primeiramente os exemplos que se seguem:

(67) [ekakakase] (68) [ta kakãːkⁱase]


e kaka-ka-se ta kaka-ne-ka-se
3s.So bom-IND-PST 3s.Sa bom-FAC-IND-PST
‘ficou bom’ ‘tornou-se bom’

49
(69) [ta fawneka] (70) [ta kfɛlneka]
ta fawne-ka ta kfɛlne-ka
3s.Sa gritar-IND 3s.Sa brincar-IND
‘ele grita’ ‘ele brinca’

O “adjetivo”, que em Ya:thê apresenta comportamento semelhante ao de um verbo - ao


receber morfemas de tempo e modo -, aparece acompanhado tanto do clítico /e/ como do clítico
/ta/. Mais especificamente, o /ta/, clítico do tipo agentivo, emerge quando o sufixo /-ne/ é
concatenado à raiz do verbo estativo e kaka. Sobre isso, Costa (2005, p. 120) afirma: “(...) há
um morfema factivo /-ne/ que leva o verbo da categoria intravertida para a categoria
extravertida, ainda que a ação reverta sobre o próprio Agente”. Algo semelhante, quanto à
adjunção do /-ne/ e ocorrência do /ta/, acontece para os nomes, nos dois últimos exemplos. A
diferença é que, enquanto de (67) para (68) não há uma mudança categorial stricto sunsu, por
hipótese, os verbos “gritar” e “brincar” seriam derivados de nomes (grito, brincadeira). Estes
nomes não foram encontradas desprendidas do /-ne/, mas há uma evidência dessa formação a
partir de nomes em:

(71) [tʃʰɔlʷa] ‘quente’ > [tʃɔlᶺne] ‘esquentar’

Teria havido uma cristalização do /-ne/ nesses verbos, num processo de incorporação
do elemento interno ao verbo neka ‘faz/fazer’.
Todavia, tal processo morfológico - de adjunção do morfema /-ne/ a um dado núcleo
nominal ou verbal - ainda acontece sincronicamente na língua, em formação de novas palavras
(COSTA, 2005). Por exemplo, para emprestar do português brasileiro o sentido do verbo
mangar ‘fazer pilhéria de alguém’, ao nome walaka ‘manga’ foi adjungido o /-ne/, gerando o
verbo walakaneka, literalmente ‘faz/fazer manga’. Em Costa (1999), encontra-se uma variação
deste novo verbo na sentença:

(72) yadedʷa so nekase sa mti ke tʰa i te walakãːkʸa22


tʰa i te walaka-ne-ka
3pl 1s LOC walaka-CAUS-IND

22
A nasalização e prolongamento da vogal que precede o /ne/, o qual acaba por cair, é uma mudança fonológica
comum em raízes que recebem o morfema.

50
‘o outro menino disse ao amigo dele que eles mangam de mim’

Observa-se através dos exemplos 67-70 que alguns intransitivos, neste caso,
intransitivos ativos/inergativos (ou espécie de verbos transitivos de objeto incorporado) pedem
que o sujeito seja codificado através do clítico /ta/, o mesmo que marca sujeitos transitivos. Isso
explicita uma divisão entre os verbos intransitivos nesta língua, quanto ao tipo de clítico para
se referir ao sujeito. Toma-se por hipótese que o morfema /-ne/ autoriza uma posição
argumental externa e, sendo assim, o aparecimento do clítico agentivo nessa posição. Tal ideia
será melhor elaborada na seção 5.

Tabela 3 - Alinhamento dos clíticos de terceira pessoa singular.


Sujeito inativo
Número Pessoa Sujeito (A) Sujeito ativo (Sa) (So) Objeto

Singular 3 ta e/ø
Fonte: autoria nossa.

De forma concomitante, o /-ne/ une-se a verbos inacusativos, aumentando a sua


valência. O que Costa (1999) entende como fenômeno de causativização escolho entender
como alternância incoativa-ativa - o morfema marca explicitamente essa alternância.
Semelhante ao que ocorre em português, mas sem marcas morfológicas, em O vaso quebrou >
O menino quebrou o vaso. O verbo intransitivo estativo na primeira sentença (73, 75, 77) passa
a ter nova posição argumental, agora externa, na segunda (74, 76, 78).

(73) [yadedʷa e kfafaka] (74) [ɔtska yadedʷa kfafaanekase]


yadedʷa e kfafa-ka ɔtska yadedʷa kfafa-ne-ka-se
menino 3s.So dormir-IND homem menino dormir-FAC-IND-PST
‘o menino dorme’ ‘o homem fez o menino dormir’

(75) [e nahakase] (76) [ta yadedʷa nahanekase]


e naha-ka-se ta yadedʷa naha-ne-ka-se
3s.So viu-IND-PST 3s.A menino viu-CAUS-IND-PST
‘ele viu’ ‘ele mostrou o menino’

51
(77) [doːkʲa tʃʰɔlʷakase] (78) [ɔtska doːkʸa tʃhɔlᶺnekase]
doːkʲa tʃʰɔlʷa-ka-se ɔtska doːkʸa tʃhɔlᶺ-ne-ka-se
panela quente-IND-PAST homem panela esquentar-CAUS-IND-PST
‘a panela esquentou/ficou quente’ ‘o homem fez a panela esquentar’

Os dados em Costa (1999) apontam para o fato de que a causativização


morfológica, através do morfema /ne/, não ocorre em verbos transitivos. Pelo menos não
mais ocorrem sincronicamente, pois Lapenda (2005 [1965]) trazia ocorrências como:

(79) ‘ma ‘pisar’: iemka ‘piso-o’ > iêmnenkya ‘faço que o pisem’

(80) futyí ‘pegar’: ifutykyá ‘pego-o’ > ifutyninkya ‘faço que o peguem’

(81) phüne ‘quebrar-se’: itat phü’neká ‘quebro-o’ > iphü’neneká ‘faço que se quebre’
> itat phü’neneká ‘faço que o quebrem’.

Verbos transitivos, cf. Costa (1999), são causativizados perifrasticamente através


do verbo tete-ka ‘fazer’ ou de outros verbos de controle:

(82) [datka tetkʸase ɔtska sa kʰodʒõne e kʰenĩːkʸa]


datka tete-ka-se ɔtska sa kʰodʒõne e kʰenĩː-ka
chefe fazer-IND-PST homem 3s revólver 3s.O entregar-IND
‘o chefe fez o homem entregar o revólver dele’

Feitas tais observações, as quais serão importantes para a análise, retoma-se a


descrição do Sistema Caso. Quanto ao aparecimento dos clíticos /ta/, marcador de sujeito,
e /e/, marcador de objeto, na terceira pessoa singular, alguns sujeitos de verbos
intransitivos comportam-se como o sujeito de verbos transitivos e alguns outros sujeitos
de verbos intransitivos comportam-se como o objeto de verbos transitivos. Isto é, alguns
sujeitos intransitivos são marcados pelo clítico /e/, enquanto outros são marcados pelo
/ta/. Estes últimos têm aparecido, especificamente, no ambiente em que o sufixo /-ne/ está
adjungido ao verbo. Portanto, o alinhamento em Yaathê, ao menos para a terceira
singular, é do tipo [A Sa] [O So] e o sistema nessa pessoa, então, do tipo ergativo-
absolutivo com cisão intransitiva (ou, tomando-se uma posição quanto à natureza de

52
verbos monoargumentais, ergativo-ativo). Para as demais pessoas, o sistema é neutro,
pois sujeitos e objetos transitivos e sujeitos intransitivos são marcados através dos
mesmos clíticos.
Quanto ao estatuto dos clíticos de terceira pessoa não há total clareza em relação
a sua paridade. Não há dados que mostrem a coocorrência entre /ta/ e SNs plenos (sujeito)
no contexto de verbos intransitivos ativos. Diferentemente, /e/ aparece ao lado dos e
correferencia aos SNs-argumentais plenos de verbos intransitivos estativos, em sentenças
cuja leitura é do tipo não-marcado. Conforme exemplos:

(83) [yadedʷa kfɛlnekase] (84) [ta kfɛlneka]


menino kfɛl-ne-ka-se ta kfɛl-ne-ka
menino brincar-CAUS-IND 3s.Sa brincar-FAC-IND
‘o menino brincou’ ‘ele brinca’

(85) [ɔtska e sekase] (86) [e sekase]


ɔtska e se-ka-se e se-ka-se
homem 3s.So dançar-IND-PST 3s.So dançar-IND-PST
‘o homem dançou’ ‘ele dançou’

A coocorrência entre /ta/ e sujeito pleno, com verbo transitivo, possui uma leitura
marcada:

(87) [jaːˈdedʷa ta utˈʃi eikase]


jaːdedʷa ta utʃi e i-ka-se
menino 3.A carne 3.O comer(carne)-IND-PAS
‘o menino, ele comeu a carne’

Vê-se até aqui um comportamento ergativo-ativo, ao menos na terceira pessoa do


singular, expresso sobretudo no comportamento dos clíticos nessa pessoa frente aos
diferentes tipos verbais. Esse sistema, parece, é corroborado inclusive por um
comportamento/estatuto diferenciado entre tais marcas. /e/ pode coocorrer com o
argumento pleno, de forma não marcada, em construções intransitivas estativas, o que
não é necessariamente verdade para o /ta/, que não coocorre, nos dados em Costa (1999),
com um sintagma nominal pleno em sentenças intransitivas ativas.

53
(88) a. So (AgrSo) V
b. Sa V

Com base nas evidências arroladas, o Yaathê vem desenhando uma ergatividade,
no nível morfológico, a qual, contudo, deve ser estudada também em termos sintáticos
mais generalizáveis, tendo em vista a melhor tipologização dessa língua. Observe-se,
portanto, sentenças (anti)passivas, coordenadas e relativas comentadas por Costa (1999).
Segundo Costa (1999), verbos de atividade em /-ne/ podem ser passivizados sem
o acréscimo de morfologia. Ainda conforme a autora, esses verbos monoargumentais, em
alguns contextos, possuem dois argumentos, sendo um deles posposicionado (cf. 89 e 91).
Tais sentenças, supostamente, derivariam uma outra em que, na ausência do sujeito, o
argumento posposicionado ocuparia tal posição/função ( cf. 90 e 92).

(89) ta feja te feetone-ka-se


3s.A terra INST trabalhar-IND-PST
‘ele trabalhou na terra’
lit.: ‘ele trabalhou com a terra’

(90) feja te feetone-ka-se


terra INST trabalhar-IND-PST
‘a terra foi trabalhada’
lit.: ‘com a terra fez-se o trabalho’

(91) klajʃiwa kleʃa te wene-ka-se


padre igreja INST abrir-IND-PST
‘o padre abriu a igreja’

(92) kleʃa te wene-ka-se


igreja INST abrir-IND-PST
‘a igreja abriu’

Em Yaathe, esse tipo de passiva só é possível com verbos de atividade,


em uma construção que já sofrera, anteriormente, variação pelo
acréscimo de um complemento instrumental. O complemento

54
instrumental é elevado à posição de sujeito e o agente é eliminado da
cláusula. (Costa, 1999, p. 275)

Em Costa (2005), a autora, ao analisar os exemplos 91 e 92 acima, diz:

Na verdade, em vez de passiva, o que temos aqui é uma voz chamada


intermediária, que equivale em Português a o vidro quebrou, que é
diferente de o vidro quebrou-se, em que o vidro é antecedente do
pronome reflexivo. (p. 130)

As sentenças acima parecem não se tratar nem de passivas nem de antipassivas,


nos termos de Comrie (1989). Em sentenças passivas o argumento que surge em posição
de objeto na ativa recebe o caso do sujeito intransitivo e o sujeito passa a ser um adjuntos.
Em antipassivas, o caso do sujeito ergativo converte-se em absolutivo e o objeto passa de
absolutivo para um caso oblíquo (adjunto), que no caso do Yaathê seria um elemento
posposicionado. Se o /ta/ é tomado como a marca referente ao ergativo na língua e o
elemento posposionado vai para posição sujeito, na ausência de /ta/, o que temos aí são
construções bem distintas de antipassivas (ou passivas).
Ao mesmo tempo, poucos são os dados de coordenação encontrados em Costa
(1999). Na sentença abaixo, uma coordenada entre duas transitivas, há elisão do sujeito
da sentença final:

(93) [ta neka ta e fulikahe nede e wete]


ta ne-ka ta e fuli-ka-he nede ø e we-te
3s.A dizer-IND 3.A 3.O eliminar-IND-FUT conj. 3.A 3.O matar-PART.PRES
‘ele diz que que vai eliminá-lo e matá-lo’

Outro dado não apresenta a mesma elisão, muda-se a natureza dos verbos nela
implicados, que são inacusativos:

(94) [ja tʃika keʃatka ke nema ja tʃadiheka dehe fejane liʃino edʒo ke
ja tʃi-ka keʃatka ke nema ja tʃadihe-ka dehe fejane liʃino edʒo ke
1p.So chegar-IND Ouricuri LOC CONJ 1pl.So sair-IND ADM mês(lua) três depois LOC
‘nós chegamos no Ouricuri e (então) nós saímos depois de três meses’

55
Idealmente, para entender como funciona o alinhamento na sintaxe, seriam
necessárias coordenadas entre sentenças transitivas e intransitivas, verificando a
possibilidade, por exemplo, de o objeto da primeira ser correferente do sujeito elidido da
segunda. Ou seja, verificar se os elementos supostamente absolutivos se alinham.
As sentenças relativas, por outro lado, podem ser uma outra instância para
descrição. Segundo Costa (2005), como o Yaathê não possui um pronome relativo, a
relativização da sentença é indicada pela forma do verbo no interior da construção
relativa. Este receberá um dado morfema, cuja forma depende da sua subcategoria verbal
e do argumento da sentença principal que está sendo correferenciado por ele. Verbos
transitivos, verbos intransitivos ativos (verbos em ne) e verbos recíprocos recebem o
sufixo /-ho/, no contexto de relativização do sujeito da sentença principal, enquanto
verbos intransitivos estativos recebem o sufixo /-dowa/, o qual também acontecerá com
verbos transitivos, caso o elemento correferenciado na sentença principal seja o objeto
direto. Nota-se um certo alinhamento ergativo-ativo até aqui. Para que fique mais claro,
tem-se os exemplos abaixo. No primeiro, vemos a relativização do sujeito da sentença
principal, enquanto o verbo da relativa é transitivo, o sufixo utilizado é /-ho/:

(95) ɔtska katʰofea whose e kʰe ihose


tska [katʰofea w-ho-se] e kʰe i-ho-se
homem [bezerro matar-REL-PAS] 3s.O carne comer-IND-PAS
‘o homem que matou o bezerro comeu a carne’

No próximo caso, vê-se que o verbo da relativa é um intransitivo-estativo e o


argumento da principal, correferenciado pelo sujeito da relativa, é também sujeito de um
verbo estativo; o morfema encaixado é o /-dowa/:

(96) ɔtska e tʰᶺdowase feja te sãːkʲase


ɔtska [e tʰo-dowa-se] feja te sa ne-ka-se
homem 3.So morrer-REL-PAS terra INST EXPL ser-IND-PST
‘o homem que morreu era das Areias’

No contexto de relativização do objeto direto de uma transitiva, o qual será sujeito


da sentença relativa, cujo núcleo é também um verbo transitivo, vê-se o uso de /-ho/:

56
(97) ɔtska itʰlo se lᶺhokʰia wkʲase
ɔtska itʰlo [se lo-ho-kʰia] we-ka-se
homem cachorro [REF morder-REL-IMPF] matar-IND-PST
‘o homem matou cachorro que mordia’

Contudo, no caso em que o objeto da principal é correferenciado pelo sujeito da


relativa, a qual tem por núcleo um verbo intransitivo estativo, tem-se o morfema /-dowa/:

(98) ‘ã ma ‘tʃãna ‘ɔtska e kʰlɛ ‘tʃadʷa ‘naːkase


a ma tʃana ɔtska [e kʰlɛtʃa-dowa] naha-ka-se
2s INT aquele homem 3(O) cantar-REL ver-IND-PAS
‘você viu aquele homem que canta (agora, está cantando)?’

Logo, ocorrem os seguintes emparelhamentos:

(99) a. 𝐴𝑃 = 𝐴𝑅 : /-ho/
b. 𝑂𝑃 = 𝐴𝑅 : /-ho/

c. 𝑂𝑝 = 𝑆𝑜𝑅 : /-dowa/
d. 𝐴𝑃 = 𝑆𝑜𝑅 : /-dowa/23

Segundo Costa (2005) há aí o indicativo de um comportamento ergativo, com o


que concordo em partes, tendo em vista o dado em (99c), em que O da primeira é
coindexado a So da segunda, sugerindo que ambos recebem o mesmo caso. Isso é comum
em línguas ergativas, cf. Comrie (1989). Retoma-se o dado em (98) na análise (seção 5).
Aparentemente, os dados disponíveis não permitem maiores avanços para melhor
classificação da língua Yaathê, quanto ao seu Sistema de Caso. Até este ponto, vê-se que
se trata de uma língua ergativo-ativa, em sua terceira pessoa, e com um comportamento
neutro para as demais pessoas, no nível morfológico.

23
Os subscritos P e R querem dizer, respectivamente, principal e relativa. De modo que AP quer dizer
Sujeito transitivo da sentença principal e assim por diante.

57
4.2. Bororo

Nonato (2008) descreve as classes verbais do Bororo, passo importante à


caracterização do Sistema de Caso da língua. Com base em suas estruturas
morfossintáticas, os verbos podem ser classificados em (i) inacusativos, (ii) transitivos e
(iii) inergativos, cujos contextos estruturais de aparição são, respectivamente:

(i) (So) (AgrSo).verbo-TNM


(ii) (A) (AgrA).TNM (O) (AgrO).verbo
(iii) (Sa) (AgrSa).TNM (AgrSa).verbo24

Os inergativos (iii) possuem duas concordâncias, sendo que uma delas (aquela
adjacente ao verbo) é anafórica. Tendo isso em vista, a ordem - note que marcas de sujeito
inacusativo e objeto transitivo são adjacentes ao verbo, enquanto marcas de sujeitos
transitivos e inergativos são separadas do verbo pelos morfemas de tempo, negação e
modo (TNM) - já sugere algum alinhamento quanto à organização linear dos argumentos.
O Sistema de Caso, em seguida, é descrito a partir da observação do fenômeno de
concordância, uma vez que a língua não possui marcação morfológica de caso. Nessa
língua, a concordância revela um alinhamento semelhante ao de línguas ergativo-ativas,
como o Basco e o Georgiano (NONATO, 2008).
A concordância entre verbo transitivo e objeto (cf. 100 e 101) e entre verbo
inacusativo e sujeito (cf. 102 e 103) é obrigatória.

(100) Adugodoge ere arigaodoge ewido


adugo doge e re arigao doge e bito
‘onça’ plural 3p assertivo ‘cachorro’ plural 3p ‘matar’
N Suf Agr M N Suf Agr V
‘As onças mataram os cachorros’

(101) *Adugodoge ere arigaodogebito


adugo doge e re arigao doge bito
‘onça’ plural 3p assertivo ‘cachorro’ plural ‘matar’

24
Adaptado de Nonato (2008).

58
N Suf Agr M N Suf V
‘As onças mataram os cachorros’

(102) Arigaodoge ewire


arigao doge e bi re
‘cachorro’ plural 3p ‘morrer’ assertivo
N Suf Agr V M
‘Os cachorros morreram’

(103) *Arigaodoge bire


arigao doge bi re
‘cachorro’ plural ‘morrer’ assertivo
N Suf V M
‘Os cachorros morreram’

Por outro lado, ela é opcional quando entre verbo transitivo e seu sujeito (cf. 104
e 105) e entre verbo inergativo e seu sujeito (cf. 106 e 107).

(104) Adugodoge ere arigaodoge ewido


adugo doge e re arigao doge e bito
‘onça’ plural 3p assertivo ‘cachorro’ plural 3p ‘matar’
N Suf Agr M N Suf Agr V
‘As onças mataram os cachorros’

(105) Adugodogere arigaodoge ewido


adugo doge re arigao doge e bito
‘onça’ plural assertivo ‘cachoro’ plural 3p ‘matar’
N Suf M N Suf Agr V
‘As onças mataram os cachorros’

(106) Imedu ure boeto ii


Imedu u re boeto i ji
‘homem’ 3s assert. ‘bater’ 1s tema

59
N Agr M V Agr P
‘O homem me bateu’

(107) Imedure boeto ii


Imedu re boeto i ji
‘homem’ assert. ‘bater’ 1s tema
N M V Agr P
‘O homem me bateu’

Do exemplo em (100) para o exemplo em (101), a única diferença é a ausência de


marca de concordância com o objeto, possivelmente, responsável pelo desencadeamento
da agramaticalidade. Semelhantemente, a agramaticalidade de (103) parece dever-se à
ausência da concordância entre sujeito e verbo inacusativo, em comparação ao exemplo
(102), cuja presença da marca, parece, garante a gramaticalidade. Nos demais exemplos,
as sentenças permanecem gramaticais, a despeito da presença/ausência de marca que
assegure a concordância entre sujeito e verbos transitivo ou inergativo.
Uma peculiaridade da terceira pessoa singular, no paradigma de marcação
morfológica de pessoa, ratifica o emparelhamento verificado nos exemplos acima.
Enquanto a concordância se dá através de um morfema u para sujeitos transitivos e
sujeitos inergativos; ela se dá através de u ou nulo para objetos transitivos e sujeitos
inacusativos. Tais constatações sintetizam uma identidade entre sujeito transitivo e sujeito
inergativo, que contrasta com aquela entre objeto transitivo e sujeito inacusativo, comum
a línguas ergativo-ativas. Nas palavras de Nonato (2008, p. 188):

Isso caracteriza um sistema de concordância do tipo ergativo ativo.


Como, em um modelo baseado no MIDP25, os fenômenos de caso e
concordância são considerados conseqüências visíveis de um mesmo
processo computacional (a operação agree), esses dados também
caracterizam um sistema de caso do tipo ergativo ativo, em que os
objetos e sujeitos inacusativos recebem caso nominativo e os sujeitos
transitivos e inergativos recebem caso ergativo.

25
Minimalist Inquiries (CHOMSKY, 2000 apud NONATO, 2008) e Derivation by Phase (CHOMSKY,
2001 apud NONATO, 2008).

60
4.3. Maxakalí

Diferentemente do Bororo, o Maxakalí apresenta marca morfológica de caso, o


ergativo {-te} (CAMPOS, 2009). Além disso, a língua distingue marcadores pessoais
inativos e ativos. Aqueles são formas presas que aparecem prefixadas a verbos
intransitivos inativos (inacusativos), realizando concordância entre sujeito e verbo. Os
marcadores de pessoa ativos, formas às quais o ergativo está adjunjugido, aparecem com
verbos transitivos e intransitivos ativos (inergativos). Essa marca emerge também ligada
a sintagmas nominais.
Segundo Campos (2009), há, nessa língua, um comportamento tripartido, o que
se demonstrará através dos exemplos subsequentes. Identificando o sujeito de verbo
transitivo (A) está a marca de ergatividade:

(108) Kakxop -te kuxxamuk put


[kak˺tʃuɤ̯p˺ tæɁ kɨjtʃabɯk˺ pɯɣɜt˺]
homem ERG lambari pegar.s
‘O menino pegou um lambari’

(109) Ã -te ũg- pata ãkoho


[ʔã ˈtæɁ ʔɯ̃ŋ paˈtaɁ ʔãkoˈhoɁ]
Eu ERG eu- pé coçar
‘Eu cocei meu pé’

Semelhantemente, os sujeitos de verbos inergativos recebem exatamente a mesma


marca. Veja-se:

(110) Puxap te nut


[pɯˈtʃaɤ̯p˺ tæɁ ˈdɯɣəɜ̯t˺]
pato ERG deslizar
‘O pato desliza (na água)’

(111) Kakxop te tatxok


[kak˺ˈtʃuɤ̯p˺ tæɁ ˈtaɜ̯t˺tʃowk˺]
menino ERG banhar

61
‘O menino se banha’

Por outro lado, contrariando descrições anteriores (PEREIRA, 1992 apud


CAMPOS, 2009), o autor lança luz sobre a ausência de alinhamento entre objeto de verbo
transitivo e sujeito de verbo inacusativo. Aquele é identificado pela posição pré-verbal
enrijecida, de modo que outros elementos não podem se intercalar a verbo e objeto,
quando na ordem canônica SOV (cf. 112, 113 e 114). Demais, o marcador de objeto de
terceiras pessoas singular e plural no verbo é nulo, ratificando a distinção com So (o qual
possui marca explícita de concordância nessas mesmas pessoas, como se verá na
sequência).

(112) Kokex-kata -te kũnũn mãhã


[kuˈkæjkahˈtaʔ ˈtæʔ kɯ̃ˈnɯ̃ɜ̯ñ mãˈhãʔ]
Cachorro vermelho ERG quati.FR comer CAUS
‘Suçuarana comeu um quati’

(113) Tik te kutet xak


[tɪjk˺ ˈtæʔ kɯhˈtæɜ̯t˺ tʃak˺]
Homem.FR ERG bambu.FR cortar
‘O homem cortou o bambu’

(114) Ã -te yũmũg


[ãh ˈtæʔ ɲɯ̃ˈmɯ̃ŋ]
Eu ERG 3.ø conhecer
‘Eu os conheço’

Essa adjacência sugere uma incorporação do objeto pelo verbo que, segundo o
autor, pode ser atestada pela redução de certos nomes26 que aparecem na posição pré-
verbal.

26
Aqueles cujo padrão fonotático é caracterizado pela presença de uma sílaba VXV, no interior da palavra,
em que X é uma consoante fricativa glotal ou uma consoante oclusiva glotal e os Vs são vogais idênticas.

62
(115) a. Forma Plena: b. Forma Reduzida:
Kũnũhũn Kũnũn
[kɯ̃nɯ̃ˈhɯ̃ɜ̯n] [kɯ̃ˈnɯ̃ɜ̯n]
‘Quati’ ‘Quati’

Já sujeitos inacusativos são correferenciados por -ũ (cf. 116) - quando o verbo é
inacusativo da classe I -; e, em alguns situações - quando o verbo é inacusativo da classe
II -, correferenciados (ou não) por ũ- e (necessariamente) pelo reflexivo yãy (cf. 117 e
118), nas terceiras pessoas singular e plural.

(116) Mĩkax-xap ˈũ- patõ-nãg


[mĩkajˈtʃaɤ̯p˺ Ɂɯ̃ patõhˈnãʔ]
faca semente ele.INAT molhado-DIM
‘A pedra está molhada’

(117) Yogano ũ-yãy pakũhĩy


[dʒogaˈdoɁ Ɂˈɲãjɲ̃ paɁkɯ̃ˈhɪĩ̃ ɲ]
Jogador ele.INAT-REFL distrair
‘O jogador se distraiu’

(118) Tihik yãy xaxog-ãhã


[tɪˈhɪk˺ ɲãj ̃ tʃatʃugãˈhã]
Homem.FP REFL perder-se CAUS
‘O homem perdeu-se’

Sobre essa distinção em duas classes há uma interessante elucidação feita por
Campos (2009, p. 105-106):

Em geral, verbos da classe I necessitam do sufixo causativo {-nãhã} para


se transitivizarem, enquanto verbos da classe II prescindem desse sufixo,
pois tais verbos são na verdade derivados de verbos transitivos, que, para
se intransitivizarem, necessitam do reflexivo yãy.

Línguas tripartites são aquelas em que A, S e O são codificados diferentemente


entre si, morfossintaticamente. Todavia, o Maxakalí apresenta um alinhamento mínimo,

63
aquele observado entre A e Sa, os quais se distinguem de O e So (também distintos entre
si). Sendo assim, aquele alinhamento aponta um comportamento ergativo-ativo, mas as
demais diferenciações fazem com que o sistema de caso dessa língua seja sintetizado
como ergativo-ativo tripartido, [A Sa] [O] [So], cf. Campos (2009).
O que a tipologia denomina caso absolutivo, aqui, parece se diferenciar em dois
Casos abstratos, aquele referente a O e aquele referente a So (CAMPOS, 2009).
Recuperando os trabalhos de Legate (2006 apud CAMPOS, 2009) e Woolford (2006
apud CAMPOS, 2009), o autor mostra que o objeto recebe Caso Nominativo, do núcleo
Tº, enquanto o sujeito do inacusativo recebe Caso Acusativo do núcleo vº. Aquele seria
uma espécie de Caso estrutural licenciado por Concordância Verdadeira, nos termos de
Woolford, o que está de acordo com o fato de que verbos inacusativos concordam com
seus sujeitos por meio de prefixos pessoais, em Maxakalí. O mesmo não é verdade para
o objeto. Além disso:

Essa hipótese [a de que o Maxakalí teria um sistema tripartido] se


sustenta nas construções em que a ordem muda de SOV para OSV. O
curioso é que, nessas construções, o verbo apresenta concordância de
pessoa e número com o objeto. Todavia, tal concordância não se observa
nas orações ativas em que a ordem predominante é SOV. Com base
nesses fatos, a hipótese de que o objeto tem seu traço de Caso alterado
de acusativo para nominativo nas construções OVS ganha reforço
adicional. (DUARTE, 2012, p. 284)

4.4. Mebengokre

Em Mebengokre, embora não exista marca morfológica de caso, este pode ser
visualizado através do sistema pronominal, o qual evidencia três formas distintas, a saber:
as formas presas, os pronomes livres e as formas ergativas (independentes) (SILVA,
2001). Esses paradigmas possuem distribuições próprias, as quais devem revelar o
Sistema de Caso multifacetado da língua.
Trata-se, cf. Silva (2001), de uma língua ora ergativa, ora acusativa. Esse tipo de
sistema parcial é desencadeado por determinados contextos sintáticos. No caso do
Mebengokre, em sentenças relativas ao sistema acusativo, a posição final da sentença é
ocupada pelo verbo, enquanto em sentenças relativas ao sistema ergativo a posição final
é ocupada por elementos funcionais, os quais seguem o verbo. Como exemplo do
alinhamento acusativo, observe as sentenças a seguir:

64
(119) ba i-kra mɣ
NOM 1POSS-filho segurar
‘eu segurei (seguro) meu filho’

(120) arɣp ba tẽ


já 1NOM ir
‘eu já fui’

(121) ba dʒa ba tw̃m


1FOC MI 1NOM cair
‘eu que vou cair’

Nota-se que tanto sujeito intransitivo como sujeito transitivo de primeira pessoa
são codificados com o pronome livre ba. Distinguindo-se do objeto de terceira, o qual
não possui, neste caso, marca explícita de codificação do acusativo. Demais, a marca de
modo irrealis27 dʒa aparece na periferia esquerda, antes do verbo, que está em posição
final. Em contrapartida, quando um elemento aspectual, como a posposição usada para
indicar o prospectivo28, aparece ao final da sentença, verifica-se a mudança de
alinhamento, conforme os exemplos abaixo:

(122) ajɛ i-pumũɲ mãʌ̃ (123) i-tũm ɣrɣ


2ERG 1ABS-ver PROSPEC 1ABS-cair PROSPEC
‘você está para me ver’ ‘estou para cair’

Há, aí, um alinhamento do tipo ergativo, em que S e O são codificados através dos
mesmos morfemas de absolutivo, enquanto A recebe a marca ergativa. Nesse caso, os
sujeitos transitivos são codificados através das formas ergativas, enquanto os sujeitos
intransitivos e objetos através das formas presas ao verbo. Esse alinhamento pode ser
desencadeado não só pela posposição de aspecto na posição pós-verbal, mas também por
marca de negação - também em posição pós-verbal (cf. 124-127):

27
definição de irrealis.
28
Esse aspecto “(...) descreve uma ação ou evento que está prestes a se realizar.” (SILVA, 2001, p. 62)

65
(124) ba i-kra mɣ (125) [ije i-kra mɣi] ket
NOM 1POSS-filho segurar [1ERG 1POSS-filho segurar] N
‘eu segurei (seguro) meu filho’ ‘eu não segurei meu filho’

(126) arɣp ba tẽ (127) i-tẽm ket


já 1NOM ir 1.ABS-ir N
‘eu já fui’ ‘eu não fui’

Por subordinação - em Mebengokre todas as subordinadas são ergativas29, em contraste


com a oração principal, que aparenta ser ou acusativa ou ergativa, a depender da ausência
ou presença de elemento funcional após o verbo:

(128) ga tɛp krẽ (129) i-mʌ̃ [ajɛ tɛp krẽn] prʌ̃m


2NOM peixe comer 1-DAT [2ERG peixe comer] querer
‘você comeu o peixe’ ‘eu quero que você coma peixe’

(131) [memɯ kutɛ rɔpkrɔri titik ja] arɣm mʌ̃ tẽ


[homem 3ERG onça bater NOMN] já para ir
‘o homem que bateu na onça já foi’

(132) dʒa ba tẽ nẽ kam ba a-mʌ̃ fita ŋʌ̃


MI NOM ir CONJ P NOM 2-DAT fita dar
‘eu vou dar a fita para você quando eu for’

(133) [i-tẽm ɤrɤ] ijɛ a-mʌ̃ fita ɳõrõ ket


[1ABS-ir PROSPEC] 1ERG 2-DAT fita dar NEG
‘quando eu estiver para ir eu não vou dar a fita para você’

Com base nos exemplos arrolados, Silva (2001) faz as seguintes generalizações:

O Mebengokre exibirá o sistema ergativo quando o verbo temático não


ocupar a posição de núcleo da oração.

29
O que pode se dever ao fato de que as relativas sempre apresentam uma informação funcional em posição
final, como o elemento nominalizador explícito em 131, já que essas sentenças se comportam como
sintagmas nominais.

66
Assim considera-se, por hipótese, que no sistema acusativo a oração é
encabeçada por um verbo temático, enquanto que no ergativo a oração é
encabeçada por uma cabeça funcional30 que toma como seu
complemento uma oração não-finita. (p. 65)31

Esses fenômenos em Mebengokre são interessantes uma vez que contrariam


previsões feitas por Dixon (1994). Segundo o autor, quando uma cisão é desencadeada
por tempo/aspecto, espera-se que o ergativo esteja associado ao tempo passado e ao
aspecto perfectivo (eventos totalmente estabelecidos), enquanto o acusativo relaciona-se
a eventos que não estão estabelecidos, tempo futuro e aspecto imperfectivo. Embora
Dixon nada fale sobre a cisão com relação à negação, por analogia, como uma ação
completa estaria associada ao ergativo, provavelmente uma sentença negativa seria
acusativa, o que também não está de acordo com os dados (SILVA, 2001). Por fim,
também de acordo com Dixon, quando há cisão no eixo da subordinação, a relativa será
acusativa desde que seja de propósito, semelhantemente a uma principal no tempo futuro
ou aspecto imperfectivo. Desse modo, aquelas que não são de propósito serão ergativas.
Além disso, o autor nos informa que quando a relativa for de um dado tipo, a principal
será do outro, mantendo essa diferenciação, o que os dados aqui arrolados também negam.
No Mebengokre, que é uma língua de núcleo final, esse sistema parcial sugere uma
motivação mais estrutural/sintática do que semântica. Informações que normalmente
estão associadas ao núcleo flexional I, quando em posição final, engatilham a
ergatividade. Por fim, cf. Silva (2001), é possível falar sobre cisão da ergatividade no eixo
estativo-ativo, relativa à diferença entre predicados codificados como nomes e àqueles
codificados como verbo, respectivamente. Mas esse aspecto não é mais explorado pela
autora.

4.5. Breves considerações

As línguas de um modo geral confluem para o tipo ergativo-ativo (Yaathê,


Bororo, Maxakalí) e ergativo-absolutivo (Mebengokre). Uma delas, o Maxakalí, é
especificamente ergativo-ativa tripartida. No Mebengokre, o sistema ergativo-absolutivo
manifesta-se em contextos específicos, o que faz dele apenas parcialmente ergativo. No
Yaathê, morfologicamente, o sistema é parcialmente neutro e parcialmente ergativo-ativo

30
Esse núcleo funcional pode estar no nível da morfologia, e não da sintaxe, como o nominalizador de um
verbo em sentença relativa.
31
A asserção está alinhada ao fato de que o Mebengokre é uma língua de núcleo final.

67
(expresso apenas na 3ª pessoa do singular). Em Bororo o sistema se expressa nos
fenômenos de concordância e ordem, no Maxakalí está expresso através de morfologia
de caso, concordância e ordem, em Mebengokre sobretudo através de suas formas de
pessoa e em estruturas interrogativas. No Yaathê ele é observado através de seus clíticos
de pessoa. Pouco pôde ser dito sobre o alinhamento em nível sintático nessa língua.
Observou-se, por fim, que em Bororo o Caso do objeto (O) e sujeito inacusativo (So) é o
nominativo, enquanto o do sujeito inergativo (Sa) e sujeito transitivo (A) é o ergativo; e
aí se expressa a sua cisão. Em Maxakalí, por outro lado, O e So checam Casos distintos,
aquele checa o nominativo, este, o acusativo; aí se expressa a sua tripartição. Uma questão
importante para que se passe à análise é especificamente quais os Casos que o Yaathê
checa e se ele pode se aproximas do Maxakalí e/ou do Bororo nesse aspecto.

Tabela 4 - Sistemas de Caso do Bororo, Maxakalí, Mebengokre e Yaathê.


Bororo Maxakalí Mebengokre Yaathê

Ergativo x

Ergativo-ativo x x x

Tripartite x ?

Neutro x

Nominativo x
Fonte: autoria nossa.

68
5. Esboçando uma análise para o Sistema de Caso do Yaathê: algumas hipóteses

Esta seção procura elaborar uma análise, ainda que de forma preliminar, para o
Sistema de Caso do Yaathê. É necessário ter-se em mente que se vai até onde os dados
permitem que se chegue, utilizando-se das ferramentas discutidas nas seções 2.2.2, 2.2.3
e 2.2.4. Lança-se mão de hipóteses, com base no que foi observado nas demais línguas
Macro-Jê. Sobretudo, a partir das análises das línguas Bororo (NONATO, 2008) e
Maxakalí (CAMPOS, 2009), as quais põem luz sobre o comportamento da língua em
foco.

5.1. Estrutura argumental

As estruturas argumentais dos verbos em Yaathê, ao menos daqueles descritos na


seção anterior, são forjadas com base em Woolford (2006). Verbos transitivos e
intransitivos compartilham a propriedade de terem, necessariamente, as camadas vP e VP,
enquanto verbos inacusativos possuem apenas a camada VP. Ficará claro na discussão
subsequente que o fenômeno de aumento de valência dos verbos inacusativos será
compreendido a partir da colocação da camada vP sobre VP - o que capta a alternância
incoativa-ativa; representação que se distinguirá daquela dada para causativização de
verbos transitivos.
O único argumento de um verbo inacusativo surge na posição interna ao VP, em
[V Comp]:

Verbo Inacusativo: (135’)

(134) [𝑉𝑃 𝑉 𝐷𝑃]

(135) [𝑉𝑃 𝑘𝑓𝑎𝑓𝑎𝑘𝑎𝑠𝑒 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎]

[ɔtska e kfafakase] ‘o homem dormiu’

Semelhantemente, o DP objeto de um verbo transitivo surge na posição


argumental interna a VP, enquanto o argumento externo, o sujeito, surge na posição [Spec

69
vP]. Aqui, o complemento de v é necessariamente um VP. O núcleo V move-se para ser
concatenado ao núcleo v (cf. 137 e 139), cujo spell out é um morfema vazio:

Verbo transitivo: (139’)

(136) [𝑣𝑃 𝐷𝑃[𝑣′ 𝑣 [𝑉𝑃 𝑉 𝐷𝑃] ] ]


(137) [𝑣𝑃 𝐷𝑃[𝑣′ 𝑉𝑖 + 𝑣 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 𝐷𝑃] ] ]32

(138) [𝑣𝑃 𝑡𝑎 [𝑣 𝑣 [𝑉𝑃 𝑘𝑒𝑦𝑛𝑖𝑘𝑎𝑠𝑒 [𝐷𝑃 𝑖 ʃ𝑖] ] ] ]


(139) [𝑣𝑃 𝑡𝑎 [𝑣 𝑘𝑒𝑦𝑛𝑖𝑘𝑎𝑠𝑒𝑖 + ø [𝑉𝑃 𝑡𝑖 [𝐷𝑃 𝑖 ʃ𝑖] ] ] ]

[ta i ʃi keynikase] ‘ele ensinou a meu irmão’

O único argumento de verbos inergativos surge em posição argumental externa,


em [Spec IP]. O elemento em posição de complemento de vP pode ser um NP ou AP e
ele também é movido e concatenado ao núcleo v, cujo spell out é o sufixo /-ne/:

Verbo Inergativo: (143’)

(140) [𝑣𝑃 𝐷𝑃 [𝑣′ 𝑣 [𝑋𝑃 𝑋 ]


(141) [𝑣𝑃 𝐷𝑃 [𝑣′ 𝑋𝑖 + 𝑣 [𝑋𝑃 𝑡𝑖 ]

(142) [𝑣𝑃 𝑡𝑎 [𝑣′ − 𝑛𝑒 [𝑁𝑃 𝑓𝑒𝑒𝑡𝑜]


(143) [𝑣𝑃 𝑡𝑎 [𝑣′ 𝑓𝑒𝑒𝑡𝑜𝑖 + 𝑛𝑒 [𝑁𝑃 𝑡𝑖 ] ]

[ta feetõnekãkʸa oːke] ‘ele ainda trabalha aqui’

Em que X é igual a N (categoria nominal) ou A (categoria adjetival).


Os transitivos (canônicos e derivados de inacusativos pelo /-ne/, que permitem a
alternância incoativa-ativa) diferenciam-se dos inergativos pelo fato de, nestes, v
necessariamente c-selecionar nomes e adjetivos, enquanto que naqueles a c-seleção é a
de um verbo. Observe-se, além disso, que os inacusativos possuem um DP em posição

32
Os traços serão utilizados como forma didática de indicar o local em que surgem os elementos.

70
argumental interna a V, enquanto em inergativos o XP é o elemento em posição
argumental interna, sendo que do núcleo v. Isso fica mais claro se pensarmos que, em
Yaathê, verbos inergativos são, diacronicamente, derivados da composição entre neka
‘faz/fazer’ e objeto, o qual é incorporado pelo verbo. Como foi mencionado, as duas
formas, verbo e objeto, não são mais depreendidas, pelo menos não aparentemente,
devido à sua ausência nos dados. Mas fenômenos de empréstimo como walaka ‘manga’
> walakaneka ‘fazer manga’, indicam a presença de um nome e um verbo leve que
formam um complexo.
(144) indica a possibilidade de alternância pela concatenação do núcleo v, o qual
licencia também uma posição [Spec vP], enquanto (146) é o exemplo trazido em Yaathê.
(145) e (147) indicam o movimento de V, que é concatenado ao núcleo v.

Alternância incoativa-ativa:

(144) [𝑉𝑃 𝑉 𝐷𝑃] ↔ [𝑣𝑃 𝐷𝑃[𝑣′ 𝑣[𝑉𝑃 𝑉 𝐷𝑃] ] ]


(145) [𝑣𝑃 𝐷𝑃[𝑣′ 𝑉𝑖 + 𝑣 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 𝐷𝑃] ] ]

(146) [𝑉𝑃 𝑘𝑓𝑎𝑓𝑎 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎] ↔ [𝑣𝑃 𝑡𝑎 [𝑣 − 𝑛𝑒 [𝑉𝑃 𝑘𝑓𝑎𝑓𝑎 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎] ] ]


(147) [𝑣𝑃 𝑡𝑎 [𝑣 𝑘𝑓𝑎𝑓𝑎𝑖 + 𝑛𝑒 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎] ] ]

[yadedʷa e kfafᶺka] ‘o menino dorme’


↔ [ɔtska yadedʷa kfafaneka] ‘o homem fez o menino dormir’

(147’)

71
5.2. Checagem de Caso

À posição [Spec vP], está associada a checagem do Caso ergativo, tido como
inerente nos termos de Woolford (2006). Dois fatores levam a essa consideração: por um
lado, os sujeitos de transitivos (supostos argumentos externos) possuem de forma
majoritária o papel-θ Agente; por outro, paralelamente ao aparecimento do morfema /-
ne/, suposto spell out do núcleo v para inergativos e transitivos que sofreram aumento de
valência, o qual autorizaria a posição [Spec vP] para argumento externo, aparecem
sujeitos com papel temático de Agente. E, cf. Duarte:

Nota-se que uma das principais propriedades dessas línguas [ergativas]


é que o sujeito de verbos de ação, independentemente do fato de serem
transitivos ou intransitivos (=inergativo), vem sempre marcado com o
Caso ergativo. Esta é a situação que se verifica, por exemplo, no basco e
no georgiano (...). (DUARTE, 2012, p. 275)

Sendo assim, o argumento em posição argumental externa checa o Caso ergativo


numa relação com o núcleo v, na posição em que surge. Sua representação é coloca
abaixo:

Checagem do ergativo em inergativos:

(148) [𝑣𝑃 𝐷𝑃𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑣𝐸𝑅𝐺 [𝑋𝑃 𝑋] ] ]

(149) [𝑣𝑃 𝐷𝑃𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ −𝑛𝑒𝐸𝑅𝐺 [𝑋𝑃 𝑓𝑒𝑒𝑡õ] ] ]


(150) [𝑣𝑃 𝑡𝑎𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑓𝑒𝑒𝑡õ𝑖 𝑛𝑒 𝐸𝑅𝐺 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 ] ] ]

[ta feetõnekãkʸa oːke] ‘ele ainda trabalha aqui’

/ta/ ocupa a posição argumental [Spec vP]. Conforme sugere (158), trata-se antes
de argumento do que de resultado de concordância.

Checagem do ergativo em transitivos canônicos:

(151) [𝑣𝑃 𝐷𝑃𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑣𝐸𝑅𝐺 [𝑉𝑃 𝑉 𝐷𝑃] ] ]

72
(152) [𝑣𝑃 𝐷𝑃𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ ø𝐸𝑅𝐺 [𝑉𝑃 𝑤𝑘ʸ𝑎𝑠𝑒 𝑘𝑙𝑒𝑘𝑒𝑦𝑛𝑖ː𝑠𝑜] ] ]
(153) [𝑣𝑃 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑤𝑘ʸ𝑎𝑠𝑒𝑖 ø𝐸𝑅𝐺 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 𝑘𝑙𝑒𝑘𝑒𝑦𝑛𝑖ː𝑠𝑜] ] ]

[ɔtska klekeyniːso wkʸase] ‘o homem matou a onça’

Checagem do ergativo em inacusativos que sofreram aumento de valência:

(154) [𝑉𝑃 𝑉 𝐷𝑃] ↔ [𝑣𝑃 𝐷𝑃𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑉𝑖 + 𝑣𝐸𝑅𝐺 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 𝐷𝑃] ] ]

(155) [𝑣𝑃 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑛𝑒𝐸𝑅𝐺 [𝑉𝑃 𝑘𝑓𝑎𝑓𝑎 𝑦𝑎𝑑𝑒𝑑ʷ𝑎] ] ]


(156) [𝑣𝑃 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑘𝑓𝑎𝑓𝑎𝑖 𝑛𝑒 𝐸𝑅𝐺 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 𝑦𝑎𝑑𝑒𝑑ʷ𝑎] ] ]

[ɔtska yadedʷa kfafᶺnekase] ‘o homem fez o menino dormir’

Porém ainda não está claro quais os Casos que devem checar os argumentos
gerados em posição interna ao VP: os objetos de transitivos (O) e os sujeitos de
intransitivos inacusativos (So). Duas diferentes hipóteses dependem de a língua ser
sintática ou morfologicamente ergativa, cf. Duarte (2012). O caso do objeto pode ser
checado numa posição externa ao complexo vP-VP, em [Spec TP], caracterizando-se
especificamente como nominativo, ou em posição interna a esse domínio, em uma
segunda posição [Spec vP], caracterizando-se como acusativo. Mas, línguas
morfologicamente ergativas fazem uma divisão entre verbos intransitivos, aqui, captada
pelo v. Assim, verbos inacusativos não possuem projeção encabeçada por v, de modo que
eles não possuem posição [Spec vP] para checagem, sendo aos seus sujeitos,
possivelmente, relegada a posição [Spec TP] mais acima, onde devem checar o
nominativo. Uma proposta de vP para estes verbos não captaria a sua diferenciação
necessária com relação a verbos transitivos/inergativos, contudo. E sabe-se a importância
dessa diferenciação para os intransitivos em Yaathê. A cisão de intransitivos, portanto,
pode desencadear uma distinção entre So e O, levando o sistema morfologicamente
ergativo a ser tripartido, pois [A e Sa], O e So acabarão por se distinguir entre si. Línguas
sintaticamente ergativas, ao contrário, não fazem a cisão entre inacusativos e inergativos,
de modo que ambos podem ser encabeçados por v. Consequentemente, essas línguas não

73
fazem a diferenciação entre O e So e, por conseguinte, não possuem um sistema tripartido,
com três Casos distintos.
Nonato (2008) propõe, com base no Bororo, a utilização de um verbo leve
defectivo v (CHOMSKY, 2001 apud NONATO, 2008), que capte construções do tipo
incoativas, as quais possuem verbos transitivos que recebem um morfema
detransitivizador (o verbo leve), resultando em inacusativos da língua. Assim v seria o
verbo leve que encabeça inacusativos, incapaz de licenciar argumento externo, e v*, o
que encabeça transitivos e inergativos. Uma solução interessante, mas que por falta de
possibilidades de teste não pode ser considerada aqui. A ausência de coocorrência entre
/e/ (para concordar com o objeto) e o morfema /-ne/, no contexto de aumento de valência33
- embora não existam dados que comprovem a sua agramaticalidade - pode apontar uma
relação de “complementaridade”, sugerindo que /-ne/ e /e/ são resultado da concatenação
de núcleos com funções semelhantes, a de verbalização, mas que aparecem em estruturas
argumentais distintas (algo como v* e v).
Pode-se assumir, por um lado, que em Yaathê So e O são sutilmente distintos,
revelando certo desalinhamento entre seus comportamentos. So pleno e clítico /e/, que
prefiro tomar como concordância, costumam coocorrer; enquanto tal coocorrência
(quase) não se verifica entre O e /e/, embora revele-se algumas vezes, como em (157) e
(158).

(157) [jaːˈdedwa utˈʃi eikaˈse]


jaːdedwa utʃi e i-ka-se
menino carne 3.So comer(carne)-IND-PST
‘o menino comeu carne’

(158) [jaːˈdedʷa ta utˈʃi eikase]


jaːdedʷa ta utʃi e i-ka-se
menino 3.A carne 3.O comer(carne)-IND-PAS
‘o menino, ele comeu a carne’

E, simultaneamente, há a igual possibilidade de não coocorrência entre sujeito


inacusativo e sua concordância, também um contraexemplo dessa distinção, como em:

33
Algo como: klayʃiwa ɔtskai ei=kfafanekase ‘o padre dormiu o homem’. No entanto, esse tipo de
construção não é encontrado nos dados.

74
(161) ɔtska ø kfafᶺkase
homem 3s.So dormir-IND-PST
‘o homem dormiu’

Mas a coocorrência (SO /e/=V) e a não coocorrência (So ø=V), em sentenças


simples, são pouco frequentes no banco de dados. Elas poderiam, por exemplo, indicar
alguma mudança no padrão de checagem dos traços de Caso desses dois argumentos (O
e So): antes checavam, igualmente, o nominativo em [Spec TP]; agora, diferenciam-se e
O passa a ser checado no interior de vP-VP.
Por outro lado, é interessante notar o que podem dizer sentenças com advérbios a
fim de se investigar possíveis posições onde surgem e para onde se movem os verbos e
seus argumentos:

(159) i lefetiya w-kʸa-se hle


1s boi matar-IND-PST imediatamente
A O V-M-T Adv
‘eu já matei o boi’

(160) ja fekʰetotowa e ʃi-ka-se hele


1pl antepassado 3s chegar-IND-PST imediatamente
So Agr V-M-T Adv
‘nosso antepassado já chegou’

Essas construções poderiam indicar que o verbo é alçado para uma nova posição,
fora de vP-VP e de VP, deixando para trás o advérbio que modifica VP. No entanto, não
há testes de (a)gramaticalidade para sentenças com o advérbio em diferentes posições, o
que impede uma asserção mais categórica quanto a essa movimentação do verbo.
A despeito de todas essas ressalvas, pode-se assumir hipoteticamente que: (i)
objeto e sujeito inacusativo têm se diferenciado quanto à coocorrência com a
concordância/marca /e/, que expressa o absolutivo; e (ii) a posição final dos advérbios
nas sentenças acima sugere que eles surgem em VP junto ao verbo. O verbo acaba se
movendo para uma posição de núcleo em uma projeção mais acima ([Spec vP] (caso haja)
e, depois, [Spec TP]), onde checa traços de tempo e modo, deixando o advérbio para trás.

75
(i), no entanto, não é uma regra inquebrável como denotam os exemplos acima. Por fim,
caso se assuma que ambos (So e O) checam Caso acusativo, isto é, na fase vP-VP, seria
necessário repensar o que diferencia inergativos e inacusativos - possivelmente,
assumindo um v defectivo. A outra possibilidade seria assumir que O também checa o
Caso nominativo, como no Bororo.
Como determinar, então, se uma língua é sintática ou morfologicamente ergativa?
Como já apontado, segundo Duarte (2012), em línguas sintaticamente ergativas, o
argumento absolutivo está particularmente implicado em uma série de mecanismos
sintáticos que o aproximam do sujeito de línguas acusativas.
Reiterando, os dados não são exatos na confirmação do local de checagem dos
Casos de objetos e sujeitos inacusativos, uma vez que não dizem sobre as suas possíveis
movimentações e se de fato a língua é ou não é morfologicamente ergativa (não há testes
claros como esses com relativas, sentenças de controle e coordenadas). Mas, a cisão entre
intransitivos pode apontar para uma ergatividade morfológica, nos termos de Duarte
(2012), de modo que os argumentos O e So podem portar traços distintos de Caso os quais
bem poderiam ser checados em lugares diferentes. A argumentação anterior também
caminha nesse sentido.
Tome-se como verdade, então, que o sujeito de inacusativo é alçado junto ao verbo
para checar Caso em [Spec TP]:

Checagem do nominativo para o sujeito de inacusativo:

(162) [𝑇𝑃 𝐷𝑃𝑗 𝑁𝑂𝑀 [𝑇′ 𝑉𝑖 + 𝑇𝑁𝑂𝑀 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 𝑡𝑗 ] ] ]

(163) [𝑇𝑃 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎𝑗 𝑁𝑂𝑀 [ 𝑇′ 𝑘𝑓𝑎𝑓𝑎𝑖 𝑘𝑎𝑠𝑒 𝑁𝑂𝑀 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 𝑡𝑗 ] ] ]

[ɔtska e kfafakase] ‘o homem dormiu’

Em sentença transitivas, no entanto, o argumento interno é mantido no domínio


vP-VP, mas pode ser alçado para um segundo [Spec vP]:

Checagem do nominativo para o objeto de transitivo:

76
(164) [𝑣𝑃 𝐷𝑃𝑖 𝐴𝐶𝐶 [𝑣′ 𝐷𝑃𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑣[𝐸𝑅𝐺,𝐴𝐶𝐶] [𝑉𝑃 𝑉 𝑡𝑖 ] ] ] ]

(165) [𝑣𝑃 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ ø[𝐴𝐶𝐶,𝐸𝑅𝐺] [𝑉𝑃 𝑤𝑘ʸ𝑎𝑠𝑒 𝑘𝑙𝑒𝑘𝑒𝑦𝑛𝑖ː𝑠𝑜𝐴𝐶𝐶 ] ] ]


(166) [𝑣𝑃 𝑘𝑙𝑒𝑘𝑒𝑦𝑛𝑖ː𝑠𝑜𝑗 𝐴𝐶𝐶 [𝑣𝑃 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑤𝑘ʸ𝑎𝑠𝑒𝑖 ø[𝐴𝐶𝐶,𝐸𝑅𝐺] [𝑋𝑃 𝑡𝑖 𝑡𝑗 ] ] ]

Em suma, o Caso do sujeito de inacusativo é checado em [Spec TP],


diferenciando-se do objeto que checa seu caso num segundo [Spec vP]. Aquele recebe o
Caso nominativo; este, por seu turno, o acusativo. O acusativo e o nominativo são duas
possíveis especificações para o caso absolutivo. Além disso, segundo Duarte (2012, p.
278): “(...) o fato de o Caso absolutivo figurar em contextos em que T é não finito nos
permite concluir que absolutivo realmente equivale a acusativo, já que a sua atribuição
independe da finitude do núcleo T.” E assim nos diz a sentença abaixo:

(167) [datka tetkʸase ɔtska sa kʰodʒõne e kʰenĩːkʸa]


datka tete-ka-se ɔtska sa kʰodʒõne e kʰenĩː-ka
chefe fazer-IND-PST homem 3s revólver 3s entregar-IND
‘o chefe fez o homem entregar o revólver dele’

Trata-se de uma causativização perifrástica através do verbo teteka ‘fazer/faz’.


Nota-se que o verbo encaixado, [kʰenĩːkʸa] ‘entregar/entrega’, encontra-se no presente ou
no não-passado, /-ø/ (o tempo default dos verbos em Yaathê é o não-presente, contendo
apenas o indicativo, assim como o infinitivo está para o português). O clítico /e/ encontra-
se ao seu lado e, como, acredita-se, esta marca de concordância está associada ao
absolutivo, pode-se argumentar que o Caso do objeto é checado dentro de vP-VP.
O fato de a marca de concordância de terceira pessoa singular /e/, associada ao
absolutivo (a marca do objeto e sujeito intransitivo em inacusativas) aparecer em ambos
os contextos (concordância com O e So), talvez, implique que se trata de um morfema
subespecificado em seus traços, o que permite que a língua faça coisas como coindexar
O e So:

(168) ‘ã ma ‘tʃãna ‘ɔtska e kʰlɛ ‘tʃadʷa ‘naːkase


a ma tʃana ɔtska [e kʰlɛtʃa-dowa] naha-ka-se
2s Q aquele homem 3.O cantar-REL ver-IND-PAS

77
‘você viu aquele homem que canta (agora, está cantando)?’
Ou seria ela uma língua sintaticamente ergativa? Ou, ainda, estaria ela de fato
mudando seu paradigma de checagem de Caso? Aproximando-se do Maxakalí, afastando-
se do Bororo?

5.3. Causativização

Quanto à causativização perifrástica retomemos alguns pontos. Embora em


Lapenda (2015 [1965]) encontre-se exemplos de causativização de transitivos (cf.
exemplos 79-81) através do morfema /-ne/, atualmente esta vem sendo feita, segundo
Costa (1999), através do verbo teteka ‘fazer’, perifrasticamente (cf. 169 e 170).

(169) [datka tetkʸase ɔtska sa kʰodʒõne e kʰenĩːkʸa]


datka tete-ka-se ɔtska sa kʰodʒõne e kʰenĩː-ka
chefe fazer-IND-PST homem 3s revólver 3s entregar-IND
‘o chefe fez o homem entregar o revólver dele’

(170) [ya tetkʸase lefeysaka e kʰᶺ-kʷa oːya ke]


ya tete-ka-se lefeyasaka e kʰo-ka oːya ke
1pl fazer-IND-PST bode 3s beber-IND água P
‘nós fizemos o bode beber água’

Em vista desses fatos, preferiu-se, no presente trabalho, tratar o que Costa (1999)
chama de causativização de inacusativos como na verdade um fenômeno de alternância
incoativa-ativa (cf, 144-147). A causativização, nos termos de Pylkkänen (2000) (seção
3.2.5), através de um núcleo Voice, ocorre apenas como processo perifrástico, sobre os
verbos transitivos. O seu spell out é o verbo teteka.

(171) [𝑉𝑜𝑖𝑐𝑒𝑃 𝑑𝑎𝑡𝑘𝑎[𝐶𝐴𝑈𝑆𝐸,𝜃], [𝑉𝑜𝑖𝑐𝑒′ 𝑡𝑒𝑡𝑒𝑘𝑎[𝐶𝐴𝑆𝑂,𝜃]


[𝑣𝑃 𝑘ʰ𝑜𝑑ʒõ𝑛𝑒𝑗 𝐴𝐵𝑆/𝐴𝐶𝐶 [𝑣′ ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎𝐸𝑅𝐺 [𝑣′ 𝑒𝑗 = 𝑘ʰ𝑒𝑛𝑖̃ː𝑘ʸ𝑎 𝑖 ø𝐸𝑅𝐺 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 𝑡𝑗 ] ] ] ] ] ]

(172) [𝑉𝑜𝑖𝑐𝑒𝑃 𝑦𝑎[𝐶𝐴𝑈𝑆𝐸,𝜃] [ 𝑡𝑒𝑡𝑒𝑘𝑎[𝐶𝐴𝑈𝑆𝐸,𝜃]


𝑉𝑜𝑖𝑐𝑒′

[𝑣𝑃 𝑙𝑒𝑓𝑒𝑦𝑎𝑠𝑎𝑘𝑎𝑗 𝐴𝐵𝑆/𝐴𝐶𝐶 [𝑣′ 𝑒𝑗 = 𝑘ʰᶺ𝑘𝑎 𝑖 ø𝐴𝐵𝑆/𝐴𝐶𝐶 [𝑉𝑃 𝑡𝑗 [𝑉′ 𝑡𝑖 [𝑃𝑃 𝑜ː𝑦𝑎 𝑘𝑒] ] ] ] ] ] ]

78
(173) (174)

Não entro em detalhes quanto ao Caso do argumento em [Spec Voice], pela


ausência de dados que facilitem essa discussão. Achei, contudo, interessante fazer tal
diferenciação e assumir uma representação distinta daquelas dos verbos com /-ne/, que
pelo seu grau de gramaticalização, não soa tanto como uma causativização (como se
tivessem perdido a interpretação bieventiva e passassem a sofrer apenas o aumento da
valência, explícita morfologicamente).

5.4. Ordem dos constituintes

Uma última problemática diz respeito à ordem e à fase CP/TP da derivação, pois,
à exceção das intransitivas estativas, as demais representações não nos dão respostas
quanto à ordem final e ao modo de checagem dos traços de tempo das sentenças.
Sentenças como aquelas em (159) e (160) (repetidas aqui como 175 e 176) podem ser
uma primeira evidência do movimento de verbo para fora de vP-VP:

79
(175) i lefetiya w-kʸa-se hle
1s boi matar-IND-PST imediatamente
A O V-M-T Adv
‘eu já matei o boi’

(176) ja fekʰetotowa e ʃi-ka-se hele


1pl antepassado 3s chegar-IND-PST imediatamente
So Agr V-M-T Adv
‘nosso antepassado já chegou’

Assim para verbos transitivos e inergativos, propõe-se as representações em (177)


e (178). Um traço EPP leva o DP que surge em [Spec vP], onde checou seu Caso, a ser
alçado junto ao verbo, para ocupar a periferia esquerda da sentença.

Verbo Intransitivo:

(177) [𝑇𝑃 ɔ𝑡𝑠𝑘𝑎𝑘 𝐸𝑃𝑃 [ 𝑇′ 𝑤𝑘ʸ𝑎𝑠𝑒𝑖 𝐸𝑃𝑃 [𝑣𝑃 𝑘𝑙𝑒𝑘𝑒𝑦𝑛𝑖ː𝑠𝑜𝑗 [𝑣𝑃 𝑡𝑘 [𝑣′ 𝑡𝑖 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 𝑡𝑗 ] ] ] ] ] ]

Verbo Inergativo:

(178) [𝑇𝑃 𝑡𝑎𝑗 𝐸𝑃𝑃 [ 𝑇′ 𝑡𝑒𝑒𝑓õ𝑛𝑒𝑘𝑎𝑠𝑒 𝑖 𝐸𝑃𝑃 [𝑣𝑃 𝑡𝑗 [𝑣′ 𝑡𝑖 [𝑉𝑃 𝑡𝑖 ] ] ] ] ]

Não parece plausível postular-se a existência de núcleos Agr (AgrS e AgrO), uma
vez que a checagem dos traços de concordância com objeto parece se dar dentro de vP-
VP, pelo menos não há nada que prove o contrário. Sugiro que o verbo deve ser movido
para checar traços de tempo, carregando consigo o sujeito, o que se deveria,
possivelmente, ao traço de EPP. A ordem no caso de sentenças transitivas, contudo, fica
sem a devida representação. Deixo essa questão em aberto, para ser discutida em
pesquisas futuras.
Assim, o Yaathê, como língua que apresenta cisão entre So e O na checagem do
Caso estrutural e uma cisão quanto à checagem do Caso de sujeitos intransitivos ativos
(Sa) e estativos (So), supostamente aproxima-se do Maxakalí, com um sistema ergativo-

80
ativo tripartido e checa, portanto, três casos distintos, ergativo (não estrutural, inerente),
acusativo (estrutural) e nominativo (estrutural), para os argumentos nucleares. Distingue-
se do Bororo à medida em que este checa o nominativo também para o objeto,
configurando-se como língua ergativo-ativa, apenas, com cisão somente entre os sujeitos
de intransitivos ativos e estativos.
Em Yaathê, o Caso ergativo é checado inerentemente (cf. WOOLFORD, 2006),
em posição [Spec vP]. O nominativo/absolutivo é checado em [Spec TP], enquanto o
acusativo/absolutivo, em [Spec vP]. Tais constatações estariam de acordo com as
discussões em Duarte (2012), considerando que a ergatividade dessa língua é do tipo
morfológica.

6. Considerações Finais

As línguas Macro-Jê estudadas, Yaathê, Bororo, Maxakalí e Mebengokre, são todas,


em maior ou menor grau, na sintaxe e/ou na morfologia, línguas ergativo-absolutivas. As
três primeiras possuem um sistema ergativo-ativo, aquela última, ergativo-absolutivo,
apenas. O Mebengokre, todavia, possui uma ergatividade desencadeada apenas em
contextos morfossintáticos específicos: sob a condição de a posição final ser ocupada por
uma espécie de núcleo funcional. De acordo com as suposições tomadas, em termos de
checagem de Caso, o Yaathê e o Maxakalí são as que mais se aproximam, pois
compartilham, semelhantemente, a cisão entre intransitivos e a cisão entre So e O, num
sistema que termina por checar três Casos distintos, o ergativo, o nominativo e o
acusativo. Também segundo essas suposições, o Yaathê (e, por que não, o Maxakalí),
anteriormente, seria uma língua mais semelhante ao Bororo, língua conservadora, nesse
sentido, pois sua cisão ocorre apenas quanto aos verbos intransitivos (nela So e O checam
igualmente o nominativo). Essas constatações, contudo, não podem apontar seguramente
para uma maior proximidade entre o Yaathê e o Maxakalí, por exemplo. Ou para um
contato/separação mais recente (menos aprofundada temporalmente) entre elas, do que
aquele/aquela que teria se dado com relação ao Bororo. Isso porque as asserções feitas
estão, sobremaneira, pautadas em muitas suposições/hipóteses e poucos testes empíricos
válidos. Esses testes e, por conseguinte, melhor refinamento da análise para o Yaathê,
ficam como proposta para uma pesquisa futura, que leve um linguista a campo. A aparente
confluência das línguas, em sua ergatividade, na qual vêem-se expressas sutis variações

81
abrem um campo de possibilidade também para pesquisa no âmbito da tipologia formal:
seria extremamente interessante a proposta de microparâmetros que capturassem as
variações entre as línguas Macro-Jê, nos seus modos de checar Caso, tendo em vista a
hipótese de que elas normalmente são ergativas. Esses microparâmetros podem ser um
passo chave no refinamento filogenético do tronco e, inclusive, culminar com uma
detecção mais precisa do parentesco entre Yaathê e as línguas do tronco. É válido ressaltar
que a utilização de um banco de dados mostrou-se profícua no estudo do aspecto em
questão, facilitando a busca por construções específicas, em meio a uma grande
quantidade de lexemas e sentenças dadas em Costa (1999). Essas sentenças nem sempre
estavam segmentadas e a utilização do FLEx facilitou consideravelmente esse
procedimento.

82
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