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A Casa da Sabedoria: de como

o mundo árabe civilizou e


iluminou o mundo ocidental
Quando se pensa no período Medieval, a imaginação primária
que preenche a mente concerne a um espaço-tempo
dominado pela Igreja Católica, a um sistema econômico que
fez a grande massa populacional viver de servidão por...

Q uando se pensa no período Medieval, a imaginação primária

que preenche a mente concerne a um espaço-tempo dominado pela


Igreja Católica, a um sistema econômico que fez a grande massa
populacional viver de servidão por muito tempo e a um mundo
intelectual relativamente fechado nos preceitos da doutrina religiosa.
Porém, este é o pensamento comum somente àqueles que estão
imbuídos de uma perspectiva europeia da Idade Média. O que poucos
estão cientes é que a Idade Média foi um período que, apesar de a
sua fama estar voltada frequentemente a uma Europa supersticiosa e
caótica, também ocorreu em outras regiões fora da Europa, em locais
que outras sociedades acabaram sendo muitos mais prósperas, e
seus feitos contribuíram na formulação da civilização moderna como
a conhecemos.

De uma perspectiva presente, a Europa posterior a seus tempos


medievais é sinônimo de desenvolvimento. Acontece que, ali, ocorreu
grandes revoluções de paradigmas após o século XV que mudariam o
mundo para sempre. Terra de grandes cientistas e filósofos, a Europa
refinou a nossa visão do mundo: nos transferiu de um imaginário
errôneo, que dizia sermos o centro do universo, para um mais
humilde e baseado na ciência, um em que somos meras partículas de
poeiras flutuando num espaço cósmico infinito e descentralizado;
retirou a legitimidade divina alegada por séculos de dominância de
déspotas caprichosos e dividiu os poderes, que antes eram todos
centralizados neles, para sistemas seculares e democráticos, dando
voz e poder a um povo que serviu por muito tempo; e colonizou o que
consideravam novos mundos, enviando seus cientistas para mapeá-
los e explorá-los, dando a oportunidade a dois deles de descobrirem o
sistema complexo por trás da variedade de vida no planeta.

A Europa, hoje, diferente do passado medieval e renascentista, se une por


preceitos seculares e não mais cristãos. Porém, em tempos que a Europa
não tinha a sua hegemonia, outra civilização próxima dela, mais ao leste,
parecia florescer em áreas que ela parecia estar estagnada, mesmo sua
geografia tendo herdado as civilizações gregas e latinas, que faziam-se ser
as civilizações mais prósperas de seus respectivos tempos. Porém, essas
civilizações também se expandiram, levando suas culturas para outros
confins do globo. Para ser mais específico, para o oriente médio. Cidades
como Alexandria e Constantinopla afundavam-se com suas heranças. De
fato, Alexandria, que possuía sua famosa biblioteca com milhões de
exemplares dos mais diferentes escritos, prosperou por muito tempo.
Famosos filósofos e cientistas como Eratóstenes, Hipatia, Aristarco de
Samos, Euclides e Arquimedes habitaram nela como fiéis de um secto de
conhecimento que aparentava existir só naquela região. Ali, foi produzido e
preservado muitos conhecimentos que foram se perdendo ao decorrer do
tempo, mas não teve todo o seu acervo de livros dissipado. A produção de
conhecimento na biblioteca era tão vasta que, devido à dispersão de
algumas obras pela região e preservação de outras por antigos estudiosos
da biblioteca, o povo que iria dominar essas terras nos séculos seguintes
pôde ter acesso ao que sobreviveu, povo que acabara se convertendo a
uma religião que acabava de nascer, o islamismo.

Convergindo desde a península Ibérica, que habitariam até o século


XV, do norte da África e até a península Arábica — de onde nasceram
—, os muçulmanos, que iriam compor toda essa vasta geografia,
eram herdeiros do credo constituído por Maomé na Alta Idade Média,
desde Meca. Era uma religião abraâmica, ou seja, dizia descender dos
mesmos profetas judaicos que o cristianismo, e tinha a sua própria
língua, o árabe, e seu próprio livro sagrado, o Alcorão. E foi em seu
livro sagrado e em outros textos provindos dos primórdios do
islamismo que pensadores muçulmanos, durante séculos após a
morte de Maomé em Medina, tentaram interpretar e valorizar o
conhecimento.

Os Árabes valorizaram, primeiramente, o conhecimento das leis, que


faziam-se interpretar conforme as escrituras. Era difícil um erudito da
época não conhecer ou ter uma formação em direito e atuar como
juiz (cádi). E o valor do conhecimento sem ser o direito veio a seguir.
O conhecimento podia ser interpretado como a interpretação do
mundo natural, desde a astronomia, a alquimia, a medicina, a
geografia, à filosofia ou a interpretação do mundo de deus, da história
e dos ensinamentos religiosos. Ambos prosperaram. Muitos eruditos
faziam desses dois conhecimentos uma simbiose, alegando que se
ambos conhecimentos levavam à verdade, ambos levavam a Deus
(Allah).

Certo adágio de Maomé, que não tem sua autenticidade comprovada,


dizia para o muçulmano buscar conhecimento, mesmo que ele tenha
que ir até a China. Ibn Battuta, o famoso viajante do século XIV,
comportou-se conforme o dizer, e aventurou-se desde o Marrocos até
a China, podendo ter um deslumbre único da civilização islâmica, que
naquele momento já estava impregnando quase todo o oriente
terrestre. De fato, a sociedade muçulmana era feita de peregrinos,
que viajavam ao menos uma vez na vida até os locais sagrados da
religião, entre Meca e Medina. A vasta região árabe proporcionava
longas viagens a esses aventureiros, que tinham suas peregrinações
facilitadas pela boa hospitalidade de seus correligionários.

Alguns califas, que eram tidos como descendentes de Maomé e


chefes supremos de seu secto religioso, seguiam o preceito da busca
do conhecimento e facilitavam a vida de seus eruditos, servindo
muitas vezes de mecenas. Foi, porém, com a construção de
universidades e bibliotecas que os árabes começaram a formular uma
compreensão mais essencial de independência no estudo científico e
filosófico. Conhecida como A Casa da Sabedoria, a universidade e
biblioteca na recém-construída capital do novo governo abássida,
Bagdá, foi lar tanto de cristão, de judeu e de muçulmano. Ali, criou-se
um ambiente secular em que o principal objetivo de seus residentes
era a busca pelo conhecimento científico, filosófico e teológico. E,
minada de exemplares clássicos persas e sânscritos, como também
gregos e latinos, que puderam adquirir no decorrer dos séculos
devido à estratégica localização geográfica próxima a antigas
colônias gregas e latinas, e de Constantinopla, que possuía
exemplares empoeirados de verdadeiras obras clássicas, Bagdá era
um oásis do conhecimento em meio a desertos de obscurantismo
europeu da época.

Foi, porém, no reinado de Al-Ma’mun, o sétimo califa abássida, no


século IX, que a A Casa da Sabedoria chegou a seu auge. O califa foi
responsável por incentivar os eruditos de todo o mundo, de diferentes
credos e culturas, a irem até esse oásis do saber para receberem
apoio incondicional em suas pesquisas, traduções e escritos. Na
Europa, entre os mais aventurados eruditos, surgiu um secto que
buscava incessantemente, devido a esse salvo-conduto do califa, os
studia Arabum (estudos dos árabes), viajando até os polos do saber
orientais para estudar junto aos eruditos árabes e traduzir suas obras.
Entre eles, está Adelardo de Bath, talvez o mais reconhecido erudito
europeu a participar desse intercâmbio cultural, sendo o principal
tradutor de trabalhos árabes para o latim. Ele traduziu obras como
as Tabelas Estelares, de al-Khwarizmi — livro primordial que contém
as ideias árabes sobre a álgebra —, e Os Elementos, de Euclides.
Posteriormente, europeus famosos como Copérnico, Galileu, Kepler e
Newton utilizariam ambas as obras para seus respectivos trabalhos
científicos, que acabariam por revolucionar a nossa concepção de
mundo.

Conta-se que, em uma noite, Al-Ma’mun, sonhou com Aristóteles.


Estupefato com a aparição do grande filósofo, ele aproveitou para
fazer a singela pergunta: o que é bom? Aristóteles lhe respondeu: a
razão e a revelação. O califa interpretou a resposta como um sinal de
que a religião deveria andar ao lado da investigação científica.

O sonho, retratado pelo próprio califa, demonstra um rei empenhado


em reconhecer a investigação do mundo como estrutura de sua fé.
Isso fez com que, ao invés do Islã ter definhado como o cristianismo
na investigação filosófica e científica na Idade Média, ter florescido e
praticamente construído o mundo ocidental como o conhecemos hoje,
conforme defende Jonathan Lyons em seu livro A Casa da Sabedoria,
preservando e melhorando conhecimentos matemáticos,
astronômicos, médicos e geográficos, dentre uma porção de outras
áreas, além de preservar quase todos os textos gregos, persas e
sânscritos importantes, com traduções e comentários.

Lyons argumenta que a civilização árabe ajudou a formar a civilização


europeia ocidental por um simples motivo: os árabes foram os
responsáveis por assumir a maioria das pesquisas científicas e
inquirições filosóficas realizadas no período medieval, além de
preservar toda a gama de textos antigos que estavam praticamente
extintos na Europa, com traduções e comentários. Enquanto a Europa
cristã restringia, em suas poucas universidades, o conhecimento às
alcunhas de suas doutrinas e raramente imbuída de mecenas
encorajados para incentivar estudos seculares, as universidades
árabes eram um lugar livre para realizar-se o tipo de pesquisa que se
fazia restrita na Europa. Al-Ma’mun, por exemplo, apesar de ser o
principal mecenas dos eruditos de seu tempo, também aspirava à
filosofia e tinha grande conhecimento da causa que apoiava, fazendo
o próprio contribuições à astronomia. E por conta dessa maior
liberdade e maior produção, graças em grande parte ao apoio de
soberanos bem instruídos, as universidades árabes conseguiam atrair
muitos cristãos da Europa para realizarem seus studia Arabium e
retornar à sua cultura natal com obras e novidades descobertas
naquele mundo que era obscuro para a maioria dos ocidentais.

A tese que Jonathan Lyon formulou é plausível e traz à tona


evidências marcantes de como a Europa embebedou-se dos saberes
árabes. Mostra o como a Europa cristã, da perspectiva medieval
árabe, era um local subdesenvolvido e dependente de saberes
científicos que eram produzidos externamente. À exemplo da
diferença entre ambas as civilizações, enquanto os medievais árabes
tratavam uma simples enxaqueca de uma mulher como um problema
que precisava de descanso e quietude, os cristãos medievais
tratavam-na como bruxaria e, ao invés de colaborar com a cura,
poderiam até matar a enferma com suas horrendas fórmulas
supersticiosas de tratamento.
O mundo árabe mudou, é verdade, mas em uma época que temos
mais conhecimento sobre a sua escuridão, ele, outrora, já foi a luz
que iluminou um mundo ofuscado pela ignorância da Idade Média
cristã que aprendeu, aos poucos, a reconhecer a sua importância e a
incorporar seus feitos à sua evolução. Porém, apesar de passar
ofuscado em nosso ensino ainda hoje, o povo árabe medieval era
detentor de uma língua mantenedora do conhecimento, e não só da
religião islâmica. Assim como a língua inglesa hoje é reconhecida pela
sua universalidade no mundo acadêmico, o árabe era a língua que
continha quase todas as investigações de natureza científica e
filosófica no mundo medieval, língua que os eruditos europeus
medievais mais sensatos acabaram assumindo que, quem quisesse
aprender algo sobre o mundo, deveria procurar nos árabes.´

Élisson Amboni

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