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A Alma Imoral

Revisitada

com Nilton Bonder


Nilton Bonder
Rabino da Congregação Judaica do Brasil e da
Associação Religiosa Israelita do RJ, ordenado
pelo Jewish Theological Seminary (Nova York),
onde obteve os títulos de doutor, mestre e bacharel
em literatura hebraica (bacharelado em conjunto
com a Universidade de Columbia). É autor, entre
outros, de A Alma Imoral (obra que foi adaptada
para o teatro por Clarice Niskier e em formato de
documentário por Silvio Tendler), Exercícios d`Alma:
A Cabala como Sabedoria em Movimento (vencedor
do Prêmio Jabuti), A Cabala e a Arte de Preservação
da Alegria, Cabala e a Arte do Tratamento da Cura,
O Sagrado, A Cabala do Dinheiro e A Cabala da Inveja,
todos pela Editora Rocco.
AULA 1

Adão e Eva: a traição


da natureza
Este curso tem como intuito tratar da transgressão como um instrumento, um
recurso, que faz parte dos mitos e dos ritos. Numa reflexão a partir da função
do rabino, como um intérprete da sabedoria e da cultura. O objetivo é fornecer
recursos para cada pessoa compreender quando o certo e o errado dizem respeito,
por vezes, aos seus exatos opostos. A forma de atingir esse objetivo será tentar
captar a importância dos mitos ancestrais que falam, até hoje, sobre os dramas
da experiência humana.

A maior dificuldade frente às experiências com o certo e o errado é a transgressão,


tida como a capacidade de perceber o contexto e agir de modo aparentemente
“errado”, mas fazendo a coisa certa. Estes casos nos ajudam, também, a modelar,
auxiliar e instrumentar a construção de nossa humanidade e os recursos para
lidar com todo o nosso potencial.

A primeira transgressão é em relação à natureza de nossa realidade, que vem


atrelada a uma noção de si mesmo - de consciência, memória e imaginário.
O texto que abre este debate é a história de Adão e Eva.

Podemos entender essa história como daqueles dois que saíram da caverna,
uma história dos primórdios da humanidade (e não tanto da história da espécie
humana). É importante observar que a alma imoral não é a traição, a transgressão
pura, mas sim um olhar que, para o homem, representa sua potência máxima:
Saber quando a obediência não é um caminho certo, bem como a desobediência
não é um caminho errado. É uma transgressão de olhar: temos a capacidade de
desconstruir estruturas, pensamentos e morais estabelecidas, que nos impulsionem
para o futuro, para novas conformações e possibilidades.

O Jardim do Éden era um lugar de características “uterinas”, em que tudo era


provido e que possibilitava que Adão e Eva não estivessem despertos. Neste
lugar de ingenuidade e de falta de autonomia, existia uma regra que não poderia
ser descumprida – um mandamento negativo:

De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento


do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres,
certamente morrerás. (Gênesis, 2:16-17)
A interdição é a semente da consciência, da capacidade de refletir e ter pensamento
crítico. Ao anunciar a interdição, o Criador fez um pré-convite à escolha, ao livre–
arbítrio– um passaporte para a saída do Paraíso. É a alma que enxerga esta condição.
Ela é uma parte de nós sempre mais desperta, reveladora de possibilidades, e
imortal porque enxerga sempre para além do padrão estabelecido, inclusive a
si mesma.

A história se desenvolve a partir desta interdição até o aparecimento de uma


serpente, uma agente entre a natureza e o homem em desenvolvimento, que
convence Eva a desobedecer. Esta reflexão, muitas vezes apresentada como um
estigma, acompanha uma visão muito negativa: já iniciamos nossa história como
corruptos, ingênuos e influenciáveis? Ou será que esta história, esta visão, é uma
narrativa carregada de símbolos?

A história humana pode ser interpretada não a partir de um pecado, mas sim de
uma aventura, bem como a transgressão não exclui o mal, mas o contempla como
uma força da vida. Para além dos comandos de obediência, temos desejos e
impulsos. A serpente, o mais astuto e “nu” de todos os animais, é também um
símbolo do pensamento, que nos leva a lugares sinuosos. Se pensarmos em
Adão e Eva não como ingênuos, mas como potências humanas que enxergam
a ordem do Criador como um convite à escolha, Eva, por meio desta reflexão,
identifica um mundo possível que é mais desperto, dos afetos, da capacidade
de sermos autônomos e responsáveis em função de nossos interesses e propósitos.

Adão e Eva escolhem a partir destas premissas e vão para um lugar mais mundano
que a própria natureza, e que surge da autonomia, como consequência dessa
escolha. Ao comerem da Árvore do Conhecimento, Adão e Eva imediatamente
se veem nus. Uma nudez que pertence à matéria, associada à culpa e à vergonha.
O fim da inocência nos torna automaticamente culpados, responsáveis –
a vergonha da nudez surge do binômio de estarmos, na transgressão, sendo
perversos ou tolos, e por isso nos vestimos, seja com roupas ou de significados
(trabalho, religião, família).

Adão e Eva são, portanto, inauguradores da alma imoral pela via da desobediência.
Eles enxergaram algo maior e escolheram a vida, e talvez este fosse o desejo e
o propósito do Criador.
AULA 2

Abraão: o rompimento e a
criação de uma nova história
Neste encontro a oportunidade de refletir a obra, interpretar os acontecimentos,
enfrentar a inércia e os lugares de sofrimento, do desenvolvimento da capacidade
crítica e entendimento, saber escolher o melhor caminho por meio de apostas
e riscos, assumidos de renunciar a benefícios imediatos para alcançar, adiante,
algo melhor, sempre contrastando com o certo que é o errado, ou o errado que
é o certo no âmbito emocional.

A história de Abraão nos explica a função e a importância desta figura. O comando


positivo é feito por Deus, pura que saísse em procura da terra prometida, para
constituir uma nova terra, uma nova cultura em um convite ao rompimento, alguma
coisa que Deus está trazendo para Abraão para largar tudo em nome de algo
a ser demonstrado.

A história geralmente pode ser contada por meio de duas perspectivas, uma é
a tradição, um olhar para o passado, de valores, de questões; e a outra são as
traições, demandas, chamamentos para o que vem do futuro.

Este criador instiga Abraão a trocar este olhar do passado e se voltar para o futuro
de forma que esta reflexão visa compreender a potencialidade do ser, o que ele
pode se tornar.

No primeiro encontro, tratamos da passagem deste ser pela natureza, a mundanidade,


já neste temos a dimensão social, de enfrentar e conhecer o mundo, o sair de casa,
o abandonar o local de origem. A alma imoral, neste sentido, é a transgressão para
chegar a uma condição mais desperta, de autonomia e integridade.

O aparecimento de Deus para Abraão é um marco referencial da integridade, sendo


uma boa definição do que é Deus para a consciência humana, este convite para
o experimentar, para o projetar, para o desenvolvimento.

A história de Abraão por mais que tenha a proposta de Deus, esta proposta ela
não veio acompanhada de indicativos, porém este Deus é um parceiro que ajuda
Abraão a descobrir quem ele é, que o ajuda a manter a sua figura íntegra.

Outro comando emitido por Deus para Abraão é um pedido de sacrifício de seu
filho, sem nenhuma razão ou motivo aparente, como uma prova da sua integridade
e fé, porém esta leitura evidencia certa postura ingênua de Abraão, porém o que
podemos observar é uma prova, um local de prova, se tomarmos como fato de
que naquela cultura sacrificavam seres humanos, no momento em que preparava
seu punhal Deus o impede, fazendo outro pedido, para que substituísse este
filho por um animal, demonstrando que não passava de uma escolha de Abraão,
atendendo mas não obedecendo.

Mas neste momento final a integridade dele é colocada em prova em um local


muito importante para todos nós, que é a capacidade de querer ser diferente,
porém acabar reproduzindo a tradição com a qual se quer romper, e este grande
teste é o de ouvir este Deus produzir esta desobediência, este Deus contrasta
sua cultura, e é um marco de uma caminhada evolutiva do ser humano, onde
paramos de realizar os sacrifícios, que muitas vezes não conseguimos perceber,
ou somente tarde na vida, que estes sacrifícios muitas vezes são em vão, ao nada.

Abraão então inicia o processo de sair do lugar da sua cultura e dar um passo
gigantesco em direção a uma integridade que fala a um não comando. Que
aponta os novos caminhos íntegros; sua figura é importante, pois ele consegue
transgredir obedecendo, pois esta obediência o levou a mudar sua personalidade.,
nos hábitos, desta maneira ouvir a voz da integridade se desdizer e apontar um
novo caminho.

O ser humano para estar caminhando neste campo tão inóspito da autonomia,
ele precisa desta alma imoral, que não o permita realizar sacrifícios errados,
desnecessários graves e ao mesmo tempo sem propósito bem como a possibilidade
de questionar, dando um passo enorme em direção ao futuro.
AULA 3

Jacó: a traição das


relações pessoais
A história de Jacó começa com uma disputa com seu gêmeo Esaú, que era o
primogênito – portanto, quem recebia a chefia do clã, herança da família. Jacó,
personagem tão intrigante, segura o tornozelo de seu irmão para que fosse o
primeiro a nascer, ou seja, é alguém desde sempre ambíguo, uma vez que a
autonomia do ser humano tem como função fazer perceber a própria integridade
e autenticidade. A história se desenvolve com os irmãos em uma espécie de
disputa: Esaú mantinha um arquétipo de caçador, ligado ao mundo material,
e Jacó mais ligado ao social, contemplativo.

Em determinado momento, Isaque, pai de ambos, já com idade avançada e acometido


pela cegueira, convoca Esaú para que cace um animal para um banquete em celebração
à sua primogenitura. A mãe, Rebeca, estimula Jacó para que intervenha e iluda seu pai,
recebendo a bênção no lugar do irmão. Esse movimento imoral é o exemplo do errado
que se torna certo. Ao se concretizar, esta mentira, Jacó foge por medo do irmão,
exilando-se para assumir as responsabilidades decorrentes do ato. Existem dois
momentos que seguem a traição.

O primeiro momento é o da noite que segue a traição, agora como um personagem


novo, usando uma pedra como travesseiro. O sonho, momento de interiorização
máxima, denota uma relação ambígua em que o medo do imponderável coexiste
com uma ida às profundezas de si. Na descrição deste sonho o relato é de uma
relação vertical, com uma escada ligando céu e terra. Jacó, extremamente culpado,
enxerga a reafirmação de seu ato: a calúnia, imoral, é agora sagrada e abençoada.
Jacó passa a ocupar um mundo em que suas ações têm custos e a entender e
incorporar o ato traidor como um dos momentos mais importantes.

Em um segundo momento, no fechamento desta história, Jacó atravessa o rio


durante a noite, sozinho, como a questão em aberto do reencontro com o irmão
fosse uma passagem para a transformação. Ao passar este rio, Jacó entra em
uma luta com uma figura desconhecida que, vencida, dá a ele o nome de Israel
– aquele que lutou com Deus e os homens e prevaleceu -, alguém capaz de brigar
e enfrentar as próprias ambivalências, sombras e truques do passado.

Muitas vezes estamos satisfeitos com o nome que temos. Porém, em alguns
casos, este nome representa expectativas de uma cultura ou da tradição. É preciso,
portanto, abandonar este nome carregado de passado para receber um novo,
representativo de nós mesmos, mais verdadeiro.
AULA 4

Moisés: transgressão
e libertação
Moisés, um dos nomes mais importantes da tradição judaica, não apenas recebeu
os mandamentos enviados por Deus, mas também organizou a primeira “constituição”
de seu povo numa forma de poder definir o que seria certo, ou errado. A lei de Moisés
era uma nova lei que exige interpretação.

Este profeta teve a capacidade de trazer para a dimensão humana a integração


entre o coração e o intelecto – um dilema que enfrentamos até hoje em nosso
cotidiano. Ao encontrar o Deus dos ancestrais, Moisés deparou-se com o tetragrama
YHWH, que representa as diferentes contrações do ser. Quando Moisés pergunta
a este Deus quem ele é, em recebe a resposta: “eu sou o que será”. Podemos
observar, então, a manifestação de um Deus da verticalidade, ensinando a humanidade
a ter valores, sobretudo o espírito destes valores para realizar julgamentos autônomos.

Escravizados pelo faraó, o povo hebreu se encontrava em um local que não fertilizava
a vida. Moisés fazia parte deste grupo e recebeu de Deus a ordem de mobilizar seu
povo para a fuga. Depois de diversas insistências e ter o Egito assolado por pragas,
o faraó concede a Moisés a libertação do povo, mas se arrepende pouco depois,
perseguindo-os com seu exército.

Encurralado, o povo hebreu se dividiu em quatro acampamentos, cada um representando


uma atitude diante daquela situação: um queria se atirar ao mar, outro se entregar,
outro rezar e o último, que pretendia lutar. Neste momento Moisés fala aos
acampamentos e recebe o comando de Deus:

Moisés, porém, disse ao povo: Não temais; estai quietos, e vede o livramento do Senhor,
que hoje vos fará; porque aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais os tornareis a ver.
O Senhor pelejará por vós, e vós vos calareis. Então disse o Senhor a Moisés: Por que
clamas a mim? Dize aos filhos de Israel que marchem. (Êxodo, 14:13-15)

Este apontamento deste Deus da verticalidade é o de que o impossível é possível


ao se conectar com a sua fé. É neste momento que temos o simbólico evento da
abertura das águas do Mar Vermelho, representando a imagem de algo que até
então era impossível ser realizado pela coragem do enfrentamento. Contam os
comentários rabínicos que foi uma pessoa que não sabia nadar quem entrou
primeiro na água: o mar se abriu no momento em que não “dava mais pé”.
Esta voz imoral está apontando um caminho, determinado pela história pela
construção, que os fez chegar até aqui, este caminho abrirá as águas, somente
na coragem de não saber mais onde andar inicia-se a ruptura com o intransponível,
marche e vá de encontro ao seu futuro.
AULA 5

Jesus: o julgamento e o
futuro do corpo e da alma
Após tratarmos o lado físico representado por Adão e Eva, o emocional com a
figura de Abraão, o intelecto na figura de Jacó e Moisés, que oferecia um lugar
na espiritualidade, chegamos a Jesus de Nazaré.

Segundo as escrituras b[bíblicas, o messias seria um descendente da casa de


Davi. Este seria um indivíduo transformador que completaria este caminho
humano e possuiria a autonomia para lidar com os sentimentos, com a culpa
e com as ambivalências dos caminhos que a vida nos oferece. Este ser humano
se aproximaria muito do Criador no projeto de se tornar autônomo em um Deus
referenciado no ser humano.

Messias quer dizer “ungido”, aquele que vem da casa de Davi – e Davi foi um
rei demasiadamente humano e com defeitos. Neste último encontro do curso
“A Alma Imoral Revisitada”, o rabino Nilton Bonder nos conta as passagens
bíblicas que justificam a vinda do Messias pela linhagem de Davi. Observamos,
então, um dos lados da linhagem oriundos das filhas de Ló que, após a destruição
de Sodoma e Gomorra, acreditando que o mundo todo havia sido dizimado,
tentam salvar o futuro do da humanidade. Em um ato visto como imoral e
incestuosa, embebedam o pai Ló e decidem gerar descendentes para o
povoamento da Terra. Um destes descentes foi Moabe - gerando os povos
moabitas, um lado da linhagem de Davi, vinculado à figura de Ruth. Este seria
o primeiro exemplo que trazem à figura humana o impasse da escolha entre a
moralidade e a imoralidade.

Do outro lado da linhagem segundo a narrativa bíblica, Tamar casou-se com Er,
primeiro filho de Judá, mas Deus fez com que seu marido morresse deixando
Tamar viúva. Sem conseguir conceber um filho, Tamar ocultou sua identidade
e se disfarçou de prostituta para conseguir que o próprio sogro, Judá, tivesse
relações sexuais com ela e gerasse seu herdeiro. Novamente, observamos uma
atitude imoral da parte da mulher que, concomitante ao erro, produziu resultados
considerados bons, ou seja, um herdeiro para seu sogro.

As chaves para a construção desse ser autônomo, que une as dificuldades e os


impasses entre razão e emoção, moral e imoral, intelectual e espiritual, passam
pelas nuances encontradas nas possibilidades do que é ilícito tornar-se moral à
frente do que é substancial, necessário e até mesmo urgente.
Segundo a tradição judaica, Jesus Cristo era, em sua figura, claramente um profeta,
aquele que interpreta a lei – sobretudo seu espírito, e não a sua integridade cursiva.
Jesus ocupa este lugar da autonomia humana, em que as leis são fundamentais
para serem a base de a obedecermos ou a transgredirmos, muito diferente de um
ser não autônomo que obedece às leis com ingenuidade. Esta posição não evidencia
um lugar caótico, mas sim um lugar de maturidade. Este modelo nos aponta uma
postura amplamente imoral para validar algo que aos olhos da moral aparece
totalmente ilegítimo.

A figura dos profetas, sobretudo a de Jesus, é uma figura de denúncia a situação


das leis que não tem a capacidade de enxergar os momentos onde supostamente
ilícito tem que estar presente e integrado a lei, porque a lei em sua integralidade
pode ser correta ou incorreta, uma vez que é necessária uma leitura humanamente
interpretativa sobre suas determinações para aprendermos a observar o errado
que é certo.
Aviso
Este material é exclusivo para os inscritos no curso “A Alma Imoral Revisitada”,
com Nilton Bonder, realizado pela Casa do Saber no mês de dezembro de 2020.
É proibida a reprodução ou divulgação deste material, parcial ou em sua totalidade,
sem autorização. Os direitos autorais são exclusivos do rabino Nilton Bonder
e da Casa do Saber.

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