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O Princípio da

face ao princípio da legalidade e


imparcialidade

Direito Administrativo I; Inês Fernandes; Subturma 15; nº 56711


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1. Introdução

A doutrina administrativa é clara na asserção de que existe um princípio da hierarquia,


com consagração constitucional. Este princípio nortearia o estabelecimento de
relações no seio das estruturas administrativas, como modelo privilegiado de
desconcentração. O que parece quase indubitável entre os Autores, é que este
princípio nunca é desaplicado no caso concreto, tirando os casos excecionalmente
previstos na CRP. Mas serão apenas estes?
Pretendi, com o estudo em questão, avaliar se deve admitir-se a possibilidade da não
aplicação de atos de um superior hierárquico que reduzam completamente a
discricionariedade conferida numa norma. Veja-se que, nestes casos, o subalterno se
depara com duas estatuições de patamar constitucional conflituantes: os princípios da
imparcialidade e da legalidade, que sustentam a manutenção das alternativas
conferidas pela norma; e o princípio da hierarquia, que sustenta o dever de obediência
e consequente redução daquelas alternativas.

2. Desenvolvimento

2.1 Hierarquia, relação jurídica, e princípio subjacente


Segundo Paulo Otero, a hierarquia é um modo de organização vertical na
Administração Pública através do qual se estabelece um vínculo jurídico entre uma
pluralidade de órgãos da mesma pessoa coletiva, conferindo-se a um deles a
competência para dispor da vontade decisória de todos os restantes órgãos, os quais
se encontram adstritos a um dever legal de obediência. E nesse entendimento, existe
hierarquia onde o princípio que lhe está subjacente se manifeste.
Não encontramos na doutrina quaisquer referências a um afastamento do princípio da
hierarquia, parecendo que este tem aplicação em todos os casos. Contudo, parece
unânime que se trata de um princípio, e aliás, tomando o critério de identificação de
princípios elaborado por David Duarte, extrai-se da previsão da norma um pressuposto
adicional de aplicação em todas as situações de qualquer género.
Assim, quando este princípio seja afastado, cessa a competência para dispor da
vontade do subalterno, e consequentemente, o dever de obediência. Nesse caso, o
subalterno, poderá não aplicar a instrução dada ao abrigo do poder de direção do seu
superior, e por isso verifica-se uma total desvinculação ao ato do superior hierárquico.

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2.2 Discricionariedade e auto-vinculação
Uma norma (permissiva, proibitiva ou impositiva) atribui discricionariedade quando da
mesma se extraia mais de uma possibilidade de atuação administrativa.
A razão de ser da atribuição de discricionariedade, como afirma David Duarte
(Procedimentalização, participação e fundamentação: para uma concretização do
princípio da imparcialidade administrativa como parâmetro decisório), é que ao ser
estabelecida uma relação direta entre decisor e as circunstâncias, é maior a
possibilidade de se atingir uma solução material mais adequada às exigências do caso
concreto. Se uma norma atribui discricionariedade é porque o ordenamento quer que
o decisor faça a melhor escolha, tendo em conta os elementos do caso concreto.
Existe auto-vinculação quando o decisor normativo estabelece critérios adicionais de
decisão, que se podem estabilizar no ordenamento, em virtude do imperativo de
reprodução jurídica dos efeitos criados, que por sua vez é proveniente dos princípios
da igualdade e da boa fé.
Se os pressupostos adicionais da norma de auto-vinculação estiverem dispostos como
condições únicas para a produção do efeito da estatuição, então quer a situação
material as sugira ou não, a possibilidade de ponderação esgotar-se-á aí.
Ao invés, se os pressupostos adicionais da norma de auto-vinculação, se apresentarem
apenas como condições acrescidas, não exclusivas, a aplicação da estatuição
normativa continua a não ser suscetível de realizar-se sem que a operação de decisão
não tenha de prosseguir na captação da realidade, onde ainda será uma norma de
auto-vinculação legítima (não há violação do princípio da imparcialidade).
O princípio da legalidade impõe ainda duas condições fundamentais: a construção da
norma de auto-vinculação tem de ser efetuada à luz (i) do interesse público secundário
que preside à norma primária e (ii) do contexto sistemático, situando-se dentro do
âmbito temático que os pressupostos iniciais delimitam.

2.3 Hierarquia vs Legalidade e Imparcialidade


Paulo Otero distingue comandos hierárquicos declarativos e constitutivos. É no seio
destes últimos que permitindo ao órgão superior ir ao ponto de aditar palavra por
palavra o conteúdo da decisão a tomar pelo subalterno, se torna mais visível a
completa disponibilidade da vontade decisória deste último órgão pelo respetivo
superior hierárquico, assistindo-se mesmo à emergência de um verdadeiro fenómeno
de substituição mediata.
Significa isto o completo esvaziamento pela ação do órgão superior da margem de
discricionariedade conferida por lei ao órgão subalterno: o poder de direção mostra-se
suscetível de gerar um verdadeiro efeito expropriatório sobre a competência

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discricionária dos subalternos, tornando-se o mais sério limite à discricionariedade
concebido pelo ordenamento jurídico e conferido à própria Administração Pública.
Se numa primeira análise se poderia dizer que a situação em causa seria violadora da
norma legal atribuidora de competência discricionária ao subalterno, pois essa mesma
discricionariedade desapareceria ante a vontade prevalecente do superior hierárquico,
a verdade é que resultaria da lei um dever de obediência ilimitado dos subalternos aos
comandos hierárquicos legais do respetivo superior hierárquico.
Assim, o Autor em causa (bem como aliás André Salgado de Matos e Marcelo Rebelo
de Sousa, entre outros) defende a prevalência incondicional do princípio da hierarquia,
afirmando em abstrato que aquele prevalece sobre qualquer outro imperativo que
com ele conflitue.

3.Conclusão
Com o devido respeito, a posição do autor não nos parece coerente com a inequívoca
afirmação da dimensão principiológica daquele. Os princípios não contêm mandatos
definitivos, senão prima facie. O que caracteriza aquele tipo de normas é a existência
de relações de precedência condicionadas. Em rigor, não podemos, a priori, afirmar
que a hierarquia prevalece sempre. Podemos, claro, admitir que uma competência
indiscriminada de desaplicação provocará uma erosão da hierarquia administrativa,
mas este é somente um argumento que reforça o carácter prima facie do princípio da
hierarquia, não razão para a sua aplicação nos termos das relações de precedência
incondicionada.
Como principio que é, e estando no mesmo patamar que os princípios da
imparcialidade e da legalidade, as colisões entre estes devem ser solucionadas por
meio de ponderação dos interesses em conflito, observando-se ainda a necessidade do
estabelecimento de uma relação de precedência condicionada, onde se determinará
em quais situações determinado princípio prevalecerá sobre o outro.

4. Bibliografia

DAVID DUARTE «Procedimentalização, participação e fundamentação, para uma concretização


do princípio da imparcialidade administrativa como parâmetro decisório»; Almedina, 1996.

DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Curso de Direito Administrativo», volume I, 4ª edição,


Almedina, Coimbra, 2015.

MARCELO REBELO DE SOUSA / ANDRÉ SALGADO DE MATOS, «Direito Administrativo Geral»,


D. Quixote, Lisboa - tomo I; «Introdução e Princípios Fundamentais», 3.ª edição, Dom Quixote,
2008

PAULO OTERO, «Manual de Direito Administrativo», vol. I, Almedina, Coimbra, 2015.

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