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Em famoso artigo publicado no periódico Past and Present, em 1992, John Elliot
argumentou que a ideia de uma Europa moderna unida por um Império universal ou por
uma igreja universal, conforme defendia a historiografia do século XIX, era um sonho
dado que em 1500 a Europa contava com, aproximadamente, quinhentas unidades
políticas diferentes. Nesses termos, conclui o autor que a Europa do século XVI era uma
Europa de estados compósitos que coexistia com uma infinidade de unidades territoriais
e jurisdicionais que velavam por seu status independente com zelo. Ao aplicar o
conceito na história britância, Conrad Russell (1990) prefere o termo “múltiplos reinos”.
Analisando o caso espanhol, Elliott argumentou que os diversos reinos, povos e
regiões sob a soberania de Castela gozavam no período moderno de uma importante
parcela de autogoverno - possuindo muitas vezes línguas, moedas e tradições diferentes
- fator indispensável para a solidez das alianças estabelecidas com a Coroa. Afirma o
autor que Navarra espanhola permaneceu em muitos aspectos como reino separado sem
sofrer grandes transformações em suas leis, instituições e costumes tradicionais pelo
menos até 1841. O reino de Aragão também foi muito resistente no esforço de
resguardar a sobrevivência de suas leis e consuetudinários diante dos esforços de maior
controle por parte de Castela.
Certamente a força e a coerção desempenharam seu papel na submissão das
unidades políticas anexadas, mas tornava-se dispendioso manter um exército de
ocupação no novo território, além do risco de rebeliões locais e provinciais. Nesse
sentido, a nomeação de membros das elites provinciais para os novos órgãos
institucionais e a distribuição de graças e mercês criava um convênio entre a coroa e as
elites dirigentes, fortalecendo os laços de lealdade.
Essas novas perspectivas interpretativas geraram significativas influências nos
estudos dedicadas a compreender as dinâmicas de relacionamento entre a Coroa e suas
colônias transatlânticas. A historiografia dedicada ao estudo da América Portuguesa, por
exemplo, vem cada vez mais vem procedendo a uma reavaliação das interpretações
macroestruturais de orientação marxista sobre a sociedade colonial. Resumidamente,
essas explicações eram baseadas no sentido comercial da colonização, decorrente da
fase de acumulação primitiva de capital europeu, difundida por Caio Prado Junior, e no
Antigo Sistema Colonial, cunhado por Fernando Novais, que se fundamentava na
prática do exclusivo metropolitano, razão de ser da subordinação da colônia à
metrópole.
A partir das novas concepções sobre os Estados Modernos, e tomando por base
as ideias de Centro e Periferia de Edward Shils e Russell-Wood, esses historiadores têm
questionado a dicotômica posição entre essas duas instâncias. Afirmam, dentre outras
coisas, que o peso do direito consuetudinário, a complexa tessitura de interesses, de
redes clientelares e de parentela que envolviam os agentes no império português
acabavam fragilizando as contradições não só entre metrópole e colônia mas também
entre colonizadores e colonizados. Singularidades políticas, econômicas e culturais da
colônia, que outrora eram minimizadas, passaram a ser valorizadas e discutidas.
Os vários trabalhos de Maria Fernanda Bicalho sobre o papel desempenhado
pelos homens bons da Câmara do Rio de Janeiro na defesa e conquista de seus
interesses locais se inserem nesse quadro. Ao contrário de estudos como o de Caio
Prado e Faoro, Bicalho confere vitalidade e peso ao poder desta instituição municipal,
pelo menos até meados do século XVIII, ao destacar, a partir do diálogo com o clássico
estudo de Charles Boxer sobre o Império Marítimo Português, seu papel fundamental
para a estruturação e manutenção do Império e para tornar-se canal latente de
comunicação entre os potentados locais e o monarca.
João Fragoso também é outro autor que vem desenvolvendo estudos sobre as
redes imperiais de comércio, entre fins do século XVII e início do XVIII, envolvendo
diferentes agentes do Império português, rompendo de vez com a ideia dicotômica até
então predominante. Em texto publicado na coletânea Antigo Regime nos Trópicos
(2001), organizado em conjunto com Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima
Gouvêa (in memorian), o autor questiona a noção de pacto colonial ao mostrar a intensa
participação dos homens de negócios do Rio de Janeiro na comunidade de mercadores e
no comércio envolvendo os portos americanos, africanos e asiáticos, com limitada
atuação dos agentes da coroa.
Tal revisionismo historiográfico, entretanto, não tem sido aceito sem
questionamentos. A recente publicação de O sol e a sombra: política e administração na
América Portuguesa do século XVIII, de Laura de Mello e Souza reavivou, no meio
acadêmico, os debates em torno da presença dos agentes metropolitanos nos domínios
coloniais portugueses. No capítulo introdutório do livro, em que se propõe a fazer – e
faz – uma ampla e rica discussão historiográfica acerca das interpretações clássicas e
recentes da administração colonial portuguesa, as críticas da autora se direcionam às
novas abordagens desse grupo de historiadores que pensa o Brasil na administração do
Império português a partir do viés de um “Antigo Regime nos Trópicos”.
Segundo Laura, a elasticização dessa categoria para a colônia implica em
problemas conceituais graves. O maior deles é que o apreço ao modelo de sociedade
corporativa, proposto por Hespanha, enfraquece excessivamente o papel do Estado, fato
esse resultante do descuido do estudioso português quanto as peculiaridades dos
contextos imperiais – o seu calcanhar-de-aquiles – e também do grande conhecimento
do autor sobre as lógicas internas da administração portuguesa quinhentista e
seiscentista, o que não pode ser alargado e aplicado ao contexto do império setecentista
em geral, que, para a autora, possui uma outra racionalidade.
Embora faça uma discussão em tom refinado, ao expor seus pontos de vista
discordantes em relação a essas novas abordagens historiográficas, Laura mostra-se
tributária, no fundo, de uma perspectiva, herdada de Caio Prado e de Fernando Novais,
que vê a condição colonial, assentada no escravismo e no exclusivo comercial
(fortalecido a partir do século XVIII), como uma oposição à metrópole, funcionando
como um Estado. Entretanto, na segunda parte de seu livro dedicada à análise de
algumas trajetórias de administradores régios na região das Minas ao longo do século
XVIII, a autora apresenta o mais importante argumento contrário à sua argumentação,
ao demonstrar o envolvimento desses homens em redes clientelares e em negociações
no interior da própria colônia.