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9.

Estrutura e Função no Estado Absolutista


As interpretações em torno dos processos de formação e estruturação dos
Estados Modernos europeus, confundidos com a ideia de Estados Absolutistas, já
foram, e são, realizadas sob diferentes perspectivas e dimensões e nunca deixaram de
causar polêmicas no meio acadêmico. Nosso objetivo nesse texto é debater algumas
dessas interpretações e perspectivas. Buscaremos problematizar algumas questões de
natureza política, jurídica e econômica para entender a natureza das autoridades
instauradas pelas monarquias europeias durante a época moderna.
As primeiras reflexões sobre os modelos de Estado que se firmaram na Europa
com a fragilização das estruturas feudais vieram a lume no século XIX, por parte de
uma historiografia conservadora francesa, empenhada na tarefa de reconstituir as
origens dos Estados-nações que foram buscadas nas nascentes monarquias em formação
durante os séculos XVI e XVII. De acordo com essa perspectiva, os Estados-nações que
então se afirmavam na Europa oitocentista constituiriam a culminância lógica de um
movimento linear e contínuo em direção à centralização dos povos e de governos desde
o século XVI.

Essa é a perspectiva adotada por Alexis de Tocqueville, um aristocrata liberal,


na obra O Antigo Regime e a Revolução, publicada em 1856. O autor fez da
centralização uma das características fundamentais do Antigo Regime, termo cunhado
ainda durante a Revolução Francesa para caracterizar as diferentes instituições e estilos
de vida anteriores à revolução que se desejava extinguir. Na obra em questão, o autor
evidenciou que as medidas centralizadoras que levaram à constituição do moderno
Estado francês não foram conquistas da Revolução Francesa, mas se tinham iniciado
muito antes, nas origens do próprio regime que ela procurou destruir. Suas análises
teleológicas acabaram influenciando muitos dos escritos que desejavam compreender as
origens do mundo contemporâneo.
A partir de então, a concepção de Estado Moderno europeu passou a ser
entendida como uma entidade que, a partir do século XVI, foi desenvolvendo um
aparelho burocrático, militar e fiscal capaz de exercer o controle crescente sobre
indivíduos e territórios e de chegar a formas novas formas de ordenação social. Dentro
dessa interpretação, ainda presente nos livros didáticos atuais, o Rei exerce o seu poder
de forma absoluta a partir da subordinação dos interesses da burguesia e da nobreza.
Foi somente durante a década de 1970 que as primeiras críticas em torno da
interpretação acima exposta começaram a surgir, apesar de algumas limitações. Em
Linhagens do Estado Absolutista (1974), o historiador marxista Perry Anderson situou o
absolutismo na perspectiva de transição da estrutura feudal para o sistema capitalista,
mas afirma que o termo não serve para designar corretamente o período analisado, pois
não houve em lugar algum um poder tal qual o significado da palavra absolutismo em
si.
Em seus estudos sobre a monarquia espanhola, por exemplo, o autor apresentou
dados suficientes para questionar as tradicionais afirmações dos Estados espanhol como
antecipador dos modelos centralizados e racionalizados de exercício do poder, que
dariam forma aos Estados modernos europeus. Anderson defende que a união entre as
coroas de Castela e Aragão não significou a constituição de um Estado unitário e
centralizado. Isso porque Aragão possuía uma consolidada e descentralizada estrutura
de governo, não cancelada com o casamento de Isabel e Fernando, ao passo que em
Castela as possibilidades de fortalecimento da Coroa eram maiores. Apesar das
estratégias traçadas pelos reis para controlar a nobreza – proibindo guerras e acabando
com ordens militares – o autor argumenta que a Espanha sob os reis católicos não teria
logrado constituir um estado centralizado, mas uma espécie de federação tendo a Coroa
como centro.
Anderson argumenta ainda que a abundância da prata em terras americanas
também teria inibido um esforço de modernização administrativa e de racionalização
fiscal por parte da Coroa, bem como o investimento em uma indústria competitiva.
Tudo isso, teria levado o Antigo Império Espanhol a uma inevitável bancarrota por volta
de 1640 e à uma tentativa inconclusa de implantação de um Estado moderno. Percebe-
se, portanto, que a grande limitação do autor é persistir na perspectiva teleológica de
que o objetivo moderno da centralização de poder e de racionalização administrativa já
estava presente no projeto dos dois reinos e que só não foi levado à frente por conta de
seus reduzidos investimentos no desenvolvimento de formas mais modernas de
produção e circulação de mercadorias.
A grande ressignificação da ideia de Estado absoluto, entretanto, ocorreu a partir
da década de 1980, quando novas correntes historiográficas, preocupadas com a
historicidade dos conceitos, passaram a questionar o uso do termo para compreender as
formas de governo na Europa entre os séculos XVI e XVII. Como conseqüência,
questionava-se também a extrema centralização política da metrópole frente às suas
colônias, que até então era defendida de maneira predominante. Rompia-se de vez com
a perspectiva anacrônica da historiografia no século XIX, que, preocupada com a
consolidação do Estado Nacional, lançou sobre os séculos XVI-XVII as origens do
processo de centralização. É nessa perspectiva que se inserem os trabalhos de Antonio
Manuel Hespanha, Jack Greene e John Elliott.
Em seu livro As Vésperas do Leviathan (1986), Hespanha expôs o que ele
denominou estrutura corporativa da sociedade do poder presente no Império Português,
pelo menos até 1750. Partindo dos pressupostos teórico da escolástica medieval, que
dominava a mentalidade da época, o autor coloca que dentro dessa estrutura cabia ao
Rei, enquanto cabeça, preservar a ordem, exercer a justiça e manter a harmonia entre as
ordens. Não podendo, portanto, avançar sobre as jurisdições das partes. Era dessa
maneira que conseguia a colaboração da nobreza, da igreja, dos desembargadores,
ciosos de suas autonomias e jurisdições.
Em outro texto publicado na coletânea O Antigo Regime nos Trópicos (2001), o
autor reúne uma série de argumentos para questionar a ideia de centralização então
existente. Mostrou que o poder real partilhava o espaço político com poderes de maior
ou menor hierarquia. Por outro lado, os códigos jurídicos locais muitas vezes limitavam
a atuação legislativa e jurídica da Coroa. Hespanha ainda afirma que os deveres
políticos eram minimizados pelos deveres morais (graça, piedade) e pelos deveres
afetivos (redes de clientela). Ao mesmo tempo, os oficiais régios desfrutavam de uma
proteção muito grande dos seus direitos e atribuições, o que lhes dava grande autonomia
e enfraquecia as tentativas de centralização.
Na visão do autor, o fortalecimento do Estado, enquanto instituição, só se torna
realidade a partir de 1750, com Pombal, e sobretudo no final do século XVIII, quando,
num contexto de renovação de valores, várias medidas implementadas para reduzir o
poder das localidades alcançaram sucesso. Isso explica os choques que provocaram a
presença de agentes do império com uma mentalidade influenciada de alguma forma
pelas ideias iluministas diante de um pessoal administrativo ainda muito marcado por
comportamentos tradicionais, que reduziam o impacto das medidas centralizadoras
propostas por aqueles. O trabalho de Hespanha serviu de referências para vários outros
estudos, tanto em Portugal quanto no Brasil, que buscaram compreender essa dinâmica
entre centralismo e localismo na relação do rei com seus súditos.
Em seus estudos sobre as dinâmicas do governo implantada pela monarquia
inglesa em suas colônias na América, Jack Greene ressaltou caráter a-histórico e
impróprio do modelo de Estado centralizado. Influenciado pelas concepções de Centro e
Periferia de Edward Shils (1974), para quem o sistema central de valores da metrópole
tendia a se fragilizar à medida que a colônia se distanciava territorialmente, Greene
cunhou o termo “autoridades negociadas”, título de seu livro publicado em 1994, para
enfatizar a importância da negociação e o papel dos poderes das elites locais na
construção da autoridade central.

Conforme tal noção, diante da falta de recursos financeiros, administrativos e


militares dos Estados Modernos para implantarem amplamente meios coercitivos de
domínio sobre suas colônias, o ônus financeiro de ocupação e defesa das terras coloniais
restava a cargo da elite local. Em troca, esses indivíduos recebiam amplas vantagens
econômicas e benefícios, estando, então, em condições tanto de se opor, como de
explorar o Estado visando seus próprios fins. Assim, a autoridade não adivinha “do
centro para a periferia, mas era construída no curso de uma série de negociações e de
barganhas recíprocas”. Sendo tal processo capaz de concentrar poder em instituições do
Estado, conferiu, da mesma forma, certo grau de poder nas mãos da elite local. Nesse
sentido, novos elementos passaram a ser considerados nos estudos acerca do processo
de centralização do Estado: os vassalos e as instituições em que atuavam, que de meros
executoras dos interesses régios, passaram a ser consideradas enquanto instâncias com
as quais o poder monárquico precisava negociar.

Em famoso artigo publicado no periódico Past and Present, em 1992, John Elliot
argumentou que a ideia de uma Europa moderna unida por um Império universal ou por
uma igreja universal, conforme defendia a historiografia do século XIX, era um sonho
dado que em 1500 a Europa contava com, aproximadamente, quinhentas unidades
políticas diferentes. Nesses termos, conclui o autor que a Europa do século XVI era uma
Europa de estados compósitos que coexistia com uma infinidade de unidades territoriais
e jurisdicionais que velavam por seu status independente com zelo. Ao aplicar o
conceito na história britância, Conrad Russell (1990) prefere o termo “múltiplos reinos”.
Analisando o caso espanhol, Elliott argumentou que os diversos reinos, povos e
regiões sob a soberania de Castela gozavam no período moderno de uma importante
parcela de autogoverno - possuindo muitas vezes línguas, moedas e tradições diferentes
- fator indispensável para a solidez das alianças estabelecidas com a Coroa. Afirma o
autor que Navarra espanhola permaneceu em muitos aspectos como reino separado sem
sofrer grandes transformações em suas leis, instituições e costumes tradicionais pelo
menos até 1841. O reino de Aragão também foi muito resistente no esforço de
resguardar a sobrevivência de suas leis e consuetudinários diante dos esforços de maior
controle por parte de Castela.
Certamente a força e a coerção desempenharam seu papel na submissão das
unidades políticas anexadas, mas tornava-se dispendioso manter um exército de
ocupação no novo território, além do risco de rebeliões locais e provinciais. Nesse
sentido, a nomeação de membros das elites provinciais para os novos órgãos
institucionais e a distribuição de graças e mercês criava um convênio entre a coroa e as
elites dirigentes, fortalecendo os laços de lealdade.
Essas novas perspectivas interpretativas geraram significativas influências nos
estudos dedicadas a compreender as dinâmicas de relacionamento entre a Coroa e suas
colônias transatlânticas. A historiografia dedicada ao estudo da América Portuguesa, por
exemplo, vem cada vez mais vem procedendo a uma reavaliação das interpretações
macroestruturais de orientação marxista sobre a sociedade colonial. Resumidamente,
essas explicações eram baseadas no sentido comercial da colonização, decorrente da
fase de acumulação primitiva de capital europeu, difundida por Caio Prado Junior, e no
Antigo Sistema Colonial, cunhado por Fernando Novais, que se fundamentava na
prática do exclusivo metropolitano, razão de ser da subordinação da colônia à
metrópole.

A partir das novas concepções sobre os Estados Modernos, e tomando por base
as ideias de Centro e Periferia de Edward Shils e Russell-Wood, esses historiadores têm
questionado a dicotômica posição entre essas duas instâncias. Afirmam, dentre outras
coisas, que o peso do direito consuetudinário, a complexa tessitura de interesses, de
redes clientelares e de parentela que envolviam os agentes no império português
acabavam fragilizando as contradições não só entre metrópole e colônia mas também
entre colonizadores e colonizados. Singularidades políticas, econômicas e culturais da
colônia, que outrora eram minimizadas, passaram a ser valorizadas e discutidas.
Os vários trabalhos de Maria Fernanda Bicalho sobre o papel desempenhado
pelos homens bons da Câmara do Rio de Janeiro na defesa e conquista de seus
interesses locais se inserem nesse quadro. Ao contrário de estudos como o de Caio
Prado e Faoro, Bicalho confere vitalidade e peso ao poder desta instituição municipal,
pelo menos até meados do século XVIII, ao destacar, a partir do diálogo com o clássico
estudo de Charles Boxer sobre o Império Marítimo Português, seu papel fundamental
para a estruturação e manutenção do Império e para tornar-se canal latente de
comunicação entre os potentados locais e o monarca.
João Fragoso também é outro autor que vem desenvolvendo estudos sobre as
redes imperiais de comércio, entre fins do século XVII e início do XVIII, envolvendo
diferentes agentes do Império português, rompendo de vez com a ideia dicotômica até
então predominante. Em texto publicado na coletânea Antigo Regime nos Trópicos
(2001), organizado em conjunto com Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima
Gouvêa (in memorian), o autor questiona a noção de pacto colonial ao mostrar a intensa
participação dos homens de negócios do Rio de Janeiro na comunidade de mercadores e
no comércio envolvendo os portos americanos, africanos e asiáticos, com limitada
atuação dos agentes da coroa.
Tal revisionismo historiográfico, entretanto, não tem sido aceito sem
questionamentos. A recente publicação de O sol e a sombra: política e administração na
América Portuguesa do século XVIII, de Laura de Mello e Souza reavivou, no meio
acadêmico, os debates em torno da presença dos agentes metropolitanos nos domínios
coloniais portugueses. No capítulo introdutório do livro, em que se propõe a fazer – e
faz – uma ampla e rica discussão historiográfica acerca das interpretações clássicas e
recentes da administração colonial portuguesa, as críticas da autora se direcionam às
novas abordagens desse grupo de historiadores que pensa o Brasil na administração do
Império português a partir do viés de um “Antigo Regime nos Trópicos”.
Segundo Laura, a elasticização dessa categoria para a colônia implica em
problemas conceituais graves. O maior deles é que o apreço ao modelo de sociedade
corporativa, proposto por Hespanha, enfraquece excessivamente o papel do Estado, fato
esse resultante do descuido do estudioso português quanto as peculiaridades dos
contextos imperiais – o seu calcanhar-de-aquiles – e também do grande conhecimento
do autor sobre as lógicas internas da administração portuguesa quinhentista e
seiscentista, o que não pode ser alargado e aplicado ao contexto do império setecentista
em geral, que, para a autora, possui uma outra racionalidade.
Embora faça uma discussão em tom refinado, ao expor seus pontos de vista
discordantes em relação a essas novas abordagens historiográficas, Laura mostra-se
tributária, no fundo, de uma perspectiva, herdada de Caio Prado e de Fernando Novais,
que vê a condição colonial, assentada no escravismo e no exclusivo comercial
(fortalecido a partir do século XVIII), como uma oposição à metrópole, funcionando
como um Estado. Entretanto, na segunda parte de seu livro dedicada à análise de
algumas trajetórias de administradores régios na região das Minas ao longo do século
XVIII, a autora apresenta o mais importante argumento contrário à sua argumentação,
ao demonstrar o envolvimento desses homens em redes clientelares e em negociações
no interior da própria colônia.

De todo modo, a compreensão das novas problemáticas acima apresentadas


permite concluir, guardada as devidas circunstâncias, que é grande a distância que
separa o Antigo Regime do Estado nacional contemporâneo. Isso torna, por
conseguinte, ainda mais difícil falar em processo de centralização política como
mecanismo decisivo de instauração do absolutismo nas colônias ultramarinas no início
da época moderna.

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