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Este texto é uma tentativa

Cisão, angústia e emergência. Essas são as palavras que escolho para começar um texto
que, logo de cara, já me causa incômodo por ser escrito em primeira pessoa. Não estou
acostumado a falar de um “eu” nos textos acadêmicos, mas sim a falar “deles” e o que eles, que
são alguém, produziram e teorizaram. Apesar disso, encaro o escrever, seja na primeira ou na
terceira pessoa, como um alto privilégio e faço usufruto disso. Imagine só: eu, sujeito assujeitado
desde antes do meu nascimento, que me tornei indivíduo e logo depois passei e continuo
passando pelo processo de tornar-se sujeito, tive como primeiro marco a minha inserção na
cultura junto, por meio e através da linguagem. Com o passar do tempo, fui conhecendo os
significados arbitrários dos significantes à minha volta e os utilizando para pensar e me
expressar.
Anos mais tarde, estou aqui na frente deste computador escrevendo a você, professor, na
expectativa de que você consiga compreender parte do que eu acho que consigo formular. Não
estou aí no momento de sua leitura, estou aqui. Mas você tem as minhas palavras e é a partir
delas que me desterritorializo daqui, de Itapuã e num tempo passado, até aí, em sua casa e no
futuro. Foucault diz que as letras, assim como as imagens de um pintor, devem saltar da tela. Em
As Palavras e as Coisas, livro que só fui começar a ler por causa da disciplina, ele começa sua
argumentação apontando a incompatibilidade entre o visível e a linguagem: “Por mais que se
tente dizer o que se vê, o que se vê jamais reside no que se diz”. Por essa razão, este texto é uma
tentativa. É um esforço de ser compreendido em partes por você, através de um sistema de
linguagem criado antes de eu e você chegarmos ao mundo.
O primeiro aprendizado que obtive na disciplina foi a quebra do conceito de
subjetividade como algo estático e localizado no indivíduo. É a partir da compreensão de
subjetividade como um processo dinâmico que retorno à primeira palavra do texto: cisão. Essa
organização conhecida a que se dá o nome de “eu” foi partida ao meio na sala 301 do PAF IV,
em Ondina, na Av. Adhemar de Barros ao longo do semestre de 2019.2.
Neste momento esquizo, descobri que existem coisas que me atravessam e que circulam
sobre mim e em mim. Uma delas é a relação poder-saber, debatida por Foucault e Butler, que me
forja enquanto sujeito de maneira tão pungente que possuo um apego por este poder a ponto de
me sentir seguro porque há esta relação. Li também em Butler sobre a ação do sujeito ser
formada pela ambivalência entre a recuperação do poder e a resistência a ele. Informações como
essa me fraturam porque agora percebo que por toda a minha vida fui atropelado por coisas que
sinto e que vejo, mas que não sabia o que era e nem como nomeá-las. Me senti, em partes, como
uma carne dotada de subjetividade atravessada por diversos espetos que me estruturam e me
furam, de forma que a garantia da minha existência se deu por meio deles, bem como minha
manutenção. Me senti vassalo de alguém, de uma rede, de algo muito maior que eu e que ainda
assim possuo agência nesses movimentos. Me causa sentimentos conflitantes saber que eu
apenas consigo narrar quem eu sou, a minha história e o que eu aprendi porque já passei por
certos processos de sujeição.
Ainda sobre rupturas, uma pergunta retórica feita por você chegou até a mim como um
vírus que se infiltra em estruturas consideradas sólidas e as desfaz. A discussão era sobre
sexualidade e uma colega evocou a biologia como uma instância que poderia dizer a verdade
sobre os corpos de pessoas transsexuais. Você lançou a pergunta: “Mas quem deu poder à
Biologia para que ela pudesse afirmar isso?”. Essa frase ecoa. O cerne da questão não é
especificamente quem deu poder apenas à Biologia, mas a qualquer área do conhecimento. As
certezas que temos são fabricadas por mecanismos de produção de verdade. “Quem deu poder
a...” é uma pergunta que, na minha cabeça, soa como um disco quebrado que eu ainda não
consigo mudar a faixa. E não sei se quero, por enquanto.
Entro agora na parte da angústia, a mais dolorida do processo de aprendizagem. Esse
sentimento apareceu em diversos momentos, mas friso que dois autores em específico
contribuíram para aumentá-lo, a psicanalista Suely Rolnik e o filósofo Gilles Deleuze. A
angústia gerada aqui foi fruto de questionamentos sobre o Outro. Nunca, nem nos meus maiores
devaneios em estado de sono ou de vigília, eu poderia pensar que sou tão dependente do Outro
como percebi que sou. Se escrevo neste momento, é para um Outro. Esse Outro é diferente de
mim porque não sou eu, mas ao mesmo tempo também me constitui. Minha existência é fruto do
encontro de dois Outros que geraram um Outro deles, no caso o meu eu. É a partir do contato
com o Outro que também me constituo sujeito. Do me parir, ao me cuidar e ao me enterrar,
mantenho relação de interdependência com ele. Não é uma via de mão dupla, é um cruzamento
de vias considerando que eu também sou um Outro para esse Outro.
Rolnik diz que o encontro com esse Outro é desconfortável porque é como se fosse um
“estranho que há em nós”. É invasivo. Mas é nos dados da nossa experiência com este Outro, que
nos invade mas que não está dentro de nós, que acontece os processos de subjetividade. Não é
difícil imaginar o quão insuportável é se deparar com essa noção quando se é uma pessoa que
objetiva a independência acima de muitas outras coisas. A autonomia como me ensinaram se
transformou em utopia quando percebi que eu não sou sem o Outro. Repito, pois é forte: eu não
sou sem o outro.
Neste momento faço uma pausa. Penso que seria um período interessante para o texto
abordar neste parágrafo temas que fundam a minha composição enquanto ser, como raça,
sexualidade e pobreza. Tenho uma postura relutante, não quero discorrer sobre essas
interseccionalidades. Acho que é cansaço. O cansaço causado pelo trauma que Grada Kilomba
descreve no livro “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano”. Hoje, este negro
aqui está cansado de falar. Ele opta por não falar sobre o negro, ele já o é. Na Universidade,
percebo que muitas pessoas, em sua maioria brancas, me encaram com uma certa expectativa
quando algum assunto sobre os negros está em ênfase. Olhares que esperam alguma reação e
tentativas de me obrigar a falar. É como se eu pudesse ser diariamente silenciado por eles, mas
não possuísse o direito ao silêncio voluntário.
Ainda nesse livro, Kilomba disserta sobre algo que eu havia percebido por meio de
vivências, que é a ilusão do negro que acha que, caso ele se esforce muito na sua argumentação,
conseguirá ser compreendido pelo branco. Neste assunto em específico, irei optar por descansar.
Aqui, não preciso lutar para provar por A+B sobre como o racismo é mais do que um ato, mas
sim uma forma de dominação sistemática estruturante da sociedade. Foi meu interlocutor quem
me ensinou parte disto.
Estou há 5 anos nessa Universidade, nunca tive um professor negro e, quiçá, um
professor negro que ressignificasse de forma política os termos “viado” e “bicha”. Apenas a sua
presença na sala já representou uma modificação nas minhas aspirações enquanto ser desejante
visto que agora a sua figura se tornou uma das minhas inspirações. Foi a primeira vez que
consegui me ver nesse outro que está ali na posição de sujeito-suposto-saber e finalmente
quebrar, em certa medida, com a ideia de que ser um professor universitário não é um lugar
palpável para mim.
Por fim, entro na minha emergência. Este sujeito que aqui escreve emergiu, por meio do
contato com esses Outros mencionados ao longo do texto, em um lugar que provocou uma dobra
em sua condição. Eu não sabia que iria ser quebrado, mas que bom que fui. (ta ruim isso kkkkk)

Um sujeito que tem direito de tentar saber o que são essas coisas que o atravessam

Dobras e linhas de fuga

A importância de conseguir nomear as coisas.

Ao estudar o outro, percebi que é necessário revisitar sempre que possível o eu, para que
ele não se desfaça apenas com o conteúdo que

A Psicanálise diz que a angústia é da ordem do real e o real lacaniano é o inominável, é


aquilo que as palavras falham em apreender a sua completude. Nessa matéria eu consegui dar
nome a algumas coisas e diminuir parte dessa angústia

Terminar o ensaio usando a ultima frase do ensaio dele e parafrasear com algo tipo: eu
estou falando porque julio me ensinou a falar

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