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OBJECTO DE DESEJO:
Da “Pintura-Desenho” ao Holograma
Bruno Marques
José Oliveira
IHA-FCSH/UNL
«Se uma ou outra vez acharem que eu pinto certas cenas amorosas com
excessiva minúcia, evitem censurarem-me, ao menos que me considerem mau
pintor, visto que isso equivaleria a censurar a minha velha alma por já não saber
senão gozar pela reminiscência.»
Casanova, Histoire de ma Vie
«No primeiro minuto do meu sonho, tenho visões de corpos dançando, cujas
formas me são perfeitamente familiares, iluminados por um estonteante conjunto de
luzes.»
Casanova, apontamentos de sonhos
Um libertino encarcerado…
Reza a lenda que foram as ondas de choque do Terramoto de Lisboa que abriram
uma racha na parede da prisão de Veneza79 onde se encontrava Giocomo Casanova
(1725-1798), afamado sedutor e, entre inúmeras actividades que exerceu, prolixo
escritor, considerado um dos mais notáveis do século XVIII.
Corria o ano de 1755 quando Casanova, na normalidade da sua vida de boémio
aventureiro, é acusado pela inquisição por práticas ocultistas e vida dissoluta. É
levado para os Chumbos, a prisão anexa ao Palácio dos Doges. Inicialmente
colocado numa «medonha masmorra» sem «leito, nem cadeira, nem mesa, nem
móvel de espécie alguma», sofre terrivelmente com a escuridão, o calor «extremo»
do verão e a presença de «ratos grandes como coelhos» (Casanova, 2006/1778, pp.
31-32). Casanova recebe entretanto um tratamento «especial» do guarda
responsável, que lhe concede alguma liberdade condicionada no interior do cárcere.
Tal permite-lhe fazer um reconhecimento do território e reunir material que lhe virá
a ser útil na sua empresa de arquitectar uma fuga. Esse é o fio condutor de um
relato pormenorizado e vertiginoso, contado trinta e dois anos depois em História
da minha fuga das prisões de Veneza (Idem), quando Casanova era bibliotecário
do Conde de Waldstein, em Dux, na Boémia.
A partir de 1990, Julião Sarmento inicia o seu longo ciclo das Pinturas Brancas.
Em telas de grande dimensão, com um fundo branco impuro de textura granulada e
arenosa, emergem fragmentos de figuras, gestos e objectos rasurados e refeitos.
Este processo de «ensaio-e-erro», tradicionalmente atribuído ao desenho, é agora
plenamente assumido pela pintura. E é justamente desta particular tensão, entre
desenho e pintura, que deriva o carácter simultaneamente matérico e conceptual
destas figurações. Atendendo à dualidade ocidental entre corpo e espírito, com os
seus avatares que estruturam as oposições entre pintura e desenho, imagem e
conceito, concretização e projecção, o artista atesta a natureza espectral e virtual
da imagem, em razão de ser justamente essa a condição que define a mulher ideal;
portanto, não o objecto de desejo, mas a sua ideia. A ausência da cabeça da figura
feminina afere a sua condição de entidade genérica, arquetípica.
Enquanto voyeur que penetra ilicitamente num universo privado, o espectador
depara-se com os vestígios de alguém que se encontra – como que diante da
parede do cárcere –, escravizado num trabalho passional, ou da paixão; isto é,
retido na tentativa, sempre diferida e impossível, de materializar a imagem
definitiva ou absoluta do seu objecto de desejo.
«Lacan, afirmava, provocatoriamente, que não existe tal coisa como uma
“relação sexual” (o que parece tornar a presença e o género algo irrelevantes),
como não existe também possivelmente uma relação erótica, o que denuncia, antes
de mais, a insuficiência, senão mesmo a inadequação da noção de “relação” para
dizer a ligação que ocorre mediante a actividade fantasmática do desejo e os seus
movimentos de atracção. O dispositivo erótico, ao qual as máquinas
comunicacionais dão uma nova consistência tecnológica, parece necessitar, menos
ainda, de distinguir entre corpos e imagens, entre presença e ausência e entre real e
imaginário. No conjunto, essas máquinas promovem a circulação e a transitividade
do desejo, impulsionando constantemente a nossa ligação a esse trânsito infindável
dos simulacros.» (Cruz, 2012/2001, p. 233)
Diante a simulação de um ambiente virtual imersivo, dá-se o maravilhamento,
uma desencarnação ou uma afecção do incorpóreo que despoleta o desejo de
desejar um corpo em falta. Uma mulher flutuando a uma escala não real, em estado
de radical apatia (despida de qualquer psicologia é uma espécie de boneca
funcional), traduz a metáfora de uma paixão gélida e indiferente, sem quaisquer
abalos e estremecimentos. Desmantelando a sua dimensão táctil, a sua «pele» feita
de feixes luminosos, fina película que recobre uma figura vazia de carne ou
matéria, é da ordem do simulacro85. O holograma, instaurando possibilidades
simulacrais de experiência, dá credibilidade (enquanto ilusória tangibilidade
volumétrica) a esta forma de experiência, que, diríamos, é convocadora da
alucinação ou aparição fantasmagórica.
Sarmento encontra na holografia um meio adequado para operar um paradoxo da
experiência sensitiva de uma imagem mental, num exercício de afecção que tende
precisamente a dissolver as fronteiras entre corporalidade e espiritualidade (se
quisermos entender esta última como visão estrita da vida psíquica). Um «corpo
utópico» enquanto Psyké, mantido por uma projecção virtual. Universo impalpável
onde, em relação à ideia de corpo desejado, nunca há impressão, contacto, ligação,
mas distância, experiência da falha ou da falta, em que a figura feminina nada mais
é senão um apelo fantasmagórico. Nesta homenagem a Casanova, a convocação de
um corpo que vive senão imaginariamente, só pode resultar num espectro
vagueando estranhamente desencontrado com a vã tentativa de o reter, ou de o
captar, cristalizado, numa única e definitiva imagem do objecto de desejo. Como
ideia aquém e além de qualquer imagem (fazendo com que todas as imagens sejam
uma única, repetida infindavelmente, com ligeiras variações), ele é, também,
sempre, uma imagem separada de qualquer corpo. Por isso ele é utópico, sem lugar
e que não está em lugar algum. «Corpo» sem decadência e sem morte, porque
desrealizado enquanto existência e realizado apenas enquanto arquétipo. Neste
imperativo utópico, ele é a visão rarefeita de um corpo errante e infigurável feito
por feixes invisíveis de ligações que o fixam efemeramente no espaço e no tempo.
Nesta interminável tentativa em «redesenhá-lo» (e aqui ressoa a matriz que
motiva as Pinturas Brancas), com o holograma Sarmento agencia um «corpo oco»,
passível de se tornar, também ele, agora num novo hospedeiro para a formação de
um projecção de um terceiro, o espectador, sem conseguir anular o seu poder de
apropriação – não predatoriamente, mas contra si, num assombro de auto-
consciência que desmonta o dispositivo do voyeurismo, aqui encontrado num
silêncio compartilhado. Em suma, Sarmento põe no seu holograma a evidência
simulacral do objecto desejante e tende a transformar essa ausência em prova de
abandono, como um karma feito de um encantamento simultaneamente utópico e
trágico: o objecto da paixão sofre um inevitável processo de desagregação, porque
enquanto matéria de obsessão, a sua unidade e presença firma-se apenas enquanto
mítica e abstracta.
Julião Sarmento, Charm, 2001
instalação video interactiva
Dimensões variáveis
Colecção do artista
Bruce Nauman
Making Faces, 1968
Holograma de transmissão
19 x 25 cm
(MIT Museum MoH Collection)
«We know that a hologram is not a picture. It is more like a coding system.»
Margaret Benyon (1997)
BIBLIOGRAFIA