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JULIÃO SARMENTO OU A VIRTUALIDADE DO

OBJECTO DE DESEJO:
Da “Pintura-Desenho” ao Holograma
Bruno Marques
José Oliveira
IHA-FCSH/UNL

«Se uma ou outra vez acharem que eu pinto certas cenas amorosas com
excessiva minúcia, evitem censurarem-me, ao menos que me considerem mau
pintor, visto que isso equivaleria a censurar a minha velha alma por já não saber
senão gozar pela reminiscência.»
Casanova, Histoire de ma Vie

«No primeiro minuto do meu sonho, tenho visões de corpos dançando, cujas
formas me são perfeitamente familiares, iluminados por um estonteante conjunto de
luzes.»
Casanova, apontamentos de sonhos

Um libertino encarcerado…

A representação Portuguesa na Bienal de Veneza de 1997 apresentou a série


Casanova de Julião Sarmento. Especificamente concebida para os espaços do
Palazzo Vendramin ai Carmini (Pavilhão Português), era composta essencialmente
por um conjunto de pinturas que prolongavam o ciclo das Pinturas Brancas,
iniciado em 1990. Mas nessa ocasião foi também exibido, pela primeira e única
vez, Untitled, obra que fazia uso de um meio tecnológico inédito no quadro do
trabalho do artista: numa sala obscurecida flutuava misteriosamente uma mulher de
pé em repouso e sem cabeça, cujo corpo era formado pelos feixes luminosos de um
holograma.
Julião Sarmento, Sem título, 1997 Holograma de transmissão Dimensões variáveisColecção do artista

Reza a lenda que foram as ondas de choque do Terramoto de Lisboa que abriram
uma racha na parede da prisão de Veneza79 onde se encontrava Giocomo Casanova
(1725-1798), afamado sedutor e, entre inúmeras actividades que exerceu, prolixo
escritor, considerado um dos mais notáveis do século XVIII.
Corria o ano de 1755 quando Casanova, na normalidade da sua vida de boémio
aventureiro, é acusado pela inquisição por práticas ocultistas e vida dissoluta. É
levado para os Chumbos, a prisão anexa ao Palácio dos Doges. Inicialmente
colocado numa «medonha masmorra» sem «leito, nem cadeira, nem mesa, nem
móvel de espécie alguma», sofre terrivelmente com a escuridão, o calor «extremo»
do verão e a presença de «ratos grandes como coelhos» (Casanova, 2006/1778, pp.
31-32). Casanova recebe entretanto um tratamento «especial» do guarda
responsável, que lhe concede alguma liberdade condicionada no interior do cárcere.
Tal permite-lhe fazer um reconhecimento do território e reunir material que lhe virá
a ser útil na sua empresa de arquitectar uma fuga. Esse é o fio condutor de um
relato pormenorizado e vertiginoso, contado trinta e dois anos depois em História
da minha fuga das prisões de Veneza (Idem), quando Casanova era bibliotecário
do Conde de Waldstein, em Dux, na Boémia.

Julião Sarmento, Cela (1997)


Técnica mista sobre tela 66 x 53 cm
Colecção particular, Monte Carlo, Mónaco

De que forma a invocação da figura de Casanova se presta a Sarmento para este


inquirir sobre a essência do trabalho passional, agora inevitavelmente tido como
operação monológica do imaginário? No comentário que faz a uma particular
pintura, Cela, integrada na série que aqui nos ocupa, refere Michael Tarantino
que,

«Quando pensamos na figura e no mito de Casanova, pensamos no acto sexual,


no acto da perseguição, no acto da imaginação. Quando pensamos em Casanova
na cadeia, pensamos nos limites que foram postos aos seus desejos, na barreira
erguida entre pensar sobre sexo e a realização desses pensamentos.» (Tarantino,
2012/1997, p. 166)

O trabalho de Sarmento revela desde cedo uma forte predisposição para o


reconhecimento do fracasso e da falta. Um dos primeiros exemplos que o atestam
é Sem título, de 1973. Três conjuntos fotográficos desenvolvem, a onze momentos,
um micro-evento que pode ser lido como uma exemplificação teatralizada do
encontro falhado lacaniano. Depois de um avanço subtil, o homem atinge o ponto
em que ataca fervorosamente, mas termina numa solidão desconcertante. O que
parecia ser um corpo prestes a ser tomado, não era senão uma miragem,
corporalizando a imagem da impossibilidade de consumação do desejo80, e
mostrando que o impulso se satisfaz não no real mas na alucinação81.

Julião Sarmento, Sem título, 1973.


3 fotografias p&b montadas sobre PVC
19,7 x 88,5 cm
Colecção do artista

As Pinturas Brancas: a virtualidade do objecto de desejo (a ideia de mulher).

A partir de 1990, Julião Sarmento inicia o seu longo ciclo das Pinturas Brancas.
Em telas de grande dimensão, com um fundo branco impuro de textura granulada e
arenosa, emergem fragmentos de figuras, gestos e objectos rasurados e refeitos.
Este processo de «ensaio-e-erro», tradicionalmente atribuído ao desenho, é agora
plenamente assumido pela pintura. E é justamente desta particular tensão, entre
desenho e pintura, que deriva o carácter simultaneamente matérico e conceptual
destas figurações. Atendendo à dualidade ocidental entre corpo e espírito, com os
seus avatares que estruturam as oposições entre pintura e desenho, imagem e
conceito, concretização e projecção, o artista atesta a natureza espectral e virtual
da imagem, em razão de ser justamente essa a condição que define a mulher ideal;
portanto, não o objecto de desejo, mas a sua ideia. A ausência da cabeça da figura
feminina afere a sua condição de entidade genérica, arquetípica.
Enquanto voyeur que penetra ilicitamente num universo privado, o espectador
depara-se com os vestígios de alguém que se encontra – como que diante da
parede do cárcere –, escravizado num trabalho passional, ou da paixão; isto é,
retido na tentativa, sempre diferida e impossível, de materializar a imagem
definitiva ou absoluta do seu objecto de desejo.

Julião Sarmento, Dias de Escuro e de Luz - II (jarro), 1990


Técnica mista sobre tela 190 x 341 x 2,5 cm
Colecção Fundação de Serralves, Porto, Portugal

A alteridade encenada afecta ao narcisismo amoroso: a derradeira perversão.

Oriundo de uma família de actores, criado no seio da cultura carnavalesca da


poderosa cidade de Veneza, Casanova viajou a vida inteira por toda a Europa,
seguindo a antiga tradição dos mascarados venezianos. A sua obra-prima, Histoire
de ma Vie (editada postumamente82), dá-nos conta, como nenhum outro documento
do século em que ele viveu, de uma vida levada como personagem de mil papéis e
facetas e estruturada por essa ideia de desempenho ou performance – testamento
fundamental para uma nova compreensão do Self (Kelly, 2009, pp. 11-12). Escreve
recentemente Miguel Viqueira que Casanova «se lançou ao mundo como se o
mundo fosse uma caríssima produção teatral montada pelo destino para ser ele
próprio o encenador e o protagonista exclusivo.» (Viqueira, 2013).
Sarmento recebe este testemunho para complicar a teatralidade afecta ao
narcisismo amoroso, tido deliberadamente como derradeira perversão:
imaginando, em segunda-mão, uma imagem sonhada por Casanova na obscuridade
solitária da prisão da República de Veneza (e posteriormente «revivida» ou
«recriada» durante as anotações das suas memórias), Sarmento chama a si um
fantasma. Figura suspensa no tempo e no espaço, e celebrada como património
imaterial daquele lugar – que é Veneza –, para, por fim, tomá-la como sua, num
puro acto de pilhagem imagética e do imaginário.
Algumas das estratégias do trabalho de Sarmento estão subordinadas a uma
volúpia da teatralização, em razão da encenação da alteridade constituir a forma
mais superior de representação de si para si próprio. Na sua base está uma
homologia entre a actividade artística e o trabalho passional, na justa medida em
que, para Sarmento, fazer arte é seduzir-se a si próprio. Assunção de que o artista
se apaixona pela sua pessoa. Obcecado pela imagem de si próprio enquanto
criador83, Sarmento confunde a imagem do Self (ego) com as imagens produzidas
por esse Self (todas partindo da sua mulher ideal, que funciona aqui como um
alter-ego infatigavelmente reencenado84). Prisioneiro de uma alegórica cela (que
podemos chamar de “Casa do Desejo”), Sarmento revisita periodicamente esta
espécie de cabinet d’amateur onde reencontra um mesmo corpus de imagens
tomadas de empréstimo – entretanto feitas suas – a fim de reinventar, também ele,
os seus próprios fantasmas.

Julião Sarmento, Três Grandes Variantes Amorosas, 1997


Técnica mista sobre tela 215 x 476 cm
Colecção Moderna Museet, Stockholm, Sweden

Um corpo utópico: a dimensão fantasmática do desejo (o simulacro).

Para Teresa Cruz, a propósito de Charm, instalação vídeo interactiva de


Sarmento, apresentada em «A Experiência do Lugar» (Porto, 2001),

«Lacan, afirmava, provocatoriamente, que não existe tal coisa como uma
“relação sexual” (o que parece tornar a presença e o género algo irrelevantes),
como não existe também possivelmente uma relação erótica, o que denuncia, antes
de mais, a insuficiência, senão mesmo a inadequação da noção de “relação” para
dizer a ligação que ocorre mediante a actividade fantasmática do desejo e os seus
movimentos de atracção. O dispositivo erótico, ao qual as máquinas
comunicacionais dão uma nova consistência tecnológica, parece necessitar, menos
ainda, de distinguir entre corpos e imagens, entre presença e ausência e entre real e
imaginário. No conjunto, essas máquinas promovem a circulação e a transitividade
do desejo, impulsionando constantemente a nossa ligação a esse trânsito infindável
dos simulacros.» (Cruz, 2012/2001, p. 233)
Diante a simulação de um ambiente virtual imersivo, dá-se o maravilhamento,
uma desencarnação ou uma afecção do incorpóreo que despoleta o desejo de
desejar um corpo em falta. Uma mulher flutuando a uma escala não real, em estado
de radical apatia (despida de qualquer psicologia é uma espécie de boneca
funcional), traduz a metáfora de uma paixão gélida e indiferente, sem quaisquer
abalos e estremecimentos. Desmantelando a sua dimensão táctil, a sua «pele» feita
de feixes luminosos, fina película que recobre uma figura vazia de carne ou
matéria, é da ordem do simulacro85. O holograma, instaurando possibilidades
simulacrais de experiência, dá credibilidade (enquanto ilusória tangibilidade
volumétrica) a esta forma de experiência, que, diríamos, é convocadora da
alucinação ou aparição fantasmagórica.
Sarmento encontra na holografia um meio adequado para operar um paradoxo da
experiência sensitiva de uma imagem mental, num exercício de afecção que tende
precisamente a dissolver as fronteiras entre corporalidade e espiritualidade (se
quisermos entender esta última como visão estrita da vida psíquica). Um «corpo
utópico» enquanto Psyké, mantido por uma projecção virtual. Universo impalpável
onde, em relação à ideia de corpo desejado, nunca há impressão, contacto, ligação,
mas distância, experiência da falha ou da falta, em que a figura feminina nada mais
é senão um apelo fantasmagórico. Nesta homenagem a Casanova, a convocação de
um corpo que vive senão imaginariamente, só pode resultar num espectro
vagueando estranhamente desencontrado com a vã tentativa de o reter, ou de o
captar, cristalizado, numa única e definitiva imagem do objecto de desejo. Como
ideia aquém e além de qualquer imagem (fazendo com que todas as imagens sejam
uma única, repetida infindavelmente, com ligeiras variações), ele é, também,
sempre, uma imagem separada de qualquer corpo. Por isso ele é utópico, sem lugar
e que não está em lugar algum. «Corpo» sem decadência e sem morte, porque
desrealizado enquanto existência e realizado apenas enquanto arquétipo. Neste
imperativo utópico, ele é a visão rarefeita de um corpo errante e infigurável feito
por feixes invisíveis de ligações que o fixam efemeramente no espaço e no tempo.
Nesta interminável tentativa em «redesenhá-lo» (e aqui ressoa a matriz que
motiva as Pinturas Brancas), com o holograma Sarmento agencia um «corpo oco»,
passível de se tornar, também ele, agora num novo hospedeiro para a formação de
um projecção de um terceiro, o espectador, sem conseguir anular o seu poder de
apropriação – não predatoriamente, mas contra si, num assombro de auto-
consciência que desmonta o dispositivo do voyeurismo, aqui encontrado num
silêncio compartilhado. Em suma, Sarmento põe no seu holograma a evidência
simulacral do objecto desejante e tende a transformar essa ausência em prova de
abandono, como um karma feito de um encantamento simultaneamente utópico e
trágico: o objecto da paixão sofre um inevitável processo de desagregação, porque
enquanto matéria de obsessão, a sua unidade e presença firma-se apenas enquanto
mítica e abstracta.
Julião Sarmento, Charm, 2001
instalação video interactiva
Dimensões variáveis
Colecção do artista

O Holograma na Arte Contemporânea.

A holografia foi sempre, de certo modo, marginal na prática artística


contemporânea, embora tenha pontualmente atraído a atenção de artistas
consagrados e tão díspares como Bruce Nauman, Salvador Dali, James Turrell ou
Louise Bourgeois.
Bruce Nauman pode ser mesmo considerado um pioneiro nesta prática ao
produzir em 1968 uma série de hologramas da sua face distorcida, que expôs na
Nicholas Wilder Gallery em Los Angeles e na Knoedler Gallery em Nova Iorque86
seguida, em 1969, da mostra Bruce Nauman: Holograms, Videotapes and Other
Works, na galeria Leo Castelli de Nova Iorque, na qual novamente expôs esta série
e um novo conjunto de dez hologramas que exploravam a relação do seu corpo
com o espaço87.

Bruce Nauman
Making Faces, 1968
Holograma de transmissão
19 x 25 cm
(MIT Museum MoH Collection)

Na Europa a artista Margaret Benyon (n.1940) iniciou os seus trabalhos de


holografia no mesmo ano em que Bruce Nauman o fez, tendo apresentado em 1969,
na Nottingham University Art Gallery, a sua primeira mostra individual de
hologramas na sequência do seu trabalho de investigação em pintura sobre os
modos de percepção, utilizando ritmos e padrões um pouco na linha da Op-Art. É
disso exemplo a pintura Relief Interference (1965), explorada de um modo
tridimensional no holograma Interference Box (1969).
As décadas de 70 e 80 foram períodos férteis no desenvolvimento de novas
técnicas e no surgimento de artistas e instituições que divulgaram a holografia
nomeadamente com a criação dos museus de holografia de Nova Iorque (1976), de
Colónia (1979), e de Paris (1980). Uma euforia que durou pouco mais do que uma
década com o fecho de algumas destas instituições nos anos 90 – o museu de Nova
Iorque em 199288, e o de Paris em 1996.
Em Portugal a divulgação artística da holografia teve na Fundação Calouste
Gulbenkian um dos seus principais promotores. Efectivamente, a mostra A Imagem
Holográfica: Oito Artista na Era do Laser, que teve lugar na Galeria de
Exposições Temporárias da Fundação entre Outubro e Novembro de 1985,
constituiu a primeira mostra no nosso país dedicada em exclusivo à utilização
desta tecnologia por artistas com uma prática já consistente, entre eles a pioneira
Margaret Benyon.
Rudie Berckhout
Delta IV, 1982
Holograma
Capa de Catálogo de Exposição
Fundação Calouste Gulbenkian (1985)

Esta exposição, foi realizada em Portugal pelo facto da delegação de Londres da


Fundação Calouste Gulbenkian ter apoiado financeiramente alguns anos antes a
criação no Goldsmiths´ College da Universidade de Londres de um laboratório e
estúdio de holografia, destinado a auxiliar a prática artística nesse âmbito.
A exposição da Fundação Gulbenkian, eclética nas diferentes abordagens
estéticas dos artistas presentes (Margaret Benyon, Rudie Berkhout, Jeremy Diggle,
Dieter Jung, John Kaufman, Doug Tyler e a dupla Wenyon e Gamble), tinha ainda
uma função didáctica e de incentivo aos artistas portugueses, em particular para
aqueles que já tinham participado em 1983 num workshop de holografia naquela
instituição a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, entre os quais Eduardo
Nery, Emília Nadal e Sérgio Pinhão89.
Depois da exposição de 1985 na Gulbenkian a prática holográfica surge
novamente em 1992, integrada na VII Bienal de Vila Nova de Cerveira numa
secção com a curadoria de Silvestre Pestana (Vídeo-Arte, Hologramas e
Estereoscopia), com obras de Rosa Oliveira (n.1953) e Isabel Azevedo (n.1963),
artistas conhecedoras das práticas e processos tecnológicos nesta matéria, que
entretanto enveredaram por uma carreira académica, ambas com teses de
doutoramento relacionadas com a temática da holografia90.
A génese do holograma de Julião Sarmento.

Contrariamente a Rosa Oliveira e Isabel Azevedo, Julião Sarmento não tinha


conhecimento das técnicas e das dificuldades associadas à holografia. A sua
recordação no tocante ao desejo de criar um holograma tinham tido origem na
visualização da figura holográfica da princesa Leia, projectada pelo robot R2D2 no
primeiro filme da série da Guerra das Estrelas, de 1977.
Vinte anos depois, a Bienal de Veneza e a temática do Casanova surgiram como
a altura para pôr em prática o seu desejo latente, imaginando uma figura feminina a
flutuar no espaço. Foram essas as únicas coordenadas que, alguns meses antes da
exposição, comunicou aos seus amigos e artistas Rita McBride e Glen Rubsamen,
na altura em Nova Iorque, lançando-lhes o repto da sua realização91.
Acabando por encontrar os recursos necessários para a produção da chapa
holográfica, a mesma seria montada suspensa a partir do tecto à altura dos olhos do
visitante, iluminada apenas por um equipamento de raios laser de cor verde
permitindo, a um observador no lado oposto, a visualização do volume de uma
figura feminina igualmente em suspensão.

O Holograma - Tecnologia e Dimensão Estética.

«We know that a hologram is not a picture. It is more like a coding system.»
Margaret Benyon (1997)

Numa altura em que os sistemas de informação reduziam à codificação binária


texto, som e imagem, para o seu posterior armazenamento, edição, ou transmissão,
também o holograma participava desse princípio de codificação contudo não com
um objectivo de funcionalidade, mas como inerência ao seu próprio processo de
realização.
Efectivamente, a holografia, que tem de semelhante ao processo fotográfico o
registo de luz sobre um suporte sensível, a chapa holográfica, difere
substancialmente daquele no tipo de imagem captada. Na realidade o registo não
corresponde a uma imagem do objecto “holografado”, mas sim a um padrão de
interferência de frentes de ondas provenientes da emissão de uma fonte de luz laser
de referência e a luz reflectida pelo objecto quando iluminado por essa mesma
fonte. Simplificando, o resultado do registo holográfico é algo idêntico à captação
de um padrão de interferência de ondas de água na superfície de um lago que
tiveram origem em dois pontos diferentes, embora esta estrutura ondular seja
microscópica na chapa holográfica.
Esse padrão de interferência corresponde de algum modo ao objecto que lhe deu
origem mas na verdade sem um método que permita a sua descodificação é
completamente impossível entender a forma, dimensão, e localização espacial do
objecto a partir dessa transparência da chapa.
O procedimento para a sua reconstrução tridimensional passa por iluminar a
chapa holográfica, depois de revelada, com o mesmo tipo de luz laser que deu
origem ao registo, e segundo o mesmo ângulo de incidência, provocando deste
modo uma interferência com o padrão inscrito na sua superfície que vai permitir a
reconstrução do objecto. Um observador colocado no lado oposto ao da incidência
do laser na placa holográfica poderá então ver o objecto sob diferentes ângulos de
acordo com a sua posição. Este tipo de holograma, denominado de transmissão92,
foi o utilizado na realização de Julião Sarmento apresentada na Bienal de Veneza.
Esta codificação na superfície da chapa holográfica, indicia uma outra
codificação relacionada com uma dimensão estética que esta tecnologia pode
proporcionar.
Na verdade, como refere Margaret Benyon em epígrafe, não estamos perante uma
simples imagem, mas simultaneamente diante da abertura de um novo espaço, ou
melhor, de uma nova espacialidade e de uma nova experiência visual, que se
desloca com o nosso movimento sem necessidade de qualquer dispositivo óptico
ou electrónico (óculos, ou capacete de realidade virtual) que interprete as leis
renascentistas da perspectiva para dar a sensação de tridimensionalidade.
A abertura desse espaço, que suspeitamos virtual mas que ao mesmo tempo se
insere na realidade visível, é algo da dimensão da fractura, do descontínuo, do
paradoxo. Paul Virilio refere justamente que a era da lógica paradoxical se inicia
com a invenção da gravação de vídeo, com a holografia e com a computação
gráfica, sucedendo a uma lógica dialéctica da fotografia e do filme (Virilio,
1988/1994, p. 63)93.
É talvez essa dificuldade de lidar com a lógica do parodoxo que leva a uma
necessidade de comprovar, ou não, a sua fisicalidade. Peter Zec94 refere que
«contrariamente a uma imagem usual, o holograma manifesta-se como algo que
apela em primeiro lugar ao estímulo dos sentidos hápticos e motores antes de ser
entendido visualmente» (Zec, 1989, p. 426).
Deste modo, a necessidade táctil suscitada pelo holograma, é uma das
característica a ter em conta ao encarar a fenomenologia da recepção associada a
este meio tecnológico, mas é também, e ao mesmo tempo, a sua enorme decepção
na frustração causada pela incapacidade de materializar essa acção. Daí os
repetidos relatos das impressões digitais deixadas pelos visitantes nas chapas
holográficas de uma exposição, o único elemento real de um aparato que
furtivamente nos esconde o modo como produz a imagem que vemos.
Desejo e frustração, presença e ausência, materialidade e imaterialidade são
inerentes ao holograma.
Estas dualidades estão aliás estão bem presentes na «matéria de que são feitos»
- a luz (fotões) – e na sua dupla natureza, que se manifesta como corpúsculo
(matéria) e como onda (energia), tal como explica a mecânica quântica.
O paradoxo da sua existência manifesta-se ainda na criação de um espaço
próprio que, entre outras possibilidades, pode permitir a interpenetração simultânea
de diferentes objectos, pode suster abstracções adimensionais, ou simplesmente
servir de palco a uma temporalidade registada em hologramas de 360º. Além do
mais, o tradicional holograma visualizado por detrás da chapa holográfica pode
hoje ser transportado para a sua frente (imagem entre a chapa e o observador) ou
interpenetrar a chapa holográfica, colocando-se simultaneamente atrás e à frente
desta95.
Por tudo isto o holograma transforma a relação tempo-espaço e materialidade
numa nova dimensão que, contrariamente à fotografia, não representa uma
realidade mas subverte essa mesma realidade em mecanismos de simulação para,
através da sua aparência, articular códigos que convocam perturbação,
indeterminação, inquietação, mutação.
Esses mecanismos de simulação são processos operativos decorrentes da própria
natureza da luz, que não se conforma tanto com os princípios da óptica clássica
como do espaço euclidiano. Deste modo, a aparente intensificação de uma
presença no espaço do holograma, não é mais do que um simulacro, «uma cópia de
algo que nunca existiu como tal», como refere Peter Zec, utilizando uma expressão
de Frederic Jameson96 (Zec, 1989, p. 427-428).
Uma outra particularidade do holograma tem a ver com a imagem em si e com a
sua representação volumétrica que é descrita apenas por condições fronteira. Na
verdade os objectos são apresentados como se existissem somente na sua
superfície, e os corpos firmados no espaço apenas pela presença da pele como
invólucro de uma materialidade não existente. A ilusão de tangibilidade só seria
possível mediante o desenvolvimento de interfaces interactivas utilizando meios
tecnológicos sofisticados mas hoje já disponíveis (sensores de posicionamento e
interacção computorizada).
Esta condição fronteira do holograma tem um particular significado no caso da
representação de corpos dando acesso a uma via fantasmática, a corpos
metafísicos, que mais uma vez remete para o paradoxo, para a simulação, e para o
simulacro.
O sistema de códigos associados ao holograma multiplica-se deste modo desde a
sua realização física na chapa holográfica, através da gravação de padrões de
interferência, à sua apresentação espacial, desdobrando-se em apreciações
estéticas pertinentes nas obras de muitos artistas.

BIBLIOGRAFIA

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79. Casanova faz mesmo referência aos efeitos do «abalo que arrasou Lisboa» no edifício prisional onde
estava encerrado no ano de 1755. (Cf. Casanova, 2006/1788, p. 52).
80. Partindo dos escritos do psicanalista francês Jacques Lacan (Lacan, 1979/1964; Lacan, 1986/1975),
podemos arriscar que a «story-board» em análise só expressa uma demanda de amor, uma demanda de
desejo, nunca o amor ou o desejo em si mesmos. E que, por isso mesmo, a espiral mais subtil da sedução
descreve-nos aqui, então, não uma história mas o jogo deste encontro falhado.
81. Revisitemos Jacques Lacan: «É desde o ponto em que o sujeito deseja que a conotação da realidade é
dada na alucinação. E se Freud opõe o princípio de realidade ao princípio do prazer, é justamente na medida
em que a realidade é aí definida como dessexualizada.» (Lacan, 1979/1964, p. 147).
82. Desde a sua primeira publicação, em 1822-25, fizeram-se múltiplas edições novas retocadas. O original
integral não foi publicado até 1960. Em 2013, a editora Divida Comédia trouxe à estampa História da
Minha Vida I e II, com tradução e notas de Pedro Tamen (Casanova, 2013). Neste clássico da literatura
universal, baseado em mais de 3000 páginas manuscritas de memórias onde se incluem centenas de
episódios da sua vida sexual e sentimental, Casanova deixou-nos, entre o ocaso do ancien régime e a
alvorada de um tempo novo, um estudo íntimo e exaustivo daquilo que ele via como a peça mais
revolucionária de todas – ele próprio. Podemos pensá-la como uma vida narrada como uma imensa ópera –
é esse o propósito de Ian Kelly em Casanova: muito além de um grande sedutor (Kelly, 2009) –, não um
fiel registo de acontecimentos vividos, mas antes «criados no momento da escrita» (Hughes 2008).
83. No fundo desta operação encontra-se a condição de «vítima da sua maníaca obsessão da encenação», em
razão de Sarmento partilhar o mesmo drama vivido pela personagem de Flaubert, Emma Bovary: ela vive
«obcecada pela sua imagem de si própria enquanto pólo de situações passionais.» (Melo, 1997, p. 39)
84. Gesto de auto-feminização que se serve dessa personagem genérica feminina para projectar uma
mesma matriz libidinal. Este assunto encontra-se amplamente desenvolvido por Bruno Marques (Marques,
2011, pp. 475-502).
85. «Por simulacro consideramos uma “imagem” originária, dotada de uma virtualidade incontrolável, que se
multiplica numa série de figuras, a todas excedendo, e que cria a “matriz” onde a materialidade do “real”
transcorre.» (Bragança de Miranda, 2008, pp. 175-176)
86. First Hologram Series: Making Faces (A-K) (1968)
87. Second Hologram Series: Fully Figure Poses (A-J) (1969).
88. O seu espólio foi adquirido pelo museu do Massachusetts Institute of Technology (MIT) em 1993.
89. No ano seguinte a esta exposição, em 1986, a Fundação Calouste Gulbenkian convidou novamente um
conjunto de artistas portugueses para integrarem mais um workshop de holografia no Goldsmiths´ College
de Londres no qual participou Guilherme Parente e António Viana.
90. Maria Isabel Azevedo. A Luz Como Material Plástico. Universidade de Aveiro (2005), e Rosa Maria
Oliveira. Pintar com Luz. Holografia e Criação Artística. Universidade de Aveiro (2001).
91. Rita McBride e Glen Rubsamen (2013). “O Holograma Ausente de Julião”, in James Lingwood (ed.),
Maria Burmester (coord. e ed.) (2013). Julião Sarmento – Noites Brancas: Retrospectiva, Ostfildern:
Hatje Cantz e Porto: Fundação de Serralves, pp. 186-189
92. Este foi o primeiro tipo de tecnologia desenvolvida para a realização de hologramas na década de 60.
Mais tarde foram criados outros tipos (holograma de reflexão, holograma arco-íris) em que não era
necessária a existência de um equipamento laser para a sua visualização.
93. «The age of the image´s formal logic was the age of painting, engraving and etching, architecture; it
ended with the eighteenth century. The age of dialectic logic is the age of photography and film or, if
you like, the frame of the nineteenth century. The age of the paradoxical logic begins with the invention
of video recording, holography and computer graphics… as tough, at the close of the twentieth century
the end of modernity were itself marked by the end of a logic of public representation» (Virilio,
1988/1994, p.63).
94. Peter Zec (n.1956) tem uma formação multidisciplinar (teoria da arte, psicologia, estudos dos media),
esteve envolvido na criação do Centre of Arts and Media Technologies (ZKM), em Karlsruhe na Alemanha,
e é consultor e especialista na área do design.
95. Sobre questões da espacialidade do holograma ver: Andrew Pepper (1989). “Holographic Space: A
Generalized Graphic Definition”, in, Leonardo, Vol.22, No. 3 e 4, 1989, pp. 295-298.
96. «It is for such objects that we may reserve Plato´s conception of ´simulacrum´, the identical copy for
which no original has ever existed» (Jameson, 1991/1997, p. 18).

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