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Rio de Janeiro
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o: nascim ento e crise das escolas de ssamba do Rio de
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2012
2
Guilherme Ferreira Vargues
_____________________________________________
Prof.ª. Drª. Diana Nogueira de Oliveira Lima (Orientadora)
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Adalberto Cardoso
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Luiz Antonio Machado da Silva
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Peter Henry Fry
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Prof. Dr. Nilton Santos
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2012
DEDICATÓRIA
VARGUES, Guilherme Ferreira. Samba and fighting: birth and crisis of the samba
schools of Rio de Janeiro. 2012. 276f. Tese (Doutorado em Sociologia), Instituto de
Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
This study analyzes the history of two key leaders not only in terms of Portela
Samba School, as in the general trajectory of the Samba Schools of Rio de Janeiro.
The choice of two actors, besides the known importance of both in the history of
carnival, is given by the fact that the two appear as important references for their
carnival associations, representing and organizing collective interests. It is intended
to compare the trajectory of these two characters by inserting both in their historical
contexts. Respectively, the first three decades of 20th Century, and the years 1960
to 1980. The research consists in a review about the transformations in the Samba
Schools of Rio de Janeiro, which in the course of time were forged as the main
representation of Carnival festivities in the city. Analyze the Samba Schools can help
to understand the movement of popular culture in the recent history of the city, and
how this has been linked to society and politics.
INTRODUÇÃO 13
1. O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DO SAMBA COMO SÍMBOLO DA
CULTURA NEGRA E IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL: O NASCIMENTO
DAS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO ........................ 28
1.1 A formatação espacial de outra cidade: Subúrbios e Favelas ....... 28
1.2 Elite civilizada e Plebe atrasada: a barbárie em oposição à civilização 29
1.3 O negro e o mundo do trabalho na Primeira República ............. 36
1.4 Culturas Populares na cidade em mutação: entre a repressão e a glória
................................................................................................ 47
1.5 A festa do carnaval .................................................................. 63
1.6 Nascem as Escolas de Samba ................................................... 78
1.7 Preparando os desfiles oficiais ................................................. 95
1.8 Cidadãos e Escolas de Samba: Alguns apontamentos para o balanço da
afirmação do samba nos anos de 1930 .................................... 103
2. DE PÉS E PESCOÇO COBERTO: PAULO BENJAMIN DE OLIVEIRA 106
2.1 Indivíduos x Sociedade: o lugar sociológico da questão ................ 106
2.2 Notas adicionais sobre o subúrbio carioca ................................... 110
2.3 A trajetória de Paulo da Portela ................................................... 113
2.4 Nascem as escolas de samba ....................................................... 126
2.5 Paulo da Portela, cidadão do samba ............................................ 131
2.6 Algumas considerações ............................................................... 148
3. OS DESFILES RUMO AO APOGEU: ESPETÁCULO, DIVISÃO E PATRONAGEM
NAS ESCOLAS DE SAMBA ............................................................ 155
3.1 Ditadura e engajamento artístico ................................................. 156
3.2 A influência do debate racial ........................................................ 170
3.3 A espetacularização dos desfiles .................................................. 183
3.4 A patronagem e as escolas de samba ........................................... 197
3.5 Entendendo a crise que se estabelece entre sambistas “tradicionais” e
escolas de samba ....................................................................... 203
4. ESCOLA DE SAMBA: A ÁRVORE QUE PERDEU A RAIZ .................. 210
4.1 A trajetória de Antônio Candeia Filho .......................................... 212
4.2 O retorno à tradição como saída para a “crise” das escolas de samba 216
4.3 A criação da Quilombo através do livro Escola de Samba: a árvore que
perdeu a raiz de Candeia e Isnard ............................................... 230
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 251
REFERÊNCIAS ..................................................................................... 268
13
INTRODUÇÃO
O caminho mais salutar é aquele que abarca as relações de poder que estão
em jogo, considerando as relações culturais como práticas descentradas e
multideterminadas pelas relações políticas e sociais, em que conflitos e assimetrias
são regulados pelos compromissos entre os atores colocados em posições
evidentemente desiguais (CANCLINI, 2004).
Tentarei mostrar que se o samba chegou ao patamar de símbolo da
nacionalidade não foi só por uma opção do poder público ou mesmo de intelectuais
de classe média e outros mediadores, mas também resultado de uma ação bastante
intensa empreendida por nosso povo pobre, em maioria sua parcela negra.
Negociando com o restante da cidade, essa parcela da população carioca ocupou
brechas a partir das quais desenvolveu novos espaços de atuação social,
remodelando as relações entre política, classe e cultura.
Procedimentos da pesquisa
artística se torna uma relevante arena de embate com o regime, ou mesmo com a
ordem das coisas em geral.
Pela produção artística podemos perceber a vontade de um indivíduo ou
grupo manifestar seus interesses. Através da produção artística podemos
manifestar desejo de acumular dinheiro, vontade de modificar um governo, visões
acerca do amor, entendimento sobre raça, religião e tantos outros temas que podem
aparecer, inclusive, combinados. O que vale aqui é que quando os mecanismos de
participação política formal se encontram limitados e a coerção se coloca acima do
consenso tem sido a produção artística campo fundamental de batalha por
concepções de mundo em conflito.
A ditadura militar no Brasil é marcada por embates duríssimos entre censura
e claque artística. Embora existissem artistas "colaboradores" e "favorecidos",
tinham aqueles que representavam a oposição ao estado vigente. São músicos,
cineastas, teatrólogos, entre outros que declaravam embate aberto ao Estado
autoritário. Diversas pesquisas acadêmicas já atestaram as relações entre o campo
da produção cultural e a política nos anos autoritários. Entretanto o que me leva a
retornar a este tema é outra preocupação.
Tal como assinalado anteriormente neste texto, os anos de 1970
representam, entre outras coisas, a reorganização do movimento negro no Brasil, é
em 1975 que se dará a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU). Em
compasso com essas mudanças viveríamos também um período de reorganização
da identidade negra em nosso país. Um período onde o embate entre a "democracia
racial" mantida pela ditadura, onde o negro estaria inserido no elemento ufanista,
onde o samba, ritmo das favelas e periferias cariocas, ainda era símbolo da cultura
nacional e representação importante da contribuição da cultura negra na formação
da identidade nacional.
Como as escolas de samba vão aos poucos se tornando símbolo maior da
festa carnavalesca do Rio de Janeiro, já nos anos de 1960, as escolas passam por
uma reformulação bastante complexa, é a chamada invasão da Escola de Belas-
Artes. Ai é o ponto onde as escolas deixam de ser patrimônio da sua comunidade e
passam a se articular com um grupo social cada vez mais amplo. O espetáculo
cresce em proporção enorme. Os carros aumentam, as fantasias e o enredo
passam a ser orientados por profissionais oriundos da Escola de Belas-Artes. As
25
Não teremos uma substituição de uma identidade por outra, mas teremos dai
em diante uma dualização de projetos, de um lado a identidade negra brasileira
forjada ao longo da história, a do negro incorporado contra a do negro segregado e
espoliado. Qual é a ferramenta da nova identidade? Para o novo movimento negro é
a educação. O negro tem que saber sua história e a força da sua cultura para
compreender o seu lugar na sociedade brasileira. Esse seria o discurso de Candeia,
embora sua articulação com o movimento negro seja um entre outros motivos da
sua separação da Portela.
Quero demonstrar no decorrer desta pesquisa como essa crise se articulou
no mundo das escolas de samba e da produção cultural popular em geral,
chegando a se relacionar com um rompimento relevante na história das escolas de
Samba, do carnaval carioca e mesmo da identidade negra no Rio de Janeiro de
nosso tempo. A fundação da Quilombo, como dito em 1975. Esse movimento estaria
em sintonia com o questionamento do papel das escolas de samba de preservarem
a cultura negra. A escola estaria tomada, na visão do grupo de Candeia, por
dirigentes externos (patronos), por carnavalescos externos e articulada para agradar
imprensa, jurados e turistas. O sambista teria perdido a força nos caminhos do
carnaval das escolas.
Chamo o grupo de Candeia de "africano", pois ao querer despertar a
libertação do negro no Brasil se remetem a África em seu discurso. Isso garantiria
ao grupo uma identidade secular, uma civilização, fundamental para reafirmar seu
papel na construção do Brasil e toda a penúria a qual foram submetidos.
Entretanto, como já dito a reorganização do movimento negro no Brasil terá
características peculiares. Ela será forjada entre o discurso "africano" e o discurso
"americano", este último muito influenciado pelo movimento negro estadunidense. É
claro que não encontramos aqui a radicalização política que este atingiu nos EUA,
mas ele será bastante influente no campo da produção artística e acima de tudo em
forjar uma identidade que poderíamos chamar de: black is beautiful . Esse elemento
passa a valorizar a autoestima negra, incentivando os negros a valorizarem, entre
outros elementos, seu modo de falar, de se vestir, e ainda, suas diferenças estéticas
com pessoas de outra cor. Lembre que no processo analisado na década de 1930,
Paulo da Portela, pregava que os sambistas se vestissem de terno para criar uma
imagem, que poderia ser inclusive compartilhada por eles como positiva.
27
Se for verdadeiro o esforço das elites por reinventar o país e fazer de sua
capital caixa de ressonância da imagem de um Brasil “civilizado”, pode-se dizer que
outra cidade teimava em se manifestar por fora dos padrões impostos verticalmente
pelo poder público e suas elites. Com suas trocas culturais, práticas híbridas e
intensas de manifestações sociais, este mundo extraoficial favorece o surgimento
de uma cidade muito mais complexa que a dos croquis dos engenheiros e
tecnocratas. Serão duas cidades, uma oriunda da reforma, da regeneração, da
norma urbanística, racional e técnica, e outra, o labirinto de malocas, do
desemprego compulsório e livre de todas as leis (SEVCENKO, 1992). Serão duas,
mas nem por isso estarão desconectadas.
Em seu estudo sobre a incorporação da cultura popular na cidade do Rio de
Janeiro Souza Reis cita uma importante passagem do poeta Olavo Bilac em que é
retratada a confusão entre os domínios territoriais das “duas cidades”. O trecho é de
1906:
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1Extraído do romance de Lima Barreto Clara dos Anjos. Citado em Fernandes (1998).
2Uma inflação galopante arrasava a capacidade de consumo da população. Junto a ela vinha a crise
do emprego regular, distribuição de renda e moradia.
30
salões e cassinos. Esta “outra” cidade logo não poderia ser mais negligenciada
pelos civilizadores dos primeiros anos republicanos, até porque já fazia parte da
história carioca. Fazia-se percebida no elogio ou na penitência do atraso
(NEEDELL: 1993).
Minha preocupação na primeira parte deste capítulo, além de descrever um
pouco do ideário político-social das elites republicanas, é demonstrar como este
processo resultou em uma reorganização espacial da cidade, que teve como
determinante o deslocamento espacial dos mais pobres. No decorrer do mesmo, irei
explorar como esse deslocamento reforçou os laços comunitários nas periferias,
onde cultura e religião foram elementos determinantes para essa unidade.
Entretanto, é mister afirmar que este movimento se deu sempre articulado com os
projetos antagônicos, que ocorriam na sociedade da época, às políticas
segregacionistas patrocinadas pelo Estado. Se o governo decidia o que era
“civilizado”. Uma parcela da sociedade operou por uma lógica contrária, onde
prevaleceu a troca e a integração cultural.
Dessa forma, por mais que as parcelas periféricas da cidade tivessem seus
locais de encontro e trocas, como as festas – a Pequena África da Cidade Nova, a
celebração do carnaval - a relação destas comunidades com o restante da cidade,
em especial nas primeiras décadas republicanas, era marcada por forte preconceito
e exclusão. Como veremos mais adiante, a própria penetração cultural se dá mais
na incorporação de elementos das culturas das classes populares do que na
incorporação das comunidades propriamente ditas. Isto é, no que se refere à
cidadania e à recepção política da maioria da população na esfera pública, o
processo é deficiente3.
O caso do morro da Providência, tornado morro da Favella, é emblemático.
Ali se formou um lugar de gente muito pobre, em sua maioria negra, a que os
jornais se referiam como vagabundos e criminosos (CABRAL, 1996; MOURA,
1983). Era uma gente que a polícia classificava como “vadia e hostilizava. Honra,
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3
Não custa lembrar que a ocupação suburbana deu-se não só por negros, ou mesmo gente muito
pobre, mas também por diversos imigrantes, desde comerciantes portugueses até operários de
outras regiões europeias, como foi o caso de Mangueira e Quinta do Caju. Assim, nem as favelas,
nem os subúrbios, nem a região da Cidade Nova foram locais de concentração somente de negros
e gente muito pobre. Se a cultura negra apareceu, misturou-se e deixou traços determinantes no
local, essa já é a história que nos interessa explorar.
32
"E esse negócio de dizer que o samba nasceu no morro também não é
realidade. O samba nasceu da cidade. Nós fugíamos da polícia e íamos
para os morros fazer samba. Não havia essas favelas todas. Existiam a
favela dos meus amores e o morro de São Carlos, mais conhecido por
Chácara do Céu. Nós sambávamos nesses dois morros"6.
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4
A ocupação de morros já podia ser notada na cidade nas últimas décadas do século XIX. Em
especial gente que participou da campanha de Canudos ocupou o antigo morro da Providência,
depois morro da Favella e o Morro de Santo Antônio. No morro da Favella percebeu-se também a
formação de habitações exploradas pelo dono do cortiço Cabeça de Porco. Outras ocupações, que
depois receberiam a alcunha de favela, já podiam ser notadas na cidade, antes mesmo das
citadas, era o caso da Quinta do Caju, Mangueira e Serra Morena. Sobre as favelas no Rio de
Janeiro ver Valladares (2000).
5
Interessante ressaltar que nesta região havia a presença de vários imigrantes europeus, operários
da nascente indústria e pequenos comerciantes, estes estabeleceram interessante relação, tanto
de aproximação quanto de conflito, para com o povo negro que ali estava e chegava. Para mais
ver Moura (1995).
6
João da Baiana, depoimento ao MIS. Série Depoimentos.
35
assim, é importante ressaltar que a repressão –mesmo essa, menos ativa – tem
papel relevante para o fortalecimento de algumas áreas de concentração de
atividade cultural e religiosa. O próprio Cartola mostra esse quadro já na chegada
dos anos de 1920:
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7
Cartola, depoimento citado in: Silva, M. T. B. da & Oliveira Filho, A. L. - Cartola. Os tempos idos.3ª
ed. RJ: Funarte, 1997. p.47.
36
conforme explica Vianna (1995), da boca para fora, parecia condenar a cultura
popular, mas a aplaudia em espaços regulados de apresentação artística.
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8
Para um debate mais complexo sobre o negro na obra de Florestan ver Oliveira (1981) e Coutinho
(2011).
37
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9
Na região do cais do Porto, não só foram empregados muitos negros, como de lá saíram importantes
associações de trabalhadores e movimentos culturais. Essa região, do Rio de Janeiro, também foi
forte foco de atração de gente de todo o país.
38
“[..] ele aprendeu com os amigos do pai dele, que era meu sogro, que
levava ele para a casa deles para ele aprender. Ele comprava martelo,
paus, pregos, levava pra ele aprender a fazer aquelas casinhas de bonecas,
e dali que eles conseguiam. Quando abriam oficinas ele aí pedia uma vaga,
gostavam dele e aí ele ia aprender [...] Trabalhavam mais como biscateiros,
pedreiros, meu marido nunca teve patrão. Em trabalho de obra depois que
ele aprendeu, tratava obra por conta própria e botava duas ou três pessoas
pra trabalhar como operário. [...] Meu marido não quis ficar na Bahia, aqui
no Rio se ganhava mais dinheiro, ele abriu uma oficina e ficou trabalhando
aqui, tomava móveis para fazer, e consertava camas, aumentava diminuía,
empalhava cadeiras. Um lutador!” (Citado em MOURA, 1985:69)
_______________________________________________
10
Todas as imagens disponíveis em: <http://www.skyscrapercity.com>. Acesso em: 13 jan.2010. Ver
galeria "Rio de Janeiro Antigo / Séculos XIX e XX".
40
Figura 2 – Quitandeiras
Figura 5 – Cortiço
42
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11
Neste estudo não pretendemos entrar nas polêmicas acerca do termo “samba”. Quem inventou,
quando virou, no Estácio ou com a gravação de Pelo Telefone? Vale a leitura de Carlos
Sandroni:Feitiço Decente.
48
“Os populares não aceitam tal discriminação, investindo toda a sua energia
em manifestações culturais, garantindo a expressão de suas necessidades,
anseios e aspirações, nisto que a cultura configura-se como o principal
49
Dessa forma, por mais que as elites imponham seu ideário de segregação
espacial e cultural para com parcela da população, associando às culturas
populares a ideia de atraso, as tradições culturais do povo, em especial as de
origem africana, já eram parte constituinte da expressão do nacional. É somente no
século XIX que nossas tradições barrocas, quando se foi capaz de mediar elos
bastante fortes entre o público e o privado, que essa cultura de maior interação
perderá força e ficará mais restrita ao universo da cultura popular. Quando mais
alocada se manifestará com muita força em seus espaços então segregados.
Somente quando as teorias darwinistas sociais perdem força, na metade dos anos
20, que essa tendência dominante começa a refluir. Ora pela mediação de gente
externa, ora por fortalecimento das estratégias de inclusão impostas pelos
populares. Tal como afirma Ginzburg (1997) a coesão do segmento popular vai se
reforçando, construindo e ampliando seus elementos de solidariedade entre os
seus, porém, pelo menos no Rio de Janeiro urbano, quase sempre procurando
caminhos em torno da inclusão e mediação com outros segmentos sociais.
Para Vianna (1995) um destes elementos seria o grande “mistério do samba”.
Segundo o autor, que realiza um estudo pioneiro sobre a ascensão cultural do ritmo,
o fato do samba ter se consagrado como símbolo da cultura nacional está
associado a um longo processo de interação entreas chamadas cultura popular e
erudita que os anos da República Velha não conseguiram romper por completo.
Como já fora verificado, as trocas aconteciam com o apoio de importantes
mediadores culturais. Ou seja, indivíduos que agem como mediadores, junto a
existência de espaços sociais onde essas mediações são implementadas. Isso tudo,
dentro de uma cultura heterogênea, onde podemos perceber, segundo Gilberto
Velho (1981), “a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições
cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas etc.” (1981: 16). Interesses
que aparecem, por vezes como potencialmente divergentes, em sociedades
complexas estipulam cenários de negociação e interação com a realidade (VIANNA:
1995).
50
república. Nessa hora, a cultura popular não aparece como uma mera oposição à
cultura dominante, mas como resultado de um processo de interação de parcela da
sociedade, que se identifica no espaço social, ampliando seu capital cultural,
criando hábitos e práticas próprias. Em momento de maior ofensiva da mentalidade
dominante, o efeito é um fortalecimento destes laços no setor que se faz mais
orgânico. Se a opressão não chega ao aniquilamento físico o que acontece é isto
mesmo, a cultura opera como forte elemento de coesão e identidade.
Ainda mais em um cenário onde as ideias dominantes não conseguem se
configurar organicamente como as ideias da classe dominante. Herculano Lopes
(2000) nos demonstra em seus estudos sobre o maxixe e o teatro de revista na
cidade do Rio de Janeiro que a debilidade do projeto afrancesado das elites seria
aniquilada por “um movimento subterrâneo e potente de abertura para valores
miscigenados de cultura.” (2000: 28). Somente este projeto poderia triunfar como
elemento de identidade possível de ser aceito por amplos setores da população,
inclusive o popular. O projeto da Paris Tropical não poderia triunfar sem hegemonia.
Tal como Souza Reis (2003), Lopes concorda com a ideia de que a partir dos anos
30 esses elementos tomariam maior força na definição da “nossa cara” e seriam
relativamente absorvidos e cooptados pelas classes dominantes, onde dominação
carismática, unidade nacional, consenso e hegemonia apareceriam de forma mais
coordenada e orgânica que nos primeiros anos republicanos, como uma barreira
mediando o conflito entre exclusão e incorporação ou cooptação conservadora do
povo por parte da elite política. Isto é, fez-se com que o movimento das classes
populares não acontecesse de forma tão descontrolada e desamparada como na
República Velha.
Mas, de qualquer maneira, não podemos desprezar a eficácia com que a
cultura popular consegue rejeitar a discriminação elitista, porque parcela das elites e
setores médios se abrem relativamente para uma cultura híbrida. A ideia de um
Brasil civilizado com a cara do projeto da Primeira República não poderia ocorrer
sem aniquilamento em massa não só do povo pobre, mas também de parcela da
elite e dos setores médios que não se faziam inseridos em uma cidade que se
queria “nova”, desconectada do passado. A produção cultural dos diversos
segmentos sociais está em relação, havendo trocas entre elas, afirmando que “o
outro não é nunca absolutamente o outro e que há sempre algo de nós nos outros”
(CUCHE, 1999:243). Ainda mais quando isso se faz “tradição” na história brasileira.
52
verticalmente sobre os dominados. Ela passou a ser considerada como uma prática
descentrada e multi-determinada nas relações políticas, “cujos conflitos e
assimetrias são moderados pelos compromissos entre os atores colocados em
posições desiguais” (CANCLINI, 2003: 201). Isto é, não nos parece plausível pensar
em uma manipulação onipotente das relações sócio culturais. Romantismo e
idealismo normalmente utilizados com fins políticos deturparam um entendimento
mais complexo da cultura.
Talvez aqui, podemos então, compreender melhor a própria crítica que
colocamos em Vianna (1995). Com tantas manifestações culturais do povo rodando
o país, por que o samba triunfa como elemento nacional? Concordamos com o
autor na ideia de que as trocas e o “interesse pelas coisas do povo” são elementos
importantes e antigos, mas somente um estudo da força cultural da Capital no
projeto nacional, da particularidade das relações estabelecidas entre sua população,
sejam as classes altas, médias e baixas, pode dar esta resposta. Algumas pistas já
foram dadas aqui, em especial: 1 – A violenta segregação urbana que demarca
comunidades com identidade bastante fortes, em especial nas favelas e em alguns
bairros suburbanos – fortalecendo os laços de sociabilidade do grupo oprimido –
mas de nenhuma forma estes grupos se encontram desintegrados com o restante
da cidade; 2 – A cultura do mundo do trabalho não consegue criar uma produção de
ideologia tal como no mundo da moderna indústria. Isto é, a incorporação do
mestiço nas “mentalidades” do moderno capitalismo ocidental se dará de forma
peculiar; 3 – A aceitação e o desenvolvimento do negro na moderna indústria
cultural da cidade; 4 – A flexibilidade cultural que deixa marcas fortes no povo de
origem negra do Rio de Janeiro. Que levou por diversas vezes o “sambista” popular
a procurar ações esclarecidas de relativa adequação a ordem; 5 – O interesse pelas
“coisas do povo” (mesmo que mesclado entre o cosmopolitismo e as manifestações
“nacionais) realçado no período que circunda 1920-30; 6 – Fortes espaços de
intercâmbio cultural e transcultural, como as festas, a região da Pequena África e
bairros como a Lapa, tal como acepção dos artistas brasileiros em países europeus.
Ainda que precisássemos de um estudo mais amplo para a comprovação de
tais hipóteses acredito que elas podem ampliar a compreensão, neste capítulo, do
assim chamado mistério do samba. Passamos pela reorganização espacial da
cidade, pela questão da inserção no mundo do trabalho e voltamos a nos concentrar
54
casas. No interior dos morros e subúrbios mais pobres, onde a repressão era mais
branda, a presença de pessoas externas ao mundo das classes populares dava um
formato menos profissional à produção cultural. Contudo, podemos destacar, no
episódio da tomada do pandeiro de João da Baiana, a construção de laços entre
estes artistas populares e membros da elite, laços esses que se marcam e se
acentuam nas festas. Especificamente neste caso, o avô de João era da maçonaria,
o que fez com que este tivesse boa relação com gente como Irineu e Pinheiro
Machado, permitindo a abertura de caminho para a legitimidade da
profissionalização. Unindo-se a capacidade de agentes mediadores com o interesse
das classes populares, outra dimensão desta atividade ganha espaço, como mostra
Muniz Sodré:
“Pelo telefone / a minha boa gente/ manda avisar / Que o meu bom arranjo /
Era oferecido / Pra se cantar.
Ai, ai, ai / Leve a mão na consciência, / Meu bem, / Ai, ai, ai, / Mas porque
tanta presença / Meu bem?
Ô que caradura / De dizer nas rodas / Que esse arranjo é teu! / É do bom
Hilário / E da velha Ciata / Que o Sinhô escreveu.
Tomara que tu apanhes / Para não tornar a fazer isso, / Escrever o que é
dos outros / Sem olhar o compromisso”.
56
Sandroni (2001) chama a atenção para um feitiço que virou contra o feiticeiro:
Sinhô, conhecido pianista mulato da época, era bastante famoso pela frase “samba
é como passarinho, é de quem pegar”. Na cidade, em especial nas festas, vários
sambas eram cantados em seu refrão, e suas autorias ficavam anônimas. Quando
um samba era cantado na Penha era uma vitória daqueles que dele participaram. E
o samba ia por aí mudando o tempo todo; o negócio era que o povo cantasse, aí
estava a glória. Com a ampliação da possibilidade de ter seu samba gravado e tocar
no rádio, diversos compositores passaram a vender sambas para gente famosa
(como Francisco Alves) gravar e daí surge a necessidade do registro. É nesse
momento que Sinhô ganha a fama de ter “pego” alguns sambas no ar, que nem dele
por vezes eram. Sandroni nos ajuda a compreender o momento, ao afirmar que:
“O general Foch / Pelo Telefone / Mandou avisar / Que o chefe dos boches /
Foram Capitular
Ai, ai, ai / Ladrão Kaiser / Para onde é que vais?
Ai, ai, ai / Que assim foges / Dos teus generais ...”
58
De certo a venda de samba, fez com que gente muito famosa, como
Francisco Alves e Mario Reis colocasse no mercado novos compositores, como o
próprio Ismael Silva, considerado por muitos o inventor do samba moderno12. E se
as disputas acerca do direito autoral do samba esquentavam, podemos associar
este elevar de temperamento na disputa a uma crescente legitimidade do samba.
Nos anos 20 chegavam os Oito Batutas de Pixinguinha e Donga de bela turnê
europeia, o povo cada vez mais gostava do teatro popular de revista (que só
perderia espaço com o cinema falado e o rádio) e o maxixe vivia dias de glória (que
também perderia espaço com o sucesso do samba moderno)13.
Os 8 Batutas, mostrados na Figura 16 tinham sido um conjunto musical
formado em 1919 para se apresentar no cinema Palais no Rio de Janeiro. Era uma
das salas mais elegantes do país, no conjunto uniram-se, além de Pixinguinha e
Donga, China, Nelson Alves, Raul Palmieri, Jacó Palmieri e Luis de Oliveira. Com
ritmos variados, desde maxixes, lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques
e catererês, o grupo oscilou entre a exaltação e o protesto. Foi o maestro Júlio Reis
um dos mais ferozes críticos, considerando um “escândalo” a presença daqueles
músicos (em maioria negros) em lugar tradicional da música erudita. Mas, por outro
lado, Xavier Pinheiro, jornalista, saiu em defesa dos músicos, alertando que suas
aparições, “têm sido apreciadas por nossa finíssima sociedade, não têm
escandalizado, têm obtido ruidoso sucesso” (CABRAL, 1997: 46).
Em pouco tempo o grupo passou a ser convidado para animar festas e
promover espetáculos por toda a cidade, naquele mesmo ano, a gravadora Odeon
lançaria seis músicas do conjunto musical. O excêntrico milionário Arnaldo Guinle,
entusiasmado com o som dos “rapazes morenos” iria financiar decisiva viagem do
grupo pelo Brasil e pelo exterior. Vários músicos estrangeiros, artistas ligados a
vanguarda modernista europeia se entusiasmam com o grupo ampliando a
legitimidade daquele tipo de produção artística. Darius Milhaud, francês, que residira
_______________________________________________
12
Tal como já citado neste texto, não entraremos aqui nas polêmicas acerca da origem do samba
como ritmo musical propriamente dito. Para ler mais sobre assunto recomendo Sandroni (2001) e
Sodré (1997).
13
Para mais sobre as polêmicas em torno do teatro de revista ler Lopes (2000). Sobre o Maxixe
(TINHORÃO, 1999).
59
no Rio de Janeiro entre 1917 e 1919 lança em Paris Le Bouef sur Toit claramente
inspirado no maxixe fazendo sucesso na França.
onde a moral cristã para com o corpo ainda tinha bastante força os passos sensuais
do maxixe incomodavam bastante as pessoas de família. Mas eram nas próprias
composições que a resposta era dada, J. Efegê (1974) cita uma canção ainda
de1904 satirizando a implicância de algumas pessoas com o ritmo excomungado,
chama-se Maxixe Aristocrático, de José Nunes: “O Maxixe tem ciência / ou pelo
menos tem arte/ Para haver proficiência / basta mexer certa parte / Pois o próprio
Padre Santo / sabendo o gosto que tem / virá de Roma ao Brasil / dançar maxixe
também”.
Se o papa não veio de Roma conhecer o maxixe, o sentimento dos músicos
populares dos anos 20 era que o ritmo corria o planeta (CABRAL, 1997). Nossos
batutas na França se apresentavam com o nome de L'Orchestre des Batutas. As
críticas tradicionais não sumiram, preocupada com a imagem do Brasil no exterior
ser representada por aquela “atrasada” manifestação, o Jornal do Comércio de
Recife anunciava em nota no dia 1 de fevereiro de 1992:
Nosso desfile chegara a novos tempos. Com o novo Estado e seus novos
ideais políticos somar-se-iam mais elementos que podem explicar o triunfo do
samba carioca. O desfile vai para as ruas, com dureza, mas com o crescimento da
legitimidade do ritmo resta impor a sua presença na cidade daquele samba que
ficou alcunhado como samba do morro, o mesmo que sabemos que lá não nasceu,
mas se fortaleceu com o intercruzamento do rebuliço político e cultural emergente
na cidade do asfalto.
Sem embargo, o que posso concluir aqui, é que todos esses movimentos
possibilitaram ao povo afrodescendente assegurar-se dos bons resultados de suas
táticas de luta e negociação com a cidade em vista do reconhecimento da
cidadania, muitas vezes configurada com o direito de praticar a vida que lhes era
_______________________________________________
14
Noticiado em A Noite, nota-se que a data já é de 18/02/1931.
63
“As origens próximas dos ranchos com os pastoris, sua ligação com a festa
natalina cristã caracterizada pela saída no dia de reis, e a forma dionisíaca
com que o negro se apropria das festas católicas, provoca protestos e
interdições que teriam como consequência o deslocamento das principais
festas processionais negras para o tempo desinibido do Carnaval, e sua
definitiva profanização” (1993: 59).
eles trazem uma ligação bastante intensa nessa forma de tratar dos problemas de
integrar os negros à cidade. Mediadores, negociações, adequações e diálogos
constantes com a cidade que outrora puniu e reprimiu com bastante dureza suas
manifestações. Evidente que tal como com o samba, não faltaram aqueles, vários,
cronistas, literatos, e gente da elite que continuará associando esses movimentos
ao barbarismo na cidade em vias de civilizar-se. Tal como já fora dito aqui, é pelos
meados de 1920 que a coisa toma mais fôlego mesmo. Assim, outras
manifestações eram atacadas enquanto o rancho era citado por grande parte dos
formadores de opinião como um “avanço” na manifestação da folia na cidade.
Mesmo que o carnaval da elite estivesse ainda configurado nas grandes
sociedades, algo que permanecerá vivo por muito tempo, até o sutil avanço das
Escolas de Samba já depois do final dos anos 3015.
O Ameno Resedá é a marca da mediação. Segundo Cabral (1997), fora
formado originalmente por gente do baixo funcionalismo público, tinha em seu naipe
de admiradores pessoas como Paulo de Frontim, Arnaldo Guinle, Oswaldo Gomes
(respectivamente patrono e diretor do Fluminense Football Club), Coelho Neto, e
tinha sua sede no bairro do Catete. No seu desfile inicial a sua exuberância lembrou
logo as grandes sociedades, tinham enredo, a corte egipciana, eo caricaturista
Amaro Amaral foi contratado para conceber o desfile. Vários músicos profissionais
de renome e a presença de um diretor de harmonia com um belo coral levando a
frente a marcha-rancho sob a regência de um maestro. Nota-se a semelhança com
as Escolas16?
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15
Um estudo mais complexo pode ser encontrado em Soihet (1998). Não iremos aprofundar o tema
em demasiado neste estudo. Ele será aqui abordado mais como introdução a formação das
Escolas de Samba. Assim, estamos justificando de alguma forma a “simplicidade” com que a
questão pode estar sendo tratada aqui. Nem tudo que sobrou foi rancho, outros cordões como o
Bola Preta mantém-se vivos no carnaval até os dias de hoje. Os blocos também continuaram
existindo, tendo ligações bem fortes com o surgimento das Escolas de Samba, quando chamamos
atenção para os ranchos frisamos a sua estrutura de funcionamento. Escolas em sua maioria
surgem de blocos e procuram aproximar com o tempo sua estrutura das do rancho, seja por
vontade própria ou pela influência de agentes externos, ou ainda, pelo visível sucesso da
estratégia dos ranchos na cidade.
16
Outro elemento que vale a pena ser destacado para com os ranchos é a ideia de concurso e temas
nacionalistas (mesmo que isso não fosse uma imposição oficial do Estado).
67
_______________________________________________
17
Para a prefeitura o Pequeno Carnaval seria composto de cordões, ranchos e blocos, mais tarde,
pelas Escolas de Samba. O “grande”, que ganhava mais recursos públicos, eram composto, em
especial, pelas Grandes Sociedades, Fenianos, Tenentes do Diabo, Democráticos, etc.
18
Augras (1998) chama a atenção para o detalhe de que os próprios terreiros de candomblé faziam
um esforço para incluir estas pessoas em seu quadro ativo, principalmente gente da polícia. Era
uma forma de garantir o funcionamento. Mas isso não quer dizer que muitas dessas pessoas não
sejam realmente bem vindas nestes espaços.
68
8
apro
ofundar a montagem
m do ambie
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na ccidade.
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sfile das G
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Figu esfile dos Corsos (1))
Fonte
e:(Disponível em: < http://w
www.spreedcitiies.com >. Ace
esso em: 10 jaan.2010).
69
A tradicional Batalha das Flores é mostrada na Figura 21. Eram desfiles como
os Corsos, onde estes se enfeitavam com flores ornamentais. Na Figura 22, o
tradicional carnaval de rua no centro da cidade.
Na Figura 23, o Baile das elites. A influência de estilo europeu nas fantasias.
Na Figura 24, charge do jornal O Careta ironizando o estilo europeu de se fantasiar.
Charges dão reforço à ideia do carnaval como uma festa "malandra" através
de uma década. Revista “Fon Fon”, 4 de fevereiro de 1910 (Figura 29) e 4 de março
de 1911 (Figura 30) e Revista o Careta, 4 de fevereiro de 1920 (Figura 31).
75
_______________________________________________
19
Atribui-se este samba de 1927 a Bide. Nota-se na letra o forte orgulho de seu agrupamento
carnavalesco.
79
_______________________________________________
20
Por mais que estejamos afirmando aqui que pelos anos de 1920 o samba do morro começa a
ganhar cenário, uma matéria de jornal de 1929 mostra que este ainda é visto com muito
preconceito frente as outras manifestações carnavalescas, veja só: “Pernas finas e tornas
escolhem sempre calções curtos e camisetas que deixam ver pobres peitos deprimidos. Tem-se a
impressão de esqueletos cobertos com uma camada lacônica de pele e carne mumificada. Por
outro lado, indivíduos de origem muito recente na Etiópia, com as mesmas camisetas de meia,
axilas à mostra onde parecem localizar-se ninhos de rato”. (POUBEL, 2004) Não podemos
confundir as coisas, afirmação mesmo, só lá para 1940/50 em diante. A condição melhora, mas
não é um mar de rosas.
80
mostrarem-se ordeiros, “civilizados”, para uma sociedade que ainda os enxerga com
bastante receio e preconceito. Por outro lado, formaliza-se – nos anos que
envolvem 1930 – também por parte do poder público e pelas elites culturais um
processo que já tinha se desencadeado alguns anos antes, e como já destaquei, de
valorização, mesmo que de forma mediada e por vezes “folclorizada” de raízes e
manifestações “puras” e autênticas da cultura popular brasileira. O sucesso do
samba tinha sido feito aproveitando-se, inclusive, dessa medida, e com as Escolas
encontraria tática parecida.
Aí está um dos argumentos centrais da primeira parte de minha pesquisa, na
medida em que as Escolas de Samba buscam se “enquadrar”, ou melhor, negociar,
se envolver no cenário político e social que circunda os anos de 1930/40 ela
reproduz em parte este processo em suas comunidades de origem.Isto faz com que
as Escolas de Samba tornem-se importantes ferramentas de negociação com
outras instituições que até então tinham com elas canais bastante atravancados.
Desde a promessa de construção de quadras (ou ainda terreiros), melhorias para as
comunidades, recursos para o desfile, isso sem falar, na “relativa” respeitabilidade
do sujeito do morro. O povo pobre vai ganhando aos poucos visibilidade ao se
fantasiar luxuosamente, cantando e gingando como ninguém, mas por outro lado, a
festa opõe-se ao regulamento, a síncope, a harmonia detalhada, as notas dos
“doutores jurados” avalizando a produção artística das favelas e comunidades
pobres do Rio de Janeiro. Mais uma vez o samba ia falar de si ao povo da cidade,
mostrando-se expressão cultural valiosa de um povo ainda em incorporação a
modernização conservadora colocada em prática pelo novo regime.Se antes já era
quase impossível ignorar os canais construídos pelo samba na cidade, agora seria
cada vez mais difícil ignorar a força das comunidades que tinham nos desfiles
carnavalescos sua maior exibição pública.
Dessa forma concordamos com Fenerick ao afirmar que: "o samba moderno
não poderia ser feito apenas pelo (ou no) morro, ou apenas pela (ou na) cidade, ele
precisava dos dois universos culturais agindo mutuamente para a sua criação e
difusão." (2002) Exatamente assim se dá a integração, o patrimônio se amplia, as
tradições se recriam e se constrói uma manifestação cultural que tem a marca da
mediação entre comunidades carentes, Estado, outras instituições e ainda de uma
diversidade de ‘mediadores culturais’ oriundos de diversos outros segmentos
sociais. É nesse sentido, que trazemos o sucesso dos ranchos como um elemento
81
_______________________________________________
21
Volto a frisar aqui que não pretendo entrar na polêmica de quando surge de fato o samba. A única
distinção que irei fazer de fato, é que com a Deixa Falar podemos trabalhar com a ideia de marco
inicial do samba-moderno. Por vezes citarei o termo samba quando alguns estudiosos do assunto
poderão bradar: isso é maxixe. Volto a recomendar o estudo de Sandroni (1998).
83
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22
Evidente que nos anos 20/30 o samba já não era mais um patrimônio somente de
afrodescendentes. Diversos compositores e “gente” envolvida com as Escolas já compunha um
universo social mais amplo.
23
Não podemos pensar que as pessoas fazem ações culturais só para ter inclusão / mobilidade
social. Mas também para realizar o mundo a sua forma, o elemento lúdico da festa.
24
Isso não significa, como veremos, uma unidade entre as comunidades, mas sim uma unificação de
cada comunidade em torno de uma ou duas escolas.
84
Rio de Janeiro25. Este foi mais um dos elementos que mostravam o compromisso
dessas agremiações com propósitos bastante orgânicos, ainda, pautados na
construção de laços bastante fortes com suas comunidades26e na disposição de
construir alianças em seu favor. O lugar da escola de samba aparece aqui como um
importante espaço de sociabilidade e aprendizado sobre a vida. Tal como a
demonstração sincera de parcela das comunidades cariocas que percebem nos
desfiles um importante espaço de incorporação pública.
Eram elementos dos padrões de comportamento dentro da escola, os
compositores iam buscar em suas letras contar ao povo a “história” de seu país e da
cultura africana, mesmo que alvo de críticas e controversas, como a de Nei Lopes,
esse se tornou um importante foco de identidade.
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25
Se não pudermos dizer que este era um interesse esclarecido por parte das Escolas, o povo pobre
percebe a mudança da vida daqueles que se aproximam das Escolas.
26
Na verdade é mais um ensinar a viver, a se preparar para o mundo, conforme o depoimento do
compositor Casquinha da Portela, “... o samba ilustra a pessoa, o samba ensina muita coisa,
depois a gente aprende, aqui dentro [da Portela] mesmo a gente aprende, não é, no desenvolver
da... do tempo e tal, e daí vai aprendendo alguma coisa, bastante coisa, né”. (LIMA, 2005)
27
Evidentemente, não podemos colocar essa questão na seguinte linha, as Escolas mudam a
comunidade. Parece-me que as Escolas são as comunidades. Elementos muito íntimos para
serem decifrados na maneira de quem influência quem.
86
produzia identidade e o povo do morro queria mostrar que lá não havia só confusão
(GOLDWASSER, 1975). Ora, então a mudança na Escola, pode configurar uma
mudança na comunidade e vice-versa. Na verdade, podemos perceber, como irei
tratar adiante, o surgimento de intelectuais, fortes líderescomunitários, mas também
o entendimento da Escola de Samba, como uma espécie de liderança coletiva das
comunidades.
Da Matta (1973), também, chama a atenção para um argumento bastante
importante na formação das escolas de samba, estas surgiam de um interesse de
dentro para fora (ao que nos parece menos demarcado pelos ensejos da indústria
cultural, mas não desarticulado). Esse interesse surgido no interior das
comunidades garantia sua força interna, sua coesão e sua autenticidade. Em nosso
estudo podemos levar este elemento com mais um fortalecedor de seus laços de
identidade e de sua força nas relações com outras instâncias de poder.
Evidente que essa preocupação por parte das escolas em busca da sua
“legalização” e “legitimidade” frente às autoridades, não diminuía a rivalidade que
faz parte dos desfiles até os dias de hoje, nada comparado às violentas brigas do
carnaval do início do século, mas a questão é que no início a coisa também era
mais feia (acredito inserir este contexto no ponto Respeito aos direitos, contradições
e conflitos apresentado em nosso quadro anterior).
Os concursos, ainda antes do tempo desfile oficial, eram alvo de
controvérsias e confusões por parte dos sambistas das diversas agremiações. Isso
pode mostrar também, que mesmo forte o desejo da “legitimidade” eram forte ainda
as rixas oriundas de outros tempos, aí a coisa ainda estava muito cada um por si,
estar vinculado à comunidade e a uma escola ainda era (e talvez ainda seja) muito
mais forte do que estar integrado a uma cidade (pelo menos no desenrolar
competitivo).
O interessante aqui, é que o samba constitui-se como uma linguagem
bastante integradora entre as classes populares, mas com o fortalecimento das
Escolas a questão da comunidade se fortaleceu, construindo inclusive novas
querelas e transportando outras dos tempos dos blocos e etc. Na verdade o
carnaval sempre teve certo clima de rivalidade na cidade, isso muito antes das
Escolas de Samba existirem.
Este ponto, o das rivalidades, me remete a história de José Gomes da Costa,
conhecido como Zé Espinguela, morador da Rua Engenho de Dentro, lá ficava
87
também seu terreiro. Segundo Cabral (1996), Espinguela era tradicional pai de
santo da cidade, um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira que além
de organizar eventos em seu terreiro era forte apoiador das escolas, pois trabalhava
no jornal A Vanguarda onde publicava letras e anúncios sobre o samba, era também
muito bem visto entre os grandes nomes da música popular na época, entre eles
Francisco Alves. Mas vamos à história, em 29 de janeiro de 1929, dia de Oxóssi e
São Sebastião, Espinguela resolveu promover um concurso para escolher o melhor
samba, vamos ao breve relato do jornalista Claudio Vieira:
Cada escola concorreria com dois sambas e foi à escola de Paulo da Portela
que ganhou. No dia seguinte, Espinguela publica no A Vanguarda a preferência pelo
samba de Heitor dos Prazeres e daí começa o fuxico de que Mangueira e Estácio
iam lá e quebrar o troféu, a turma do Estácio, enciumada, ficou indócil com a
escolha.
Mas, na hora de entregar o prêmio, o sabido Espinguela, atento às
rivalidades, apareceu na escadaria da Escola Benjamin Constant, na Praça Onze,
com três taças cada uma com uma fita lembrando as cores de cada escola. Isso de
fato evitou um sério conflito e pelo que parece a ideia de concurso precisava
matutar um pouquinho mais.
Como observamos, tudo bem que a linha era a ordem suplantar a desordem,
mas quem disse que as intenções pela legalidade e legitimidade das escolas seria
88
maior que o calor das tradições rivais existentes a tanto tempo – ou mesmo as
recentemente inventadas28 – no carnaval, muita gente ali já tinha dado bofetada um
no outro a algum tempo atrás. Mas a tendência era que a coisa ficasse mesmo mais
ordeira, não que acabassem as rivalidades, mas estas seriam feitas de forma mais
“politizada” em diante, até para evitar a justificativa da polícia de reprimir os
sambistas, mesmo com alguns conflitos futuros, porém exceções como veremos
adiante, mas por vezes bastante violentos.
Mas voltando a questão dos campeonatos, o primeiro desfile mesmo das
escolas seria realizado com o apoio do então jornalista Mário Filho promovido pelo
jornal Mundo Sportivo. O lugar só podia ser um: a pequena África, a então Praça
Onze. O jornal O Globo também logo compraria a ideia anunciando em sua
manchete de 5 de fevereiro de 1932:
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28
Usamos aqui o termo inventadas para dizer que mesmo que o samba tenha criado um canal de
ligação entre o povo da cidade, as comunidades construíram em si forte identidade (tentei levantar
estas questões na segunda parte deste capítulo). Com os desfiles, a disputa entre comunidades
“inventou”, inclusive, novas tradições na cidade.
29
Como já foi citado os ranchos tinham desenvolvido importante relação com a imprensa carioca.
Outro elemento que quero destacar, é que só pelos anos 40 é que a Escola acaba por ficar tão ou
mais importante que os Ranchos. Quando a Portela ganha 7 títulos na década de 40, chega a se
falar em “promoção” desta para a categoria de Rancho. Segundo Cabral (1998), esta parece ter
sido a opção da Deixa Falar. Agora, dado interessante, mesmo com a Deixa Falar nunca sendo
propriamente uma Escola, quase nenhum sambista discorda do seu pioneirismo.
30
Outra manchete descrita por Poubel (2004) mostra a questão dos interesses e objetivos, já vamos
chegar mais a esta questão, mas vale a manchete de 1932, quando ainda nem era oficial o desfile:
“Faz-se este anno a oficialização do Carnaval com o fim patriótico e utilitário de atrair turistas à
famosa cidade guanabarina”.
89
mais uma breve olhada no texto de O Globo, vamos perceber o surgimento do trato
do samba do morro com feições exóticas mais próximas das raízes africanas, tinha
um peixe para ser vendido nisso, não? Tendo a concordar com a sugestão de
Monnik Poubel (2004), onde, à medida que cresce o controle sobre o samba e
deixa-se de reprimi-lo – tornando o carnaval festa oficial – “o exotismo da cultura
negra passa a ser motivo de atração abrindo espaço para sua valorização e
consumo”. É um processo a se discutir. Parece-me que nesta época ainda era cedo
(as manchetes preconceituosas ainda são muitas, e acho que a indústria cultural da
época ainda não é dotada de elementos tão complexos), mas vamos ao artigo:
_______________________________________________
31
O samba “mais erudito” que tanto fazia sucesso na ‘cidade das letras’ estava em parte envolvido
principalmente por sambistas já conhecidos e alguns indivíduos de formação música erudita. A
aparição das camadas mais populares e suas comunidades, foi arrematando adeptos como o
próprio Noel Rosa, e dando visibilidade a outros como Ismael Silva, Paulo da Portela, Carlos
Cachaça, Heitor dos Prazeres, Cartola e outros mais. Mas o que mais me chama a atenção e
gosto de explorar este ponto aqui, é o surgimento da ‘comunidade’ como porta voz do ‘novo’
samba.
32
Com o surgimento das escolas de samba, seus ‘talentos’ ficam fortemente associados a sua
comunidade, Cartola (Mangueira), Ismael Silva (Estácio), Paulo da Portela (Oswaldo Cruz), o
próprio Noel Rosa (com a mais recente Vila Isabel, A vila não quer abafar ninguém / só quer
mostrar que faz samba também) entre outros.
90
como nas palavras de Augusto Lima, “antes o negro tinha seu lugar – fixo e
desumano, é verdade – mas depois ele não tinha lugar algum. E são as Escolas de
Samba, em nossa análise, um dos mais importantes instrumentos dessa
penetração” (LIMA, 2005), desse lugar. Mas, retomemos ao desfile daquele ano.
Apesar de o concurso ter sido feito meio que no improviso, Pimentel que
trabalhava com Mário Filho “sacou” um regulamento, arrumou uns sanduíches de
mortadela, bastante cerveja e escolheu o júri, sua mulher Eugênia, Orestes Barbosa
e outros (CABRAL,1996).
Como relata Sérgio Cabral, o desfile começou as 20h30 e logo a Praça Onze
estava lotada. Das 19 escolas presentes foi a Estação Primeira que conquistou o
concurso, apresentado os sambas Pudesse meu ideal, de Cartola e Carlos
Cachaça, e Sorri, de Lauro dos Santos, seguida por Vai Como Pode empatada com
a Para o Ano Sai Melhor (também conhecida como segunda linha do Estácio) e
Unidos da Tijuca. Neste ano, também, o muito aplaudido Heitor dos Prazeres foi
premiado pela prefeitura com o um conto de réis pelo samba Mulher de Malandro
gravado por Francisco Alves (CABRAL,1996).
Com a razoável cobertura jornalística as escolas ganham alguma visibilidade
no restante da sociedade, mas como já dissemos dois elementos já surgem, e
mediados com agentes externos às comunidades, o regulamento e o júri, este
último composto para além dos citados por Raimundo Magalhães Júnior, José Lira,
Fernando Costa e J. Reis que por mais que tivessem algum envolvimento com o
mundo do samba foram escolhidos pelo jornal organizador. É talvez, neste sentido,
que alguns anos depois (1939), em pleno desfile, Paulo Benjamin de Oliveira,
personagem destacado nesta pesquisa, iria entregar ao júri, em tom irônico, um
diploma “deles” da comunidade, para “eles” do júri, a coisa pegou muito bem até
porque a Portela ganhou o título este ano (CABRAL, 1998). Vale a letra do samba
de Paulo:
Teste ao Samba
(Paulo da Portela)
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33
Se fala que a Deixa Falar não virou Rancho só pela legitimidade destes, maior que das Escolas,
mas também por assim não estar submetida aos regulamentos e normas que pareciam nortear o
desfile das Escolas.
92
Interessante elemento, o morro ficou mais ordeiro para se “ajustar” e não ser
“proibido” pelas autoridades, antes era desordeiro nas palavras de Tia Raimunda.
Mas ficou mais “legítimo” à cidade toda e parece ter ficado mais “agradável” no que
tange a opinião de Tia Raimunda e do presidente da escola Seu Saturnino. O morro
não mudou só por vontade da polícia e da política oficial. As estratégias
empreendidas por seus moradores, em especial por membros das escolas tiveram
papel bastante relevante.
O resultado é negociado (uma espécie de negociação e conflito entre
comunidades e poder público), e me parece que foi assim mesmo, alcançando os
objetivos dos próprios moradores em ver a terra onde o samba se fazia cotidiano
mais articulada com a cidade, ou mesmo mais tranquila e “civilizada”.Voltando ao
93
Os sambas enredos só se popularizaram por volta dos anos 40, mas, ajustes
importantes como este não podem passar despercebidos. O fato é que a
normatização do desfile seria um processo vivo dali em diante, quanto mais
aumentava a atenção despertada pelos sambistas no “mundo do asfalto” mais
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34
O enredo já existia nos Ranchos. O Deixa Falar, que vira Rancho, desfila em 1932 com o enredo A
Primavera e Homenagem à Revolução de Outubro. Saudando o golpe político de 1930. A ideia de
enredos nacionalistas já começa a dar frutos, incentivado por mediadores, por opções dos próprios
sambistas e nessa época mesmo por opção do governo. Contrário do que alguns pensam, o
Estado Novo não outorga esta adequação, são as Escolas que a antecipam. E repito, não só por
vontade de inclusão, mas também por estarem inseridas em um sentimento que tomava ares
culturais e políticos de valorização da pátria em toda a população.
94
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35
A Escola de Samba Azul e Branco localizava-se no Morro do Salgueiro que hoje tem como sua
representante a conhecida Acadêmicos do Salgueiro. Na verdade a atual escola surgiu da fusão,
em 1953, da Azul e Branco e da Depois Eu Digo. Em 1958 a escola adota o famoso slogan Nem
melhor, nem pior, apenas diferente.
95
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36
Em 1939 a Escola Vizinha Faladeira seria excluída dos desfiles por não abordar temas nacionais.
10 meses antes mesmo da criação do DIP. A censura mais dura frente aos sambistas se dará
somente com o governo Dutra. Podemos também entender, está autocensura dos sambistas no
período da ditadura, como uma medida que antecipa a exigência, mantendo relativa autonomia do
movimento.
98
tranquilidade que este carpinteiro e lustrador fora uma das mais expressivas
lideranças populares da vida carioca. Além de grande compositor e passista, era
uma espécie de relações públicas da Portela. Na época de desfile Paulo corria às
redações de jornais da cidade diplomaticamente avisando as novidades do carnaval
portelense, além de tudo era grande apoiador de Pedro Ernesto (CABRAL, 1998).
Seu prestígio dentro e fora da comunidade era muito grande, do lado de dentro a
liderança de Paulo era muito clara, a Portela tinha que dar o exemplo, tinha que
acabar com a ideia de que Escola de Samba era lugar de vagabundo. Assim ele
anunciava: “Quero todos de pés e pescoços ocupados”, todo mundo de sapatos e
gravata no desfile, ninguém de chinelos, de camisa com colarinho aberto e gola de
pé como faziam os malandros daquele tempo. No mundo do samba, o prestígio de
Paulo era inquestionável.Ganhou mais de uma vez os diversos prêmios dados às
personalidades do samba, que era patrocinado por parte da imprensa carioca
edepois pela UES37. Na Figura 35, a seguir, Paulo Benjamim de Oliveira (Paulo da
Portela), Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Alcebíades Barcelos (Bide) e Armando
Marçal caminham no bairro Engenho de Dentro.
_______________________________________________
37
Paulo da Portela é objeto do segundo capítulo desta pesquisa.
100
“Eu, Cidadão Momo de 1936, eleito pelos foliões desta cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro, de acordo com os poderes que me foram
conferidos para governar durante o tríduo da folia,
Considerando que o nosso regime republicano não se coaduna com um
reinado, nem mesmo carnavalesco,
Considerando que o samba nasceu no morro e rei não frequenta morro,
Considerando que no carnaval não pode haver vassalagem,
Considerando que a monarquia, pelas próprias extravagâncias do rei, por
mais popular que seja não pode encarnar o samba, a verdadeira alma do
carnaval,
Resolvo destronar o rei, que terá a sua cidade como ménage, ficando sem
efeito todo e qualquer decreto lavrado pelo monarca, a estas horas reduzido
à expressão mais simples” (CABRAL, 1998: 111).
_______________________________________________
38
Em tempos de república, a ideia de Rei Momo pegava mal e virou Cidadão Momo, esse prêmio é
uma variação do cidadão do samba que Paulo já havia conquistado.
101
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39
Para saber mais sobre a relação estabelecida entre comunistas e escolas de samba ver a pesquisa
de Guimarães (2005).
105
serve para mostrar que as Escolas de Samba não estavam somente subordinadas a
ordem acima de tudo, mas também, aos poucos, vão deixando de ser patrimônio
somente de seus “fundadores”, entrando em cena mais como um espetáculo que
traz na sua expressão artística a mediação de vários interesses, cada qual com a
sua capacidade de influenciar e produzir a síntese cultural expressa na sua
produção. Influenciam, cada qual a sua intensidade relativa, o povo, a assistência, o
turista, o julgador, o patrocinador, o rádio, a indústria fonográfica, os políticos, e etc.
Mas, a comunidade onde ela se originou, continua tendo na escola, um canal
privilegiado de expressão de seus interesses e concepções de mundo, disso não
nos resta dúvida. Só fica difícil de perceber para aqueles que continuam
enxergando as classes populares de forma estanque, incapaz de construir
estratégias alternativas aos modelos clássicos de guerra social e outros
estereótipos de padrão reducionista.
No capítulo seguinte vamos nos aproximar mais de um personagem
específico no período aqui analisado, é Paulo Benjamin de Oliveira ou Paulo da
Portela. Como já fora dito aqui, Paulo foi a principal referência da Portela nesse
período, além de que fora uma das figuras mais respeitadas e articuladas no
universo do samba carioca. Compreendendo este personagem dentro de sua
conjuntura poderemos perceber com mais força o movimento de afirmação, ou
melhor, de integração da cultura popular no Rio de Janeiro do último século.
106
Paulo é quase sempre tratado com alguém diferente e heróico (FARIAS, 1999).
Sem esquecer aqui a crítica de Bourdieu (1997) a certa magnificação da história da
vida como método de conhecimento histórico-sociológico, e levando em conta que
as pessoas se apropriam criativamente das histórias que vivem e nesse momento
como indivíduos portam os sentidos como espécie de objetividade coercitivamente
externa, é importante reter que realizam e reinterpretam ao interpretarem suas
atitudes. Munidos desse alerta, podemos seguir em frente, mas de todo modo, a
valorização da história de Paulo da Portela pelos seus contemporâneos parece ser
em si, um elemento que atesta a sua legitimidade no grupo.
Diversas vezes o pesquisador tem acesso a práticas sociais do passado
através de textos ou depoimentos. Melo (2010), debatendo com Chartier, percebe
que o fundamental no trabalho do pesquisador vem a ser justamente o de procurar
entender as relações entre o discurso, às práticas sociais e o contexto os quais ele
se refere. Nesse sentido o discurso deve ser pensado como mediação, e não deve,
portanto, ser entendido como possuindo uma identidade imediata com a as práticas
sociais de determinado grupo (MELO, 2010).
Tal como Farias (1999) e Melo (2010), entendemos o indivíduo como uma
entidade capaz de atribuir e recriar os sentidos. Dessa forma, a individualização é
incorporada não apenas como um atributo intrínseco ao agente pelas forças
homogeneizantes do concerto societal, porém diz respeito também ao modo como,
segundo circunstâncias e recursos específicos (culturais, simbólicos e materiais), os
sujeitos podem desenvolver táticas que incidem sobre o sentido (FARIAS, 1999).
Deste modo, se essas intervenções não subvertem toda uma ordem, podem,
contudo permitir ao indivíduo inserir no seu posicionamento na teia social tanto
diferença quanto distinção, ao impor a própria vontade mesmo contra resistências.
Paulo se tornou uma unanimidade nesse universo que circunda a produção
cultural do samba. Ao se remeter a um personagem dessa importância na trajetória
de seu grupo, seus membros podem elaborar visões que enaltecem o lugar de sua
principal referência e do seu próprio grupo. Como já alertado, isso não significa que
seu discurso não seja uma impressão complexa de uma realidade histórico-social e
mesmo, do lugar de determinado processo e personagem na história (FARIAS,
1999).
É claro também, que em ambientes de produção artística (ou mesmo em
movimentos culturais mais abrangentes) existe uma tendência a romantização do
108
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40
Mais adiante veremos como esse tipo de visão permeou o discurso de uma geração de sambistas
que resolveu, em meados da década de 1970, questionar os caminhos rumo a espetacularidade e
a patronagem dos bicheiros, que modificaram sensivelmente diversas escolas de samba.
41
Nas últimas décadas, a sociologia é tomada por uma insatisfação com os modelos teóricos
predominantes no pós-guerra, acusando nestes uma tendência em operar dicotomicamente,
privilegiando ou ação, ou estrutura. São exemplos importantes dessa crítica acadêmica
pesquisadores como Elias, Giddens, Bourdieu, Habermas, entre outros.
109
“Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja a sua estatura, poderosa
sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis
autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para a qual eles
são dirigidos. Nenhuma personalidade, por forte que seja, pode [...] deter
mais do que temporariamente as tendências centrífugas [...]. Ela não pode
transformar sua sociedade de um só golpe”. (ELIAS,1994: 48).
Até o início do século XIX, a ida aos subúrbios era feita no lombo dos animais
ou nas carretas. A Estrada de Ferro Central do Brasil chegava somente até
Cascadura, que foi a região escolhida para a instalação de uma das quatro
primeiras estações da Estrada de Ferro Dom Pedro II da região, ainda em 1858.
É somente no ano de 1890, que o trem chega a Madureira e a implantação
da estrada de ferro torna o bairro um importante eixo ferroviário, remontando à
época em que fora ponto de convergência das estradas para Santa Cruz,
Jacarepaguá e Irajá, quando a região foi importante ponto de comércio e parada de
viajantes42.
A ramificação ficaria completa em 1898 com a inauguração da Linha Auxiliar,
inicialmente chamada Inharajá e, hoje, a importante Estação de Magno, assim
chamada em homenagem ao engenheiro Alfredo Magno de Carvalho. Ao lado desta
estação foi montado o mercado em 1914, em pouco tempo o bairro de Madureira
firmar-se-ia como o principal centro de comércio do subúrbio carioca. Nessa época,
também, fora instalado o bonde puxado a burro, o que durou até 1929 quando a
eletricidade chegou à linha que ia até Irajá.
Em 1937, com eletrificação dos trens suburbanos da Central, Madureira foi
definitivamente deixando para trás a configuração rural de outros tempos. O bairro
que já iniciara um processo de urbanização consolidava-se como o mais forte
núcleo comercial e cultural do subúrbio carioca. Se, no censo de 1920, Madureira
_______________________________________________
42
Uma importante pesquisa sobre o papel do sistema ferroviário no desenvolvimento do subúrbio do
Rio de Janeiro pode ser encontrada em: PECHMAN, Robert Moses - A gênese do mercado urbano
de terras, a produção de moradias e a formação dos subúrbios no Rio de Janeiro. IPUR, UFRJ,
1985, tese de mestrado.
111
sequer aparecia marcado como bairro, duas décadas mais tarde um novo censo
registraria um expressivo crescimento populacional: 111.300 habitantes onde
antesse contavam somente 27.106. Nesse ritmo, a antiga região agrícola tornou-se
uma zona residencial e comercial avançada na cidade. Pechman (1985), Santos
(1996), Vianna (2008). Abaixo, parte do pátio da estação de Madureira em 1909
(Figura 36). Reparar nas casas ao fundo, de construção bem típica da Central do
Brasil nessa época. (Foto Augusto Malta). A seguir (Figura 37) a mudança já com a
eletrificação do sistema em 1937.
vida da comunidade ia, aos poucos, organizando-se mesmo em torno dos hábitos
religiosos, das festas, da música e do futebol (Silva & Santos,1980).
Como já alertei, Paulo nasceu em meio ao rebuliço político da reforma
urbanística, onde a população pobre, em especial a parcela negra, teve que se
redefinir material e simbolicamente enquanto grupo social nos morros43 e subúrbios
da cidade. A implantação da ordem positivista e higienista da República Velha criou
a necessidade de reestruturar a cidade.
Com o grande número de migrantes em direção ao Rio de Janeiro, a
ocupação populacional das regiões suburbanas da cidade, como Oswaldo Cruz,
aumentou. Essa região foi se transformando em área residencial para as camadas
populares, fator impulsionado, como já dito no capítulo anterior, pela industrialização
dos subúrbios e com eles a construção de diversas vilas operárias; o papel
desempenhado pelos trens e pelos bondes; o custo mais baixo das moradias e,
principalmente, a reforma urbana que desalojou as pessoas do centro urbano.
Paulo se mudou para Oswaldo Cruz na década de 1920. Podemos dizer que
o bairro que deu origem a Portela lembrava em muito uma cidade do interior, uma
roça oriunda do desmembramento de diversas fazendas. A população suburbana,
em sua maioria, se deslocava diariamente para trabalhar no centro do Rio de
Janeiro, ou em outros subúrbios (em especial nas fábricas e em pequenos
estabelecimentos comerciais). Segundo Silva & Santos (1980), diferente de
Madureira, que já contava com bonde, se andava mesmo de cavalo. O bairro era
repleto de currais e valões. Não havia calçamento nem luz, as pessoas moravam
em pequenas chácaras, vilas e habitações coletivas. A parte mais pobre do subúrbio
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43
Muitos trabalhadores permaneceram no centro da cidade por falta de condições econômicas para
mudarem para outras regiões, como as suburbanas. Como já informei a principal alternativa para
esses indivíduos foi à ocupação dos morros que era o lugar de moradia barata. O primeiro capítulo
constitui uma referência bem completa sobre esse processo.
114
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44
Como já dito, grande parte dos moradores de Oswaldo Cruz viam de migrações rurais e da fuga da
especulação imobiliária no centro da cidade. É importante também frisar que boa parte das
referências, curiosidades e dados foram extraídos da excelente pesquisa de SILVA, Marília T.
Barbosa e SANTOS, Lygia. Paulo da Portela. Traço de união entre duas culturas. Edição Funarte,
Rio de Janeiro, 1980.
115
1984; BRANDÃO, 1989), a festa brasileira possui sempre uma face positiva,
mediadora e edificante. Brandão (1989), ao estudar as festas no interior de vários
estados brasileiros, observaria que a festa é:
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45
Antônio Caetano, como veremos adiante, fundou, com Paulo da Portela e Antônio Rufino dos Reis,
o Conjunto Carnavalesco de Oswaldo Cruz, que depois deu origem à Portela. Estes três
personagens ficaram conhecidos como o “primeiro triunvirato da Portela”.
46
No primeiro capítulo demonstrei a estreita relação entre o modelo dos Ranchos e das Escolas de
Samba.
117
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47
Ainda, segundo Edson Carneiro (1966), na cidade do Rio de Janeiro, a região compreendida pelos
bairros de Madureira e Oswaldo Cruz, já nos anos imediatamente posteriores à abolição da
escravatura, centralizou durante muito tempo a prática desta manifestação na zona rural da antiga
Corte Imperial, atraindo um grande número de migrantes ex-escravos, oriundos das fazendas de
café do Vale do Paraíba. Entre os precursores da implantação do Jongo nesta área se destacaram
a ex-escrava Maria Teresa dos Santos muitos de seus parentes ou aparentados além de diversos
vizinhos da comunidade, entre os quais Mano Elói (Eloy Anthero Dias), Sebastião Mulequinho e Tia
Eulália, todos eles intimamente ligados a fundação da Escola de Samba Império Serrano, sediada
no Morro da Serrinha.
118
Como nos atesta Silva & Santos (1980), tornou-se organizador das festas da casa
de Dona Esther, a mais famosa mãe de santo do bairro. As festas de D.Esther em
pouco tempo se tornaram o centro da vida social da região. Sua casa era
frequentada desde pela comunidade até por artistas de rádio, como Pixinguinha,
Donga, Ademilde Fonseca, entre outros. Tal como aconteceu na casa da negra
Ciata na Praça Onze, a casa de D.Esther se tornou importante espaço de encontro
entre diversos grupos da cidade, desde gente muito pobre, mediadores culturais,
até políticos locais.
Ainda, segundo as autoras e Cabral (1998), Paulo da Portela é relatado por
seus contemporâneos como um “mestre de cerimônias” dessas festas, dotado de
algumas características fundamentais para entender sua força no grupo: liderança
ecarisma.
A casa de D.Esther pode ser compreendida dentro da discussão feita no
capítulo anterior sobre a pequena África, a casa da negra Ciata. Dona Esther e seu
marido possuíam condição financeira privilegiada para os padrões do bairro, foram
morar lá por desavenças com o bloco onde eram casal de mestre sala e porta-
bandeira em Madureira. Sua casa era frequentada pela comunidade e se fazia
assim lugar de conexão entre outras pessoas da cidade, desde sambistas de outra
região até políticos locais, jornalistas e artistas da indústria fonográfica.
Tal como já apontei no inicio desta pesquisa, lugares como a casa de Tia
Ciata e Dona Esther apontam o entrecruzamento e a convivência dos “mundos
aparentemente paralelos” da sociedade carioca (elite e povo), sendo usados como
exemplo de permeabilidade os encontros onde se reuniam chorões, batuqueiros,
sambistas e capoeiras, ao lado de representantes da elite intelectual e artística.
Este grupo forma uma elite da comunidade popular e passa a atuar como
força social ativa nas negociações sociais engendradas na comunidade, em
especial, pelo respeito que adquirem para além de suas casas.
Além de que, é nas casas das tias que se reafirmavam valores e símbolos da
comunidade negra. Estes espaços são um laboratório constante para novas
experiências estéticas onde as novidades da cultura urbana eram divulgadas.
Assim, funcionavam como espaço de mobilização social. Porém funcionavam
também como espaço de mediação, levando em consideração que pessoas com
certa influência no mundo exterior (à comunidade) transitavam pelo local.
120
Na Figura 41, Eusébio Rosa, marido de Dona Esther, figura muito conhecida
em Oswaldo Cruz.
121
Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:102)
Fala-se que D.Esther tinha um estilo muito rígido e brigão. Segundo Silva &
Santos (1980), alguma colocação em demasiado autoritário de Dona Esther teria
aborrecido Galdino Marcelino dos Santos, partideiro respeitado nas rodas de samba
de Oswaldo Cruz, que ao brigar com D.Esther, saiu de seu bloco e estimulou a
criação um bloco que saísse a rua, e não somente ficasse no quintal, como
acontecia com o de D.Esther.
Dessa forma, no ano de 1922, a rapaziada de Galdino Marcelino resolveu
fundar um bloco que desfilasse na rua48, e assim nascia o baianinhas de Oswaldo
Cruz, que tinha como ponto de localização a esquina da Estrada da Portela. Foi
nesse bloco que se deu o encontro definitivo de Paulo da Portela, Antônio Rufino e
Antônio Caetano, os futuros fundadores da Portela.
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48
Um fator interessante é o início do relaxamento para com as manifestações negras. Elas começam
a ocupar a rua, antes tinham que ocorrer em casas fechadas e sob a máscara de ritual religioso.
Nesse momento também, as casas das tias deixam de ser um local tão privilegiado enquanto
foram nos tempo de repressão. Era somente ali que aconteciam as trocas culturais mais amplas e
mediadas com o restante da cidade.
122
"O pessoal da Portela se reunia diariamente. Mas era no trem. A reunião era
na Central. Aqueles que trabalhavam vinham no trem das seis e quatro, da
Central para Osvaldo Cruz, esse trem era paradouro, vinha parando em
todas as estações desde o Engenho de Dentro a Cascadura. A turma
desabava toda em Osvaldo Cruz, a maioria. Outros iam para Bento Ribeiro,
Madureira e adjacências.
Ali se passava o samba. Já começava a passar o samba na Central,
enquanto esperava a hora do trem. O pessoal ia chegando quatro horas,
quatro e meia, até seis e quatro, quando chegava o trem. E uma turma ia de
Osvaldo Cruz. Quando chegava umas cinco horas, tomava um banhozinho,
botava o paletó, enfiava o tamborim debaixo do braço e partia pra lá pra se
reunir. Na estação D. Pedro II, o carro de prefixo Deodoro era a sede móvel
da Portela, a sede volante. As pessoas iam de Osvaldo Cruz até a Central
pra poder voltar junto. Nesse tempo não tinha roleta, não tinha coisa
nenhuma. O sujeito entrava no trem, o condutor ia cobrando, picotando as
passagens. Muita gente não pagava.
O hábito de viajar no seis e quatro durou muito tempo. Meu pai era
sapateiro. Eu ajudava a ele. Se acabava mais cedo, não tinha importância:
esperava o seis e quatro".
Na Figura 43, foto do conjunto vocal organizado por Paulo da Portela ainda
nos anos 30.
Fonte: (Disponível em: <http:// portelaweb.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).
Segundo suas biógrafas (SILVA & SANTOS, 1980:74), essa estratégia49 teve
como ponto de reflexão uma festa que ocorrera em Oswaldo Cruz, na casa de
D.Esther, neste evento iria muita gente importante para os padrões do lugar.
O grupo de sambistas do Estácio chegou vestido de camiseta e bermuda e
não pode entrar. É como se a associação ao estigma impedisse a mobilidade de
parte do grupo social, logo outra parte do grupo se apressa em modificar seu
comportamento negociando sua inclusão.
Tal como analisado no capitulo anterior, esse movimento não pode ser
compreendido somente nos marcos de uma estratégia de adequação, é preciso
compreender quanto existe de um mundo no outro (elite x povo), e quanto do
entrecruzamento cultural na sociedade do Rio de Janeiro foi forjando novos
horizontes na cultura popular. Os chorões se tornaram a referencia quanto à
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49
Seria impossível afirmar se a estratégia de Paulo visava somente remover o estigma. No campo
das individualidades esse tipo de ação é mais complexa, envolvendo, inclusive, o agente com os
movimentos mais gerais que a sociedade executava.
126
profissionalização artística na cidade por troca entre elite e povo, e por representar
uma possibilidade de reconhecimento e integração.
Dirigindo-se ao momento de fundação da escola de samba Portela, Antônio
Caetano, um dos seus fundadores, traz elementos esclarecedores sobre a relação
com o Estácio em depoimento às biografas de Paulo da Portela:
"O próprio Ismael Silva, com todo o respeito eu digo, ele foi um homem de
muito valor para a MPB. Foi o homem que, dizem, e eu acredito, tivesse
trazido um ritmo de samba para desfile de escola de samba, isso é muito
comentado. Mas não é um sambista de dirigir escola de samba e fazer o
que o Paulo fez". (Idem:46, grifos meus)
" [...] a primeira vez que nós saímos, foi uma cartolinha azul e branca, calça
de flanela branca e paletozinho azul, porque cada escola de samba naquele
128
Fonte: Disponível em Cabral (1997:123)
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50
No capítulo seguinte veremos como aos poucos a visão “folclorista” foi determinante para o formato
do projeto de identidade nacional do regime varguista.
130
Um fator interessante que as autoras citam é uma briga da Deixa Falar com o
Jornal do Brasil. A confusão fez com que o jornal lançasse nota atacando o rancho
que começava a ter problemas com a imprensa. Em contraponto, as autoras citam a
boa relação de Paulo com a imprensa como determinante para o seu sucesso num
mundo mais amplo que o seu. Segundo as autoras Paulo dizia sempre: "Todas as
minhas conquistas, eu digo, sem pejo de errar, devo-as à imprensa, esse poder
inconfundível que honra e dignifica a nossa nacionalidade" (Idem:72).
Paulo mais do que dividir quer integrar o seu grupo, por isso escolhe a via
diplomática, sempre muito bem apresentado, ele estava nas redações de jornal
divulgando o mundo do samba, depois, a sua futura relação com o prefeito Pedro
Ernesto o fará porta-voz direto das escolas com a prefeitura.
Em 1935 o desfile das escolas de samba, gozando do sucesso dos anos
anteriores, passa a fazer parte do calendário oficial da prefeitura. Nesse ano é
fundada também a UES (União das Escolas de Samba). Nasceu um regulamento
mais rígido, premiações em dinheiro, patrocínio e uma relação mais íntima e
clientelista dos novos sambistas com o poder público. Como já analisado no
capítulo anterior, o governo municipal se torna o principal financiador, junto a
imprensa, dos desfiles.
Neste ano, a Vai como Pode viraria definitivamente Portela, por sugestão do
delegado Dulcídio Gonçalves, que não gostava do nome anterior, achava um nome
desordeiro e sugeriu Portela para liberar o registro, a rapaziada da escola de samba
aceitou a sugestão, tudo isso no clima onde a ordem suplanta a desordem.
(CABRAL, 1998)
A radicalidade da primeira república em criar um projeto de civilização
embranquecida e positivista vai sendo substituída pelo projeto pedagógico e
integrador da Era Vargas, mediante, é claro, uma integração controlada. Tal como a
boa afirmação de Rocha (2008:219):
"o triunfo final da gente humilde, da gente que vive nos meios mais ou
menos inferiores. O operário nunca foi lembrado num grande certame para
ser o vencedor. E esse sensacional concurso que hoje iniciamos, ninguém a
não ser dos morros poderá concorrer, pois que é um concurso
exclusivamente para os homens que vivem nos morros. Nunca até hoje o
malandro do morro, o sambista que passa a vida inteira lá em cima, a olhar
as luzes que banham essa cidade maravilhosa teve a coroa de um reinado,
de um grande triunfo". (SILVIA & SANTOS, 1980:84)
Antes de qualquer coisa, quero reforçar a confusão que o próprio jornal faz
com a associação mítica do samba ao morro. Este lugar comum da nossa história já
fora debatido no capítulo anterior. Entretanto, o concurso diz ser exclusivo para o
pessoal do morro, no entanto, logicamente envolve o subúrbio, está ai estabelecida
uma conexão, ou confusão, interessante entre precariedade, exotismo e identidade.
Retornando ao concurso de 1935, o pessoal de Oswaldo Cruz percebe nele
uma importante fonte de legitimação da sua agremiação e lança Paulo como
candidato ao prêmio de "Maior Compositor das Escolas de Samba". Segundo Silva
& Santos (1980: 87), Antônio Caetano assume o papel de cabo eleitoral comprando
uma enorme quantidade de jornais e os distribuí em Oswaldo Cruz. Cada jornal
tinha um cupom cédula que deveria ser recortado e depositado na urna do jornal. A
cada semana saia a parcial, Paulo liderava e o jornal comentava no dia 11 de abril:
133
“Eu, Cidadão Momo de 1936, eleito pelos foliões desta cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro, de acordo com os poderes que me foram
conferidos para governar durante o tríduo da folia, considerando que o
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51
Silvio Caldas fora um dos grandes cantores da chamada "Era do Rádio".
134
aPaulo, que nunca mais voltaria a ganhar. Na Figura 46 abaixo a cédula utilizada no
concurso, extraída pesquisa de Silva & Santos (1980:112).
"Foi com um vozerio alegre que o povo abriu alas aos batedores da polícia.
Pouco depois a multidão rompeu numa estrondosa salva de palma: é que o
Cidadão-Samba, elegantíssimo dentro de sua casaca branca, guarnecida
de alamares prateados e envolvido pelos reflexos berrantes dos fogos de
bengala, surgia à frente saudando o povo carioca e pedindo passagem para
a sua gente! (Idem: 114)”
"forçado pela atitude desse senhor, que se aliara a pessoas que tudo
fizeram para desprestigiar a diretoria desta União, e, consequentemente, as
próprias escolas, agitando o meio sambista, procurando cindir uma
organização oficial e representante máxima do samba". (SILVIA & SANTOS,
138
1980:115)
"Esse ano eu não saí na Portela, não. Mas eu frequentava muito a sede,
ficava na sede com o Paulo. Ele resolveu que todo mundo ia fantasiado de
acadêmico, porque o nome que ele deu ao enredo era Teste ao Samba. A
capa dos acadêmicos era de crepe-cetim ou cetim-lamé. Aí o Paulo fez
crepe-cetim, que era mais caro, e eu saí no bloco de Olaria, porque não
139
voltadas para o seu enredo. Até então, fosse qual fosse o enredo, não
poderiam faltar os sambistas ostentando as cabeleiras brancas de algodão
e as fantasias de nobres dos tempos imperiais.
Naquele ano, porém, Paulo da Portela criou o enredo ‘teste ao samba’ e fez
a escola inteira exibir-se com uniforme de estudante, enquanto fazia o papel
de professor. O samba, também composto por ele, tinha um pouco daquele
non sense das letras das marchinhas carnavalescas de Lamartine Babo e,
ao mesmo tempo, não deixava de ser um samba enredo, pois a letra tinha
tudo a ver com o tema apresentado pela escola.
[...] Foi uma sensação, Paulo entregava um diploma e cada integrante da
escola. O repórter do jornal O RADICAL assinalou em sua matéria sobre o
desfile: ‘Um fato despertou a nossa curiosidade: foi o interesse que todo o
público acotovelado na Praça Onze demonstrou em torno da figura de Paulo
da Portela.
Parecia que grande parte daquela multidão lá estava somente para aplaudir
o famoso sambista, a quem não regateava as melhores demonstrações de
simpatia. Pode-se dizer assim que, depois da Portela e da Mangueira, Paulo
da Portela foi a grande atração que a Praça Onze apresentou" (CABRAL,
1998: 122).
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52
Leopold Stokowski foi um famoso regente orquestral norte-americano, bem conhecido por conduzir
sem batuta. Stokowski também foi retratado em um desenho do Pernalonga em um desenho de
1948.
143
E naquele ano ganhou a Portela. Paulo não tinha participado do desfile por
uma questão de desavença de Bam-Bam-Bam com Heitor dos Prazeres. Todos os
três já tinham desfilado com aquela roupa na Mangueira e na De Mim Ninguém se
Lembra. Na Portela não puderam desfilar. Paulo ficou em demasiado aborrecido e
se afastou definitivamente da escola.
Depois da confusão, Paulo foi para a casa de Cartola na Mangueira. Dona
Neuma e Cartola dão depoimento interessante a Silva & Santos sobre o diálogo que
estabeleceram com Paulo depois do ocorrido:
“ – Cartola, eu não podia permitir que ele me desse ordens. Afinal por que é
que eu fui a São Paulo? Pra divulgar o samba, levar mais alto ainda o nome
da Portela! Então? E ele ainda vai me desacatar em público, me mandar
sair por baixo da corda, desacatar você e o Heitor? Que cor diferente coisa
nenhuma! Você sabe que quando a gente desfila todo ano o pessoal do
Estácio invade a nossa corda com aquelas sombrinhas vermelhas e
ninguém diz nada. E são dez, vinte pessoas. Como é que ele ia impedir a
entrada de três pessoas só porque estavam de preto e branco? E logo nós,
que todo mundo sabe quem somos! Não, foi desaforo, foi pretexto, a
Mangueira não impediu que nós três desfilássemos, a De Mim Ninguém se
Lembra também aceitou. Isso não foi desculpa, Cartola. Está muito mal
contado, foi desaforo demais. Ou eles se desculpam direitinho ou nunca
mais piso lá!” (1991:89)
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53
A figura do valente é antiga no universo das escolas de samba, dos morros e subúrbios.
Normalmente é alguém muito forte e que participava de brigas e gozava de algum respeito além do
coercitivo.
144
"Posso adiantar que os feitos de nossa gloriosa FEB não serão esquecidos.
Aliás, a nossa escola sempre teve em alta conta os soldados
expedicionários, os melhores filhos do povo. Aproveito o ensejo para frisar o
seguinte: em meados do ano de 1944, quando mais intensos eram os
preparativos para o embarque da Força Expedicionária, a fim de participar,
juntamente com os gloriosos exércitos aliados do completo esmagamento
do nazi-fascismo, a escola de samba Lira do Amor ofertou à Liga da Defesa
Nacional, instituição patriótica que melhor zelou pelos nossos pracinhas,
apreciável soma em dinheiro e centenas de maços de cigarros".
Na matéria, Paulo cita mais uma vez a sua boa relação com Pedro Ernesto e
com a imprensa. Um quanto o outro foram peças chave no crescimento das escolas
de samba do Rio de Janeiro. As subvenções e apoio dado pela prefeitura e por
parte da imprensa foram decisivos para que as agremiações carnavalescas
chegassem ao estrelato nacional.
Paulo, como grande mediador entre universos sociais distintos, era também o
grande cicerone do mundo do samba carioca, se chegava alguém importante que
quisesse conhecer o samba Paulo era logo chamado. Ele era uma espécie de guia
no subúrbio, diversos turistas estrangeiros foram levados a Oswaldo Cruz “sob os
cuidados de Paulo”. Segundo suas biógrafas, entre os diversos visitantes ilustres de
fora estiveram o professor Henri Wallon da Sourbone de Paris, a famosa artista
Josephine Baker, o museólogo norte-americano Aaron Copland, este último levado
pelo maestro Villa-Lobos para conhecer Paulo. Vários políticos famosos também
foram ciceroneados por Paulo, como Frederico Trotta, Lindolfo Collor, Lourival
Fontes, Pedro Ernesto, Mourão FIlho entre outros.
O depoimento do sambista Nonô do Jacarezinho a Silva & Santos
(1991:135), destaca o papel cicerone e diplomático de Paulo:
O bicheiro Natal, então presidente da Portela, quis levar Paulo para ser
enterrado na quadra da escola, mas sua esposa não deixou e Paulo foi velado por
uma multidão em sua própria casa. No dia seguinte a centena do jogo do bichou
deu 2908 número do túmulo de Paulo da Portela, imagino que muita gente ganhou
um trocado por isso. Porém, na verdade, pode ter sido uma última homenagem do
bicheiro Natal ao amigo falecido.
Abaixo imagens do velório, ou gurufim, de Paulo da Portela.
"[...] cada pessoa singular está realmente presa; está por viver em
permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que
ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente,
são elos nas cadeias que as prendem. Essas cadeias não são visíveis e
tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais
mutáveis, porém não menos reais e decerto não menos fortes. E é a essa
rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras,
a ela e a nada mais, que chamamos sociedade” (ELIAS, 1994:21).
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54
Sodré (1998) acredita que o samba perde a sua característica de ritual onde todos participavam
ativamente na elaboração da festa e se torna um ritual elaborado por uns para outros apenas
assistirem, sem interferir no andamento daquele ritual.
153
Paulo da Portela tentará reagir de uma forma específica às estruturas que regiam à
lógica do campo cultural, exigindo um maior reconhecimento sem, no entanto, fazer
exigências geradoras de demasiado conflito.
Se as condições históricas para o desenvolvimento das escolas de samba do
Rio de Janeiro se solidificavam, Paulo adentrou por dentro delas. O incremento da
possibilidade de comunicação e circulação do universo do samba com o restante da
cidade é um ponto complexo nas mudanças estruturais sofridas na capital da
República no período Vargas (Idem). As ações do grupo de Paulo se sintonizam
com as mudanças, entretanto, remodelam o pacto que se estabeleceria dali em
diante. Segundo Nóbrega (1999:36):
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55
Ver no capítulo 1 esse tipo de discussão acerca das relações históricas de trocas entre povo e elite
no Brasil.
155
culturalmente pelos seus e por outros mediadores culturais. A árvore que perdeu a
raiz é o nome do manifesto que Candeia e outros sambistas lançaram para criticar
os caminhos dos desfiles.
Paulo será retomado no futuro como um herói pelos sambistas insatisfeitos.
Entretanto, a mudança na festa,a diminuição da espontaneidade, a entrada de
novos grupos sociais dentro das escolas de samba, entre outros elementos,
começou nos tempos de Paulo da Portela. As escolas de samba representaram o
momento em que a ordem suplantou a desordem, aliados a prefeitura e a imprensa
configurou-se um novo lugar cultural para o negro no Rio de Janeiro.
Daqui em diante o processo só tende a crescer e culminar nos colossais
desfiles de nosso tempo, ampliando ainda mais o hiato entre as raízes da festa
popular e os atuais desfiles carnavalescos.
Se a tese de Da Mata (1984) aparece mostrando a inversão, a ironia, o lúdico
da vida nos dias de folia, as escolas de samba pressionam de alguma forma para a
teatralização da festa, da festa que tenciona, em outros espaços, para a inversão.
Os desfiles organizam e criam modelos de conduta, reduzindo parte do inesperado,
da surpresa, da espontaneidade.
Mas ao que eu entenda os desfiles das escolas de samba se propuseram a
outro objetivo. O processo até aqui é, tal como na expressão de Raquel Soihet
(2002), estudiosa das letras de samba-enredo, a ordem suplantar a desordem
realizando assim, a integração cultural. No capítulo a seguir avançaremos alguns
anos no espetáculo carnavalesco e tentaremos entender melhor as transformações
ocorridas nas escolas de samba do Rio de Janeiro.
156
do negro e sim, cada vez mais, uma cultura espetáculo dirigida a um público cada
vez mais eclético.
É nesse período que se fortalece a figura do carnavalesco externo a
comunidade, na maior parte, artistas plásticos oriundos das escolas de belas-artes
que passam a assinar o desenvolvimento do carnaval. Os sambistas insatisfeitos,
que defendem um retorno às origens, passam a questionar o presente, isto é, os
desfiles impecáveis, gigantescos e com temas “complexos” que podem fazer toda a
diferença na acirrada disputa que se tornou o desfile carnavalesco.
Por isso, me aproximo de uma figura destacada nessa “oposição” ao triunfo
das escolas de samba, Antônio Candeia Filho, que protagonizou um racha na
escola de samba Portela denunciando com eco na sociedade os “descaminhos” das
escolas de samba. Sua trajetória e seu movimento podem nos ajudar a
compreender um ciclo fundamental de um processo, isto é, do nascimento à
consolidação e a primeira crise importante. Se as escolas ajudam a integrar
culturalmente o povo negro na cidade, agora passam a ser questionadas, por um
grupo, por promover um desserviço ao passado e também ao movimento de
politização do negro – e da cultura em geral – que estava em voga naquele tempo.
_______________________________________________
56
O CPC também realizava, além da experimentação musical, trabalhos com a literatura, o teatro e o
cinema, com destaque para a produção do filme Cinco Vezes Favela, de Cacá Diegues. Antes do
próprio CPC, é importante anotar a criação, em 1944, no Rio de Janeiro, do Teatro Experimental do
Negro, ou TEN, que se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da cultura negro-africana. Muitos
de seus quadros aderiram ao projeto do CPC.
159
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57
Para saber mais sobre a interessante trajetória de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, ver o
excelente trabalho de Moraes (2001).
160
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58
Arena conta Zumbi é um musical escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal em 1965, com
música de Edu Lobo, direção de Augusto Boal e direção musical de Carlos Castilho.
163
militar. O show citado por Carlos Lyra que colocou no mesmo palco Cartola e
Vinícius de Moraes é uma representação desse encontro entre artistas populares e
mediadores culturais. Esse encontro só reforçou a ida de diversos sambistas
oriundos das escolas para o cenário da nascente Música Popular Brasileira (MPB),
lá foram realizar sua arte “autêntica”, enquanto as escolas se uniformizavam e
passavam a só responder pela festa carnavalesca.
Uma boa representação dos encontros entre artistas populares e outros
setores da classe média pode ser bem representado na Figura 50, retirada no ano
de 1963 no bar Zicartola, do compositor mangueirense Cartola. Na fotografia estão:
Sérgio Cabral, Zé Keti, Ferreira Gullar, João do Vale, Hermínio Belo de Carvalho,
entre outros. Essa interação alimentou uma banda bem crítica ao caminho que
seguiam as escolas de samba. Zé Keti mesmo, nessa época já se apresentava
como um sambista que começava a se desvincular das escolas de samba. É como
se para esse grupo, as escolas começassem a deixar de ser a representação mais
pura da festa popular carioca e da cultura negra, e passassem a ser um evento para
a mídia, o público, o patrocinador, o turista.
a se destacar como artistas da MPB. Dessa forma, como alertei antes, suas
produções artísticas começavam a se tornar, de alguma forma, independentes das
escolas de samba.
Outro espetáculo realizado pelo CPC que mostra também esse tipo de
encontro e preocupação foi o Rosa de Ouro. Lançado em março de 1965 no Teatro
Jovem, alcançou sucesso semelhante ao show Opinião. “Concebido pelo produtor,
compositor e poeta Hermínio Bello de Carvalho, o show promoveu o retorno aos
palcos da grande dama do Teatro de Revista, Aracy Cortes, acompanhada por um
grupo de cantores-compositores formado por Paulinho da Viola, Elton Medeiros,
Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho e Anescarzinho do Salgueiro” (DOMUS,
2009).
O grande destaque do Rosa de ouro, no entanto, foi Clementina de Jesus,
uma senhora de 64 anos que estreava profissionalmente como cantora, até então
ela trabalhara como empregada doméstica. “Recém-descoberta por Hermínio,
Clementina arrancava entusiasmados aplausos da plateia ao entoar com sua voz
poderosa os belos sambas e cantos africanos de seu repertório” (Idem).
Cartola, que participou do espetáculo, também fora reencontrado pelo
jornalista Sérgio Porto, ele estava esquecido na Mangueira e trabalhava como
lavador de carros. Com o apoio de amigos da “classe média” abriu o bar Zicartola
com sua esposa Dona Zica, dai em diante sua carreira, antes interrompida, tomaria
sucesso que nunca tinha encontrado (CASTRO, 2004).
Procurando uma síntese, posso afirmar que a trajetória de um artista neste
período, estaria necessariamente vinculada a uma escolha dentre as possibilidades
do campo artístico, a partir, inclusive, de sua postura política. A cisão que o discurso
“engajado” conseguiu criar na cultura nacional agia diretamente na formação de
públicos e mercados consumidores.
Dessa forma, o reencontro entre a música popular e outros segmentos
artísticos foi um dos elementos que impulsionaram a criação de um novo
movimento, bastante articulado com a ideia de “denúncia”, “preservação e troca
cultural”, atingindo, o debate acerca da questão da autenticidade da produção
artística.
Vamos pensar no seguinte cenário: a produção artística popular se torna
base simbólica da formação nacional e matéria privilegiada no mercado cultural
(condições interligadas), torna-se cultura de massa e adquire a conceituação de
168
inautêntica por um grupo, porém, como observamos aqui, essa autenticidade está
em demasiado marcada pela questão do engajamento estético e político do artista.
No primeiro momento analisado (década de 1930/40), a produção artística
popular começa a se massificar junto ao desenvolvimento de uma identidade
nacional. Participa, através de uma série de intermediações, tanto do Estado,
quanto da mídia e da indústria cultural, da articulação dos símbolos formadores das
identidades nacionais. Porém, pretendo prolongar outro elemento que é a
prevalência de uma visão folclórica sobre a cultura popular nessa fase (Estado
Novo), este debate é fundamental para compreender a modificação na visão da
produção artística popular no período analisado aqui.
Tal como relata o estudo de Vilhena (1997,1990), ainda até os anos de 1950
o folclore era considerado um tema quente, segundo o autor, tomou formato de
movimento organizado, produtivo e influente no cenário cultural brasileiro.
Um dos elementos que reforça essa visão é a forte atuação da Comissão
Nacional do Folclore (CNFL), que funcionou até 1967. As grandes críticas que se
abateram sobre os folcloristas começaram, sobretudo na universidade, o rigor
exigido pela crescente sociologia não deixaria impune o olhar folclórico sobre a
cultura do povo. Ainda, segundo Vilhena & Cavalcanti (1990:88):
_______________________________________________
59
Embora eu já tenha afirmado nesta pesquisa que prefiro os termos produção cultural, ou produção
artística que simplesmente cultura, por diversas vezes (em especial na referência de outros
autores) ele pode aparecer aqui relacionado à 'cultura popular' ou simplesmente 'cultura'. Quando
não existirem referências, estou tratando de cultura no termo mais amplo, quando não, estarei
chamando de produção artística ou cultural.
170
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60
Já alertei que tanto o movimento de engajamento artístico, quanto o movimento negro não se fazem
hegemonia no período, são aqui analisados porque são muito influentes no processo que analiso,
isto é, de rompimento com a massificação cultural das escolas de samba. Os trabalhos de
Hanchard (2001), Moura (1989), Nascimento (1982), são importantes fontes de aprofundamento
das questões aqui apresentadas, além de servirem como referência para este tópico.
172
Figura 53 – Semelhança de estilos entre James Brown, Tony Tornado e Tim Maia
cultura padrão e apresentar a cultura negra à cidade. Nas casas de santo as figuras
de referência, que exercem a formação espiritual, colaboram para a fundamentação
do pensamento ideológico. Por meio da valorização religiosa e cultural, educa seus
devotos para uma atuação política e racial.
Como já esclareci, no pós-golpe militar de 1964, se amplia o movimento
negro organizado, se fortalece a ideia de dívida histórica com o passado da
escravidão. E se fortalece também num universo mais amplo que o dos próprios
negros um sentimento valorativo frente às favelas e a cultura e a arte popular,
movimento que se articula com a política do CPC da UNE61 e com a investida de
intelectuais de esquerda nas camadas populares, que de uma forma pedagógica
pretendiam dar-lhes consciência política.
A presença da cultura negra é comum à vida cultural brasileira. Quero
levantar a hipótese de que a influência do movimento negro não se fez hegemônica
nos círculos culturais. Mas se fez presente, no capítulo seguinte quero mostrar
como ela aparece no discurso do sambista Antônio Candeia Filho. Na realidade,
levantei toda essa discussão para mostrar que existe uma pressão para o negro
olhar para o passado e preservar sua cultura, além de lutar por sua identidade e
história. Esse movimento criará uma nova banda artística, uma nova valorização
estética, mas nunca os ares de guerra urbana do gueto estadunidense.
O negro passa a ser valorizado pela sua produção cultural, num termo mais
amplo que os alicerces da cultura popular, passa a ser agente de redefinição do seu
espaço, seja na apreciação da estética black is beautiful dos guetos
estadunidenses, ou mesmo na valorização do engajamento político por equidade
sócio racial no país. O detalhe importante, é que o próprio clima político autoritário,
como já alertado, empurra o movimento da política clássica, para a arena da
produção cultural.
De todo modo, o movimento black e a redefinição da identidade negra no Rio
de Janeiro, modificou comportamento, gostos, criando novos símbolos de etnia para
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61
Vale uma nota para esclarecer que o movimento artístico negro sofre influência do movimento
política, mas isso não significa uma adesão, pelo contrário tende a continuar aquecendo o espírito
de trocas que acompanha a sociedade brasileira dos últimos tempos. O próprio Teatro Negro de
Abdias do Nascimento critica o CPC por tentar se apropriar da luta racial para seus interesses
políticos.
178
Como conta o jornalista Silvio Essinger (2005), no seu “Batidão: uma história
do funk”, Newton Alvarenga Duarte, o Big Boy foi Formado em Geografia e
acumulou inúmeras funções na área de jornalismo e produção cultural. Ele foi o
primeiro a quebrar a regra das locuções rígidas nos rádios. Com o estilo de locução
bem acelerado e, digamos assim, “meio louco”, Big Boy ganhou vários adeptos
entre os inúmeros ouvintes da Rádio Mundial, chegando a ter três programas ao
mesmo tempo no ar: Cavern Club, Big Boy Show e Ritmos de Boate.
Big Boy foi uma figura fundamental na história dos grandes bailes que se
realizaram ao longo dos anos 70, onde centenas de equipes de som disputavam a
preferência de milhares de jovens. Os lendários Bailes da Pesada eram verdadeiros
confrontos de equipes, onde o equipamento de cada equipe de som (isto é, a
potência e a qualidade do som) era fundamental como elemento de distinção e
sucesso do baile. Cada DJ se desdobrava para mostrar ao público as novidades do
Soul Music americana, bem como, os grandes DJs e equipes do movimento
internacional. O DJ famoso era aquele que além da melhor equipe detinha o melhor
acervo e contato com as novidades vindas do exterior (ESSINGER, 2005:67).
181
Como estes bailes estavam sempre lotados, diversas equipes de som, como
a Soul Grand Prix, Revolução da Mente, Black Power, Atabaque, Khaunna, dentre
outras, conquistaram fama e algum dinheiro nessa época. Em pouco tempo o
subúrbio carioca era tomado pela febre da black music.
Porém, segundo Hermano Vianna (1988), as grandes equipes de som
começaram a tomar uma atitude pedagógica de valorização da identidade negra,
seguindo o movimento cultural que diversos outros grupos da cultura negra seguiam
na sociedade. O interessante aqui é que se fortalece um mercado fonográfico e de
diversão “marginal”, desalinhado da indústria fonográfica dominante. Embora
diversos artistas permaneçam nas gravadoras tradicionais, grupos marginalizados
começam a montar uma indústria fonográfica periférica no subúrbio carioca.
O que acontece, é que nesse momento, o funk perdia as características de
pura diversão e passava a se constituir como um movimento político de superação
do racismo (o que acabou por empurrar os bailes para os subúrbios); e segundo,
porque a polícia do regime militar achava que por trás das equipes de som
existissem grupos clandestinos de esquerda, de forma que alguns discotecários
ligados ao movimento Black Rio chegaram a ser presos. Conforme Vianna (1988), o
engajamento artístico nos bailes foi um motivo para o esvaziamento destes em
183
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62
A maior parte das referências deste ponto do capítulo foi extraída da obra. As Escolas de Samba do
Rio de Janeiro de Sérgio Cabral (1997) e da pesquisa da historiadora Monique Augras intitulada: O
Brasil do Samba-Enredo (1998). Ainda se encontra a importante colaboração de Nei Lopes no seu:
O samba, na realidade: A utopia da ascensão social do sambista (1981).
186
“Embora tenha sido uma das coisas mais bonitas que já fiz e tenha visto o
meu trabalho admirado por milhares de pessoas, o que envaidece um
artista, a tese que defendo é que a intromissão do intelectual nos fatos da
tradição popular concorre para a sua degeneração. […] ameaça o caráter
forte que o negro imprimiu à escola de samba. A artista plástica quer se
utilizar da escola de samba porque ela está em evidência. Os ranchos, de
menor interesse do público e das autoridades, ficaram intocados pelos
intelectuais, assim como as escolas menores. Já chega a péssima
influência do teatro de revista, notadamente nos últimos anos, em seus
figurinos e coreografias. A Portela é a que mais se ressente com essa
imitação, visível pelo mau gosto das plumas e das baianas de umbigo de
fora.” (CABRAL, 1998: 186).
esse processo não é simples, escolas como a Mangueira e a Portela veem na sua
tradição a força dos seus desfiles. A Mangueira contratou em 1964 o escultor de
vanguarda Amílcar de Castro para confeccionar algumas de suas alegorias. Os
sambistas da Mangueira não gostaram do resultado, alegando conotações fálicas
no carro e dispensaram o trabalho (Idem).
O clima era de questionamento e Pamplona, que não dirigiu o carnaval de
1963, ficando este a responsabilidade de Arlindo Rodrigues, responde as acusações
no jornal a Tribuna da Imprensa:
encontrariam dois universos, como podemos perceber nas “novas” temáticas, como
Zumbi, Chica da Silva, encontrando o mundo dos “intelectuais” da Escola de Belas-
Artes com o universo da produção cultural popular. Como atesta Pamplona em
entrevista para site O batuque (2008), esse mundo estava em circularidade.
Inclusive, é como se mediadores culturais do nível de Pamplona integrassem
intelectuais negros de fora da escola com elas, como pesquisadores, políticos e etc.
Pamplona atesta nesse comentário sua relação com uma figura importante
do movimento negro brasileiro, no caso, Abdias Nascimento. Entretanto, as críticas
acerca do futuro das escolas de samba irão colocar a ingerência da dupla
carnavalesca– patrono como o nó da crise que se instalaria com o rompimento de
Candeia na Portela.
Em mais uma passagem da entrevista, Pamplona revela mais elementos do
seu encontro com a cultura popular e com o Salgueiro:
“Carnaval não era meu interesse fundamental, e nunca foi. Era uma
expressão cultural, popular e autêntica. Uma vez, estava conversando no
Vermelhinho, que naquela época era o ponto de reunião do Rio de Janeiro,
pois não havia teatro e nem galeria na Zona Sul. Quem trabalhava com arte
se reunia no Vermelhinho, na Araújo Porto Alegre, em frente à ABI, onde
todos os grandes nomes da época se reuniam. Do Di Cavalcanti ao Pancetti
ao Augusto Rodrigues, Mário Pedrosa, Mário Barata e vai por aí. E um dia,
um sujeito chamado Mereceu Tati, que era o copydesk do Jorge Amado,
trabalhava no Departamento de Turismo e Certames, que hoje é a Reitor, e
que comandava todas as festividades no Rio, me convidou para ser jurado e
fui júri do carnaval de 1959.
Eu fui criado com conto de fadas, não foi com super-herói, não. Eu gostava
muito do Império Serrano. Eu achava que Império Serrano era uma serra
onde tinha castelo, onde havia uma princesa. Como eu comecei a
frequentar a UNE, mesmo antes de começar minha vida universitária, fui
influenciado por um sujeito chamado Rogê Ferreira, que morreu em São
Paulo e foi fundador do partido Socialista. Entrei pro partido e virei um
revolucionário chinfrim. Eu adorava o nome Mocidade Independente. Eu
queria ser mocidade e ser independente. Era uma escola pequena. Mas
quando eu vi o Salgueiro entrar pela primeira vez – e eu era Rio Branco, no
Acre, que era vermelho-e-branco também – virei Salgueiro. O presidente me
convidou para fazer o primeiro enredo”.
194
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63
Inclusive, segundo Lopes (1998), o desfile já era transmitido diretamente, ou em videoteipe para
mais de dez países no planeta.
195
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64
A ideia de separar a invasão das belas artes no samba, do alijamento político de seus membros é
um ponto importante que será discutido no final do capítulo. Até que ponto, qual o elemento que
provoca a crise no mundo das escolas de samba? No quadro geral das críticas feitas por
sambistas tradicionais, o alijamento do poder decisório para modificar o cenário de invasão de
membros externos, isto é, a perda de poder para o retorno às tradições forma o movimento mais
plausível.
196
“Todo mundo fala que a Imperatriz faz desfile frio, técnico, impecável. Mas
ai ganhou três carnavais seguidos, voltamos a ganhar em 1989. Foi a forma
que encontramos de nos aproximar das grandes e vencer desfiles. Hoje os
desfiles são decididos por décimos, é isso, ou é profissional ou não vence”.
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65
Ao utilizar o termo profissionalização é importante destacar alguns pontos. As escolas de samba
não assumem um formato de empresa, ou mesmo de uma estrutura profissional.
Profissionalização aqui aparece como a entrada de especialistas nas escolas, seja na elaboração
do carnaval, na construção das alegorias, ou mesmo na composição do samba-enredo.
197
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66
Blog do jornalista Sidney Rezende, 11/08/2008. http://www.sidneyrezende.com/noticia/16558.
199
O jogo do bicho tem sua provável criação em 1892 pelo barão João Batista
Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. A intenção por
trás da ideia era atrair mais gente para o zoológico e compensar o corte de verbas
do governo. Para alimentar todos os animais, Drummond mandou imprimir o
201
Se o jogo já era uma prática comum na cidade desde a virada do século XIX,
a entrada de um banqueiro numa escola de samba se deu com Natal da Portela nos
anos de 1930. A vida de Natal é interessante, ainda jovem, Natal fora vitima de um
grave acidente que amputou seu braço direito. Depois disso, pela dificuldade de
trabalho, passou a ser anotador de jogo do bicho. Mesmo sem compor um único
samba, Natal, após transformar-se em bicheiro, passou a patrocinar a Portela,
tornando-a primeira escola de samba a ter um bicheiro como patrocinador.
202
Silva & Chinelli (2004), mais uma vez, sintetizam alguns pontos que ajudam a
explicar o processoda relação escola e patronagem: a) a escola de samba necessita
de mais recurso, tendo em vista o gigantismo do espetáculo, as subvenções do
Estado se tornam insuficientes; b) o bicheiro tem na escola de samba espaço de
prestígio e poder, aumentando o seu poder de barganha com outros agentes; c) a
escola de samba amplia suas atividades na comunidade em víeis assistencial,
utilizando-se dos recursos do bicho para tal; d) e por fim, a relação histórica
estabelecida entre o universo popular e a contravenção do jogo do bicho.
dessa proposta, diversas vezes rivalizando com os grupos considerados por eles
“alienados”, como a jovem guarda, por exemplo.
Outro aspecto que já vinha ocorrendo desde os tempos de CPC da UNE, era
uma reaproximação entre intelectuais e povo. Como relatei aqui no capítulo o show
de João do Vale, Zé Keti e Nara Leão é um marco dessa relação. A denúncia dos
problemas sociais se dá no encontro entre compositores populares e uma variedade
de mediadores culturais. Se em um primeiro momento, na década de 1930, esse
encontro proporcionou a valorização da cultura popular (de forma folclórica), agora,
amplia a universalização do movimento democratizante, tendo em vista que passa a
perceber no povo uma chave fundamental para as transformações sociais.
Neste ambiente, de valorização e engajamento dos artistas é natural que este
clima se faça também presente na produção artística das camadas populares. Uma
banda da produção artística negra e popular estará preocupada em através da arte
valorizar a história do seu povo, isto é, através da produção cultural resgatar a
história do negro e valorizar sua cultura. Candeia, que conheceremos melhor no
capítulo a seguir, pode ser inserido nessa banda. Queria que as escolas de samba
se tornassem um lugar de preservação e valorização da cultura negra e de luta
permanente contra o racismo.
O grupo de Candeia representa a articulação entre membros do universo do
mundo do samba e uma diversidade de mediadores culturais que enxergam a
valorização da produção cultural do povo e a sua respectiva preservação como um
elemento muito importante. Como mostrarei adiante, o manifesto de Candeia é a
representação dessa articulação. A preocupação que está colocada aqui é preservar
a escola de samba que estaria se descaracterizando e perdendo suas raízes. Os
grupos descontentes se enfraqueceram em boa parte das escolas que seguiram o
irreversível caminho da espetaculização.
Quando Joãozinho Trinta ganhou o segundo carnaval pelo Salgueiro em
1975, o Jornal do Brasil dedicou uma página inteira para uma reportagem de Lena
Frias com o seguinte título: Escolas de Samba S.A. A matéria falava do crescimento
vertiginoso dos desfiles e já levantava a polêmica sobre as transformações nas
escolas de samba, sobre a perda da originalidade, da espontaneidade das
agremiações (CABRAL, 1998).
No mesmo ano, Cartola, em depoimento ao jornalista Sérgio Cabral afirma:
207
“Isso tudo é uma esculhambação, não tem nada a ver com a gente. Não dá
mais para entrar numa escola, em qualquer escola. Há uma invasão, um
cinismo. Isso virou uma indústria e cada um quer levar o seu”. (CABRAL:
1998, 210)
“Não dá mais para fazer músicas com letras muito grandes, repassadas de
poesia. O negócio agora é aguentar no refrão e jogar pra frente. Hoje tudo
funciona num esquema profissional. É dinheiro, só dinheiro. Samba-enredo
como poesia pura, sem apelação, não cola mais”. (Idem, 211)
Esse pacto entre artistas, escolas de samba e bicheiros nem sempre se deu
de forma tranquila. Alguns desses bicheiros agem por trás das escolas, ficando em
segundo plano, alguns se tornam presidentes e também, a principal referencia
carismática das escolas. Nas escolas de samba com menos tradição esse
movimento é bastante claro. O bicheiro se torna além de financiador do desfile a
principal referência da escola, seja seu estilo, mais carismático, ou mais coercitivo,
mais “durão”.
Uma das consequências do crescimento da estrutura dos desfiles e das
escolas é o aumento da quantidade de dinheiro dentro das agremiações. A escola
de samba começa a pagar pelos serviços prestados a ela (como costureiras,
aderecistas, figurinistas, carnavalescos etc.). Com o valor do direito autoral sob a
gravação fonográfica dos sambas enredos, as escolas passaram a pagar prêmios
para os vencedores, criando uma carreira de compositores que viviam de disputar
samba-enredo, também, como uma forma de sustento, ou renda extra, para além do
status da vitória no concurso.
Uma série de compositores da favela e da periferia é beneficiada com o
crescimento das escolas de samba. Fora do período dos desfiles, diversos deles
realizam shows pela cidade, alguns alcançando também grande sucesso na
indústria fonográfica. Adiante, veremos que esse elemento fortaleceria a autonomia
de alguns desses cantores e compositores das suas escolas de origem.
Estes músicos serão fundamentais para entender a critica ao formato dos
desfiles. Diversos deles, como Cartola, Paulinho da Viola, Zé Keti, Candeia, e tantos
outros, estarão abandonando suas escolas de origem, ou mesmo todo o processo
209
O pai do sambista Candeia, além de tipógrafo era flautista e foi uns dos
criadores das Comissões de Frente das escolas. Assim, nascido em casa de
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67
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As principais referências sobre a vida de Antônio Candeia foram retiradas da obra de
Vargens (2008) e das pesquisas de Buscácio (2005), e de Cunha (2009).
213
“Papai Noel não sabe sambar. Por isso nunca foi convidado para o Natal em
casa do velho Antonio Candeia, na Rua João Vicente, em Oswaldo Cruz.
Pagodeiro ilustre, portelense antigo, com estágio em gloriosas associações
carnavalescas (Ameno Resedá, Rancho das Flores, Kananga do Japão),
Antonio Candeia comemorava o Natal à sua moda, à moda do seu povo.
Nada de pinheirinho, peru com farofa, nozes e alienações similares. Natal
era com feijão e samba a noite inteira. No aniversário dos filhos a dose se
repetia. [...]
Eu tinha uma tristeza. No aniversário das outras crianças tinha bolo, essas
coisas. No meu era feijoada, limão, partido-alto. Festa de adulto”.
Deus está em todo lugar. Nas mãos que criam, nas bocas que cantam, nos
corpos que dançam, nas relações amorosas, no lazer sadio, no trabalho honesto
(Idem).
Foi em 1865 que a história / Nos traz Riachuelo, Tuiuti / Foram duas vitórias
reais / Foram os marechais Deodoro e Floriano / E outros vultos mais / Que
proclamaram a República / E quantos anos após foram criados / Hinos da
pátria amada / Nossa bandeira foi aclamada / Pelo mundo todo foi
desfraldada"
4.2 - O retorno à tradição como saída para a “crise” das escolas de samba
artística (que incluía adereço, fantasia, figurino entre outros) e que passa a ser a
figura central na definição dos rumos das escolas de samba nos desfiles.
Esse processo ocorria em sintonia com a valorização do desfile das escolas
de samba, nesse tempo já existia a gravação do LP com os sambas do ano
(naquela época cantados pelos cantores de maior destaque na indústria
fonográfica), a transmissão em video-tape (para diversas partes do mundo), e uma
nascente indústria turística que orbitava em torno do desfile das escolas. As
quadras das escolas ficavam lotadas, como já alertei, de diversos setores da
sociedade carioca.
A tendência "irresistível" para a espetacularização vai chegar com mais força
nas escolas de menor tradição na época, como foi o caso do Salgueiro. Cavalcanti
(1995:57) nos conta que o presidente do Salgueiro, Nelson Andrade, em 1960,
contratou Fernando Pamplona e toda a sua equipe para a escola de samba.
Fernando Pamplona teria sido o jurado que deu as notas mais altas para a vermelho
e branco no carnaval anterior. Pamplona foi para o Salgueiro e fez um desfile que
recebeu notas máximas dos jurados, ai se criou uma "tendência irresistível", era
preciso fazer como o Salgueiro para vencer as grandes, ou era preciso fazer o que
seria dali em diante a marca de diversas escolas na Avenida Marques de Sapucaí,
quem mandava era o bicheiro, e o sambista deveria fazer o seu papel, distanciando-
se dos tramites dirigentes da escola de samba.
Acima de tudo, tal como os desfiles em forma de competição ajudaram a dar
normatização para o processo, a entrada do universo das “belas artes” configurou
um novo padrão carnavalesco, os sambistas descontentes poderiam, inclusive,
serem castigados por um júri e uma sociedade que parecia cada vez mais aprovar a
novidade. Quem estava insatisfeito era gente mais tradicional do samba, intelectuais
diversos, acadêmicos, artistas da MPB, alguns jornalistas etc.
Como relatado no tópico de abertura deste capítulo, o jovem Candeia parecia
caminhar em sincronia como o movimento tradicional das escolas de samba.
Percebemos que as estratégias adotadas por ele coincidem com o movimento do
grupo maior no qual está inserido, o dos compositores de escola de samba. As
primeiras composições vitoriosas de Candeia estão em sintonia com a visão
ufanista da letra de samba enredo que ganha força durante o período do Estado
Novo e perpetua com força até os anos de 1960.
218
Depois dos anos de 1950, outra profissão que começa a ser comum no
mundo do samba é a de policial. No próprio grupo de Candeia, são três os
sambistas que tem essa profissão. Candeia passou no concurso para a polícia no
início dos anos 60. Antes era também funcionário público, trabalhava no Ministério
da Aviação e Obras Públicas executando serviços burocráticos gerais. Ser policial
nos 60 garantia um salário razoável, além de que dotava o sambista de distinção
social, ele adquiria poder e o respeito, embora coercitivo, de um policial. Negro, alto,
forte, destemido e bom de briga, o policial Candeia se tornou temido até pelos
amigos do samba, como atesta seu principal biógrafo João Baptista Vargens
(2008:56).
Candeia levou ao todo cinco tiros, ficou mais de três meses no hospital e de
lá saiu paralítico da cintura para baixo. É um consenso geral em todos que falam
sobre Candeia, que este episódio fora bastante definidor na vida do sambista. Dai
em diante Candeia entra em um período de profunda depressão. Um ano depois do
acidente Candeia escreve a seguinte carta para amigos:
Aqui já fica claro o caminho que Candeia iria tomar. Como sinalizei no
capítulo anterior. Candeia começa a acusar a atual diretoria da Portela de
descaracterizar as tradições das escolas de samba. Aqui o sambista elabora a ideia
de que foram os próprios sambistas que permitiram a entrada de “influências
externas” nas escolas de samba. Em um primeiro momento o sambista entendeu
isto como uma vitória do samba, um sucesso da penetração do ritmo em todo o
país, mas Candeia quer dizer que foi ai que começou a descaracterização, foi ai que
o sambista perdeu o controle da escola.
O documento segue em tom de alerta para os perigos desta
descaracterização. Aqui os autores falam, do que chamei, no capítulo anterior, de
tendência irresistível, isto é, uma tendência inevitável a copiar o formato de desfile
que mais agrada o júri e a opinião pública mais geral.
“A Portela adotou a Águia porque era o símbolo do que voa mais alto, acima
227
Vale aqui a leitura de parte da sincera apresentação escrita por Sérgio Cabral
ao livro de Candeia e Isnard:
Tal como cito no primeiro e segundo capítulo desta tese as Donas de Lei
como Tia Ciata e Dona Esther foram fundamentais na interlocução do samba com o
233
Nesse estilo, Candeia vai passear pela história do samba e da Portela, descrevendo
minuciosamente cada estória, relato, curiosidade, títulos, desfiles, história dos
ritmos musicais e uma variedade de outras informações sobre o universo do samba
carioca e de Osvaldo Cruz. Adiante o sambista retoma o confronto e começa um
capítulo intitulado: “Cultural própria da Escola de Samba”, onde aponta:
“Vamos nos colocar no chão com a cultura popular brasileira, buscá-la onde
estiver: no morro, na Escola de Samba, no bloco, no botequim, no terreiro,
na rua, nas rodas de samba e congêneres. Vamos respeitar a arte popular,
sem preconceito ou paternalismo, tudo sem impor nada, respeitando
sempre sua espontaneidade, sua força original, sua criatividade” (Idem: 67).
E segue:
aproximar de um tipo muito particular de militância política, vai montar uma escola
de samba que seja veículo dessa ação. Segundo Candeia e Isnard:
intitulado por Lena de Black Rio. Faleceu em 12 de maio de 2004. Dulce Alves,
também radialista, trabalhou por mais de 26 anos na Rádio Tupi e era comentarista
de carnaval. Faleceu em 1992 (Idem).
Na época, o recém-formado em Letras, João Baptista Vargens, após um dos
inúmeros encontros promovidos por Candeia para a criação da escola em dezembro
de 1975, escreveu um manifesto de fundação, que exprimia de forma incisiva os
propósitos e ideais da nova escola que nascia (BUSCÁCIO, 2005, CUNHA, 2009).
Vargens criou uma relação de bastante proximidade com Candeia, e como já alertei
é fonte privilegiada para este capítulo. Abaixo, o manifesto de fundação escrito por
Vargens
:
Estou chegando...
Venho com fé.
Respeito mitos e tradições.
Trago um canto negro.
Busco a liberdade. Não admito moldes.
As forças contrárias são muitas.
Não faz mal. Meus pés estão no chão.
Tenho certeza da vitória.
Minhas portas estão abertas. Entre com cuidado.
Aqui, todos podem colaborar. Ninguém pode imperar.
Teorias, deixo de lado.
Dou vazão à riqueza de um mundo ideal.
A sabedoria é meu sustentáculo,
O amor é meu princípio,
A imaginação é minha bandeira.
Não sou radical.
Pretendo, apenas, salvaguardar o que resta de uma cultura.
Gritarei bem alto desafiando um sistema que cala vozes importantes
Que permite que outras totalmente alheias falem quando bem entendem.
Sou franco-atirador. Não almejo glórias.
Faço questão de não virar academia. Tampouco palácio.
Não atribua a meu nome o desgastado sufixo -ão.
Nada de forjadas e malfeitas especulações literárias.
Deixo os complexos temas à observação dos verdadeiros intelectuais.
Eu sou povo.
Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem.
Quero sair pelas ruas dos subúrbios com minhas baianas rendadas
sambando sem parar.
Com minha comissão de frente digna de respeito.
Intimamente ligado às minhas origens.
Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais,
profissionais:
Não me incomodem, por favor.
Sintetizo um mundo mágico.
Estou chegando...
241
"Ele falou: ‘Wilson, eu vou fundar uma escola de samba. Você tá comigo?’.
Eu falei: ‘Candeia, eu só não vou sair da Portela...’. “Não, não precisa sair
da Portela, ninguém precisa sair de suas escolas. Como o Xangô tá com a
gente, Elton tá com a gente, Clementina tá com a gente, fulano, beltrano,
sicrano..., Jorginho Peçanha tá com a gente’. Jorginho do Império. Eu falei:
Tá legal! Vamos fundar a Quilombo."
Candeia era, tal como foi Paulo da Portela, a principal figura daquele
movimento. Para se ter uma ideia da importância de Candeia na organização e
estruturação da escola, cito o depoimento do sambista Pedro dos Santos, um dos
primeiros integrantes da Quilombo (VARGENS, 2008):
"Em 77, tinha o Candeia, o Quilombo tinha uma facilidade tremenda. Ele
chegava e falava assim: ‘O que é que está faltando aí?’, para os chefes de
alas. ‘Está faltando o quê?’ Ou para as costureiras. E eu falava: ‘Para a Ala
das Crianças e para a Ala das Baianas está faltando pano.’
O Candeia saía e, quando ele voltava, o carro cheio de peças de pano. A
gente: ‘Comprou aonde?’ ‘Comprei?! Eu sou o Candeia, rapaz! Eu sou o
Candeia! Eu ganhei. Foi doado para o Quilombo. Ia em São Paulo e trazia
peças de bateria do Quilombo, trazia essas coisas todas. Era tudo
facilidade. Tinha as costureiras, tinha as máquinas... A esposa dele que
comandava tudo, a dona Leonilda. Fazia aquelas feijoadas, aquelas
comidas, fazia festival de chope, para angariar fundos, para o Quilombo
fazer alguma coisa".
_______________________________________________
68
_______________________________________________
Fotografias disponíveis em: <http://www.portelaweb.com.br>. Acesso em: 13
jan.2010.
69
_______________________________________________
As fotografias de Candeia que não citarem referência foram extraídas da pesquisa de
Vargens (2008).
246
247
Com seu novo espaço cultural, Candeia adentra o universo político que
atravessa a questão racial no país, como levantei no capítulo anterior, a postura de
Candeia está em sintonia com a de diversos grupos orgânicos do movimento negro
brasileiro. O espaço da Quilombo não será só frequentado por sambistas
insatisfeitos, será tomado por intelectuais de diversos tipos alinhados a questão
racial e da crítica ao processo de espetacularização da cultura popular. Ele cria uma
escola que mira no passado e tenta se proteger da descaracterização, imposta,
segundo o sambista, pela invasão externa, pela entrada de diversos grupos de
interesse que se apropriaram das escolas de samba. Adiante, em minhas
conclusões apontarei como o passado aparece aqui para tentar salvar o presente. O
ambiente engajado da cultura dos anos 70, a agitação política, o clima político na
África e nos EUA se esbarram com negros que não iriam aceitar o movimento de
distanciamento de suas bases operadas em algumas escolas. Concluo com a letra
do samba exaltação da GRANES Quilombo:
“De manhã, quero os raios de sol / Quero a luz, que ilumina e conduz”. Com
a esperança de novos tempos, Candeia compôs o samba Nova escola, em 1977. O
250
CONSIDERAÇÕES FINAIS
brechas dadas e tiraram os frutos de uma integração, mesmo que imperfeita, que
modificou o status quo do grupo na cidade. Tento fugir de uma visão romântica do
processo, que tende a atribuir ao sambista da primeira fase uma fascinação quase
heroica e insurgente. Parece-me que a ordem sobrepôs à desordem, os desfiles
acabaram com o violento carnaval do centro urbano, e de alguma maneira foram
integrando ao restante da cidade, o ambiente cultural dos subúrbios e favelas
cariocas.
Todos saudavam a ordem e como relatei na primeira parte, inclusive os
próprios sambistas de alguma forma entendiam benefício em se organizar, sentiam
como positiva a presença pública, não policial é claro, em suas comunidades.
Entenda que a única presença pública, até a Era Vargas, nas favelas cariocas, é a
policial, e que aparecia para reprimir “comportamentos indesejados”, como rodas de
samba e capoeira, e rituais religiosos.
O governo Vargas poderia contar com as escolas de samba no esforço de
propagação dos ideais nacionalistas, fenômeno esse que não foi restrito ao Brasil,
e sim uma realidade que solapou o mundo no período entre guerras. Não há,
portanto, “manipulação” pura se não houver o desejo de “ser manipulado”.
Nenhuma relação se estabelece em mão única. Os dois lados estabelecem seus
interesses, conquistando vantagens, cedendo em alguns pontos, ocasionando
assim uma relação que se estabelece no terreno da “aliança” do “pacto”, no campo
da “negociação e do conflito”.
Essa é a chave do capítulo 1, como o processo de segregação da Primeira
República, não conseguiu se fazer hegemonia no plano local e nem tão pouco no
plano nacional. O projeto positivista seria substituído por outro integrador, o olhar
sobre o popular se modificaria, com o fortalecimento dos estudos sobre o folclore se
tentaria dar ao povo o sentido de uma cultura nacional. O samba, o rádio, a
imprensa e diversos outros agentes seriam fundamentais nessa tarefa.
Com essa disposição das duas partes, isto é, Estado e povo, estabelece-se
um complexo jogo de negociação e conflito com a participação ativa de diversos
mediadores culturais. É essa gama de agentes que eleva a escola de samba à
condição de espetáculo maior da cidade. Mas esse processo se dá com ativa
participação dos sambistas, é isso que tento provar na primeira parte. A escola de
samba ajuda o grupo a se apropriar das situações políticas criadas para mudar
diversos valores a seu favor.
254
outroelemento seria ainda mais decisivo nesse jogo, a chegada dos barões do jogo
do bicho como patronos das escolas.
Ao apoiar uma escola de samba ou um clube de futebol, o patrono “limpava”
seu dinheiro e sua imagem de contraventor. Ao ser um mecenas daquela
comunidade se tornava uma referência local importante, ganhava favores na
sociedade, elegia vereadores e etc. Hoje, o presidente da escola de samba Beija-
Flor de Nilópolis governa a cidade da escola, tem vários vereadores e uma
tremenda legitimidade com a comunidade. A Portela tinha o seu bicheiro, o amigo
pessoal de Paulo da Portela, Natal. Foi durante a gestão vitoriosa de Natal que
Candeia acendeu como compositor da escola. Aqui o tempo já era outro e as coisas
estavam bem diferentes do tempo de Paulo.
Paulo da Portela, analisa Farias (2008),“não assistiu as transformações que
se iam desenhando no carnaval carioca, em consonância às transformações
materiais e simbólicas vivenciadas pela cidade (e o país), tendo seu momento
dinâmico na década de cinquenta. Sua morte prematura, o tinha impossibilitado de
assistir a entrada em cena de um conjunto de trabalhos intelectuais e artísticos
imbuído do intuito de redefinir a participação e situação da população negra no país
e a valorização de uma estética afro-brasileira”.
Paulo, também, ainda segundo o autor, não viveu por completo a situação na
qual o comando político e estético do sambista e da escola de samba foi
gradualmente cedendo lugar a novos atores - carnavalescos, patronos, aderecistas
etc.– afinados com a racionalização instrumental das ações capazes de garantir
política e economicamente a monumentalidade do desfile, garantindo divulgação
nacional e internacional para o desfile das Escolas de Samba, tal como afirma
Farias (2008), “a intenção cosmopolita do samba balizou o projeto cultural de Paulo.
É fruto da colisão entre o sentido da direção tomada pelo encadeamento de
relações na base do carnaval da cidade com a intençãopioneira de Paulo de
emancipar a população negra como grupo étnico, a partir da valorização das
expressões culturais afro-brasileiras como objetos de lazer e entretenimento para
desfruto de todos”.
Paulo precisava agir dentro de um campo muito mais pantanoso que nosso
segundo personagem, Candeia. Mas, de alguma forma, Paulo atuou sobre as
condições subjetivas e objetivas de seu tempo, seu plano – mesmo que
historicamente diferente do de Candeia – era modificar simbolicamente o lugar da
256
cultura negra no Rio de Janeiro, elevando a escola de samba e com elas sua
comunidade.
Paulo viveu o período em que os elementos da ascensão social do sambista
começaram a aparecer com mais força já perto de sua morte, viveu dentro deste
ambiente de negociação entre escolas e outros agrupamentos sociais. Paulo, acima
de tudo, viveu no momento de integração cultural que tinha na cultura do samba sua
maior chave. Candeia não, sua fase mais engajada se alinha com o período de
reafirmação da questão racial e com o clima de engajamento político do artista em
um país solapado por uma ditadura militar. Vive também a crise da visão folclórica,
para Candeia qualquer projeto cultural era um projeto político e pedagógico de
esclarecimento das pessoas articuladas à cultura afro-brasileira.
Na tentativa de pontuar os processos, posso resumir em alguns pontos a
trajetória das escolas de samba no período analisado. Como já sabemos, as
escolas de samba nascem no final dos anos de 1920, e em menos de vinte anos
estariam ocupando papel privilegiado nos festejos do carnaval carioca. Podemos
destacar aqui algumas fases fundamentais:
minhas andanças, até que a Russa virou presidente da Vila Isabel e eu voltei com
tudo”.
Aqui está a diferenciação fundamental de Paulo da Portela e Candeia. Paulo
articulou a unidade de dois mundos aparentemente separados, digo aparentemente,
pois nunca estiveram completamente descolados. Tornou-se um articulador
fundamental da integração racial pela cultura, já Candeia um crítico da
subordinação desta integração, que tomaria proporções muito maiores em seu
tempo. Candeia de alguma forma vai romper com o movimento original das escolas
de samba, de entusiasmo com a integração com o restante da sociedade. Em
Candeia a reparação ultrapassa a integração. Afinado com o novo discurso racial,
nosso personagem quer denunciar a exploração a qual o negro foi (e é) submetido,
e exige reparação, a forma escolhida: a conscientização.
São outros tempos, os estudos raciais avançam e se aproximam das
pesquisas acadêmicas estadunidenses sobre o tema, a influência da luta por
direitos civis e as lutas pela descolonização africana agitam o planeta. Candeia se
filia ao Movimento Negro Unificado. Prestigia Paulo da Portela em seu discurso,
mas salienta que falta algo, e o que falta é conhecer o passado, a necessidade de
ser um negro engajado. O Candeia da primeira fase usava os mesmos ternos que
consagraram a estratégia de Paulo da Portela, “de pés e pescoço coberto”, o
sambista elegante, “civilizado”, ordeiro. O Candeia da Quilombo usava roupas
coloridas que remetiam a trajes africanos, estava abandonando a estratégia
anterior.
Abaixo reproduzo uma entrevista de Candeia no encarte de seu disco,
Candeia 20 anos. Aqui fica clara a visão “africana” de Candeia, isto é, embora o
país esteja dentro do clima de agitação black (me refiro a influencia estética e
comportamental da música negra americana nos anos 70), ele mira para a África
como matriz da cultura que o negro deve buscar. As fontes em caixa alta estão
como no próprio encarte, veja:
Candeia parte para o confronto, em outra época para o samba é claro, que
de alguma forma vai criticar profundamente o espaço que antes serviu para integrar.
Como em um jogo de acúmulo de forças Candeia acredita que não há mais
necessidade de perder tanto na negociação e atiça o conflito. Na fundação do
Movimento Negro Unificado (MNU), a GRANES Quilombo estava representada com
delegados, ninguém menos que Lélia Gonzales, militante bastante conhecida da
questão racial. Em uma conferência sobre direitos das mulheres negras, Lélia
explica sua visão:
“Nós ainda temos um grande trabalho, pela frente no sentido de nos vermos
como um país multi-étnico, com uma diversidade de manifestações culturais
e onde o lugar do negro em termos culturais é a grande fonte na qual toda
uma produção artística oficial vai se inspirar.Por um exemplo, que não é
brasileiro, no caso do rock inglês vemos qual é o solo de onde brotou esse
rock, onde é que os rapazinhos brancos, por exemplo de Liverpool, como no
caso dos Beatles, foram se abeberar numa música negra vinda da Jamaica.
No caso brasileiro é a mesma coisa. O que se constata é que toda uma
produção cultural se faz em cima da apropriação do trabalho de produção
dessa cultura negra que é evidentemente marginalizada. Podemos perceber
inclusive, no nível da linguagem, um tipo de classificação que domina essa
ideologia dominante. Em termos de música popular temos MPB e o samba
que formam dois conjuntos que são classificados separadamente. Música
popular brasileira é uma coisa e samba já é outra, que tem outro espaço do
qual o “crioléu” não pode sair. Portanto, todo um trabalho, nos mais
diferentes níveis dessa realidade brasileira tem que ser efetuado no sentido
de sensibilização, de mobilização para a questão negra. No meu caso, fiz
um tipo de escolha, que foi a militância de rua, participando de organizações
negras, de seminários, na medida em que nós, os intelectuais negros
orgânicos somos tão poucos, realmente existe um grande leque de
atividades para poder responder às exigências que nos são colocadas. E,
ao mesmo tempo, existe uma militância, no nível do movimento (negro),
que, a meu ver, é de uma grande importância de atuação nos meios não
negros”.
261
E seguem debatendo:
"perdemos tudo, chegou uma hora que o Nézio [filho do bicheiro Natal], já
tinha articulado uma série de reuniões para fazer uma resistência, aos
poucos eles foram nos empurrando para fora e nós criamos a Tradição, que
tem eu e Paulo César Pinheiro como compositores do samba deste ano".
“Candeia - Certo, Paulinho. Agora, uma coisa que era muito importante, não
parece nada, mas que tem que ser dito alto e bom som, é de que, eu sei
que é teu pensamento também, falo por você, no caso, de que toda a nossa
luta, todo nosso trabalho, pra não ser confundido, nós não temos nenhum
interesse político, não pretendemos ser diretor da Portela, nós falamos
como sambistas, pelo que vivemos, certo? Quer dizer, por trás de nossa
posição, não existe nada a ser escondido. Não tenho pretensão, não quero
ser diretor, não quero ser tesoureiro, não quero honraria, não quero receber
_______________________________________________
70
RABELLO, João Bosco. “Escola de Samba. Cultura Popular”. Correiro Brasiliense. Suplemento
Especial. 22/01/1978.
263
nada assim pra mim. Com toda sinceridade, mal comparando, não vou dar
uma de Pelé, cruzar os braços e dizer que tá tudo bom, uma democracia
bonita, e tal, igualdade, tudo jóia, certo? Dar uma de Pelé e deixar o barco
pegar fogo. Então, nosso trabalho, é claro, não estamos lutando em honra
própria, mas e até por aqueles que não têm condições de falar, eu às vezes
até chamava a atenção do Paulinho e dizia: “Olha, Paulinho, você tem, quer
queira, quer não, uma posição de liderança perante esse pessoal, eles
esperam que você... tem que chegar e falar, porque a gente tem realmente
que falar”.
[…]
PV - […] A gente, você já cansou de ver anúncio, assim, não tô falando que
o turismo fez isso, entende, mas a gente já cansou até de anúncio. Eu já vi
um anúncio do Haiti, para Executivos, que era uma mulher seminua, sabe,
com o seio de fora, sabe, era um convite para negócios pro Haiti e pra ser
lá, pra uma ilha dessas, Havaí, não sei onde é que é. Era uma mulher com
o seio de fora, entendeu? Eu já vi declaração de nego, aqui, de autoridades
aí, dizer que o que nós temos que vender mesmo é mulher pelada, e que
nós temos que vender mulher, futebol, samba, essas coisas todas. Que isso
é que nós temos que vender. Turismo daqui, não pode vender outra coisa.
Quer dizer, existem essas implicações, que precisam ser analisadas,
entende? O que eu sinto é isso. O que tem de ser denunciado, rapaz, é
essa coisa arbitrária, que vem de cima pra baixo, dentro de uma escola de
samba. Quer dizer, um cara se arvorar e dizer: EU mudo o samba-enredo,
EU decido o que é isso, EU faço isso, EU faço aquilo, ou então vira outro e
diz: “quem não estiver satisfeito vá para a arquibancada”. É isso que tem
que ser denunciado, quer dizer, nenhuma escola de samba...
C – Brasil, ame-o ou deixe-o...?
PV – Não... é o cara chegar e dizer: olha aqui, quem não estiver satisfeito
que vá pra arquibancada. Isso aí...
C – É uma coisa altamente fascista.
PV – Então, isso aí é que ... eu acho que... Quer uma sugestão para
matéria? Abre a matéria assim: “QUEM NÃO ESTIVER SATISFEITO VÁ
PRA ARQUIBANCADA”. Ou “O SAMBISTA QUE NÃO ESTIVER
SATISFEITO VÁ RECLAMAR NA ARQUIBANCADA”. “Pronto, é assim que
a gente tem que abrir a matéria”.
A razão da alegria
Do povo é samba, é carnaval
267
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