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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Guilherme Ferreira Vargues

Sambando e lutando: nascimento e crise das escolas de samba do


Rio de Janeiro

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2012
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Guilherme Ferreira Vargues

Sambando e lutando: nascimento e crise das escolas de samba do Rio de


Janeiro

Tese apresentada, como requisito parcial


para a obtenção do título de Doutor, ao
programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de Concentração: Sociologia.

Aprovada em 9 de fevereiro de 2012

_____________________________________________
Prof.ª. Drª. Diana Nogueira de Oliveira Lima (Orientadora)
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. Adalberto Cardoso
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. Luiz Antonio Machado da Silva
Instituto de Estudos Sociais e Políticos – UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. Peter Henry Fry
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________________
Prof. Dr. Nilton Santos
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2012
DEDICATÓRIA

Ao meu avô César, criado no Catumbi, fundador do Bafo da Onça, que me


iniciou nas andanças pelo universo do samba carioca.
AGRADECIMENTOS

Esse trabalho é dedicado a todos que de alguma forma o ajudaram a se


tornar realidade seja no espaço acadêmico seja na vida. Agradeço em especial
algumas pessoas:
Aos meus pais, Elizabeth e Júlio Vargues parceiros firmes na difícil travessia
que por vezes é a vida.
Aos meus avós, todos eles muito importantes na minha vida: Moacyr, César,
Dagmar e Otília, entusiastas de minhas pesquisas e defensores fiéis do meu mau
jeito com o violão.
Ao meu irmão Maurício que toca melhor violão que eu. Ao meu irmão Rodrigo
que é bem melhor de contas que eu.
Aos meus queridos amigos, em ordem alfabética: André Videira, Alexandre
Deraue, Álvaro Neiva, Bii-Right, Bruno Porpetta, Diego Medeiros, Diogo Presidente,
Elídio Marques, Gabriel Cid, Rafael Maieiro Duarte, Sandro Félix e Victor Neves.
Além de uma lista enorme de pessoas que diversas vezes aqui poderiam ser
lembradas. São todos, imitando Vinícius, sustentáculos firmes e perceptíveis na
minha vida.
À Barbara Bulhões, que gosta de me apoiar no lado desafiante da vida.
À minha orientadora Diana Nogueira Lima, grande parceira intelectual na
elaboração de todo esse trabalho. Seu firme apoio e disposição foram muito
importantes para o desenvolvimento de toda essa pesquisa.
A todos os colegas de doutorado que compartilharam momentos de trocas,
alegrias e tensões no decorrer desta tese. Aos professores Luís Antônio Machado,
Luís Werneck Vianna e Pedro Paulo de Oliveira pela presteza que sempre tiveram
com este trabalho.
À professora Maria Alice Rezende de Carvalho, orientadora de minha
dissertação de mestrado que me ajudou a iniciar esta tese, meus sinceros
agradecimentos.
A todo sambista, ou não sambista que ritualiza na vida a liberdade.
A toda ousadia que se faz sonho, a todo sonho que se faz na luta.
Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o Sol que a todos cobre
Como podes, Mangueira, cantar?

Cartola (Sala de Recepção)


RESUMO

VARGUES, Guilherme Ferreira. Sambando e lutando: nascimento e crise das


escolas de samba do Rio de Janeiro. 2012. 276f. Tese (Doutorado em Sociologia),
Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2012.

Este estudo retrata a trajetória de duas lideranças fundamentais não só no


plano da Escola de Samba GRES Portela como na trajetória em geral das Escolas
de Samba do Rio de Janeiro. A escolha dos dois personagens, além da conhecida
relevância de ambos na história do carnaval carioca, se dá pelo fato de que os dois
aparecem como importantes referências de suas agremiações carnavalescas
representando e organizando interesses coletivos. Pretendo comparar a trajetória
desses dois personagens inserindo ambos em seus contextos históricos.
Respectivamente as primeiras três décadas do século XX, e os anos de 1960 até
1980. Elaborando uma pesquisa que compõe um balanço acerca das
transformações nas Escolas de Samba do Rio de Janeiro, que ao longo do tempo
se forjaram como representação máxima dos festejos carnavalescos da cidade.
Analisar as Escolas de Samba pode ajudar a compreender o movimento da cultura
popular na história recente da cidade, e como essa se articulou com sociedade e
política.

Palavras-Chave: Sociologia. Cultura. Carnaval. Rio de Janeiro.


ABSTRACT

VARGUES, Guilherme Ferreira. Samba and fighting: birth and crisis of the samba
schools of Rio de Janeiro. 2012. 276f. Tese (Doutorado em Sociologia), Instituto de
Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

This study analyzes the history of two key leaders not only in terms of Portela
Samba School, as in the general trajectory of the Samba Schools of Rio de Janeiro.
The choice of two actors, besides the known importance of both in the history of
carnival, is given by the fact that the two appear as important references for their
carnival associations, representing and organizing collective interests. It is intended
to compare the trajectory of these two characters by inserting both in their historical
contexts. Respectively, the first three decades of 20th Century, and the years 1960
to 1980. The research consists in a review about the transformations in the Samba
Schools of Rio de Janeiro, which in the course of time were forged as the main
representation of Carnival festivities in the city. Analyze the Samba Schools can help
to understand the movement of popular culture in the recent history of the city, and
how this has been linked to society and politics.

Keyword: Sociology. Culture. Carnival. Rio de Janeiro.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Vendedor de balaios................................................................................. 39


Figura 2 – Quitandeiras ............................................................................................. 40
Figura 3 – Mercado Público no Centro do Rio........................................................... 40
Figura 4 – Vendedor de carnes ................................................................................. 41
Figura 5 – Cortiço ...................................................................................................... 41
Figura 6 – O “bota-abaixo” de Pereira Passos .......................................................... 42
Figura 7 – Obras de remodelamento do centro urbano............................................. 42
Figura 8 – Vista da Avenida Central .......................................................................... 43
Figura 9 – O estilo da Avenida Rio Branco ................................................................ 43
Figura 10 – O Passeio Público .................................................................................. 44
Figura 11 – Fotos nas revistas de época ................................................................... 44
Figura 12 – A Praça Onze ......................................................................................... 45
Figura 13 – Morro da Conceição ............................................................................... 45
Figura 14 – Morro da Favella .................................................................................... 46
Figura 15 – Pátio da Estação de Madureira em 1909 ............................................... 46
Figura 16 – O grupo dos 8 batutas ............................................................................ 59
Figura 17 – Desfile das Grandes Sociedades ........................................................... 68
Figura 18 – Desfile dos Corsos (1) ............................................................................ 68
Figura 19 – Desfile dos Corsos (2) ............................................................................ 69
Figura 20 – Desfile dos Corsos (3) ............................................................................ 69
Figura 21 – Batalha das Flores ................................................................................. 70
Figura 22 – Carnaval de rua no Centro da Cidade .................................................... 70
Figura 23 – Baile das elites ....................................................................................... 71
Figura 24 – Charge do jornal O Careta ..................................................................... 71
Figura 25 – Charge da revista "fon fon" (1) ............................................................... 72
Figura 26 – Charge da revista Careta (1) .................................................................. 72
Figura 27 – Charge da revista Careta (2) .................................................................. 73
Figura 28 – Charge da revista O Careta (3) .............................................................. 73
Figura 29 – Charge da revista “fon-fon” (2) ............................................................... 74
Figura 30 – Charge da revista "fon fon" (3) ............................................................... 75
Figura 31 – Charge da revista O Careta (4) .............................................................. 75
Figura 32 – Rancho Flor do Abacate, no bairro Laranjeiras ...................................... 76
Figura 33 – Rancho Aborrecidos ............................................................................... 76
Figura 34 – Rancho Ameno Resedá anunciado em O Careta .................................. 77
Figura 35 – Personalidades do samba ...................................................................... 99
Figura 36 – Parte do pátio da estação de Madureira em 1909 ............................... 111
Figura 37 – Sistema eletrificado em 1937 ............................................................... 111
Figura 38 – Moradia de Paulo da Portela ................................................................ 114
Figura 39 – Festa em Oswaldo Cruz em 1930 ........................................................ 116
Figura 40 – Dona Esther em 1950 .......................................................................... 120
Figura 41 – Eusébio Rosa, marido de D. Esther ..................................................... 121
Figura 42 – Paulo da Portela ................................................................................... 124
Figura 43 – Conjunto vocal ..................................................................................... 124
Figura 44 – Grupo regional de Paulo da Portela ..................................................... 125
Figura 45 – Paulo e outro componente da escola de samba .................................. 129
Figura 46 – Cédula de votação do concurso de Maior Compositor ......................... 135
Figura 47 – Velório de Paulo da Portela .................................................................. 149
Figura 48 – Zé Keti e Nara Leão no espetáculo Opinião ......................................... 160
Figura 49 – João do Vale, Zé Keti e Nara Leão em cena no espetáculo Opinião, em
1964 ..................................................................................................... 161
Figura 50 – Sérgio Cabral, Zé Keti, Ferreira Gullar, João do Vale, Hermínio Belo
de Carvalho, entre outros, no bar Zicartola em 1963 ............................ 164
Figura 51 – Roda de samba no bar Zicartola (1) ..................................................... 165
Figura 52 – Roda de samba no bar Zicartola (2) ..................................................... 165
Figura 53 – Semelhança de estilos entre James Brown, Tony Tornado e Tim Maia 172
Figura 54 – DJs Ademir Lemos e Big Boy ............................................................... 178
Figura 55 – Cartaz do Baile da Pesada ................................................................... 180
Figura 56 – Baile da equipe Khaunna (1) ................................................................ 181
Figura 57 – Baile da equipe Khaunna (2) ................................................................ 182
Figura 58 – Desfile (1) ............................................................................................. 188
Figura 59 – Desfile (2) ............................................................................................. 188
Figura 60 – Desfile (3) ............................................................................................. 189
Figura 61 – Mercedes Batista.................................................................................. 189
Figura 62 – Atelier criado por Fernando Pamplona ................................................. 190
Figura 63 – Minueto com a Candelária ao fundo..................................................... 191
Figura 64 – Castor de Andrade, João Nogueira e Beth Carvalho............................ 199
Figura 65 – O bicheiro Natal.................................................................................... 202
Figura 66 – O bicheiro Natal e o secretário de turismo Fernando Barata ............... 203
Figura 67 – Candeia em frente à casa da família .................................................... 222
Figura 68 – Ala dos Impossíveis: Candeia, Waldir 59 e Mazinho ............................ 223
Figura 69 – O jovem Candeia (1) ............................................................................ 224
Figura 70 – O jovem Candeia (2) ............................................................................ 224
Figura 71 – Candeia em cadeira de rodas .............................................................. 224
Figura 72 – Candeia em cadeira de rodas na TV Tupi ............................................ 225
Figura 73 – Símbolo da Quilombo ........................................................................... 238
Figura 74 – Candeia em desfile da Quilombo ......................................................... 241
Figura 71 – Candeia em família .............................................................................. 245
Figura 76 – Ensaio na Quilombo ............................................................................. 247
Figura 77 – Candeia na sede social da Quilombo ................................................... 247
Figura 78 – Candeia entre outros ............................................................................ 248
Figura 79 – Candeia em matéria para o Jornal do Brasil ........................................ 248
Figura 80 – Candeia com Martinho da Vila ............................................................. 249
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO  13 
 
1.  O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DO SAMBA COMO SÍMBOLO DA 
CULTURA NEGRA E IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL: O NASCIMENTO 
DAS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO  ........................  28 
1.1  A formatação espacial de outra cidade: Subúrbios e Favelas .......  28 
1.2  Elite civilizada e Plebe atrasada: a barbárie em oposição à civilização 29 
1.3  O negro e o mundo do trabalho na Primeira República .............  36 
1.4  Culturas Populares na cidade em mutação: entre a repressão e a glória 
................................................................................................  47  
1.5  A festa do carnaval ..................................................................   63 
1.6  Nascem as Escolas de Samba ...................................................  78 
1.7  Preparando os desfiles oficiais .................................................  95 
1.8  Cidadãos e Escolas de Samba: Alguns apontamentos para o balanço da      
afirmação do samba nos anos de 1930 ....................................  103 
2.  DE PÉS E PESCOÇO COBERTO: PAULO BENJAMIN DE OLIVEIRA   106 
2.1  Indivíduos x Sociedade: o lugar sociológico da questão ................  106 
2.2  Notas adicionais sobre o subúrbio carioca ...................................  110 
2.3  A trajetória de Paulo da Portela ...................................................  113 
2.4  Nascem as escolas de samba .......................................................  126 
2.5  Paulo da Portela, cidadão do samba ............................................  131 
2.6  Algumas considerações ...............................................................  148 
3.  OS DESFILES RUMO AO APOGEU: ESPETÁCULO, DIVISÃO E PATRONAGEM 
NAS ESCOLAS DE SAMBA ............................................................  155 
3.1  Ditadura e engajamento artístico .................................................  156 
3.2  A influência do debate racial ........................................................  170 
3.3  A espetacularização dos desfiles ..................................................  183 
3.4  A patronagem e as escolas de samba ...........................................  197 
3.5  Entendendo a crise que se estabelece entre sambistas “tradicionais” e 
escolas de samba .......................................................................  203 
4.  ESCOLA DE SAMBA: A ÁRVORE QUE PERDEU A RAIZ ..................  210 
4.1  A trajetória de Antônio Candeia Filho ..........................................      212 
4.2  O retorno à tradição como saída para a “crise” das escolas de samba 216 
4.3  A criação da Quilombo através do livro Escola de Samba: a árvore que 
perdeu a raiz de Candeia e Isnard ...............................................  230 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................  251 
REFERÊNCIAS .....................................................................................        268 
13

INTRODUÇÃO

Esta tese busca compreender os movimentos da cultura do samba na cidade


do Rio de Janeiro, tendo como foco as escolas de samba, uma vez que constituem
a mais destacada manifestação da cultura popular carioca. Para isso, entrarei na
trajetória de duas lideranças fundamentais nesse universo, não só no plano da
escola de samba Portela como na trajetória em geral das agremiações
carnavalescas do Rio de Janeiro. São eles: Antônio Candeia Filho e Paulo Benjamin
de Oliveira. A escolha dos dois personagens deve-se, além da conhecida relevância
de ambos na história do carnaval carioca, ao fato de que os dois aparecem como
importantes representantes de dois períodos muito distintos na história das escolas
de samba e da cultura popular "negra" em nossa cidade.
A diversidade de estudos voltados à cultura é proporcional a sua
complexidade e ao seu caráter transdisciplinar. A discussão atravessa facilmente
diferentes áreas das ciências humanas, o que provoca sua permanente renovação.
Mas se, dessa maneira, a forma de abordar o tema varia, podemos notar a
presença constante de um mesmo entendimento: estão em relação, dentro de uma
sociedade, diferentes expressões culturais, sendo que as interações entre elas são
plurais e dinâmicas.
A relevância da cultura popular como objeto de pesquisa das ciências
humanas e sociais já foi discutida por diversos autores. Destaco aqui alguns como:
Mikhail Bakhtin, Peter Burke, Carlo Ginzburg, Michel de Certeau, Roger Chartier, e
mais recentemente, num contexto latino-americano, Jesus-Martin Barbero e Nestor
Garcia Canclini. Nestes autores, embora variem as perspectivas e acepções, a
cultura popular aparece aqui não só como referida à arte, literatura e música dos
segmentos populares de um tempo, mas, além de estar em estado de troca
permanente com a cultura da elite, refere-se à quase tudo que pode ser apreendido
em uma sociedade, como culinária, danças, vestimentas, festivos e etc. Todas as
práticas sociais contém uma dimensão cultural, uma dimensão significante que lhe
dá seu sentido, que a constitui e constitui interação na sociedade.
Modernamente, a cultura popular, em especial o carnaval, continua a seguir
alguns aspectos dessa tradição, principalmente no que diz respeito às máscaras e
fantasias com que se enfeita o povo (PACHECO, 2011). E mesmo, com alguma
14

linguagem que incita a inversão, em especial no carnaval popular de rua. Como


afirma Bakhtin, trata-se de uma manifestação específica da categoria carnavalesca
de excentricidade, da violação do que é comum e geralmente aceito, deslocando a
vida do seu curso habitual (Idem).
Mesmo que a festa carnavalesca hoje, se submeta a determinada
“normatização”, ela é incitada a se rebelar. Perceberemos no decorrer dessa tese
como o processo da festa carnavalesca foi sendo coibido de seu elemento
transgressor embora, ele não desapareça e nem deixe de fazer parte da cultura
carnavalesca em nenhum momento.
Para entender o carnaval é fundamental compreender essa tensão para um
estado de inversão, onde predomina o hiperbólico e o exagero, além da “sensação”
de que as diferenças sociais são temporariamente abolidas, papéis sociais e de
gênero se invertem, um espaço de tempo onde ocorria a inversão, morte de um
ciclo que se renovava, renascendo sempre para um novo tempo. O carnaval pode
não representar literalmente um estado de inversão, mas representa um período de
tensão entre transgressão e ordem. Como se nesse espaço do tempo as pessoas
fossem tensionadas a ter um comportamento social diferenciado (PACHECO, 2011).
Se a cultura do povo pode ser analisada se aproximando das práticas do
universo popular é impossível compreendê-la como autônoma ou descolada de uma
“cultura das elites”, formando um sistema em blocos antagônicos: povo x elites
dominantes. Ou seja, quando Bakhtin analisa os costumes populares encontra uma
visão de mundo que ia de encontro ao dogmatismo e a seriedade cultural dos
grupos dominantes da época, mas nunca desarticulada. A forma de manifestação
dessas “diferenças” estaria na carnavalização dos valores daquela elite. Através da
ironia, da paródia, do riso carnavalesco se manifestava uma visão popular dos
assuntos cotidianos. Ademais, nos estudos de Bakhtin perceberemos o campo
intenso de trocas entre dois universos culturais que podem, sob um olhar mais
“duro” parecerem separados. Não existe, como em um laboratório científico, a
possibilidade de separar como duas moléculas a cultura popular da cultura da elite,
trata-se de perceber que estão em relação, o que muda é a capacidade de cada
agente ou grupo social que se encontra em posição evidentemente desigual se
impor. A sua separação nada mais é do que um modelo analítico para perceber o
grau de intensidade de hegemonia de um grupo na cultura. As culturas se
encontram em movimento de circularidade.
15

Articulando-se com a ideia de circularidade cultural exposta em Bakhtin,


Carlo Ginzburg tendo como premissa e como referência teórica a Nova História
Cultural empreende o estudo dos personagens “anônimos” da História. Ao estudar o
estranho caso de um moleiro perdido nos campos de uma Itália em luta contra o
avanço protestante, deu corpo a uma profunda reflexão sobre a escrita da história,
suas dificuldades, desafios e possibilidades (HERMANN, 2011; PACHECO, 2011).
Nesse sentido, a historiadora Jacqueline Hermann (2011) explica que, Carlo
Ginzburg fornece um modelo teórico para pensar a cultura popular em sua relação
com a cultura erudita de uma maneira singular: por um lado, a cultura popular tenta
se constituir rompendo os padrões sociais, se esquivando e se afirmando pela
negação a essa ordem; por outro lado, ao mesmo, pode aceitar essa determinação
sociopolítica que acaba por difundir o status quo social e político de cada época.
Ginzburg atenta para a relação dialógica entre as culturas populares e
eruditas. Em um período marcado pela reação da Igreja Católica ao movimento da
Reforma Protestante na Idade Média, temos uma cultura erudita que acredita ser a
única fonte de cultura e de saber, em grande medida alicerçada pela cultura
religiosa católica, rechaçando todas as demais formas de pensamento e de visão de
mundo. Por outro lado, destaca Hermann (2011), temos uma cultura popular que se
alimenta dessa primeira e da cultura oral de seu tempo, evidenciada ora nas formas
de interpretação da cultura religiosa daquele momento e na fala do personagem
central do livro O queijo e os vermes, ora nas maneiras de se entender e explicar o
mundo em que viviam, ainda muito ancorado no paganismo (HERMANN, 2011;
PACHECO, 2011).
Dessa forma, fica clara a noção da circularidade entre as culturas populares e
eruditas. Partindo da cultura popular, podemos dizer que esta se apresenta nos
discursos, práticas e ações submetidas à dominação e, ao mesmo tempo, nos
discursos, práticas e ações que ignoram os padrões de dominação estabelecidos ou
utilizam-se de algum subterfúgio para não se subjugar (Idem; CANCLINI, 2001). A
relação que se estabelecesse é de passividade, negociação e conflito.
Entretanto, se por um lado, a dicotomia entre cultura popular e cultura erudita
e estabelece e se afirma como maneira de abordar os estudos culturais, por outro
lado a circularidade entre ambas demonstra as variações entre uma e outra, ao
mesmo tempo em que revela suas dependências. Tal como afirma outro historiador
da Nova História Cultural, Roger Chartier:
16

Somos levados de volta à nossa pergunta inicial: como articular (e não só


utilizar de forma alternada) esses dois modelos de inteligibilidade da cultura popular
que são, de um lado, a descrição dos mecanismos que levam os dominados a
interiorizar sua própria ilegitimidade cultural e, de outro lado, o reconhecimento das
expressões pelas quais uma cultura dominada consegue organizar, numa coerência
simbólica cujo princípio lhe é próprio, as experiências da sua condição? A resposta
não é fácil e hesita entre duas alternativas: operar uma triagem entre as práticas
mais submetidas à dominação e aquelas que usam de astúcia com ela ou a
ignoram; ou, então, considerar que cada prática ou discurso "popular" pode ser
objeto de duas análises que mostrem, alternadamente, sua autonomia e sua
heteronomia. O caminho é estreito, difícil, instável, mas acredito que seja, hoje em
dia, o único possível (CHARTIER, 1995:192).
Vasconcelos (2003), em artigo sobre o carnaval rural, percebe que, na
contemporaneidade, “as grandes festas populares são organizadas e produzidas
também por um jogo político-social multifacetado”. Elas, ao mesmo tempo, unificam
e separam, recortam e fazem convergir, aproximam e limitam os sujeitos sociais.
Objetiva e subjetiva as ações diante à discutida dicotomia de subordinação e
resistência das manifestações populares simbólicas e identitárias. Um campo social
complexo e culturalmente híbrido onde se efetiva “a circularidade” percebida em
Bakhtin e Ginzburg (Idem).
Nesse campo, a cultura popular tradicional, a erudita e a massiva não têm um
estatuto único, mas participam de uma mesma esfera simbólica, fazendo com que
aquilo que se apresenta como produção dos dominados seja reapropriado pelos
dominantes reciprocamente, numa multiplicidade de criações e representações
interagidas e mediadas conforme o pensamento de Canclini (2001) sobre Culturas
Híbridas (VASCONCELOS, 2003).
Ainda, segundo o autor, a subordinação da festa à égide política é observada
por Canclini num aspecto que limita seus aspectos de liberdade, reduzindo-a ao
âmbito da existência cotidiana que reproduz no seu desenvolvimento as
contradições da sociedade. Desse modo, o comportamento liberto, a subversão e a
livre expressão se manifestariam de forma fragmentada, havendo a manutenção
das desigualdades sociais e as intervenções políticas (Idem).
Para apreender e analisar esse fragmento da história dos segmentos
populares urbanos e suas práticas culturais, mostrando outro lado da história, tomo
17

como premissa a existência de relações de circularidade entre as diversas formas


de expressão cultural presentes em uma sociedade. Assim, pretendo comparar a
trajetória de Paulo da Portela e Candeia, inserindo ambos em seus contextos
históricos, respectivamente as primeiras três décadas do século XX, e os anos de
1960 até 1980. Vou fazer um balanço das transformações vividas nas escolas de
samba do Rio de Janeiro e mostrar como, ao longo do tempo, se forjaram como
representação máxima dos festejos carnavalescos da cidade.
Acredito que analisar as escolas de samba ajuda a compreender o
movimento da cultura popular na história recente da cidade, e como essa se
articulou com sociedade e a política. A parcela mais pobre da população carioca
operou, através de elementos bastante criativos, sua integração na cidade e, em um
movimento triplo em que tradição, incorporação e renovação marcaram sua
inscrição no Brasil moderno.
Como já alertado anteriormente, este texto procurará fugir dos determinismos
que tendem a desvendar este processo de forma romântica ou idealizada, ou
mesmo daqueles que desprezam a sociedade civil como importante arena de
negociação para nossa história social. Nesse sentido, as categorias de contradição
e conflito são centrais à minha análise. Seguindo de perto a sugestão de Bakhtin
(1999;1997), Ginzburg (1998) e, muito mais recentemente, Nestor Canclini (2004),
considero, portanto, que as culturas – popular e hegemônica – não se encontram
isoladas, mas estabelecem trocas entre si que não podem ser explicadas por uma
mera relação de oposição dominante / hegemônica x popular / resistente.
Novamente nas palavras de Chartier (1995), este movimento desembocou em duas
maneiras de perceber o estudo da cultura:
O primeiro, no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe
a cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona
segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura letrada. O
segundo, preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que
organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependências e
carências em relação à cultura dos dominantes.
Temos, então, de um lado, uma cultura popular que constitui um mundo à
parte, encerrado em si mesmo, independente, e, de outro, uma cultura popular
inteiramente definida pela sua distância da legitimidade cultural da qual ela é
privada (CHARTIER: 1995).
18

O caminho mais salutar é aquele que abarca as relações de poder que estão
em jogo, considerando as relações culturais como práticas descentradas e
multideterminadas pelas relações políticas e sociais, em que conflitos e assimetrias
são regulados pelos compromissos entre os atores colocados em posições
evidentemente desiguais (CANCLINI, 2004).
Tentarei mostrar que se o samba chegou ao patamar de símbolo da
nacionalidade não foi só por uma opção do poder público ou mesmo de intelectuais
de classe média e outros mediadores, mas também resultado de uma ação bastante
intensa empreendida por nosso povo pobre, em maioria sua parcela negra.
Negociando com o restante da cidade, essa parcela da população carioca ocupou
brechas a partir das quais desenvolveu novos espaços de atuação social,
remodelando as relações entre política, classe e cultura.

Procedimentos da pesquisa

Para levar adiante esta investigação sobre a transformação do samba,


expressão cultural da população negra e de baixa renda carioca, não apenas em
forma musical admitida na cidade moderna, mas em símbolo da identidade nacional
brasileira, vou examinar como os personagens se movem em seu contexto. Vou
centrar minha atenção em dois momentos: década de 30 e de 70, levando em conta
as movimentações de três aspectos, a saber, a cultura negra, o samba e as escolas
de samba. Pretendo juntar aqui material para reconstruir a trajetória de dois
personagens fundamentais na trama das escolas de samba bem como refazer o
ambiente social que os cercava. Quero mostrar como a política e a cultura se
cruzam e fazer ver como a ação cultural do povo negro do Rio de Janeiro realiza
uma modificação do lugar simbólico destes na cidade. Observando mais de perto
duas lideranças centrais, tal como a vida e a coletividade em que circulavam, a
intenção é colaborar para o desvendamento do lugar da cultura popular em nossa
história recente.
Para isso recorri a artigos de época, fotografias, músicas, literatura, textos
acadêmicos e em especial aos biógrafos da cultura popular e do samba, cujas
contribuições procuro dividir com o meu leitor sempre que possível. Dessa forma,
dois tipos de compreensão sobre o samba serão aqui combinados: aquela oriunda
de espaço acadêmico, e outra, realizada pelos próprios sambistas, por cronistas e
19

jornalistas, todos eles pesquisadores que vou considerar, genericamente, de


nenhuma forma depreciando suas contribuições, como "não acadêmicos". São os
biógrafos da cultura popular. Em especial foram muito utilizadas nesta tese as
informações do jornalista Sérgio Cabral, em suas inúmeras pesquisas e reportagens
sobre as escolas de samba cariocas, ainda também Nei Lopes, Roberto Moura,
Haroldo Costa, Marília Trindade Silva, Lygia dos Santos Maciel, entre outros, são
pesquisadores e cronistas fundamentais para a compreensão do universo das
escolas de samba do Rio de Janeiro.
Eles têm um duplo papel nesta análise: são fonte valiosa e rica de dados e
documentos e são também personagens do ambiente mais abrangente do samba.
Além de reconstruírem o movimento de diversos personagens do mundo do samba,
emitem uma visão interna desse mundo, por meio da opinião e do comentário, como
que protegendo do esquecimento determinados processos.
Tentei reunir até aqui os elementos que podem ajudar a demarcar a leitura
desta tese. As escolas de samba são um fenômeno decorrente da festa
carnavalesca. Entretanto, minha hipótese, na primeira parte deste estudo, é que sua
elevação ao patamar de símbolo maior do carnaval carioca se da na medida em que
as escolas acompanham o processo de normatização da festa. Ao mesmo tempo
em que normatiza permite também a tão sonhada integração. Os sambistas
conseguem mediar sua integração cultural na cidade estabelecendo um pacto com
imprensa e prefeitura. Demonstrando afinidade com o movimento político e cultural
estabelecido no Brasil no pós 1930.
Como mostrarei no primeiro capítulo, as relações construídas ao redor da
cultura popular foram ajudando a empurrar a substância segregadora da Belle
Epoque nas duas primeiras décadas do século passado. Se o governo e parte da
elite teimavam em reformular a cidade excluindo o popular do processo, através da
manifestação artística e do esporte foram se forjando os elementos de mediação
com esse projeto.
Como será exposto no capítulo a seguir, a virada do século XIX para o século
XX no Brasil foi marcada por muitas mudanças, tanto no que diz respeito à
economia e às instituições políticas, quanto em relação ao cotidiano da população.
Em 1888, foi decretada a abolição da escravidão; um ano depois foi proclamada a
República. Vivia-se um tempo em que as invenções se multiplicavam, alterando
substancialmente a vida do cidadão comum. O automóvel, o telefone, a lâmpada
20

elétrica, o gramofone, o cinematógrafo e o avião foram algumas das invenções que


deslumbraram o homem da Belle Époque e que trouxeram um ar de novidade para
o século que se iniciava (SEVCENKO, 1992; NEDELL, 1994).
O acesso de uma parcela da população a todas essas invenções sugeriam
um clima de progresso e civilização e, como boa parte delas se difundiram a partir
da Europa Ocidental, esta se tornou o modelo de civilização a seguir. A busca pela
ciência, pela razão seria a marca do positivismo que administraria a cidade (Idem).
O progresso, entretanto, não se difundiu no Brasil como um todo;
praticamente se concentrou na cidade do Rio de Janeiro, então capital política,
econômica e cultural do país. O novo regime, implantado em 1889, tenta
transformar a cidade numa "Paris tropical", de modo a fazê-la, tanto aos olhos
nacionais, quanto estrangeiros, um cartão postal da República, como um símbolo de
seu poder e crescimento.
A República recém-proclamada precisava mostrar que inaugurara de fato um
tempo novo. Assim, foi tomando corpo a ideia de transformar o Rio de Janeiro num
cenário capaz de mostrar o que a nova forma de governo efetivamente trouxera de
progresso para o país. Acelerar-se-ia a realização de um plano para reformar a
cidade no seu traçado urbanístico, na distribuição dos habitantes e nos costumes da
população (SEVCENKO, 1992; NEDELL, 1994).
Assim, uma potente reforma urbana expulsou a população pobre para os
morros e os subúrbios. Ali nasceram comunidades que durante muito tempo tiveram
suas práticas culturais vigiadas de perto pela autoridade policial. Com medidas de
combate a “vadiagem” se tentou normatizar o comportamento popular (MOURA,
1983).
A “modernização capitalista” levada a cabo no Rio de Janeiro encontrava-se
a todo vapor e com base no projeto iluminista, acreditava-se, sobretudo, que o
domínio científico da natureza permitia o desenvolvimento de formas racionais de
organização social e de modos racionais de pensamento. Por isso, dentro deste
plano, a cidade precisaria ser refeita, tal como aos moradores deveriam ser
incutidos novos hábitos e valores. O embranquecimento passou a ser ideologia de
uma elite que acreditava ver na nossa herança colonial a marca do nosso atraso
(SEVCENKO, 1992).
Mas numa sociedade em que cada vez mais crescia o interesse pelas coisas
do povo, foram ficando evidentes as fissuras do projeto de Pereira Passos. O povo
21

ainda seria descoberto e valorizado pela vanguarda modernista. No cenário musical,


Pixinguinha e Villa-Lobos aparecem como o retrato das trocas culturais que não
cessariam a parte a pressão positivista (VIANNA, 2002).
O projeto da Belle Époque não resistira a onda integradora que varreria a
República Velha nos anos de 1930. Com ele iria embora a vergonha do atraso e se
procuraria nas massas a sustentação da nova hegemonia. O Estado varguista
aparece como o árbitro do conflito entre povo e elite. Procura integrar a população
carente ao mesmo tempo em que a tenta manter sob controle.
A produção artística negra aparece articulada em um clima de trocas e
descobertas com o universo da produção artística mais geral. É o cidadão comum o
grande orgulho nacional, aquele que fará a pátria grande e integrada. Esse
ambiente atribuiu um novo significado para o lugar do negro, e do povo, em todo o
país e em especial nas duas antigas capitais, Rio de Janeiro e Salvador, cidades
reconhecidamente permeadas por vasta influência africana em suas práticas
culturais.
A educação e a cultura aparecem como a chave do desenvolvimento e da
integração nacional, só que dessa vez, esse incremento se dá de maneira articulada
a cultura do povo. Para estender sua ação disciplinadora a todos os setores da
sociedade, o Estado Novo precisou constituir um extraordinário aparato burocrático
(VICENTE, 2006).
Segundo a pesquisa de Eduardo Vicente (2006), dentro do âmbito musical,
por exemplo, ele passou a controlar toda a organização dos bailes, coretos e
desfiles de carnaval da cidade, atrelando as escolas ao aparelho estatal em pouco
tempo. Assumiu, também, a produção e o controle dos contratos de trabalho dos
artistas, bem como a arrecadação dos direitos autorais.
Em relação à cultura, o Estado Novo assumiu postura ora elitista, ora
mediada, “empenhando-se na ideia de elevação da nação brasileira a um patamar
de civilização que a colocasse em igualdade com as nações mais desenvolvidas do
mundo”. As preocupações que os intelectuais ligados ao regime demonstrarão em
relação à música popular e à radiodifusão irão se relacionar, em grande medida, a
esse objetivo (Idem).
Diferente da República Velha, os intelectuais dispostos a organizar a cultura
no Estado Novo não exigem uma ruptura total com os padrões de comportamento.
O clima é de mediação, algo pode e algo não, não pode principalmente o que
22

representa objeção à ditadura Vargas. O governo quer governar com o consenso


das massas e dessa forma realiza “um duplo movimento de integração e regulação
da vida popular em termos ainda inéditos no país. O trabalhismo é a marca da
política que atrela como nunca visto a vida da população à direção do Estado
varguista” (VICENTE, 2006: 6).
Dentro deste cenário nascem as escolas de samba. Após o sucesso do ritmo
em toda a cidade, um inédito pacto entre populares, estado e imprensa impulsiona o
crescimento das agremiações carnavalescas. Com o aumento da popularidade do
desfile modifica-se também o lugar simbólico da cultura popular na cidade do Rio de
Janeiro.
No decorrer de algumas décadas, as escolas de samba respondem pela
festa, por seu estilo e por seu formato. Aos desfiles vão sendo submetidas notas e
normas, temas específicos em exaltação à política vigente e a ordem. O improviso e
a transgressão vão perdendo espaço para a normatização e o espetáculo. Paulo
Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela é um personagem central nesse processo.
Configurou-se como uma das lideranças mais destacadas do movimento de
afirmação das escolas de samba na cidade.
A grande pressão das pessoas articuladas as escolas de samba é por
integração na cidade. Isto é, o discurso dominante por parte das escolas é o de que
o negro é igual ao branco e logo merece as mesmas oportunidades, é portador de
cultura rica e acolhedora só não tem oportunidades de se manifestar.
Nascera ai um pacto entre populares e Estado, uma integração regulada.
Para que as escolas de samba pudessem desfilar o Estado provocou adequações,
como desfiles que exaltassem uma imagem de Brasil que precisava ainda se forjar
e enaltecer os feitos da Revolução de 1930. Os desfiles logo tomaram formato de
concurso e em algum tempo as normas foram se sobrepondo a espontaneidade
inicial do espetáculo. Como principal atração da festa carnavalesca foi modificando
também o carnaval. Entretanto veremos que esse processo, de organização de
desfiles antecede as escolas de samba, e fora uma marca do sucesso dos antigos
Ranchos Carnavalescos que garantiam seus desfiles mediando seus interesses
com a policia e o Estado.
Em suma, o Estado Novo perseguiu a constituição de uma "cultura nacional"
capaz de unificar o país sob a égide do Estado; a elevação do nível estético da
cultura popular, de modo a permitir que o país alcançasse um novo patamar de
23

"civilização"; a incorporação à cultura popular dos conteúdos ideológicos


propugnados pelo Estado, bem como a eliminação de seus aspectos indesejáveis
(VICENTE, 2006: 7).
Minha hipótese nessa parte da tese é de que as escolas de samba
estimularam o processo de integração cultural dos negros da cidade do Rio de
Janeiro. Mostraram como o povo da favela carioca era capaz de realizar o maior
espetáculo da festa carnavalesca. Dessa forma deram destaque ao seu grupo
modificando seu lugar na cidade. Entretanto, ao preço dessa integração custa a
diversificação do patrimônio das escolas de samba. O pacto clientelista estabelecido
entre escolas e estado, tal como os acordos com a imprensa ocorreram como
reflexo de uma disposição das escolas para se comportar de acordo com o clima
político instalado.
Minha escolha por, após analisar o nascimento das escolas de samba,
avançar no tempo se dá na medida em que no entorno da década de 1960
começam a ocorrer modificações bastante consolidadas no formato dos desfiles que
começam a produzir diversas crises nas escolas de samba e no mundo do samba
em geral. Um questionamento muito grande sobre o gigantismo do espetáculo, da
presença de inúmeros elementos externos às comunidades, da ingerência do
patronato, do esquecimento das raízes africanas e acima de tudo o
enfraquecimento das comunidades no controle da escola.
No ambiente mais geral, as décadas de 1960/70 representaram um período
de intensa agitação cultural e política no mundo todo. Não só transformações
políticas, mas também mudanças radicais na estética e no comportamento
rondaram todo o planeta.
Representaram também, a reorganização do movimento negro não só no
Brasil, mas também sua radicalização em várias partes do planeta, em especial nos
EUA. As lutas por direitos civis tomaram formato de guerra civil naquele país, dali
em diante o papel do negro na luta por seus direitos ganharia papel relevante na
história daquela sociedade.
No Brasil viveríamos a crise do mito da "democracia racial", de maneira
diferente do modelo americano o negro brasileiro encontrará canais diversos porém
articulados para expressar sua concepção de mundo e sua identidade. Se vivíamos
uma ditadura militar, com os canais de participação política atrofiados, a produção
24

artística se torna uma relevante arena de embate com o regime, ou mesmo com a
ordem das coisas em geral.
Pela produção artística podemos perceber a vontade de um indivíduo ou
grupo manifestar seus interesses. Através da produção artística podemos
manifestar desejo de acumular dinheiro, vontade de modificar um governo, visões
acerca do amor, entendimento sobre raça, religião e tantos outros temas que podem
aparecer, inclusive, combinados. O que vale aqui é que quando os mecanismos de
participação política formal se encontram limitados e a coerção se coloca acima do
consenso tem sido a produção artística campo fundamental de batalha por
concepções de mundo em conflito.
A ditadura militar no Brasil é marcada por embates duríssimos entre censura
e claque artística. Embora existissem artistas "colaboradores" e "favorecidos",
tinham aqueles que representavam a oposição ao estado vigente. São músicos,
cineastas, teatrólogos, entre outros que declaravam embate aberto ao Estado
autoritário. Diversas pesquisas acadêmicas já atestaram as relações entre o campo
da produção cultural e a política nos anos autoritários. Entretanto o que me leva a
retornar a este tema é outra preocupação.
Tal como assinalado anteriormente neste texto, os anos de 1970
representam, entre outras coisas, a reorganização do movimento negro no Brasil, é
em 1975 que se dará a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU). Em
compasso com essas mudanças viveríamos também um período de reorganização
da identidade negra em nosso país. Um período onde o embate entre a "democracia
racial" mantida pela ditadura, onde o negro estaria inserido no elemento ufanista,
onde o samba, ritmo das favelas e periferias cariocas, ainda era símbolo da cultura
nacional e representação importante da contribuição da cultura negra na formação
da identidade nacional.
Como as escolas de samba vão aos poucos se tornando símbolo maior da
festa carnavalesca do Rio de Janeiro, já nos anos de 1960, as escolas passam por
uma reformulação bastante complexa, é a chamada invasão da Escola de Belas-
Artes. Ai é o ponto onde as escolas deixam de ser patrimônio da sua comunidade e
passam a se articular com um grupo social cada vez mais amplo. O espetáculo
cresce em proporção enorme. Os carros aumentam, as fantasias e o enredo
passam a ser orientados por profissionais oriundos da Escola de Belas-Artes. As
25

escolas mais tradicionais rejeitam por um tempo essa nova profissão: o


carnavalesco (pelo menos tal qual conhecemos hoje).
As fantasias das escolas passaram a ser exibidas nos bailes do Teatro
Municipal, milhares de turistas do Brasil e do mundo passam a fazer parte da plateia
da festa. Artistas, modelos, jogadores de futebol, começam a ocupar os lugares de
destaque no desfile. A marcha de integração iniciada nos anos de 1930 fora levando
a uma modificação da festa que precisava atender a um campo de interesses cada
vez maior.
Toda esse espetáculo, fez com que os desfiles, cada vez mais acirrados,
levassem as escolas a gastar cada vez mais, e ai entra o papel do mecenato, a
figura do banqueiro de bicho. Para alguns sambistas ai se radicalizaria a
"descaracterização" das escolas de samba. Era como se tivessem sido dirigidas
para algo muito diferente dos propósitos de sua criação, essa seria a visão da
oposição, dos sambistas indignados com os rumos das escolas.
Um desses sambistas mais "indignados" era Antônio Candeia Filho, no ano
de 1975 este promove um enorme "racha" na Portela e no mundo do samba
fundando uma nova Escola, a Quilombo. Candeia dizia ali estar protegendo a
cultura negra e o samba carioca, tal quais os valores africanos que ele considerava
fundamentais para o negro compreender sua própria identidade.
Como já dito são tempos de reformulação e modificação na pauta dos
movimentos negros. De um lado cresce o assistencialismo na aliança entre escolas
e bicheiros, por outro lado cresce também o engajamento político via movimento
negro e/ou na luta contra a ditadura. Nesse momento viveremos também a
formação de novos movimentos sociais urbanos, começando a aparecer
timidamente também nas favelas e nas periferias, como as associações de
moradores.
A questão do negro que vinha sendo pautada historicamente no campo da
"integração", pauta recorrente na história das escolas de samba do Rio de Janeiro,
que como já disse possuíam tremenda influência política e cultural na população
negra carioca daquele tempo. Com a reformulação da pauta, em especial após a
fundação do MNU, o discurso do novo movimento negro passa a sinalizar
"reparação". Isto é, a integração passaria, inclusive com uma reparação ao passado
de exploração sofrido pelo escravizado africano em nosso país.
26

Não teremos uma substituição de uma identidade por outra, mas teremos dai
em diante uma dualização de projetos, de um lado a identidade negra brasileira
forjada ao longo da história, a do negro incorporado contra a do negro segregado e
espoliado. Qual é a ferramenta da nova identidade? Para o novo movimento negro é
a educação. O negro tem que saber sua história e a força da sua cultura para
compreender o seu lugar na sociedade brasileira. Esse seria o discurso de Candeia,
embora sua articulação com o movimento negro seja um entre outros motivos da
sua separação da Portela.
Quero demonstrar no decorrer desta pesquisa como essa crise se articulou
no mundo das escolas de samba e da produção cultural popular em geral,
chegando a se relacionar com um rompimento relevante na história das escolas de
Samba, do carnaval carioca e mesmo da identidade negra no Rio de Janeiro de
nosso tempo. A fundação da Quilombo, como dito em 1975. Esse movimento estaria
em sintonia com o questionamento do papel das escolas de samba de preservarem
a cultura negra. A escola estaria tomada, na visão do grupo de Candeia, por
dirigentes externos (patronos), por carnavalescos externos e articulada para agradar
imprensa, jurados e turistas. O sambista teria perdido a força nos caminhos do
carnaval das escolas.
Chamo o grupo de Candeia de "africano", pois ao querer despertar a
libertação do negro no Brasil se remetem a África em seu discurso. Isso garantiria
ao grupo uma identidade secular, uma civilização, fundamental para reafirmar seu
papel na construção do Brasil e toda a penúria a qual foram submetidos.
Entretanto, como já dito a reorganização do movimento negro no Brasil terá
características peculiares. Ela será forjada entre o discurso "africano" e o discurso
"americano", este último muito influenciado pelo movimento negro estadunidense. É
claro que não encontramos aqui a radicalização política que este atingiu nos EUA,
mas ele será bastante influente no campo da produção artística e acima de tudo em
forjar uma identidade que poderíamos chamar de: black is beautiful . Esse elemento
passa a valorizar a autoestima negra, incentivando os negros a valorizarem, entre
outros elementos, seu modo de falar, de se vestir, e ainda, suas diferenças estéticas
com pessoas de outra cor. Lembre que no processo analisado na década de 1930,
Paulo da Portela, pregava que os sambistas se vestissem de terno para criar uma
imagem, que poderia ser inclusive compartilhada por eles como positiva.
27

África, em meio a várias lutas de libertação nacional, e EUA articulam a


formação de novas identidades negras. No grupo que chamo aqui de "americano"
perceberemos a forte presença do funk americano na música brasileira, as
vestimentas, as gírias, os comportamentos, cortes de cabelo e etc. Era como se ser
negro fosse de fato diferente, na ginga, na música, no jeito de jogar futebol e isso
fosse valorizado. Os cantores Tim Maia, Simonal, Jorge Ben, os bailes do Dj Big
Boy que lotavam o Canecão de pessoas, de todas as cores, para ouvir música
negra, os chamados bailes black.
E é claro que esse dois universos se cruzam e interagem. A sua separação
aqui, ademais no Brasil, é utilizada apenas como um modelo explicativo com o
intuito de explicar como a influência africana e americana chegaram de forma
articulada ao país e a cidade do Rio de Janeiro. Mas o mais importante é que nem
as escolas de samba e o carnaval, e nem a cultura e a identidade negra seriam a
mesma no Rio de Janeiro e no restante do Brasil. Por isso quero demonstrar em
minha pesquisa, tendo em vista a importância da produção artística no período
autoritário, como esse movimento de transformação cultural se articulou com
política e arte ajudando a reformular todo o sentido de ser negro nas grandes
cidades do Brasil. Ainda que o "novo" não tenha derrubado o "velho", se
modificaram concretamente as representações culturais associadas ao universo da
identidade negra no Rio de Janeiro. Em todo esse ambiente de questionamento, as
escolas de samba não passariam despercebidas.
28

1. O PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DO SAMBA COMO SÍMBOLO


DA CULTURA NEGRA E IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL: O
NASCIMENTO DAS ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO

1.1 A formatação espacial de outra cidade: Subúrbios e Favelas

Se for verdadeiro o esforço das elites por reinventar o país e fazer de sua
capital caixa de ressonância da imagem de um Brasil “civilizado”, pode-se dizer que
outra cidade teimava em se manifestar por fora dos padrões impostos verticalmente
pelo poder público e suas elites. Com suas trocas culturais, práticas híbridas e
intensas de manifestações sociais, este mundo extraoficial favorece o surgimento
de uma cidade muito mais complexa que a dos croquis dos engenheiros e
tecnocratas. Serão duas cidades, uma oriunda da reforma, da regeneração, da
norma urbanística, racional e técnica, e outra, o labirinto de malocas, do
desemprego compulsório e livre de todas as leis (SEVCENKO, 1992). Serão duas,
mas nem por isso estarão desconectadas.
Em seu estudo sobre a incorporação da cultura popular na cidade do Rio de
Janeiro Souza Reis cita uma importante passagem do poeta Olavo Bilac em que é
retratada a confusão entre os domínios territoriais das “duas cidades”. O trecho é de
1906:

“'selvagem' presença negra na recém-inaugurada Avenida Central, principal


ícone da Regeneração: [...] Num dos últimos domingos vi passar pela
Avenida Central um carroção atulhado de romeiros da Penha: e naquele
amplo boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido, contra a fachada rica
dos prédios altos, contra as carruagens e carros que desfilavam, o encontro
do velho veículo [...] me deu a impressão de um monstruoso anacronismo:
era a ressurreição da barbaria — era uma idade selvagem que voltava,
como uma alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da
idade civilizada [...] Ainda se a orgia desbragada se confinasse ao arraial da
Penha! Mas não! acabada a festa, a multidão transborda como uma
enxurrada vitoriosa para o centro da urbs [...] (BILAC, 1906 In SOUZA REIS,
2003)

Permanecia o povo a ocupar a cidade maquiada para o progresso. A


passagem extraída do texto de Bilac traduz bem não só o desejo de distanciamento,
mas também a condenação explícita à produção cultural das camadas populares.
29

Formatava-se o “Monstruoso Anacronismo”. Isto é, o monstro que parecia ter


acabado com a reforma urbanística, teimava em sobreviver. Antes concentrada no
centro da cidade, a miséria seria deslocada para subúrbios, favelas e bairros
populares, e por lá deveria ficar confinada, escondida e quieta. O centro remodelado
era tablado apenas para as camadas mais abastadas do Rio de Janeiro. A ideia de
subúrbio como uma paragem “de fora” da cidade é bem caracterizada pelo geógrafo
Nelson Fernandes:

“Después de estudiar la evolución urbana de Rio de Janeiro y de la palabra


suburbio, y constatar su aplicación para los barrios citados, he llegado a la
conclusión de que tal uso revela, literalmente, la intención de las elites de
colocar a las clases populares fuera de la ciudad, de negarles el derecho a
la misma, la ciudadanía y el camino a la escena culta, civilizada y politizada
de Rio de Janeiro. Tanto es así, que una de las imágenes más
representativas del suburbio es la de ser un sitio sin cultura y sin historia”
(FERNANDES: 1998).

1.2 Elite civilizada e Plebe atrasada: a barbárie em oposição à civilização

Nasciam os subúrbios e as favelas, no epíteto de Lima Barreto, o refúgio dos


infelizes, terra de gente que procura um futuro fugido. Gente que: “perde o emprego,
as fortunas [...] todos que perderam sua situação normal vão se alinhar lá1”. Além
2
dos negros, a crise econômica da primeira república criou “novos pobres” na cidade.
Nas regiões periféricas iriam conviver desde gente muito pobre, até pequenos
comerciantes – alguns europeus, em maioria de origem portuguesa –, funcionários
públicos de menor escalão, etc. E evidentemente, tal como em nossos dias, uma
parcela mais carente tende a se localizar nos morros, lugares mais baratos e
próximos ao seu local de trabalho, o que normalmente representaria menos gastos
com moradia e transporte.

_______________________________________________
1Extraído do romance de Lima Barreto Clara dos Anjos. Citado em Fernandes (1998).

2Uma inflação galopante arrasava a capacidade de consumo da população. Junto a ela vinha a crise
do emprego regular, distribuição de renda e moradia.
30

Os subúrbios, além de serem áreas bastante precárias, eram relativamente


desarticulados da cidade. Antes da ampliação do sistema de transporte, Roberto
Moura (1983), conta que a chegada a lugares como a Penha, por exemplo, era
bastante difícil. Eram caminhos atolados de terra batida em uma travessia que se
fazia muitas vezes em charrete de burro ou a cavalo. A reforma urbanística é
acompanhada de um desenvolvimento do sistema de transporte ferroviário, em
especial o que liga as áreas suburbanas ao centro da cidade. Já desde o final do
século XIX iniciava-se a construção de linhas de trens que ligavam a atual região da
Leopoldina a bairros como Bonsucesso, Ramos, Olaria, Penha, Brás de Pina,
Cordovil, Parada de Lucas e Vigário Geral. Logo Ramos e Bonsucesso tornaram-se
importantes bairros devido à sua concentração populacional e comercial. Alguns
anos depois, já estavam também ligados à linha férrea Mangueira, Deodoro, Vieira
Fazenda, Del Castilho, Magno e Barros Filho. A ampliação da capacidade de
transporte facilitaria enormemente a mobilidade de parcela da população para essas
regiões (MOURA, 1983).
Outro caso de ocupação habitacional eram as vilas operárias, pois o decreto
de 1882 dava liberações tributárias às empresas que construíssem moradias para
seus funcionários. Já na época Passos, houve a construção da Brasil Industrial em
Bangu, Luz Steárica, em São Cristóvão, Fábrica Confiança em Vila Isabel, que
abrigavam algumas centenas de famílias. Essas moradias, concedidas a uma
mínima parcela dos assalariados, representavam pequeníssima parte das
habitações da cidade. A maioria da população mais pobre não era atendida por este
recurso. Mesmo assim estas comunidades viraram importantes referências em suas
regiões (Idem; FERNANDES: 1998).
O povo se reordenava na cidade, mas não se desarticulava. Pelo contrário,
reformulava e mantinha seus locais de sociabilidade, erguendo importantes canais
de comunicação, onde a cultura e a religião formatavam-se como dialeto comum
privilegiado. São eles os largos próximos às estações de trens nos subúrbios, as
praças da Cidade Nova e os locais de aglutinação nas favelas, como o Buraco
Quente na Mangueira. Também alguns bairros, que tomavam o incrível formato de
praça, como a Lapa, tornaram-se importante área de intercâmbio da cultura popular
com outras parcelas da sociedade.
Dessa forma, uma “outra” cidade ia se alimentando à margem da cidade dos
boulevards, dos corsos, clubs, da moda chic da burguesia, do five o’clock tea,
31

salões e cassinos. Esta “outra” cidade logo não poderia ser mais negligenciada
pelos civilizadores dos primeiros anos republicanos, até porque já fazia parte da
história carioca. Fazia-se percebida no elogio ou na penitência do atraso
(NEEDELL: 1993).
Minha preocupação na primeira parte deste capítulo, além de descrever um
pouco do ideário político-social das elites republicanas, é demonstrar como este
processo resultou em uma reorganização espacial da cidade, que teve como
determinante o deslocamento espacial dos mais pobres. No decorrer do mesmo, irei
explorar como esse deslocamento reforçou os laços comunitários nas periferias,
onde cultura e religião foram elementos determinantes para essa unidade.
Entretanto, é mister afirmar que este movimento se deu sempre articulado com os
projetos antagônicos, que ocorriam na sociedade da época, às políticas
segregacionistas patrocinadas pelo Estado. Se o governo decidia o que era
“civilizado”. Uma parcela da sociedade operou por uma lógica contrária, onde
prevaleceu a troca e a integração cultural.
Dessa forma, por mais que as parcelas periféricas da cidade tivessem seus
locais de encontro e trocas, como as festas – a Pequena África da Cidade Nova, a
celebração do carnaval - a relação destas comunidades com o restante da cidade,
em especial nas primeiras décadas republicanas, era marcada por forte preconceito
e exclusão. Como veremos mais adiante, a própria penetração cultural se dá mais
na incorporação de elementos das culturas das classes populares do que na
incorporação das comunidades propriamente ditas. Isto é, no que se refere à
cidadania e à recepção política da maioria da população na esfera pública, o
processo é deficiente3.
O caso do morro da Providência, tornado morro da Favella, é emblemático.
Ali se formou um lugar de gente muito pobre, em sua maioria negra, a que os
jornais se referiam como vagabundos e criminosos (CABRAL, 1996; MOURA,
1983). Era uma gente que a polícia classificava como “vadia e hostilizava. Honra,

_______________________________________________
3
Não custa lembrar que a ocupação suburbana deu-se não só por negros, ou mesmo gente muito
pobre, mas também por diversos imigrantes, desde comerciantes portugueses até operários de
outras regiões europeias, como foi o caso de Mangueira e Quinta do Caju. Assim, nem as favelas,
nem os subúrbios, nem a região da Cidade Nova foram locais de concentração somente de negros
e gente muito pobre. Se a cultura negra apareceu, misturou-se e deixou traços determinantes no
local, essa já é a história que nos interessa explorar.
32

hombridade e navalha eram, supostamente, os “valores” em voga ali. A


representação da favela daqueles tempos pode ser bem ilustrada com uma
passagem de João do Rio sobre o morro de Santo Antônio:

“Eu tinha do morro de Santo Antônio a ideia de um lugar onde pobres


operários se aglomeravam à espera de habitações, e a tentação veio de
acompanhar a seresta. [...] O morro era como outro qualquer morro. Um
caminho amplo e maltratado, descobrindo de um lado, em planos que
mais e mais se alargavam, a iluminação da cidade. [...] Acompanhei-os e
dei num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no
sertão, longe da cidade. O caminho, que serpeava descendo era ora
estreito, ora largo, mas cheio de depressões e de buracos. De um lado e de
outras casinhas estreitas, feitas de tábua de caixão, com cercados
indicando quintais. A descida tornava-se difícil [...] quinhentas casas e cerca
de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá por cima. As casas não se
alugam, vendem-se. [...] o preço de uma casa regula de 40 a 70 mil réis.
Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do terreno, com
caixões de madeira, fôlhas-de-flandres, taquaras. [...] Tinha-se, na treva
luminosa da noite estrelada, a impressão lida da estrada do arraial de
Canudos ou a funambulesca ideia de um vasto galinheiro multiforte” (Rio,
1999: 54-55 Grifos Meus).

Outro mundo nas palavras do cronista. A ideia de ausência da civilização, de


práticas estranhas à “nova” sociedade, mais davam a impressão da estrada do
arraial de Canudos. Isto é, de uma sociedade com práticas sociais "retrógradas" em
contraste com o novo padrão social em discussão pela tecnocracia palaciana. Nem
tanto, nem tão longe, e nem tampouco pouco incluída, a favela vai formando
códigos próprios, embora não muito distantes daqueles que caracterizavam a
presença negra nos subúrbios.
O certo é que o morro condensava um mundo estupidamente precário e, aos
poucos, as autoridades vão mudando o foco de sua atenção à feiura, ao atraso, à
doença, à violência e à balbúrdia dos cortiços para as favelas, onde, a tudo isso se
somava as habitações sem qualquer estrutura e, a seu ver, repleta de vadios. Por
outro lado, ali a repressão seria mais branda do que no centro urbano, o que de
alguma forma facilitaria a concentração de atividades culturais e religiosas
(FENERICK, 2002). Suas tradições, ali, não seriam apagadas, mas se renovariam
mantendo um elo bastante forte com seus elementos ancestrais, mais do que em
qualquer outro espaço social. Correspondendo ao que diz a literatura, é intensa, na
favela, a dialética entre o novo e a tradição. Segundo Giddens:

“O que é a tradição? “A tradição, digamos assim, é a cola que une as


ordens sociais pré-modernas. [...] Em outras palavras, a tradição é uma
orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada
33

influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada


influência sobre o presente”. (1997: 80).

Enquanto as elites “inventavam” uma nova tradição de inspiração europeia,


as classes populares refaziam as suas, em busca da acomodação no espaço
geográfico, político e cultural da cidade. Forjam fortes laços de identidade, em
especial na produção artística, na festa e na religião. Suas comunidades compõem
um espaço no qual o tempo, a concepção de mundo e de sobrevivência tomam um
sentido diferente do discurso vinculado ao ideário político das elites da república
velha.
Aqui, a tradição também se vincula ao futuro. Mas este não é concebido
como algo distante e separado, mas como uma espécie de linha contínua que
envolve o passado e o presente. É a tradição que persiste, remodelada e
reinventada a cada geração. Não há um corte profundo, ruptura ou descontinuidade
absoluta entre o ontem, hoje e o amanhã (GUIDDENS, 1997).
Não se pode dizer que sejam mundos congelados, dos quais as trocas
desapareceram. Ao contrário, são elas que remodelam ambos os espaços: o morro
e o subúrbio vão mudar como a sociedade em geral também havia mudado. Se a
capital, na sua relação com o “outro”, escolhe o caminho da repressão, o povo, ao
promover estratégias de resistência, concebe mecanismos de inclusão e
negociação. Neste movimento, suas próprias tradições se renovam dialeticamente,
produzindo novas sínteses que irão conformar os diversos segmentos sociais. As
classes populares não deixam de perceber na modernidade alguma chance de
inclusão e ascensão social, tal como aponta Cid em pesquisa sobre os grupos
capoeiras da época:

“No Rio de Janeiro os redutos negros significavam, conforme analisamos,


um entrave para a moderna metrópole que a capital ansiava significar para
o país. Dá-se início então a uma espetacular repressão a estes redutos. Em
meio a repressão, os elementos oriundos deste pedaço carioca africanizado
procuram de variadas formas confundir-se e não separar-se, [...] colocando-
se como atores nas negociações pela cidade” (CID, 2004: 69)

Nesse contingente das classes populares, encontra-se uma enorme


quantidade de ex-escravos do Nordeste que também vieram para o Rio de Janeiro
em busca de maiores oportunidades. Localizaram-se sobretudo, nas vizinhanças da
Pedra da Prainha, depois chamada de Pedra do Sal. Com a reforma urbana de
Pereira Passos, se concentraram na região da Cidade Nova e em favelas
34

adjacentes4. Foi no Rossio Pequeno que capoeiras, malandros, operários, músicos,


compositores, passistas e gente do candomblé se encontravam para se fazer
comunidade. Era a Pequena África carioca tomando porte e expressão entre os
seus5. Se ainda não se sentiam incorporadas nas modernas ideologias positivistas
da jovem República, muitas pessoas encontraram na raça, na religião e na cultura
importantes focos de solidariedade, demarcando uma gama de interesses comuns
que exigem, em boa parte, colaboração estreita entre os diversos grupos. Se a
modernidade tentava desagregar, as celebrações das classes populares
agregavam, seja por meio de rituais festivos e religiosos, seja em suas atividades
lúdicas (MOURA, 1983).
Quando a repressão apertava no asfalto, as celebrações corriam para esses
espaços. Daí surge a ideia de que o samba vem do morro. Diz João da Baiana:

"E esse negócio de dizer que o samba nasceu no morro também não é
realidade. O samba nasceu da cidade. Nós fugíamos da polícia e íamos
para os morros fazer samba. Não havia essas favelas todas. Existiam a
favela dos meus amores e o morro de São Carlos, mais conhecido por
Chácara do Céu. Nós sambávamos nesses dois morros"6.

Como o batuque, as atividades de candomblé e outros rituais necessitavam


de autorização policial. Em vista disso, é no morro, região menos suscetível à
repressão, que o samba vai se aprimorar.
Parece claro que com a repressão às manifestações das classes populares
no centro urbano, a tendência é que elas se concentrem nas regiões periféricas, em
especial no morro, para onde se dirigem atenções repressivas menos ativas. Ainda

_______________________________________________
4
A ocupação de morros já podia ser notada na cidade nas últimas décadas do século XIX. Em
especial gente que participou da campanha de Canudos ocupou o antigo morro da Providência,
depois morro da Favella e o Morro de Santo Antônio. No morro da Favella percebeu-se também a
formação de habitações exploradas pelo dono do cortiço Cabeça de Porco. Outras ocupações, que
depois receberiam a alcunha de favela, já podiam ser notadas na cidade, antes mesmo das
citadas, era o caso da Quinta do Caju, Mangueira e Serra Morena. Sobre as favelas no Rio de
Janeiro ver Valladares (2000).
5
Interessante ressaltar que nesta região havia a presença de vários imigrantes europeus, operários
da nascente indústria e pequenos comerciantes, estes estabeleceram interessante relação, tanto
de aproximação quanto de conflito, para com o povo negro que ali estava e chegava. Para mais
ver Moura (1995).
6
João da Baiana, depoimento ao MIS. Série Depoimentos.
35

assim, é importante ressaltar que a repressão –mesmo essa, menos ativa – tem
papel relevante para o fortalecimento de algumas áreas de concentração de
atividade cultural e religiosa. O próprio Cartola mostra esse quadro já na chegada
dos anos de 1920:

"Eu – raramente– descia o morro pra pintar no Estácio. Lá encontrava gente


legal como o Ismael Silva, o Brancura, o Baiaco, tudo gente fina. Eles foram
os primeiros a elogiar meu samba primeiro, um negócio assim, meio pé-
quebrado, meio sem graça, mas muito prestigiado: o Chega de Demanda.
Os caras me animaram tanto que aí eu saí fazendo uma porção... Bem que
o pessoal do Estácio me chamava. Mas era rabo certo. A polícia fazia o
nome, prendendo os frequentadores das rodas de samba do asfalto. Subir
lá em cima? De cima pra baixo? Nunca"7.

É assim que Sodré (1998) empresta ao morro a ideia mítica de espaço da


liberdade. Um espaço capaz de driblar os valores da cultura dominante, o que o
levaria a construir a própria utopia do samba. Uma terra de transitividade, onde a
inscrição no moderno toma a cara das classes populares, onde, inclusive, são
consultadas algumas brechas e oportunidades dadas pela cidade oficial. Assim, ser
do morro vai se firmando como uma identidade especial na cidade. O lugar da
barbárie vai revelando dentro de si uma terra desconhecida e por vezes longínqua
para quem lá não habitava. “Acompanhei-os e dei num outro mundo. A iluminação
desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade”, como dirá João do
Rio, ser do morro ganha o estatuto de uma identidade.
Em outras palavras, nos morros e nos subúrbios cariocas, as classes
populares encontraram um importante foco de produção de identidade que foi
forjando a vitalidade de sua cultura, sem estar necessariamente dependente da
produção cultural “permitida” pela elite, nem da nascente indústria cultural e nem do
círculo estabelecido de músicos e literatos de classe média. Porém, juntamente, se
é verdade que não é dependente, seria um equívoco afirmar que essa produção
estará desconectada do restante da cidade. Muito menos seria plausível supor que
está descolada da ideia de profissionalização do artista em uma sociedade que,

_______________________________________________
7
Cartola, depoimento citado in: Silva, M. T. B. da & Oliveira Filho, A. L. - Cartola. Os tempos idos.3ª
ed. RJ: Funarte, 1997. p.47.
36

conforme explica Vianna (1995), da boca para fora, parecia condenar a cultura
popular, mas a aplaudia em espaços regulados de apresentação artística.

1.3 O negro e o mundo do trabalho na Primeira República

Outro ponto forte para compreender a formatação de uma cidade extraoficial


é a dificuldade de inscrição, em especial dos negros, no moderno mundo do
trabalho. Trabalhos precários e larga perseguição foram edificando sua presença
marginal na história social da cidade. Fossem negros ou nordestinos expulsos pela
seca, aos pobres eram destinadas as profissões irregulares e insalubres,
agravando, especialmente nos primeiros, sua rejeição à ética da venda do trabalho
e à acumulação privada. Ou seja, a expressão moderna e ocidental do trabalho não
se fazia presente de forma "esclarecida" na concepção de mundo do ex-escravo.
Nas palavras de Florestan Fernandes:

“A repulsão representava uma exigência e, sobretudo, um desafio ao negro


para que se despojasse da natureza humana que adquirira anteriormente e
adotasse os atributos psicossociais e morais do 'chefe de família',
'trabalhador assalariado', 'empresário capitalista', 'do cidadão', etc. E ainda,
mesmo que este se afinasse com os novos tempos, estaria em
desvantagem grave, pois não só se pressupunha que o trabalho livre
expulsaria o trabalho escravo, mas, ainda, que no regime da livre iniciativa,
o branco iria, fatalmente, substituir o negro como agente de trabalho."
(FERNANDES, 1965: 66).

Em Florestan, a análise sociológica aponta como principal dificuldade para a


incorporação do negro à sociedade de classes, a não disseminação de uma ética
moderna do trabalho, bem como a pouca vontade, por parte das elites, de realizar
uma política de inclusão8. O trabalhador negro não se perceberia como classe no
moderno sistema. Segundo Pulici:

“Para os brancos proprietários, ao contrário dos imigrantes, os negros não

_______________________________________________
8
Para um debate mais complexo sobre o negro na obra de Florestan ver Oliveira (1981) e Coutinho
(2011).
37

tinham ambição de prosperarem, nem disciplina ou responsabilidade para o


trabalho. Evidentemente que a esses brancos não ocorria pensar que
naquele momento, depois de toda uma vida controlada à força e
desenraizada de suas origens, o negro, como diz, só desejava uma
felicidade, um direito: o de não fazer nada. [...] Outras distorções de
natureza semelhante revelam-se na pretensiosa dedução, por parte dos
senhores brancos, de que o negro sozinho "não tinha cabeça pra nada",
sem indagarem, como era de costume, o porquê desse "não ter cabeça". O
que lhes faltava não era, propriamente, a continuidade da tutela dos ex-
senhores, mas a experiência e o domínio das técnicas sociais e culturais do
ambiente, de cujo uso se viram sempre privados, como escravos, e a cujo
acesso se viam excluídos, apesar da liberdade, no meio urbano" (Pulici:
2001).

O povo negro, neste sentido, rejeitava um mundo em que, mesmo que


cedesse aos novos mecanismos de regulação produtiva, esbarraria no preconceito
e na desigualdade de oportunidades frente ao empregado branco. Se o processo de
incorporação se deu, foi mais por força dos excluídos do que por vontade das elites,
patrões e burocratas. E como veremos adiante, sua forte produção cultural, aliada à
sua capacidade de negociar com o conflito e de interagir com outros segmentos da
sociedade, serão elementos muito importantes nesta empreitada.
Muitos ofícios lembravam as humilhações da escravidão. Mesmo assim eles
se fizeram presentes, em sua maioria no mundo informal, mas também em fábricas,
na estiva9 e uns poucos no funcionalismo público. Boa parcela, porém, foi procurar
abrigo em formas de vida menos reguladas, eram meretrizes, malandros, larápios,
bicudos etc. Roberto Moura nos ajuda a compreender estes tempos:

“A abolição revoluciona inteiramente a vida do negro. Se sua posição como


escravo estava longe de se desejável, em nenhum momento o novo Estado
republicano se preocupa, em nível de uma política governamental global,
com as transformações que evidentemente a libertação oficial provocava na
vida do grande número de negros trazidos ou nascidos aqui, que passariam
a se defrontar com as peculiaridades do mercado de trabalho livre que se
reformulava, privilegiando uma concepção moderna do operário ocidental.
[...] Muitos ficavam à margem: prostitutas, cafetões, malandros” (MOURA,
1985: 65).

Outros iriam sobreviver como artistas, em salões, teatros de revista, circos e


palcos, utilizando seu talento aprendido e compartilhado durante tempos. Profissões

_______________________________________________
9
Na região do cais do Porto, não só foram empregados muitos negros, como de lá saíram importantes
associações de trabalhadores e movimentos culturais. Essa região, do Rio de Janeiro, também foi
forte foco de atração de gente de todo o país.
38

se redefiniriam, formas de ganhar a vida se improvisavam ou definitivamente se


inventavam, ficando a maioria dos negros submetidos à condição de
“subempregados urbanos, ou assumindo as órbitas do lumpesinato carioca” (Idem:
66).
As ruas também viraram um local de labor do negro. Lá se faziam pequenos
trabalhos desvinculados da lógica do moderno capitalismo: eram ofícios artesanais -
pedreiros, alfaiates, barbeiros, ferreiros, lustradores, pintores, lavadeiras,
arrumadeiras – ou serviçais domésticos. Ensinamentos e técnicas iam sendo
passados de pai para filho, mãe para filha, amigo para amigo, muitas aprendidas na
época do trabalho escravo, quando o negro, por vezes, era um funcionário
multitarefa nas fazendas. Uma senhora negra, Dona Carmem, nos narra a
“formação profissional” de seu marido, naquela época:

“[..] ele aprendeu com os amigos do pai dele, que era meu sogro, que
levava ele para a casa deles para ele aprender. Ele comprava martelo,
paus, pregos, levava pra ele aprender a fazer aquelas casinhas de bonecas,
e dali que eles conseguiam. Quando abriam oficinas ele aí pedia uma vaga,
gostavam dele e aí ele ia aprender [...] Trabalhavam mais como biscateiros,
pedreiros, meu marido nunca teve patrão. Em trabalho de obra depois que
ele aprendeu, tratava obra por conta própria e botava duas ou três pessoas
pra trabalhar como operário. [...] Meu marido não quis ficar na Bahia, aqui
no Rio se ganhava mais dinheiro, ele abriu uma oficina e ficou trabalhando
aqui, tomava móveis para fazer, e consertava camas, aumentava diminuía,
empalhava cadeiras. Um lutador!” (Citado em MOURA, 1985:69)

Nesse tempo de aprendizagem, quem tinha jeito para alguma coisa ia


ensinando ao outro. Com as mulheres era o mesmo, o que, a propósito, demonstra
a relevância da mulher na família negra. As “tias”, vestidas de baianas em suas
barracas de doces, salgados e outros tipos de guloseimas levavam para casa boa
parte da renda familiar, como, aliás, foi o caso da famosa Tia Ciata, casada com um
pequeno funcionário público, porém muito bem sucedida com seu comércio de
doces e aluguel de roupas.
Mas o Rio de Janeiro dos boulevards não poderia tolerar um centro repleto
de barracas, reprodução de uma verdadeira feira africana. Fora do meio informal, a
estiva foi o principal modo de ocupação do trabalhador negro. Assim, montou-se um
forte sindicato, conhecido como Resistência, que alguns anos depois daria origem
ao rancho Recreio das Flores. Na estiva, negros e portugueses eram rivais e o clima
de disputas por vezes era levado às festas como a da Penha.
39

Com dificuldades de trabalhar no mundo formal, os negros protegiam-se


entre os seus, mantendo suas tradições e histórias como disciplinas de uma escola
da vida. Esse foi o mecanismo que reforçaria, em muito, os laços de identidade que,
bem ou mal, demarcariam a inscrição do negro em um mundo do trabalho peculiar,
vincado pela informalidade ou pela profissionalização artística. Foram assim
fazendo-se uma das várias trilhas que levariam as culturas das classes populares
para seu primeiro contato com uma indústria cultural nascente. A seguir, utilizo
algumas fotografias da virada do século XX para ajudar a montar o desenho das
configurações urbanas daquele tempo10. A Figura 1 e a Figura 2 mostram
ambulantes negros espalhados pelo centro urbano.

Figura 1 – Vendedor de balaios

_______________________________________________
10
Todas as imagens disponíveis em: <http://www.skyscrapercity.com>. Acesso em: 13 jan.2010. Ver
galeria "Rio de Janeiro Antigo / Séculos XIX e XX".
40

Figura 2 – Quitandeiras

Os ambulantes negros que para Olavo Bilac configuravam o "monstruoso


anacronismo". O choque entre realidade e a cidade que queria ser fazer europeia. A
Figura 3 mostra o Mercado Público no Centro do Rio.

Figura 3 – Mercado Público no Centro do Rio


41

Na Figura 4 vê-se a imagem insalubre de um vendedor de carnes. A Figura 5


mostra um cortiço no Rio de Janeiro. Superlotação e insalubridade eram elementos
constantes neste lugar

Figura 4 – Vendedor de carnes

Figura 5 – Cortiço
42

Condenados na reforma de Pereira Passos, ilustrado na Figura 6, a


população dos cortiços tende à ocupação de morros e periferias. Casebres foram
destruídos para a remodelação do centro urbano. Na Figura 7, as obras de
remodelamento do Centro Urbano do Rio de Janeiro.

Figura 6 – O “bota-abaixo” de Pereira Passos

Figura 7 – Obras de remodelamento do centro urbano


43

Figura 8 – Vista da Avenida Central

A Figura 8 mostra a Avenida Central erguida, um marco simbólico da


concepção de progresso e civilização. Na Figura 9, a Avenida Rio Branco.

Figura 9–O estilo da Avenida Rio Branco


44

Figura 10 – O Passeio Público

Na Figura 10, o Passeio Público e, na Figura 11, o clima de elegância e de


estilo europeu nas revistas.

Figura 11 – Fotos nas revistas de época

Fonte: O Careta 6 de abril de 1912.


45

Figura 12 – A Praça Onze

Na Figura 12, a Praça Onze, um dos principais pontos de encontro dos


sambistas da virada do século XX.
Na Figura 13, o Morro da Conceição e, na Figura 14, o Morro da Favella.

Figura 13 – Morro da Conceição


46

Figura 14 – Morro da Favella

Na Figura 15, parte do pátio da estação de Madureira em 1909. A expansão


dos subúrbios tem ligação direta com o desenvolvimento do sistema ferroviário de
uso doméstico.

Figura 15 – Pátio da Estação de Madureira em 1909


47

1.4 Culturas Populares na cidade em mutação:entre a repressão e a glória

Na primeira parte deste capitulo analisei a produção simbólica e espacial, por


parte das elites, de um Rio de Janeiro em busca de civilizar-se. Argumentei que
esse projeto não toma formato uniforme. Outros espaços em uma cidade bastante
viva continuaram se manifestando, mesmo que deslocados e excluídos do projeto
modernizador.
Se, no mundo do trabalho, as classes populares, e em especial a figura do
negro, estavam em relativa desvantagem, seja pelo preconceito ou mesmo pela
“dificuldade” de incorporação no sistema produtivo, é na produção artística que
encontraram o canal mais rico de mediação com a cidade. E em especial a música
oferecia-se como forte possibilidade de inserção das classes populares na
modernidade carioca. Através de uma ainda incipiente indústria cultural e trocas
constantes com outros setores da sociedade, elas ampliam seu espaço social e
político no limiar da Primeira República.
Nas brechas da “cultura oficial” irá se formatar um espaço de atuação no qual
irá paulatinamente se profissionalizar o artista negro. É neste momento que
identificamos aquilo que Sodré chama de passagem do ritual em si para uma
11
produção cultural associada à lógica da mercantilização da arte, isto é, o samba
deixa de falar para si e corre a cidade falando de si (SODRÉ, 1987). Enfrentando
censuras, repressões policiais, suas ações irão combinar, ao mesmo tempo, acato
com desacato, isto é, negociação e conflito, onde uma aparente adesão a ordem
pode trazer, nas entrelinhas, o desrespeito à mesma ordem. Não se trata de
compreender a produção cultural das classes populares neste período como
determinantemente subordinada à produção cultural das elites. O que acontece, e aí
reside a complexidade da questão, é que existe penetração de uma na outra, seja
por elementos culturais – onde a cultura demonstra seu caráter híbrido – ou mesmo
por estratégias de mobilidade social.

_______________________________________________
11
Neste estudo não pretendemos entrar nas polêmicas acerca do termo “samba”. Quem inventou,
quando virou, no Estácio ou com a gravação de Pelo Telefone? Vale a leitura de Carlos
Sandroni:Feitiço Decente.
48

Com dificuldades de incorporação no mercado de trabalho formal, o negro


recoloca seus esforços na informalidade e em profissões consideradas ultrajantes
como a prostituição, a malandragem do jogo e do biscate. Mas não se pode deixar
de entre as formas alternativas de ocupação a atividade artística profissional. Esta
última não só rendia algum dinheiro ao artista, mas também permitia que este
abrisse brechas em uma sociedade feita de obstáculos rígidos e preconceituosos.
Gente negra e pobre se viu relativamente incluída quando se fez pianista, ator,
compositor, e etc., mesmo que essa inscrição se desse nos marcos do sincretismo e
da transformação relativa das tradições “ditas” originais. Os estudos mostram que
as práticas de miscigenação cultural antecedem em muito os anos republicanos, já
fazendo parte dos próprios tempos coloniais. Uma história antiga, que encontra
registros bastante claros desde a invenção e popularização da modinha e do lundu
reside na descrição da sua viagem à Bahia, por Thomas Lindley. Em seu livro
(1802), ele narra como eram as festas em Salvador naquele tempo:

“[...] em algumas casas de gente mais fina ocorriam reuniões elegantes,


concertos familiares, bailes e jogos de cartas. Durante os banquetes e
depois da mesa bebia-se vinho de modo fora do comum, e nas festas
maiores apareciam guitarras e violinos, começando a cantoria. Mas pouco
durava a música dos brancos, deixando lugar à sedutora dança dos negros,
misto de coreografia africana e fandangos espanhóis e portugueses” (Citado
em:VIANNA, 1995: 37).

Mas, de certo, percebo que a virada do século XIX representa um


recrudescimento do preconceito para com nossas manifestações populares, na
esteirada discriminação com o passado colonial, inclusive com as relações que se
estabeleciam entre a casa grande e a senzala. O início da República, até os anos
de 1920, representou uma importante mudança de rumo no que respeita a interação
entre os estratos sociais. Como venho dizendo, há, nesse momento, um
endurecimento da elite para com seu passado e suas heranças, e para com as
manifestações populares tidas como desajeitadas à nova ordem.
Na tentativa de compreender este processo nada simples e que envolve o
que quero entender como resposta dos excluídos do processo modernizador, vale
aqui a excelente afirmação de Ginzburg no prefácio do seu Queijos e Vermes:

“Os populares não aceitam tal discriminação, investindo toda a sua energia
em manifestações culturais, garantindo a expressão de suas necessidades,
anseios e aspirações, nisto que a cultura configura-se como o principal
49

veículo de coesão e de construção de uma identidade própria,


especialmente num contexto que lhes exclui do reconhecimento de direitos.
Inclusive, desde muito cedo, desenvolveram-se as trocas culturais,
interpenetrando-se suas manifestações com aquelas dos segmentos mais
elevados” (23: 1997).

Dessa forma, por mais que as elites imponham seu ideário de segregação
espacial e cultural para com parcela da população, associando às culturas
populares a ideia de atraso, as tradições culturais do povo, em especial as de
origem africana, já eram parte constituinte da expressão do nacional. É somente no
século XIX que nossas tradições barrocas, quando se foi capaz de mediar elos
bastante fortes entre o público e o privado, que essa cultura de maior interação
perderá força e ficará mais restrita ao universo da cultura popular. Quando mais
alocada se manifestará com muita força em seus espaços então segregados.
Somente quando as teorias darwinistas sociais perdem força, na metade dos anos
20, que essa tendência dominante começa a refluir. Ora pela mediação de gente
externa, ora por fortalecimento das estratégias de inclusão impostas pelos
populares. Tal como afirma Ginzburg (1997) a coesão do segmento popular vai se
reforçando, construindo e ampliando seus elementos de solidariedade entre os
seus, porém, pelo menos no Rio de Janeiro urbano, quase sempre procurando
caminhos em torno da inclusão e mediação com outros segmentos sociais.
Para Vianna (1995) um destes elementos seria o grande “mistério do samba”.
Segundo o autor, que realiza um estudo pioneiro sobre a ascensão cultural do ritmo,
o fato do samba ter se consagrado como símbolo da cultura nacional está
associado a um longo processo de interação entreas chamadas cultura popular e
erudita que os anos da República Velha não conseguiram romper por completo.
Como já fora verificado, as trocas aconteciam com o apoio de importantes
mediadores culturais. Ou seja, indivíduos que agem como mediadores, junto a
existência de espaços sociais onde essas mediações são implementadas. Isso tudo,
dentro de uma cultura heterogênea, onde podemos perceber, segundo Gilberto
Velho (1981), “a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições
cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas etc.” (1981: 16). Interesses
que aparecem, por vezes como potencialmente divergentes, em sociedades
complexas estipulam cenários de negociação e interação com a realidade (VIANNA:
1995).
50

Entretanto, a meu ver o estudo de Vianna, apesar de sua inegável qualidade


e contribuição, não acolhe por completo o processo de reconhecimento social do
negro no Rio de Janeiro e suas próprias movimentações de negociação com a
cidade. Percebemos que para o autor, o grande agente que levou o samba ao
status nacional, são os chamados “mediadores culturais”. Alerto, que esse universo
de conflitos e negociações entre segmentos sociais de baixo, médios e de cima
toma contornos mais complexos. O “mistério do samba” não está só na acepção da
cultura popular por parcela da elite, o grande encontro narrado em seu livro, que
juntou em uma mesa pessoas como Pixinguinha, Gilberto Freyre e Villa-Lobos é a
simbologia privilegiada da obra que coloca esses “mediadores” no plano
determinante para o triunfar do samba. A pergunta que parece nos caber aqui é por
que um ritmo produzido pela parcela mais “discriminada” da população toma o
contorno de símbolo nacional (mesmo com tantos outros “regionalismos” entrando
no gosto de muita gente), suspeito aqui que a força das manifestações populares,
em especial as escolas de samba do Rio de Janeiro são elemento fundamental para
a compreensão deste assunto, pois a meu ver não representam somente a
aceitação e produção do ritmo samba na moderna indústria cultural, mas ajudam a
intensificar o processo de reconhecimento social do negro no Rio de Janeiro num
complexo jogo de integração social.
Porém, é muito importante afirmar que não podemos compreender a
produção cultural do povo como um mero conjunto de tradições, ou mesmo, como
idealismo folclórico onde se pensa ser possível explicar os produtos do povo como
expressão autônoma do seu temperamento. Fechamos aqui com Canclini (1983) e
compreendemos que:

“O enfoque mais fecundo é aquele que entende a cultura como um


instrumento voltado para a compreensão, reprodução e transformação do
sistema social, através do qual é elaborada e construída a hegemonia de
cada classe. De acordo com esta perspectiva, trataremos de ver as culturas
das classes populares como resultado de uma apropriação desigual do
capital cultural, a elaboração específica das suas condições de vida e a
interação conflituosa com os setores hegemônicos” (1983: 12 grifos meus)

Interação e conflito, onde diante da situação de desigualdade os negros na


cidade do Rio de Janeiro buscaram suas formas de se adaptarem, resistirem ou
encontrarem um lugar para sobreviver. Sua ação política e cultural pode ser
considerada elemento forte no retrocesso da mentalidade elitista da primeira
51

república. Nessa hora, a cultura popular não aparece como uma mera oposição à
cultura dominante, mas como resultado de um processo de interação de parcela da
sociedade, que se identifica no espaço social, ampliando seu capital cultural,
criando hábitos e práticas próprias. Em momento de maior ofensiva da mentalidade
dominante, o efeito é um fortalecimento destes laços no setor que se faz mais
orgânico. Se a opressão não chega ao aniquilamento físico o que acontece é isto
mesmo, a cultura opera como forte elemento de coesão e identidade.
Ainda mais em um cenário onde as ideias dominantes não conseguem se
configurar organicamente como as ideias da classe dominante. Herculano Lopes
(2000) nos demonstra em seus estudos sobre o maxixe e o teatro de revista na
cidade do Rio de Janeiro que a debilidade do projeto afrancesado das elites seria
aniquilada por “um movimento subterrâneo e potente de abertura para valores
miscigenados de cultura.” (2000: 28). Somente este projeto poderia triunfar como
elemento de identidade possível de ser aceito por amplos setores da população,
inclusive o popular. O projeto da Paris Tropical não poderia triunfar sem hegemonia.
Tal como Souza Reis (2003), Lopes concorda com a ideia de que a partir dos anos
30 esses elementos tomariam maior força na definição da “nossa cara” e seriam
relativamente absorvidos e cooptados pelas classes dominantes, onde dominação
carismática, unidade nacional, consenso e hegemonia apareceriam de forma mais
coordenada e orgânica que nos primeiros anos republicanos, como uma barreira
mediando o conflito entre exclusão e incorporação ou cooptação conservadora do
povo por parte da elite política. Isto é, fez-se com que o movimento das classes
populares não acontecesse de forma tão descontrolada e desamparada como na
República Velha.
Mas, de qualquer maneira, não podemos desprezar a eficácia com que a
cultura popular consegue rejeitar a discriminação elitista, porque parcela das elites e
setores médios se abrem relativamente para uma cultura híbrida. A ideia de um
Brasil civilizado com a cara do projeto da Primeira República não poderia ocorrer
sem aniquilamento em massa não só do povo pobre, mas também de parcela da
elite e dos setores médios que não se faziam inseridos em uma cidade que se
queria “nova”, desconectada do passado. A produção cultural dos diversos
segmentos sociais está em relação, havendo trocas entre elas, afirmando que “o
outro não é nunca absolutamente o outro e que há sempre algo de nós nos outros”
(CUCHE, 1999:243). Ainda mais quando isso se faz “tradição” na história brasileira.
52

A tentativa aqui é de negar um passado, ou mesmo uma realidade, de interações e


trocas culturais entre povo e elite.
Esse elemento é uma das chaves na obra de Vianna (1995). Recuperando
Gilberto Freyre, o autor traz a ideia de que as mediações entre povo e elite
aconteciam para muito além dos tempos republicanos. Em sua linha de raciocínio,
Freyre esboça que essas trocas seriam possíveis graças ao fato de que, mesmo
com o conflito colonial, predominam em nossa história elementos de harmonia e
plasticidade. Assim, mesmo que esta relação não se constituísse de forma sempre
pacífica, decretos não conseguiram acabar com ela. Porém, a tensão social,
reforçada, em especial, com a abolição da escravidão, conecta-se com o
crescimento das teorias raciais no Brasil. Como já foi dito, o discurso de civilização
está associado a ideia de branqueamento da população. O fato do samba virar
elemento nacional não pode ser só atribuído à ideia de que parcela da elite e dos
segmentos médios não se via incorporada em um processo cultural que não
tomasse formato miscigenado. Tantos outros ritmos chegavam a estes setores e por
que o samba? Meu argumento é que isso se deu porque foi no Rio de Janeiro que
as classes populares conseguiram circular de modo a permitir que sua música
penetrasse com mais eficiência nas brechas colocadas no âmbito cultural pela
modernidade, produzindo sua inclusão simbólica e viabilizando alguma mobilidade
social. Assim, defendo que é o povo afrodescendente que vai manobrando os
empecilhos ao seu acesso à esfera pública, colocados pela República Velha. A
presença do “elemento externo” nas festas com a da Penha é temida pela ação
policial repressora, mas esses mesmos “elementos externos” são recebidos na casa
da Tia Ciata, na Praça Onze. Sabe-se, por exemplo, que o marido de Ciata
consegue um emprego no funcionalismo público graças a uma cura que esta teria
empreendido, utilizando-se de suas técnicas religiosas, em influente político
daqueles tempos, ninguém menos que Venceslau Brás, presidente do Brasil no
período de 1914-18.
Não cabe aqui achar que as classes populares possuem intrinsecamente em
sua formação uma determinada consciência em si revolucionária que teria sido
cooptada e reprimida pelas elites. Sua identidade se faz na vida e nos sentidos que
ela toma, se faz mais orgânica quando ganha coesão de grupo. As relações de
poder que estão em jogo nas incursões da cultura popular não podem mais ser
compreendidas somente como reflexo de uma ação dominadora exercida
53

verticalmente sobre os dominados. Ela passou a ser considerada como uma prática
descentrada e multi-determinada nas relações políticas, “cujos conflitos e
assimetrias são moderados pelos compromissos entre os atores colocados em
posições desiguais” (CANCLINI, 2003: 201). Isto é, não nos parece plausível pensar
em uma manipulação onipotente das relações sócio culturais. Romantismo e
idealismo normalmente utilizados com fins políticos deturparam um entendimento
mais complexo da cultura.
Talvez aqui, podemos então, compreender melhor a própria crítica que
colocamos em Vianna (1995). Com tantas manifestações culturais do povo rodando
o país, por que o samba triunfa como elemento nacional? Concordamos com o
autor na ideia de que as trocas e o “interesse pelas coisas do povo” são elementos
importantes e antigos, mas somente um estudo da força cultural da Capital no
projeto nacional, da particularidade das relações estabelecidas entre sua população,
sejam as classes altas, médias e baixas, pode dar esta resposta. Algumas pistas já
foram dadas aqui, em especial: 1 – A violenta segregação urbana que demarca
comunidades com identidade bastante fortes, em especial nas favelas e em alguns
bairros suburbanos – fortalecendo os laços de sociabilidade do grupo oprimido –
mas de nenhuma forma estes grupos se encontram desintegrados com o restante
da cidade; 2 – A cultura do mundo do trabalho não consegue criar uma produção de
ideologia tal como no mundo da moderna indústria. Isto é, a incorporação do
mestiço nas “mentalidades” do moderno capitalismo ocidental se dará de forma
peculiar; 3 – A aceitação e o desenvolvimento do negro na moderna indústria
cultural da cidade; 4 – A flexibilidade cultural que deixa marcas fortes no povo de
origem negra do Rio de Janeiro. Que levou por diversas vezes o “sambista” popular
a procurar ações esclarecidas de relativa adequação a ordem; 5 – O interesse pelas
“coisas do povo” (mesmo que mesclado entre o cosmopolitismo e as manifestações
“nacionais) realçado no período que circunda 1920-30; 6 – Fortes espaços de
intercâmbio cultural e transcultural, como as festas, a região da Pequena África e
bairros como a Lapa, tal como acepção dos artistas brasileiros em países europeus.
Ainda que precisássemos de um estudo mais amplo para a comprovação de
tais hipóteses acredito que elas podem ampliar a compreensão, neste capítulo, do
assim chamado mistério do samba. Passamos pela reorganização espacial da
cidade, pela questão da inserção no mundo do trabalho e voltamos a nos concentrar
54

na produção cultural das classes populares, atribuindo o acento devido à dimensão


da incorporação do negro na nascente indústria cultural.
Souza Reis (2003) chama a atenção para a participação da produção cultural
no restante da cidade. Já vimos que se a cidade vai se conformando de maneira
mais receptiva à expressão cultural do povo, ela o faz de forma ainda bastante
preconceituosa e cautelosa, como se povo na vitrine fosse diferente de povo agindo
livremente. Várias figuras ilustres passavam por lugares como a casa de Ciata, tal
como vários sambistas eram convidados a apresentações nas casas de gente
importante da cidade. Mas a aparição da cultura popular nas ruas era associada à
desordem. Dessa forma, mesmo quando o interesse pelas coisas nacionais toma
eco, isso não acontece sem restrição. Se a cultura popular agrada paulatinamente,
esse agrado ainda é insuficiente para permitir que as coisas sejam feitas do jeito de
quem manda. Sergio Cabral (1996) cita a passagem em que João da Baiana narra a
apreensão de seu pandeiro na festa da Penha. Vejamos:

“A polícia perseguia a gente. Eu ia tocar pandeiro na festa da Penha e a


polícia me tomava o instrumento [...] Houve uma festa no Morro da Graça,
no palacete do Pinheiro Machado e eu não fui. Pinheiro Machado perguntou
então pelo 'rapaz do pandeiro'. Ele se dava com meus avós, que eram da
maçonaria. Irineu Machado, Pinheiro Machado, marechal Hermes, coronel
Costa, todos viviam nas casas das baianas. Pinheiro Machado achou um
absurdo e mandou um recado para que eu fosse falar com ele no Senado. E
eu fui [...] Ele então perguntou por que eu não fora a casa dele e respondi
que não tinha aparecido porque a polícia havia apreendido meu pandeiro na
festa da Penha. Depois, quis saber se eu tinha brigado e onde se poderia
mandar fazer outro pandeiro. Esclareci que só tinha a casa do seu Oscar, o
Cavaquinho de Ouro, na Rua da Carioca. Pinheiro pegou um pedaço de
papel e escreveu uma ordem para seu Oscar fazer um pandeiro com a
seguinte dedicatória: 'A minha admiração, João da Baiana. Pinheiro
Machado” (1996: 27-8).

Figuras ilustres, como se observa, envolvem-se com gente do povo, na casa


das Tias ou em eventos como no seu palacete. E é neste primeiro local, a casa das
Tias, que as “cidades” se encontravam. Lá eram trocados favores e feitas alianças.
Com seu talento, artistas negros frequentavam palacetes da elite, tal como no já
citado caso de Venceslau Brás, que foi se tratar com rituais religiosos afro-
brasileiros na casa de Ciata e deu-lhe, em troca, um emprego público ao seu
marido. Esses lugares passaram a constituir espaços de trocas, onde era permitido
manifestar-se de forma mais autônoma devido, em especial, as relações
clientelistas estabelecidas entre membros do Estado e frequentadores dessas
55

casas. No interior dos morros e subúrbios mais pobres, onde a repressão era mais
branda, a presença de pessoas externas ao mundo das classes populares dava um
formato menos profissional à produção cultural. Contudo, podemos destacar, no
episódio da tomada do pandeiro de João da Baiana, a construção de laços entre
estes artistas populares e membros da elite, laços esses que se marcam e se
acentuam nas festas. Especificamente neste caso, o avô de João era da maçonaria,
o que fez com que este tivesse boa relação com gente como Irineu e Pinheiro
Machado, permitindo a abertura de caminho para a legitimidade da
profissionalização. Unindo-se a capacidade de agentes mediadores com o interesse
das classes populares, outra dimensão desta atividade ganha espaço, como mostra
Muniz Sodré:

“Nesse momento (1920), através do disco e do rádio, o samba fez seu


ingresso no sistema de produção capitalista. O poder econômico e político
emergente de um modelo escravagista multissecular, que reprimia
culturalmente a população negra, começava a criar papéis sociais (como o
músico profissional). [...]
A comercialização do samba e a profissionalização do músico negro se
faziam, evidentemente, no interior de um modo de produção, cujos
imperativos ideológicos fazem do indivíduo um objeto privilegiado,
procurando abolir seus laços com o campo social como um todo integrado.
Compositor se define como aquele que organiza sons segundo um projeto
de produção individualizado. Em princípio, o músico negro teria de
individualizar-se, abrir mão de seus fundamentos coletivistas (ou
comunalistas), para poder ser captado como força de trabalho musical”
(1997: 39-40).

Essa mudança para um processo de produção individualizada tem na


polêmica acerca da criação do samba Pelo Telefone um exemplo clássico. O samba
foi registrado por Ernesto dos Prazeres (Donga), mas, segundo dizem, é mais uma
das criações coletivas concebidas na casa de Tia Ciata. Essa “jogada” de Donga
teria deixado Hilário Jovino, Ciata e Sinhô, que haviam participado da criação do
samba, bastante chateados, a ponto de produzirem uma segunda versão da letra:

“Pelo telefone / a minha boa gente/ manda avisar / Que o meu bom arranjo /
Era oferecido / Pra se cantar.
Ai, ai, ai / Leve a mão na consciência, / Meu bem, / Ai, ai, ai, / Mas porque
tanta presença / Meu bem?
Ô que caradura / De dizer nas rodas / Que esse arranjo é teu! / É do bom
Hilário / E da velha Ciata / Que o Sinhô escreveu.
Tomara que tu apanhes / Para não tornar a fazer isso, / Escrever o que é
dos outros / Sem olhar o compromisso”.
56

Sandroni (2001) chama a atenção para um feitiço que virou contra o feiticeiro:
Sinhô, conhecido pianista mulato da época, era bastante famoso pela frase “samba
é como passarinho, é de quem pegar”. Na cidade, em especial nas festas, vários
sambas eram cantados em seu refrão, e suas autorias ficavam anônimas. Quando
um samba era cantado na Penha era uma vitória daqueles que dele participaram. E
o samba ia por aí mudando o tempo todo; o negócio era que o povo cantasse, aí
estava a glória. Com a ampliação da possibilidade de ter seu samba gravado e tocar
no rádio, diversos compositores passaram a vender sambas para gente famosa
(como Francisco Alves) gravar e daí surge a necessidade do registro. É nesse
momento que Sinhô ganha a fama de ter “pego” alguns sambas no ar, que nem dele
por vezes eram. Sandroni nos ajuda a compreender o momento, ao afirmar que:

“O que se expressa aí é o fato de que se cantavam na cidade inúmeros


refrãos anônimos, sem que ninguém se preocupasse em descobrir seus
autores. A comparação contida na frase atribuída a Sinhô (“samba é como
passarinho, é de quem pegar”) é a mesma que está implícita numa
expressão como ‘colheita’ de melodias folclóricas, tão empregadas por
autores como Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga: em ambos os casos
vê-se a canção popular como um objeto natural, pássaro em uma, vegetal
em outra” (2001: 146).

Segundo o autor, a função-autor não estava ainda plenamente estabelecida e


parece que este problema, o de pegar samba que não era seu ou só seu ainda não
estava bem resolvido. Mas quando algum compositor anunciava este como seu o
problema poderia aparecer, ainda mais quando se começou a ganhar algum
dinheiro com isso. A polêmica de Heitor dos Prazeres com Sinhô foi clássica. Cabral
(1996) explica que o primeiro acusou o pianista de ter levado em sua conta dois
conhecidos sambas, “Ora vejam só” e “Gosto que me enrosco” ambos,
respectivamente de 1927 e 1928. Sinhô disse desconhecer que os sambas eram de
Heitor assim ficou com o refrão, que era o que circulava solto, não registrado, pela
cidade. Heitor também seria acusado de “pegar” outro refrão e colocar em seu
samba, o caso foi com “Vai mesmo” que dizem ser samba de Antônio Rufino. Mas,
de certo é que, nos anos 20, com a moda da compra e venda de sambas essas
disputas apimentam um pouco mais. Outro “malandro” conhecido por “pegar” samba
no ar era Baiaco, que além de sambista era conhecido por “vender” proteção na
região do mangue: “Baiaco atraia o verdadeiro autor para um bar, pedia que ele
cantasse enquanto Benedito Lacerda, escondido atrás de um biombo, copiava a
57

melodia” (CABRAL, 1996: 54). Mas, de forma consciente, os sambas de


compositores como Ismael Silva, Noel Rosa, eram vendidos a cantores famosos da
indústria fonográfica, algumas vezes vinham, inclusive, como parceria
(autor/cantor), outras como produção única do comprador. Em entrevista a Sérgio
Cabral, Ismael Silva presta seu testemunho sobre a questão:

“Cabral – Você vendeu músicas a ele (Francisco Alves) ?


Ismael – Só duas ... Nas outras, ele entrou na parceria e agente dividia o
dinheiro que a música rendia.
Cabral – Você vendeu o samba por quanto?
Bide – Eu não vendi, não ...
Cabral – Mas o Francisco Alves entrou na parceria.
Bide – Você queria que ele não entrasse?
Cabral – Você vendeu música Bide?
Bide – Não, nunca. Sabia que muita gente vendia” (1996: 31-32).

Aos poucos, ia fracassando o projeto elitista dos primeiros anos republicanos.


A cultura popular ia se apropriando de parcela do mercado cultural, da mesma
forma que ia se ajustando sem perder boa parte de seus elementos contraditórios
ao discurso da virada do século XIX. A ironia, o deboche a crítica social fazia-se
presente no mundo da canção popular, esta iria estabelecer canal de diálogo
privilegiado, inclusive nas polêmicas para com o poder público, na cidade do Rio de
Janeiro. Ordem e desordem se contrapondo o tempo todo, com relativa vantagem
da primeira pela segunda. Assim, o samba ia se constituindo como uma linguagem
que serviria para expressar diferenças regionais, desavenças pessoais ou mesmo
insatisfações populares (SOUZA REIS: 2003). O ritmo do povo ia edificando um
veículo de debate importante, por vezes o povo aguardava a resposta de um
compositor a outro, ou mesmo a alguma ação política na cidade. O samba Pelo
Telefone ganhou várias letras, em sua maioria satirizando a polícia da cidade, ou
mesmo relatando o fim da primeira grande guerra, foi reinterpretado tanto por outros
sambistas como cronistas e jornalistas da época:

“O general Foch / Pelo Telefone / Mandou avisar / Que o chefe dos boches /
Foram Capitular
Ai, ai, ai / Ladrão Kaiser / Para onde é que vais?
Ai, ai, ai / Que assim foges / Dos teus generais ...”
58

De certo a venda de samba, fez com que gente muito famosa, como
Francisco Alves e Mario Reis colocasse no mercado novos compositores, como o
próprio Ismael Silva, considerado por muitos o inventor do samba moderno12. E se
as disputas acerca do direito autoral do samba esquentavam, podemos associar
este elevar de temperamento na disputa a uma crescente legitimidade do samba.
Nos anos 20 chegavam os Oito Batutas de Pixinguinha e Donga de bela turnê
europeia, o povo cada vez mais gostava do teatro popular de revista (que só
perderia espaço com o cinema falado e o rádio) e o maxixe vivia dias de glória (que
também perderia espaço com o sucesso do samba moderno)13.
Os 8 Batutas, mostrados na Figura 16 tinham sido um conjunto musical
formado em 1919 para se apresentar no cinema Palais no Rio de Janeiro. Era uma
das salas mais elegantes do país, no conjunto uniram-se, além de Pixinguinha e
Donga, China, Nelson Alves, Raul Palmieri, Jacó Palmieri e Luis de Oliveira. Com
ritmos variados, desde maxixes, lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques
e catererês, o grupo oscilou entre a exaltação e o protesto. Foi o maestro Júlio Reis
um dos mais ferozes críticos, considerando um “escândalo” a presença daqueles
músicos (em maioria negros) em lugar tradicional da música erudita. Mas, por outro
lado, Xavier Pinheiro, jornalista, saiu em defesa dos músicos, alertando que suas
aparições, “têm sido apreciadas por nossa finíssima sociedade, não têm
escandalizado, têm obtido ruidoso sucesso” (CABRAL, 1997: 46).
Em pouco tempo o grupo passou a ser convidado para animar festas e
promover espetáculos por toda a cidade, naquele mesmo ano, a gravadora Odeon
lançaria seis músicas do conjunto musical. O excêntrico milionário Arnaldo Guinle,
entusiasmado com o som dos “rapazes morenos” iria financiar decisiva viagem do
grupo pelo Brasil e pelo exterior. Vários músicos estrangeiros, artistas ligados a
vanguarda modernista europeia se entusiasmam com o grupo ampliando a
legitimidade daquele tipo de produção artística. Darius Milhaud, francês, que residira

_______________________________________________
12
Tal como já citado neste texto, não entraremos aqui nas polêmicas acerca da origem do samba
como ritmo musical propriamente dito. Para ler mais sobre assunto recomendo Sandroni (2001) e
Sodré (1997).
13
Para mais sobre as polêmicas em torno do teatro de revista ler Lopes (2000). Sobre o Maxixe
(TINHORÃO, 1999).
59

no Rio de Janeiro entre 1917 e 1919 lança em Paris Le Bouef sur Toit claramente
inspirado no maxixe fazendo sucesso na França.

Figura 16 – O grupo dos 8 batutas

Fonte: Disponível em: <http://www.saraivaconteudo>. Acesso em: 10 jan.2010.

Blaise Cendrars junto de Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de


Andrade, dentre outros, fizeram longa viagem pelo país a fim de conhecer seu
“ritmo”, apelidaram este empreitada de A Redescoberta-do-Brasil. Nesse clima, de
influências modernistas, o violão suplanta aos poucos o piano no gosto dos jovens e
ganha força simbólica como instrumento que possibilita a transição entre esses dois
mundos, o erudito e o popular (NAVES, 1998: 26).
Dessa forma, a música popular, anteriormente vista como "baixa cultura" em
detrimento da música erudita, gradativamente assume um papel importante no
contexto histórico e artístico brasileiro. Tal fato deve-se às influências modernistas
chegadas ao Brasil e que levaram aos músicos brasileiros a ideia de que o estudo
da música popular e sua interação com a erudita seria o caminho perfeito para
encontrar uma identidade nacional (Idem).
Mas o maxixe não passava impune pela censura, em especial dos setores
eclesiásticos, que consideravam a dança como vulgar e imoral. Em uma época
60

onde a moral cristã para com o corpo ainda tinha bastante força os passos sensuais
do maxixe incomodavam bastante as pessoas de família. Mas eram nas próprias
composições que a resposta era dada, J. Efegê (1974) cita uma canção ainda
de1904 satirizando a implicância de algumas pessoas com o ritmo excomungado,
chama-se Maxixe Aristocrático, de José Nunes: “O Maxixe tem ciência / ou pelo
menos tem arte/ Para haver proficiência / basta mexer certa parte / Pois o próprio
Padre Santo / sabendo o gosto que tem / virá de Roma ao Brasil / dançar maxixe
também”.
Se o papa não veio de Roma conhecer o maxixe, o sentimento dos músicos
populares dos anos 20 era que o ritmo corria o planeta (CABRAL, 1997). Nossos
batutas na França se apresentavam com o nome de L'Orchestre des Batutas. As
críticas tradicionais não sumiram, preocupada com a imagem do Brasil no exterior
ser representada por aquela “atrasada” manifestação, o Jornal do Comércio de
Recife anunciava em nota no dia 1 de fevereiro de 1992:

“E depois ainda nos queixamos quando chega aqui um maroto estrangeiro


que, de volta, se dá a divertida tarefa de contar das serpentes e da
pretalhada que viu no Brasil” (Citado em: CABRAL, 1997: 73).

Os 8 Batutas retornam de Paris em 1992. A meu ver, o bom acolhimento em


terras francesas, nada mais representa que a existência de um interesse pela
cultura afrodescendente levantada por uma vanguarda cultural tanto brasileira
quanto europeia. Segundo Cabral (1997), além da calorosa recepção aos nossos
batutas, fazia sucesso por lá também, os ritmos negros norte-americanos, como o
jazz, ainda mais se pensarmos que após a Primeira Grande Guerra vários músicos
emigram para a França (SOUZA REIS: 2003).
Já caminhamos pela segunda década do passado século. Os tempos
pareciam mais receptivos, sabemos que foi por aí que as culturas populares
tomaram mais espaço na cidade. Soihet (2003) traz alguns elementos para ilustrar o
debate:

“Na década de 1920 novos ares se anunciavam. Após a Primeira Guerra


Mundial, desmorona-se a ilusão da Europa como centro de um progresso
ilimitado, tomando-se vulto no Brasil um movimento em busca de suas
raízes. Num país em que as desigualdades econômicas, políticas, sociais,
culturais e regionais eram a marca, constatam diversos intelectuais a
urgência de modernização. O que muitos traduziram pela necessidade de
viajar pelos demais estados brasileiros, a fim de conhecer suas culturas,
61

objetivando integrá-las à nação em vias de construção. Esse processo,


aliado ao desenvolvimento de ideias nacionalistas e à resistência
desenvolvida pelos populares, que, apesar de todos os percalços,
mantiveram suas manifestações, resultou na valorização das suas formas
de expressão cultural, que passaram gradativamente a assumir um lugar
reconhecido no espaço público” (2003: 308).

No final dos anos 20, com o advento da gravação elétrica instalaram-se


várias gravadoras no país, até 1928 existia apenas a Casa Edison do grupo Odeon.
Nessa época é fundada a Parlophon, também da Odeon, a Columbia e Brunswick
da RCA. Estas todas com sede no Rio de Janeiro, precisando de músicos para
compor seu time de compositores, arranjadores, músicos e cantores.
Na cidade berço do samba moderno misturavam-se dois elementos
importantes, a existência de rádios e gravadoras, tal como um nascente interesse,
agora não só de uma parcela da elite cultural, mas também da política. Como já
frisei, se estes elementos não determinaram, ampliaram a chance do samba se
constituir na cidade.
Estariam ai importantes brechas para a penetração das culturas populares no
gosto de nossa sociedade, o samba poderia até não ser a escolha preferencial dos
“donos do poder”, mas, foi o povo mais pobre da cidade do Rio de Janeiro que
melhor articulou-se com a nova formatação social em foco, explorando caminhos e
estratégias de inclusão nas transformações nacionais.
Assim, a cultura popular do povo negro do Rio de Janeiro vai tomando força e
destaque sem virar folclore como aconteceu com outros movimentos regionais, isso
tudo, em uma cidade que ainda se fazia caixa de ressonância para o restante do
país. Se foi ação esclarecida ou não, o que importa é que foi feita de forma “flexível”
e mediada, onde a ideia de negociação foi aos poucos resfriando o conflito.
O interesse pelas coisas nacionais se fazia como um forte elemento de
legitimidade da produção artística do povo afrodescendente. Fazendo um misto de
preservação com trocas e inovações culturais esta parcela da população
desenvolveu um movimento que pode ser bem esclarecido por Canclini (1992), isto
é, onde a preservação pura das tradições não aparece sempre como o melhor
recurso popular para se reproduzir e reelaborar sua situação, “o popular não é
vivido pelos sujeitos populares com complacência melancólica com as tradições”
(1992: 204).
62

Este acontecimento não é uma característica sui generis do Brasil, segundo


as pesquisas de Peter Burke (1981) sobre a cultura popular na idade média,
podemos chegarà conclusão de que este processo aconteceu em várias
sociedades, onde pensar a cultura popular como isolada por inteiro da cultura
hegemônica pode nos levar a caminhos complicados e descolados de um estudo
mais realista. Assim, concordando aqui com Vianna, “diversos grupos sociais, com
intuitos não coincidentes, participaram – transculturalmente – da fabricação dessa
autenticidade” (1995: 173), do samba moderno no Brasil. Os diversos bens culturais
são e foram apropriados de maneiras desiguais por diversos grupos sociais em
interação constante.
A própria imprensa ia “relaxando” suas duras e violentas críticas, mas, estas
ainda eram maioria. A Praça Onze, antes anunciada como reduto de malandros
passa a ser exaltada por alguns órgãos da imprensa como o verdadeiro celeiro de
gente bamba, compositores e sambistas muito criativos.
Pelos anos 30 já se diria:

“Ali se reúnem os carnavalescos de verdade, com suas fantasias típicas,


com seus choros bem organizados e que dão àquela localidade um brilho
invulgar nos festejos de Momo”14.

Nosso desfile chegara a novos tempos. Com o novo Estado e seus novos
ideais políticos somar-se-iam mais elementos que podem explicar o triunfo do
samba carioca. O desfile vai para as ruas, com dureza, mas com o crescimento da
legitimidade do ritmo resta impor a sua presença na cidade daquele samba que
ficou alcunhado como samba do morro, o mesmo que sabemos que lá não nasceu,
mas se fortaleceu com o intercruzamento do rebuliço político e cultural emergente
na cidade do asfalto.
Sem embargo, o que posso concluir aqui, é que todos esses movimentos
possibilitaram ao povo afrodescendente assegurar-se dos bons resultados de suas
táticas de luta e negociação com a cidade em vista do reconhecimento da
cidadania, muitas vezes configurada com o direito de praticar a vida que lhes era

_______________________________________________
14
Noticiado em A Noite, nota-se que a data já é de 18/02/1931.
63

interessada, aumentado sua legitimidade e participação no espaço simbólico da


cidade.

1.5 A festa do carnaval

Se as Escolas de Samba são neste capítulo um de meus objetos


privilegiados as manifestações culturais das classes populares já se faziam há muito
tempo presente no carnaval de rua do Rio de Janeiro. Junto aos blocos, corsos,
ranchos e batalhas de entrudo e confete, apareciam também as manifestações de
carnaval mais próximas das elites nas grandes sociedades carnavalescas. Segundo
Soihet (2003):

“o carnaval constituía-se como a manifestação máxima dos populares,


quando, de forma irreverente, utilizando-se da paródia, do deboche, da
inversão, traziam à tona suas tensões e insatisfações contra a opressão e a
discriminação que sofriam” (2003: 303)

Se o arcaísmo fez de tudo para eliminar o entrudo do carnaval (jogo


considerado de mau gosto e de possível origem lusitana), incentivando as grandes
sociedades e bailes de mascarados, pela porta de trás, incomodando os defensores
do progresso na época, as “maltas perigosas” que afligem o carnaval oficial
continuam se manifestando, os cordões e blocos já começam a compor o cenário
carioca na Praça Onze, ranchos, como o Ameno Resedá se farão bastante famosos
nos anos de 1920 tendo como reverência a porta da casa de Tia Ciata.
Mas, como já fomos alertados aqui, não podemos olhar o carnaval de rua em
uma bipolarização elite x povo. Diferentes setores estabelecem contatos influindo na
formatação do carnaval. E tal como aconteceu com o samba, o interesse de
políticos e mediadores por descobrir as manifestações culturais, unido as
estratégias de afirmação da população afrodescendente, traz a glória aos diversos
ranchos da cidade. Este fato não é irrelevante tendo em questão que o rancho se
assemelha em muito ao músico que toca no Odeon ou no grupo dos Batutas, tem
regras, disciplina, e valores que levam Coelho Neto (1924), duro crítico dos cordões,
a enaltecer os foliões do rancho, que ao seu modo, valorizam com bastante poesia
64

“nossa gente e nossa raça” (SOIHET, 2003). O processo de valorização da cultura


popular está intimamente ligado ao carnaval, como percebemos no período da
virada do século, as largas avenidas construídas na reforma urbanística não
estariam “liberadas” as manifestações culturais daqueles que representavam o
atraso. Já apresentei os elementos que levaram a valorização dos ritmos populares,
com os ranchos não será diferente.
As Escolas de Samba, que em sua maioria vieram de blocos, em especial,
terão muito de sua estrutura oriunda dos ranchos. Um dosgrandes diferenciais
estará no hoje conhecido samba moderno de suas apresentações. Aquele que se
dá o título de inventor a Ismael Silva, grande compositor da Deixa Falar (tratada
como o primeiro rancho a se comportar como Escola de Samba). Mais a frente,
veremos que as diferenças vão mais além.
Mas retornando ao carnaval da belle epoque, percebemos essa época como
a do surgimento das seguintes manifestações de carnaval, os cordões, ranchos,
blocos e corsos. Segundo Moura (1998) e Fernandes (2003), enquanto os cordões,
ranchos e blocos descendem de festas religiosas do mundo colonial escravista, com
forte presença de negros e africanos, o corso era, como os automóveis, uma
novidade absoluta e deleite da elite moderna da cidade, dando continuidade e
reforçando os propósitos das grandes sociedades em busca de um carnaval
civilizado. A isto somávamos centenas de diabinhos, morcegos, mortes, índios,
clóvis, bailes, festas, Zé pereiras e alguns resistentes focos de entrudo. Havia uma
super oferta de participação no carnaval, isso pode ajudar a explicar como alguns
tipos de manifestações acabavam tão rapidamente, ou mesmo da transição dos
cordões para os ranchos na tradição popular (MOURA, 1998; FERNANDES, 2003).
Dessa forma, o rancho aparecia como um cordão mais “civilizado”, ou mesmo
mais articulado com o processo político que vai se formatando da virada do século
até os anos de 1930. Este faz um movimento parecido com o da profissionalização
do compositor, ou mesmo das manifestações da cultura popular mais integradas.
Isso não quer, de forma alguma, dizer que os ranchos funcionam como sucessores
dos cordões, não é uma relação bem de antecedência e consequência, mas de
movimentos paralelos, apesar de ambos nascerem na periferia mais central da
cidade, o rancho torna-se a expressão mais complexa de determinado momento do
carnaval popular. Essa capacidade do rancho de se reinventar e negociar com o
“mundo oficial”, tal como fez a cultura do povo afrodescendente, levam ranchos
65

como o Ameno Resedá a disputar hegemonia com as grandes sociedades pelo


menos até a década de 1930(CABRAL, 1997; FERNANDES, 2003).
Os primeiros e mais famosos ranchos foram organizados por Hilário Jovino e
Tia Ciata. Surgem em especial nas regiões periféricas da cidade, desde a Saúde até
a Praça Onze. Aparecem como parcela afrodescendente da cidade continuar
celebrando suas manifestações religiosas e festivas, segundo Moura (1993):

“As origens próximas dos ranchos com os pastoris, sua ligação com a festa
natalina cristã caracterizada pela saída no dia de reis, e a forma dionisíaca
com que o negro se apropria das festas católicas, provoca protestos e
interdições que teriam como consequência o deslocamento das principais
festas processionais negras para o tempo desinibido do Carnaval, e sua
definitiva profanização” (1993: 59).

Nesse sentido, vários festejos de origem negra tiveram sua atividade


adaptada às brechas do calendário oficial, e o carnaval absorveu parte destas. Isso
não quer dizer uma super organicidade da cultura afrodescendente na cidade,
alguns teóricos, ao estudar o samba no Rio de Janeiro, acabam escolhendo esse
caminho exagerado. O rancho já aparece como retrato de um tempo onde o conflito
é deslocado para uma flexível negociação por parte das classes populares. É um
elemento híbrido, não tem nada de cultura pura. Além de estrutura mais “grandiosa”
que cordões e blocos, têm alvará da polícia para funcionar, tratam de construir laços
com o “mundo oficial” e a imprensa. Segundo Fernandes (2003):

“E dentro desta estratégia estavam a busca de alianças, financiamento,


publicidade, solidariedade e outras relações que garantissem a sua
legitimidade. E não se pode duvidar da eficácia desta estratégia e da
posição de Hilário Jovino dentro da ascensão dos ranchos, quando ele
recorda, em sua entrevista de 1931, que o Rei de Ouro (considerado o
segundo rancho, depois do Dois de Ouro) foi recebido em 1894 no Palácio
do Itamarati pelo Marechal Floriano, então Presidente da República. Aliás,
já em plena segunda fase da história dos ranchos, o Marechal Hermes,
igualmente Presidente da República, convidou o Ameno Resedá a visitá-lo
no Palácio Guanabara, em 26 de fevereiro de 1911”.

Dessa forma, parece mesmo, que a impactante aparição do rancho Ameno


Resedá (1908) foi quem colocou os ranchos em outro patamar na cidade e com ele
as manifestações públicas do carnaval por conta das classes populares. Já tentei
descrever neste capítulo como a cultura popular, e com ela o samba, triunfou na
cidade e a rota dos ranchos parece acompanhar bem o hibridismo das
manifestações culturais na cidade. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro com
66

eles trazem uma ligação bastante intensa nessa forma de tratar dos problemas de
integrar os negros à cidade. Mediadores, negociações, adequações e diálogos
constantes com a cidade que outrora puniu e reprimiu com bastante dureza suas
manifestações. Evidente que tal como com o samba, não faltaram aqueles, vários,
cronistas, literatos, e gente da elite que continuará associando esses movimentos
ao barbarismo na cidade em vias de civilizar-se. Tal como já fora dito aqui, é pelos
meados de 1920 que a coisa toma mais fôlego mesmo. Assim, outras
manifestações eram atacadas enquanto o rancho era citado por grande parte dos
formadores de opinião como um “avanço” na manifestação da folia na cidade.
Mesmo que o carnaval da elite estivesse ainda configurado nas grandes
sociedades, algo que permanecerá vivo por muito tempo, até o sutil avanço das
Escolas de Samba já depois do final dos anos 3015.
O Ameno Resedá é a marca da mediação. Segundo Cabral (1997), fora
formado originalmente por gente do baixo funcionalismo público, tinha em seu naipe
de admiradores pessoas como Paulo de Frontim, Arnaldo Guinle, Oswaldo Gomes
(respectivamente patrono e diretor do Fluminense Football Club), Coelho Neto, e
tinha sua sede no bairro do Catete. No seu desfile inicial a sua exuberância lembrou
logo as grandes sociedades, tinham enredo, a corte egipciana, eo caricaturista
Amaro Amaral foi contratado para conceber o desfile. Vários músicos profissionais
de renome e a presença de um diretor de harmonia com um belo coral levando a
frente a marcha-rancho sob a regência de um maestro. Nota-se a semelhança com
as Escolas16?

“A orquestra, o coral, o luxo das fantasias, a figuração do enredo e,

_______________________________________________
15
Um estudo mais complexo pode ser encontrado em Soihet (1998). Não iremos aprofundar o tema
em demasiado neste estudo. Ele será aqui abordado mais como introdução a formação das
Escolas de Samba. Assim, estamos justificando de alguma forma a “simplicidade” com que a
questão pode estar sendo tratada aqui. Nem tudo que sobrou foi rancho, outros cordões como o
Bola Preta mantém-se vivos no carnaval até os dias de hoje. Os blocos também continuaram
existindo, tendo ligações bem fortes com o surgimento das Escolas de Samba, quando chamamos
atenção para os ranchos frisamos a sua estrutura de funcionamento. Escolas em sua maioria
surgem de blocos e procuram aproximar com o tempo sua estrutura das do rancho, seja por
vontade própria ou pela influência de agentes externos, ou ainda, pelo visível sucesso da
estratégia dos ranchos na cidade.
16
Outro elemento que vale a pena ser destacado para com os ranchos é a ideia de concurso e temas
nacionalistas (mesmo que isso não fosse uma imposição oficial do Estado).
67

sobretudo, a exata coordenação de todos esses valores artísticos para se


obter resultado total imponente, era uma inovação deslumbrante e
arrebatadora. As agremiações coirmãs reunindo duas ou três dezenas de
participantes, pobres de vestuário, sem subordinação a enredo ou a
qualquer motivo e, principalmente, sem força musical sentiam-se
derrotadas. Seus cânticos eram marcados apenas por batidas
compassadas de castanholas, pandeiros, tamborins, e outros instrumentos
rudimentares que faziam nada mais que ritmo e percussão” (EFEGÊ, 1965:
94).

Mesmo que inseridos no “pequeno carnaval”17– posterior definição atribuída


pela prefeitura para pagar as subvenções das apresentações – os ranchos após o
Ameno Resedá de pequenos não teriam nada (CABRAL, 1997), se espalhavam
pela cidade e, em pouco tempo, assumiriam forte papel no carnaval carioca,
somente ameaçado pela futura hegemonia das Escolas de Samba, mas só pela
década de 40, onde, talvez a principal mudança não estivesse somente no formato
do ritmo, e aí quero entrar adiante, mas na ideia de que as Escolas, em sua maioria,
partem de regiões mais periféricas e aparentemente isoladas que os ranchos, os
subúrbios e morros da cidade. Era o chamado samba do morro, oriundo dos blocos,
que mesmo não nascendo exatamente por lá, lá se criou, se protegeu e percorreu
toda a cidade. Tal como não cansava de dizer Ismael, era samba pra sambar!
Pensou como rancho, mas acelerou o samba. Bum Paticumbum Prugurundum.
Retirou a orquestra e manteve a base instrumental dos cordões.
Mas o certo, é que os ranchos, modelo de organização e ordem, ainda
contavam em seu seio com gente da política, agentes policiais, patronos como o
Sr.Guinle, gente do funcionalismo público, etc., esse pessoal ajudava a garantir a
legitimidade, até na hora de conseguir a complicada licença de funcionamento. A
meu ver isso já estava virando uma prática tradicional nas manifestações populares
no Rio de Janeiro18, de fato, o exemplo do Rancho será bem rico para as Escolas.
A seguir destaco algumas fotografias sobre o carnaval daquele tempo.
Coloco também algumas charges do periódico O Careta. Este material ajuda a

_______________________________________________
17
Para a prefeitura o Pequeno Carnaval seria composto de cordões, ranchos e blocos, mais tarde,
pelas Escolas de Samba. O “grande”, que ganhava mais recursos públicos, eram composto, em
especial, pelas Grandes Sociedades, Fenianos, Tenentes do Diabo, Democráticos, etc.
18
Augras (1998) chama a atenção para o detalhe de que os próprios terreiros de candomblé faziam
um esforço para incluir estas pessoas em seu quadro ativo, principalmente gente da polícia. Era
uma forma de garantir o funcionamento. Mas isso não quer dizer que muitas dessas pessoas não
sejam realmente bem vindas nestes espaços.
68
8

apro
ofundar a montagem
m do ambie
ente social que envo
olvia os fesstejos carn
navalescoss
na ccidade.

Figurra 17 – Des
sfile das G
Grandes So
ociedades

Fonte: (Disponível em: <http://www


w. http://www.sambaderaiz.net>. Acessoo em: 10 jan.20
010).

Na Figura 17 vemos o dessfiledas Grandes


G So
ociedades no início do século
o
XX. O carnava
al mais diriigido às eliites da cidade.

ura 18 – De
Figu esfile dos Corsos (1))

Fonte
e:(Disponível em: < http://w
www.spreedcitiies.com >. Ace
esso em: 10 jaan.2010).
69

Na Figura 18, Figura 19 e Figura 20, o desfile dos Corsos,que encantam a


classe média exaltando o fascínio pelo automóvel.

Figura 19 – Desfile dos Corsos (2)

Fonte:(Disponível em: < http://www.spreedcities.com >. Acesso em: 10 jan.2010).

Figura 20 – Desfile dos Corsos (3)

Fonte:(Disponível em: <http://www. http://www.memoriadosamba.com.br>. Acesso em: 10


jan.2010).
70

Figura 21 – Batalha das Flores

Fonte:(Disponível em: <http://www. http://www.memoriadosamba.com>. Acesso em: 10 jan.2010).

A tradicional Batalha das Flores é mostrada na Figura 21. Eram desfiles como
os Corsos, onde estes se enfeitavam com flores ornamentais. Na Figura 22, o
tradicional carnaval de rua no centro da cidade.

Figura 22 – Carnaval de rua no Centro da Cidade

Fonte: (Disponível em: <http://www. http://www.spreedcities.com>. Acesso em: 10 jan.2010).


71

Figura 23 – Baile das elites

Fonte:(Disponível em: <


http://www.sambaderaiz.net>. Acesso em: 10
jan.2010).

Na Figura 23, o Baile das elites. A influência de estilo europeu nas fantasias.
Na Figura 24, charge do jornal O Careta ironizando o estilo europeu de se fantasiar.

Figura 24 – Charge do jornal O Careta

Fonte: As charges foram extraídas da pesquisa de GONÇALVES, 2010;


disponível em http:/www.revistacontemporaneos.com.br. Acesso em: 25
dez.2011)
72

Figura 25 – Charge da revista "fon fon" (1)

Na Figura 25,charge da revista "fon fon" criticando a moda das fantasias


europeias (17 de Outubro de 1911).

Figura 26 – Charge da revista Careta (1)


73

Na Figura 26, charge da revista Careta de 20 de fevereiro de 1909, que


mostra o fim dos índios no carnaval com a proibição da fantasia por parte da
prefeitura. Abaixo, na Figura 27, no dia 14 de fevereiro de 1914 a revista Careta faz
uma provocação às questões sociais e a sua inversão no carnaval.

Figura 27 – Charge da revista Careta (2)

Figura 28 – Charge da revista O Careta (3)


74

O Careta de 14 de fevereiro de 1920 (Figura 28) ainda explora a mesma


questão. A seguir mais charges relembrando a diversidade do carnaval de “outrora”.
Esse movimento em pouco tempo reprimiria os limites impostos na Primeira
República.

Figura 29 – Charge da revista “fon-fon” (2)

Charges dão reforço à ideia do carnaval como uma festa "malandra" através
de uma década. Revista “Fon Fon”, 4 de fevereiro de 1910 (Figura 29) e 4 de março
de 1911 (Figura 30) e Revista o Careta, 4 de fevereiro de 1920 (Figura 31).
75

Figura 30 – Charge da revista "fon fon" (3)

Figura 31 – Charge da revista O Careta (4)


76

Figura 32 – Rancho Flor do Abacate, no bairro Laranjeiras

Fonte: (Disponível em: < http://www.sambaderaiz.net>. Acesso em: 10 jan.2010).

Figura 33 – Rancho Aborrecidos

Fonte:(Disponível em: <http://www.sambaderaiz.net>.


Acesso em: 10 jan.2010).
77

Na Figura 32, o rancho Flor do Abacate. Na Figura 33, o Rancho Aborrecidos.


Os ranchos teriam influência decisiva nos rumos das Escolas de Samba.

Figura 34 – Rancho Ameno Resedá anunciado em O Careta

O Careta de 4 de março de 1911 (Figura 34) anuncia o rancho Ameno


Resedá. No caso a imprensa se confunde, algo normal na época, o chamando de
cordão.
78

1.6 Nascem as Escolas de Samba

Sempre vencemos, nunca perdemos


O nosso time é do Estácio
Vamos pra balança
Não damos confiança
Peso é peso, braço é braço
A União faz a força (1927)19

Quando em 12 de agosto de 1928, assim lembra a memória do sambista


Ismael Silva, a turma do Estácio fundou um bloco carnavalesco, e mais tarde um
rancho, que seria a base das tradicionais agremiações carnavalescas o samba já
ocupava relevante espaço no cenário político e cultural do Rio de Janeiro (CABRAL,
1997).
Figuras como Sinhô, Pixinguinha, Donga, Noel Rosa já haviam gozado de
boa respeitabilidade no mundo cultural da cidade, a Indústria Fonográfica e o rádio
somente ampliavam a divulgação das canções populares. Ranchos e blocos já
obtinham relativo sucesso no então chamado “pequeno carnaval”. Modificava-se o
ambiente da produção cultural tal como as ideias políticas dominantes. Neste
espaço, compositores do morro eram “descobertos” pelas gravadoras e
“compradores” de samba como Francisco Alves.

"Nenhum outro lugar do país apresentava no início do século XX um mundo


popular tão buliçoso e com tanta presença no espaço urbano, do que são
evidências as numerosas festas de largo, as procissões, as bandas de
música, os terreiros de batuque, os cordões carnavalescos, as rixas de
capoeiras, os espetáculos circenses, os teatros de revista, os encontros de
chorões, as rodas musicais nas principais lojas do ramo..." (CARVALHO,
M.A.R., 2004, p. 41).

De fato este já era um cenário razoavelmente consolidado quando a


formação das primeiras escolas de samba a partir dos anos de 1920. Mas, é no final
da mesma década que o “samba moderno” mostra a sua cara, e ele e suas

_______________________________________________
19
Atribui-se este samba de 1927 a Bide. Nota-se na letra o forte orgulho de seu agrupamento
carnavalesco.
79

comunidades começam aos poucos a ganhar notoriedade. Conforme o escritor Nei


Lopes:

“esse samba só começou a adquirir os contornos da forma atual ao chegar


aos bairros do Estácio e de Osvaldo Cruz, aos morros, para onde foi
empurrada a população de baixa renda quando, na década de 1910, o
centro do Rio sofreu sua primeira grande intervenção urbanística. Nesses
núcleos, para institucionalizar seu produto, então, foi que, organizando-o,
legitimando-o e tornando-o uma expressão de poder, as comunidades
negras cariocas criaram as escolas de samba”. (LOPES, 2005)

Da fama individual, do prestígio do sambista, monta-se o quadro de


valorização da comunidade, agora era Mangueira, Oswaldo Cruz, Estácio entre
outras. Um elemento novo surge, e queremos aqui chamar a atenção para este fato,
o surgimento das Escolas de Samba vai representar, entre outras coisas, a
oportunidade das comunidades a elas ligadas de mediarem seus interesses frente a
um espaço público que até então pouco as incorpora.
Tal como nas palavras de Sérgio Cabral, “o Deixa Falar além de reunir os
jovens e revolucionários compositores do bairro, pretendia também melhorar as
relações dos sambistas com a polícia”. (CABRAL, 1996:41) Evidente que a
incorporação do samba pela sociedade carioca tinha reduzido bastante a
perseguição ao sambista, porém não podemos dizer esta caminhou em paralelo a
exclusão social e a discriminação violenta da população afrodescendente20O
processo de formação da Deixa Falar, seguido logo por Estação Primeira de
Mangueira (junção de diversos blocos situados no morro de Mangueira) e Oswaldo
Cruz (a “futura” Portela) mostram a tendência a organização em busca da
legitimidade e força de suas agremiações, e é nesse momento que a ordem começa
a sobrepor a desordem. O relato da impressa, de pesquisadores do assunto, de
cronistas de época demonstra uma preocupação grande destes sambistas em

_______________________________________________
20
Por mais que estejamos afirmando aqui que pelos anos de 1920 o samba do morro começa a
ganhar cenário, uma matéria de jornal de 1929 mostra que este ainda é visto com muito
preconceito frente as outras manifestações carnavalescas, veja só: “Pernas finas e tornas
escolhem sempre calções curtos e camisetas que deixam ver pobres peitos deprimidos. Tem-se a
impressão de esqueletos cobertos com uma camada lacônica de pele e carne mumificada. Por
outro lado, indivíduos de origem muito recente na Etiópia, com as mesmas camisetas de meia,
axilas à mostra onde parecem localizar-se ninhos de rato”. (POUBEL, 2004) Não podemos
confundir as coisas, afirmação mesmo, só lá para 1940/50 em diante. A condição melhora, mas
não é um mar de rosas.
80

mostrarem-se ordeiros, “civilizados”, para uma sociedade que ainda os enxerga com
bastante receio e preconceito. Por outro lado, formaliza-se – nos anos que
envolvem 1930 – também por parte do poder público e pelas elites culturais um
processo que já tinha se desencadeado alguns anos antes, e como já destaquei, de
valorização, mesmo que de forma mediada e por vezes “folclorizada” de raízes e
manifestações “puras” e autênticas da cultura popular brasileira. O sucesso do
samba tinha sido feito aproveitando-se, inclusive, dessa medida, e com as Escolas
encontraria tática parecida.
Aí está um dos argumentos centrais da primeira parte de minha pesquisa, na
medida em que as Escolas de Samba buscam se “enquadrar”, ou melhor, negociar,
se envolver no cenário político e social que circunda os anos de 1930/40 ela
reproduz em parte este processo em suas comunidades de origem.Isto faz com que
as Escolas de Samba tornem-se importantes ferramentas de negociação com
outras instituições que até então tinham com elas canais bastante atravancados.
Desde a promessa de construção de quadras (ou ainda terreiros), melhorias para as
comunidades, recursos para o desfile, isso sem falar, na “relativa” respeitabilidade
do sujeito do morro. O povo pobre vai ganhando aos poucos visibilidade ao se
fantasiar luxuosamente, cantando e gingando como ninguém, mas por outro lado, a
festa opõe-se ao regulamento, a síncope, a harmonia detalhada, as notas dos
“doutores jurados” avalizando a produção artística das favelas e comunidades
pobres do Rio de Janeiro. Mais uma vez o samba ia falar de si ao povo da cidade,
mostrando-se expressão cultural valiosa de um povo ainda em incorporação a
modernização conservadora colocada em prática pelo novo regime.Se antes já era
quase impossível ignorar os canais construídos pelo samba na cidade, agora seria
cada vez mais difícil ignorar a força das comunidades que tinham nos desfiles
carnavalescos sua maior exibição pública.
Dessa forma concordamos com Fenerick ao afirmar que: "o samba moderno
não poderia ser feito apenas pelo (ou no) morro, ou apenas pela (ou na) cidade, ele
precisava dos dois universos culturais agindo mutuamente para a sua criação e
difusão." (2002) Exatamente assim se dá a integração, o patrimônio se amplia, as
tradições se recriam e se constrói uma manifestação cultural que tem a marca da
mediação entre comunidades carentes, Estado, outras instituições e ainda de uma
diversidade de ‘mediadores culturais’ oriundos de diversos outros segmentos
sociais. É nesse sentido, que trazemos o sucesso dos ranchos como um elemento
81

de forte influência na formatação das Escolas. Só que estas além de empreenderem


importante estratégia de incorporação, construíram junto de seus apologistas a ideia
de tradição. A tradição que “inventa” as Escolas como a essência do carnaval
carioca, e por vezes da cultura popular brasileira, lembra-se em seus desfiles a
Bahia, a África, o Rio de Janeiro como matrizes da formação cultural das Escolas.
Criando um enredo que começa na Bahia e firma-se no Rio de Janeiro,
conquistando todo o país.
Voltamos então à questão do surgimento das Escolas. Como já dissemos, a
Deixa Falar surge como bloco (logo depois vira rancho, e nunca chega propriamente
a ser “oficialmente” uma escola de samba). O nome “escola” vem (segundo o
próprio Ismael) porque os bares frequentados pelos sambistas, entre eles o Bar
Apolo e o Café do Compadre, ficavam nas redondezas de uma escola normal no
Largo do Estácio. Sem entrarmos aqui na polêmica sobre a quem cabe a primazia
da alcunha de “Escola”, surgiam depois Mangueira, Portela e Unidos da Tijuca. Mas
o importante, é que ao falar da formação do bloco Deixa Falar percebemos como
sua estrutura já incorpora em si elementos de organização e racionalização do
desfile de carnaval (CABRAL, 1996). E na onda das transformações culturais dos
anos 20 vai surgindo o primeiro gene de Escola.

"O jovem Ismael e sua roda de camaradas do largo do Estácio (Bide,


Baiaco, Brancura, Nilton Bastos, Francelino, Tibério etc.) frequentavam
morros vizinhos e até mesmo redutos negros mais distantes, como Irajá e
Osvaldo Cruz. Certamente motivados pelo que viam nessas visitas, num
sadio propósito de emulação, resolveram fazer um samba para sair às ruas
e descer à cidade" (LOPES, 2003, p.46).

Ou no depoimento de Heitor dos Prazeres, na revista Manchete de 1966,


sobre a construção da Deixa Falar, explicando a formação das Escolas de Samba
do Rio de Janeiro:

“Elas substituíram os ranchos, que já não eram mais frequentados pelos


grandes sambistas. A ideia de formação das escolas de samba nasceu aos
poucos, nos anos 20, durante os carnavais. Eu costumava sair tocando
cavaquinho. Às vezes, olhava para trás, via mais de 200 pessoas que me
seguiam, dançando. Eu levava nos ombros um pano da costa, de cores
viva, usado normalmente pelas baianas. Meus acompanhantes o
seguravam pelas pontas e o levantavam como se fosse uma bandeira.
Acontecia o mesmo com outros instrumentistas. Passamos a nos organizar
no Estácio, esquina da Rua Pereira Franco, ponto de reunião de Ismael
Silva, Rubens Barcelos e outros sambistas, onde Francisco Alves nos
procurava para comprar sambas. Formei um grupo de pastoras, uma das
82

quais era Clementina de Jesus. Mais tarde, sambistas da Mangueira e de


outros bairros a se juntar ao nosso grupo. Finalmente, em 1927 (sic), com
Nascimento, Saturnino, Ismael Silva e muitos outros, fundamos a Escola de
Samba Deixa eu Falar, a primeira do Brasil. A designação Escola de Samba
está associada a escola normal, que funcionava no Estácio, sendo os
sambistas de fama então chamados de mestres ou professores. Surgiram
depois as escolas de samba da Portela, Mangueira e Unidos da Tijuca”
(CABRAL, 1996: 51)

O depoimento de Heitor traz marcas interessantes, não só dá uma tônica


mítica para o nascimento da Escola de Samba, como coloca a alcunha de grandes
sambistas aos bambas do Estácio e dos morros e subúrbios, os associados ao
samba moderno, como destaca o pioneirismo da Deixa Falar como Escola de
Samba. Olha aí as tradições sendo recriadas pelos sambistas, assim vai. Esse
elemento é constante no mundo do samba. Mas quem faz pesquisa etnográfica
conhece bem esse fenômeno: nenhuma memória é objetiva. Trata-se sempre de
uma reconstituição, e até mesmo uma resignificação. É natural que sambistas
coloquem sua origem no topo da história do samba.
Mas aqui, não se trata de perceber o processo de formação das Escolas de
Samba como algo que rompe inteiramente com o elemento lúdico e ritualista das
primeiras manifestações da cultura afrodescendente e busca se racionalizar, ou
mesmo com o samba mais ligado a indústria cultural, os ranchos, blocos e etc. Nem
velho, nem novo. Mas sim, como resultado do processo de hibridização cultural
levado ao mundo do samba21, desde a virada do século XIX até os anos de 1930. O
samba continua sendo uma importante ferramenta de mobilidade e legitimidade
para a parcela negra e mulata da cidade, ademais, para uma nova geração de
artistas que “vivem” do e no universo do samba carioca. Se ele gestava nos morros
e periferias, teve no carnaval e no clima mais ameno com as manifestações
populares a chance de sua glória. Foi por isso que neste capítulo tentamos entender
como o samba (ou a música popular produzida por em sua maioria gente negra)
ajudou a configurar um novo cenário para as classes populares na cidade do Rio de

_______________________________________________
21
Volto a frisar aqui que não pretendo entrar na polêmica de quando surge de fato o samba. A única
distinção que irei fazer de fato, é que com a Deixa Falar podemos trabalhar com a ideia de marco
inicial do samba-moderno. Por vezes citarei o termo samba quando alguns estudiosos do assunto
poderão bradar: isso é maxixe. Volto a recomendar o estudo de Sandroni (1998).
83

Janeiro, evidentemente em especial, para a parcela de origem negra22. Ao que me


parece as Escolas de Samba são processos articulados com as estratégias de
sucesso (pensando em incorporação) empreendidas pelos músicos negros, pelos
ranchos e etc., seja no que tange mobilidade, seja no que permita fazer a festa mais
ao seu modo23.
Em 1930 já são cinco as escolas de samba da cidade: Cada Ano Sai Melhor
(Morro de São Carlos), Estação Primeira de Mangueira, Oswaldo Cruz, Para o Ano
Sai Melhor (Estácio) e Vizinha Faladeira (Praça Onze). Todas elas vinham de algum
bloco ou da fusão de outros já existentes, reforçando a ideia de unidade em suas
comunidades24. E como relata com precisão Augras (1998) as escolas já
começavam a apreender o caminho rumo à respeitabilidade, nesse bojo o nome
“escola” ganhava cada vez mais terreno sobre a anterior estrutura dos blocos
carnavalescos. Cabral (1996), relata que foi nessa época que Francisco Guimarães,
o cronista Vagalume, a quem se devem tantos depoimentos relevantes para a
história do samba, recolheu da boca de um velho morador do morro do Salgueiro os
seguintes versos: “O samba tem sua escola e a sua academia também”. Longe de
serem agrupamentos desordeiros, as novas formações estavam falando da sua
importância na transmissão e preservação do saber (AUGRAS,1998:25). O desejo
de ascensão social e reconhecimento pela sociedade como um todo não só do
samba como do negro, visto ser a educação a via oferecida pelo sistema e pelas
comunidades carentes. Acho importante construir aqui um quadro com alguns
elementos sobre a cultura do mundo do samba, reproduzido com algumas
alterações, mas com base na pesquisa de Lima (2005), acerca da velha guarda da
Portela:

_______________________________________________
22
Evidente que nos anos 20/30 o samba já não era mais um patrimônio somente de
afrodescendentes. Diversos compositores e “gente” envolvida com as Escolas já compunha um
universo social mais amplo.
23
Não podemos pensar que as pessoas fazem ações culturais só para ter inclusão / mobilidade
social. Mas também para realizar o mundo a sua forma, o elemento lúdico da festa.
24
Isso não significa, como veremos, uma unidade entre as comunidades, mas sim uma unificação de
cada comunidade em torno de uma ou duas escolas.
84

* Mediação cultural – A mediação cultural é aqui entendida como a ação dos


indivíduos e grupos, ou o local de realização, que efetiva uma relação de troca entre
indivíduos, grupos, espaços, de culturas diferentes, formatando o
modernohibridismo cultural.
* Identidade cultural – Uma contínua criação/recriação da identidade afro-
brasileira. Como percebemos esse elemento é fundamental na construção de uma
identidade via Escola de Samba.
* Afirmação social – A visibilidade positiva adquirida pelos desfiles possibilitou
maior inserção dos afro-brasileiros em nossa sociedade historicamente
preconceituosa.
* Memória coletiva – Assim como várias manifestações populares, o samba
funciona como memória de um povo. Dando não sentimento de pertencimento ao
grupo, mas como de patrimônio histórico e cultural.
* Sociabilidade – Possibilita processos de integração social fortalecendo os
laços comunitários.
* Solidariedade – É um elemento próprio do mundo do samba, fruto histórico
das relações estabelecidas para a sobrevivência entre as camadas pobres da
população.
* Respeito aos direitos, contradições e conflitos – Há uma série de valores
morais que preservam a família, a liberdade religiosa e política. No entanto, ao lado
desses valores, aparecem o alto consumo de bebidas alcoólicas, as relações com a
contravenção, as relações machistas, que refletem as condições materiais,
históricas e culturais de parcela da população da cidade.
* Tradição e renovação – Tradição e renovação se afirmam dialeticamente.
* Socialização de saberes – Esse é o elemento crucial da cultura do samba,
sem o qual não seria possível o desenvolvimento dos outros. Por quê? Porque não
se trata somente da socialização e transmissão de saberes com referência à
composição, instrumentalização e dança do samba, bem como organização das
Escolas de Samba e eventos como o desfile na avenida, que por si só já são
importantes. Trata-se, ao mesmo tempo, de socializar ethos, códigos, estratégias de
sobrevivência, de resistência cultural, de afirmação de grupos sociais.
Estes pontos nos parecem bastante importantes, e em especial a ideia, já
referenciada, de “educar” a vida comunitária, fazendo não só o que Estado não
fazia, mas “preparando” estes para serem negros, ou mesmo pobres, na cidade do
85

Rio de Janeiro25. Este foi mais um dos elementos que mostravam o compromisso
dessas agremiações com propósitos bastante orgânicos, ainda, pautados na
construção de laços bastante fortes com suas comunidades26e na disposição de
construir alianças em seu favor. O lugar da escola de samba aparece aqui como um
importante espaço de sociabilidade e aprendizado sobre a vida. Tal como a
demonstração sincera de parcela das comunidades cariocas que percebem nos
desfiles um importante espaço de incorporação pública.
Eram elementos dos padrões de comportamento dentro da escola, os
compositores iam buscar em suas letras contar ao povo a “história” de seu país e da
cultura africana, mesmo que alvo de críticas e controversas, como a de Nei Lopes,
esse se tornou um importante foco de identidade.

“às escolas de samba cariocas – cujos terreiros (terreiros e não “quadras”,


como hoje) até os anos de 1970 obedeciam a um regimento tácito
semelhante ao dos barracões de candomblé, com acesso à roda permitido
somente às mulheres, por exemplo –, veja-se que elas, hoje, são, ainda, um
veículo em que a temática africana é recorrente. Muito embora seus
enredos e sambas enfoquem a África por uma perspectiva meramente
folclorizante” (LOPES, 2005).

Além da grande capacidade de sociabilidade e respeito frente à comunidade,


podemos também, perceber, que esta medida “educadora” por parte das escolas
mostrava uma possível preocupação destes grupos com a necessidade de
“legitimar-se” frente à opinião pública mostrando as transformações que elas
traziam na celebração do carnaval e na vida comunitária27. Até porque se fizermos
essa análise, vamos perceber que na verdade, as primeiras Escolas de Samba, são
suas comunidades, e quase todo o mundo se envolve com o desfile. O terreiro da
escola de samba não era só lugar de algazarra, mas de trabalho, trocas e debates,

_______________________________________________
25
Se não pudermos dizer que este era um interesse esclarecido por parte das Escolas, o povo pobre
percebe a mudança da vida daqueles que se aproximam das Escolas.
26
Na verdade é mais um ensinar a viver, a se preparar para o mundo, conforme o depoimento do
compositor Casquinha da Portela, “... o samba ilustra a pessoa, o samba ensina muita coisa,
depois a gente aprende, aqui dentro [da Portela] mesmo a gente aprende, não é, no desenvolver
da... do tempo e tal, e daí vai aprendendo alguma coisa, bastante coisa, né”. (LIMA, 2005)
27
Evidentemente, não podemos colocar essa questão na seguinte linha, as Escolas mudam a
comunidade. Parece-me que as Escolas são as comunidades. Elementos muito íntimos para
serem decifrados na maneira de quem influência quem.
86

produzia identidade e o povo do morro queria mostrar que lá não havia só confusão
(GOLDWASSER, 1975). Ora, então a mudança na Escola, pode configurar uma
mudança na comunidade e vice-versa. Na verdade, podemos perceber, como irei
tratar adiante, o surgimento de intelectuais, fortes líderescomunitários, mas também
o entendimento da Escola de Samba, como uma espécie de liderança coletiva das
comunidades.
Da Matta (1973), também, chama a atenção para um argumento bastante
importante na formação das escolas de samba, estas surgiam de um interesse de
dentro para fora (ao que nos parece menos demarcado pelos ensejos da indústria
cultural, mas não desarticulado). Esse interesse surgido no interior das
comunidades garantia sua força interna, sua coesão e sua autenticidade. Em nosso
estudo podemos levar este elemento com mais um fortalecedor de seus laços de
identidade e de sua força nas relações com outras instâncias de poder.
Evidente que essa preocupação por parte das escolas em busca da sua
“legalização” e “legitimidade” frente às autoridades, não diminuía a rivalidade que
faz parte dos desfiles até os dias de hoje, nada comparado às violentas brigas do
carnaval do início do século, mas a questão é que no início a coisa também era
mais feia (acredito inserir este contexto no ponto Respeito aos direitos, contradições
e conflitos apresentado em nosso quadro anterior).
Os concursos, ainda antes do tempo desfile oficial, eram alvo de
controvérsias e confusões por parte dos sambistas das diversas agremiações. Isso
pode mostrar também, que mesmo forte o desejo da “legitimidade” eram forte ainda
as rixas oriundas de outros tempos, aí a coisa ainda estava muito cada um por si,
estar vinculado à comunidade e a uma escola ainda era (e talvez ainda seja) muito
mais forte do que estar integrado a uma cidade (pelo menos no desenrolar
competitivo).
O interessante aqui, é que o samba constitui-se como uma linguagem
bastante integradora entre as classes populares, mas com o fortalecimento das
Escolas a questão da comunidade se fortaleceu, construindo inclusive novas
querelas e transportando outras dos tempos dos blocos e etc. Na verdade o
carnaval sempre teve certo clima de rivalidade na cidade, isso muito antes das
Escolas de Samba existirem.
Este ponto, o das rivalidades, me remete a história de José Gomes da Costa,
conhecido como Zé Espinguela, morador da Rua Engenho de Dentro, lá ficava
87

também seu terreiro. Segundo Cabral (1996), Espinguela era tradicional pai de
santo da cidade, um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira que além
de organizar eventos em seu terreiro era forte apoiador das escolas, pois trabalhava
no jornal A Vanguarda onde publicava letras e anúncios sobre o samba, era também
muito bem visto entre os grandes nomes da música popular na época, entre eles
Francisco Alves. Mas vamos à história, em 29 de janeiro de 1929, dia de Oxóssi e
São Sebastião, Espinguela resolveu promover um concurso para escolher o melhor
samba, vamos ao breve relato do jornalista Claudio Vieira:

“No terreiro da Rua Engenho de Dentro, Zé Espinguela reuniu sambistas


dos principais redutos de batucada do Rio. Vieram os do Conjunto Oswaldo
Cruz, que mais tarde daria origem à Vai Como Pode, depois Portela; os do
Estácio, representando a Deixa Falar; o primeiro grupamento de
batuqueiros a usar o dístico de escola de samba; e os da Mangueira, onde o
anfitrião tinha seus envolvimentos. Pelas regras do organizador, cada
conjunto concorreria com dois sambas. O grupo de Oswaldo Cruz era
representado por Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres; a Mangueira, por
Cartola e Arturzinho; não há registro sobre os do Estácio. Nem na memória
de Cláudio Bernardo da Costa, 91 anos, o sócio número um da Portela, que
estava lá naquele dia. Talvez seja o único remanescente do encontro
histórico. E lembra como foi. ‘Cada grupo levou torcida de 45 a 50 pessoas,
se tanto. Tínhamos dois sambas, um do Antônio Caetano e outro do Heitor;
que era muito amigo de Paulo e veio do Estácio se juntar a nós. Heitor tinha
trânsito no meio musical. Era muito expedito. Mas o samba de Caetano era
melhor que o dele’" (VIEIRA, 2003).

Cada escola concorreria com dois sambas e foi à escola de Paulo da Portela
que ganhou. No dia seguinte, Espinguela publica no A Vanguarda a preferência pelo
samba de Heitor dos Prazeres e daí começa o fuxico de que Mangueira e Estácio
iam lá e quebrar o troféu, a turma do Estácio, enciumada, ficou indócil com a
escolha.
Mas, na hora de entregar o prêmio, o sabido Espinguela, atento às
rivalidades, apareceu na escadaria da Escola Benjamin Constant, na Praça Onze,
com três taças cada uma com uma fita lembrando as cores de cada escola. Isso de
fato evitou um sério conflito e pelo que parece a ideia de concurso precisava
matutar um pouquinho mais.
Como observamos, tudo bem que a linha era a ordem suplantar a desordem,
mas quem disse que as intenções pela legalidade e legitimidade das escolas seria
88

maior que o calor das tradições rivais existentes a tanto tempo – ou mesmo as
recentemente inventadas28 – no carnaval, muita gente ali já tinha dado bofetada um
no outro a algum tempo atrás. Mas a tendência era que a coisa ficasse mesmo mais
ordeira, não que acabassem as rivalidades, mas estas seriam feitas de forma mais
“politizada” em diante, até para evitar a justificativa da polícia de reprimir os
sambistas, mesmo com alguns conflitos futuros, porém exceções como veremos
adiante, mas por vezes bastante violentos.
Mas voltando a questão dos campeonatos, o primeiro desfile mesmo das
escolas seria realizado com o apoio do então jornalista Mário Filho promovido pelo
jornal Mundo Sportivo. O lugar só podia ser um: a pequena África, a então Praça
Onze. O jornal O Globo também logo compraria a ideia anunciando em sua
manchete de 5 de fevereiro de 1932:

“Depois de amanhã, a Praça Onze será teatro do grande campeonato de


samba promovido pelo Mundo Sportivo. […] O êxito do formidável certame
está acima de qualquer dúvida. Basta ver o número de concorrentes, aliás,
impressionante. As ‘escolas’ que se candidataram aos grandes prêmios são
as melhores da cidade. O Rio verá de fato a massa encantadora dos morros
descerem para a Praça Onze”. (CABRAL, 1998: 69 – grifos nossos).

Agora era a imprensa articulando-se as escolas de samba29, isso teria um


papel determinante, e como veremos adiante em uma exposição mais teórica sobre
o tema, não vitimando a escola e a sua política, mas sim, realizando um jogo de
toma lá da cá, surge o regulamento do desfile, com ele a ordem e a porteira da
“legitimidade” para além das suas comunidades vem se aproximando30. Se dermos

_______________________________________________
28
Usamos aqui o termo inventadas para dizer que mesmo que o samba tenha criado um canal de
ligação entre o povo da cidade, as comunidades construíram em si forte identidade (tentei levantar
estas questões na segunda parte deste capítulo). Com os desfiles, a disputa entre comunidades
“inventou”, inclusive, novas tradições na cidade.
29
Como já foi citado os ranchos tinham desenvolvido importante relação com a imprensa carioca.
Outro elemento que quero destacar, é que só pelos anos 40 é que a Escola acaba por ficar tão ou
mais importante que os Ranchos. Quando a Portela ganha 7 títulos na década de 40, chega a se
falar em “promoção” desta para a categoria de Rancho. Segundo Cabral (1998), esta parece ter
sido a opção da Deixa Falar. Agora, dado interessante, mesmo com a Deixa Falar nunca sendo
propriamente uma Escola, quase nenhum sambista discorda do seu pioneirismo.
30
Outra manchete descrita por Poubel (2004) mostra a questão dos interesses e objetivos, já vamos
chegar mais a esta questão, mas vale a manchete de 1932, quando ainda nem era oficial o desfile:
“Faz-se este anno a oficialização do Carnaval com o fim patriótico e utilitário de atrair turistas à
famosa cidade guanabarina”.
89

mais uma breve olhada no texto de O Globo, vamos perceber o surgimento do trato
do samba do morro com feições exóticas mais próximas das raízes africanas, tinha
um peixe para ser vendido nisso, não? Tendo a concordar com a sugestão de
Monnik Poubel (2004), onde, à medida que cresce o controle sobre o samba e
deixa-se de reprimi-lo – tornando o carnaval festa oficial – “o exotismo da cultura
negra passa a ser motivo de atração abrindo espaço para sua valorização e
consumo”. É um processo a se discutir. Parece-me que nesta época ainda era cedo
(as manchetes preconceituosas ainda são muitas, e acho que a indústria cultural da
época ainda não é dotada de elementos tão complexos), mas vamos ao artigo:

“O samba dos morros nem sempre desce à cidade. Às vezes, fica lá em


cima, longe de qualquer possibilidade de ser transportado para o disco. Há
malandros que não admitem a vitrola porque têm a impressão de que, na
chapa, o samba perde a sinceridade, a graça emotiva e doce, o espírito
delicioso”. (CABRAL,1998:71)

O samba do morro aparecendo como samba de resgate frente ao samba


“erudito”31das ruas do centro da cidade. Este ainda discriminado começava a ocupar
seu espaço timidamente, revelando novos talentos e acima de tudo, uma nova
expressão cultural que tomava já mais o corpo da comunidade (a rapaziada de
Mangueira, os bambas de Oswaldo Cruz, a turma do Estácio, e outros mais) do que
a do sujeito sambista, da questão somente do talento individual32. Já se coloca a
ideia da comunidade articulada para o sucesso do desfile, articulando-se com a
cidade em busca do seu apoio na empreitada carnavalesca.
Daí, para ampliar ainda mais a questão, vale uma fuga em Sodré, para o
negro, após a abolição, “a apropriação da cidade como estrutura de encontro
interétnico, criação festiva e confrontação simbólica” (1988:134) se intensificou, pois

_______________________________________________
31
O samba “mais erudito” que tanto fazia sucesso na ‘cidade das letras’ estava em parte envolvido
principalmente por sambistas já conhecidos e alguns indivíduos de formação música erudita. A
aparição das camadas mais populares e suas comunidades, foi arrematando adeptos como o
próprio Noel Rosa, e dando visibilidade a outros como Ismael Silva, Paulo da Portela, Carlos
Cachaça, Heitor dos Prazeres, Cartola e outros mais. Mas o que mais me chama a atenção e
gosto de explorar este ponto aqui, é o surgimento da ‘comunidade’ como porta voz do ‘novo’
samba.
32
Com o surgimento das escolas de samba, seus ‘talentos’ ficam fortemente associados a sua
comunidade, Cartola (Mangueira), Ismael Silva (Estácio), Paulo da Portela (Oswaldo Cruz), o
próprio Noel Rosa (com a mais recente Vila Isabel, A vila não quer abafar ninguém / só quer
mostrar que faz samba também) entre outros.
90

como nas palavras de Augusto Lima, “antes o negro tinha seu lugar – fixo e
desumano, é verdade – mas depois ele não tinha lugar algum. E são as Escolas de
Samba, em nossa análise, um dos mais importantes instrumentos dessa
penetração” (LIMA, 2005), desse lugar. Mas, retomemos ao desfile daquele ano.
Apesar de o concurso ter sido feito meio que no improviso, Pimentel que
trabalhava com Mário Filho “sacou” um regulamento, arrumou uns sanduíches de
mortadela, bastante cerveja e escolheu o júri, sua mulher Eugênia, Orestes Barbosa
e outros (CABRAL,1996).
Como relata Sérgio Cabral, o desfile começou as 20h30 e logo a Praça Onze
estava lotada. Das 19 escolas presentes foi a Estação Primeira que conquistou o
concurso, apresentado os sambas Pudesse meu ideal, de Cartola e Carlos
Cachaça, e Sorri, de Lauro dos Santos, seguida por Vai Como Pode empatada com
a Para o Ano Sai Melhor (também conhecida como segunda linha do Estácio) e
Unidos da Tijuca. Neste ano, também, o muito aplaudido Heitor dos Prazeres foi
premiado pela prefeitura com o um conto de réis pelo samba Mulher de Malandro
gravado por Francisco Alves (CABRAL,1996).
Com a razoável cobertura jornalística as escolas ganham alguma visibilidade
no restante da sociedade, mas como já dissemos dois elementos já surgem, e
mediados com agentes externos às comunidades, o regulamento e o júri, este
último composto para além dos citados por Raimundo Magalhães Júnior, José Lira,
Fernando Costa e J. Reis que por mais que tivessem algum envolvimento com o
mundo do samba foram escolhidos pelo jornal organizador. É talvez, neste sentido,
que alguns anos depois (1939), em pleno desfile, Paulo Benjamin de Oliveira,
personagem destacado nesta pesquisa, iria entregar ao júri, em tom irônico, um
diploma “deles” da comunidade, para “eles” do júri, a coisa pegou muito bem até
porque a Portela ganhou o título este ano (CABRAL, 1998). Vale a letra do samba
de Paulo:

Teste ao Samba
(Paulo da Portela)

Vou começar a aula


diante da comissão
muita atenção que eu quero ver
se diplomá-los posso

salve o fessor (professor)


dá mão prá ele senhor
91

quatorze com dois doze


noves fora tudo é nosso (bis, refrão)

Relatando a cobertura da imprensa, (já voltando a 1932) O Jornal do Brasil,


publica a seguinte nota com o título de Carnaval na Praça Onze:

“A Praça Onze de Junho, tradicional pelos seus folguedos tipicamente


característicos, manteve, ainda este ano, gargalhadamente, os seus foros
de reduto inexpugnável da genuína festa da cidade” (CABRAL, 1998: 73).

A imprensa saúda a ordem e a alegria frente os “antigos e violentos” blocos


com navalhas que por ali passavam. Porém, importante, opção de todo mundo, ou
de quase todo mundo, basta lembrar que por estes e outros motivos a primeira
escola virou rancho, Deixa Falar33. Um elemento forte em nossa discussão é que a
busca da ordem não é só movimento de cima para baixo, isto é, pura imposição das
elites culturais e políticas.
Monique Augras (1998) traça uma importante análise do papel dos concursos
de escolas de samba. Para a autora, pensando em controle social, os concursos de
escolas de samba se tornam eficazes ferramentas. Premiando o desempenho de
determinado grupo, se reforçam os padrões de representação, dissuadindo outros
grupos de escolher rotas alternativas.
Sob a aparência de valorizar a produção desses grupos, o concurso institui
uma hierarquia de valores, estéticos alguns, ideológicos quase todos, que, “ao
legitimar certas atuações e desqualificar outras, acaba assegurando a manutenção
de um modelo estável e de fácil fiscalização. E o primeiro passo para tanto é a
regulamentação do desfile” (1998: 31).
As escolas passaram a se exibir fora do carnaval em teatros e festas sociais.
1933 teria um desfile com mais pompa, mas nada ainda comparado aos ranchos,
em especial pelo financiamento e espaço na imprensa antes e durante o carnaval.
Isto, é claro, sem falar das Grandes Sociedades que ainda dominavam o terreno do
luxuoso carnaval das elites.

_______________________________________________
33
Se fala que a Deixa Falar não virou Rancho só pela legitimidade destes, maior que das Escolas,
mas também por assim não estar submetida aos regulamentos e normas que pareciam nortear o
desfile das Escolas.
92

E 1932, deu o empurrão, anunciando o sucesso daquele evento feito sobre


determinadas normas e padrões. A apresentação fez relativo sucesso, tanto que no
ano seguinte o jornal O Globo assumiu a promoção dos desfiles, estabelecendo a
lista de quesitos para a orientação da comissão julgadora. Vale aqui citar uma das
matérias feita pelo jornal, assinada por Carlos Pimentel e Jofre Rodrigues:

“Mangueira, Buraco Quente… A cidade sabe que o morro de Mangueira


existe porque já o viu de longe. Verde ingênuo igual aos outros morros
verdes. Mas a cidade nunca subiu o morro. […] Ela percebe que aquilo faz
parte do seu território e se espanta de não conhecer a si própria”.

Uma matéria que demonstra o tom de uma cidade exótica, de um morro


suave e pobre que encanta os carnavais de agora. Ainda a cidade de João do Rio, o
morro e a civilização. Mas, continuando o artigo notamos também o discurso do
papel do samba na mudança de um morro que “já foi” mais violento, ou mesmo,
menos “adequado” aos padrões sociais da cidade:

“Raimunda era a porta-bandeira. Dançam as pastoras Nirce, Morena e


Maria. Os braços, como serpentes, se enroscam em corpos imaginários.
Entra tia Lucinda. Está velha, velhíssima, mas o samba a remoça. Viu
quase tudo nascer a Mangueira, onde mora há 19 anos.
Antes – diz ela - , a Mangueira não era assim. À noite, havia tirose sangue,
por causa de mulher e de bebida. Agora, a Mangueira está diferente. Quase
nunca há uma briga.
Foi o samba que conseguiu esse prodígio – esclarece Saturnino (presidente
da escola) – Todos sabem que, se houver briga, a polícia acaba com o
samba. Por isso, quando alguém quer brigar, desce” (CABRAL, 1996:72-
74).

Interessante elemento, o morro ficou mais ordeiro para se “ajustar” e não ser
“proibido” pelas autoridades, antes era desordeiro nas palavras de Tia Raimunda.
Mas ficou mais “legítimo” à cidade toda e parece ter ficado mais “agradável” no que
tange a opinião de Tia Raimunda e do presidente da escola Seu Saturnino. O morro
não mudou só por vontade da polícia e da política oficial. As estratégias
empreendidas por seus moradores, em especial por membros das escolas tiveram
papel bastante relevante.
O resultado é negociado (uma espécie de negociação e conflito entre
comunidades e poder público), e me parece que foi assim mesmo, alcançando os
objetivos dos próprios moradores em ver a terra onde o samba se fazia cotidiano
mais articulada com a cidade, ou mesmo mais tranquila e “civilizada”.Voltando ao
93

desfile, a comissão julgadora fora formada por intelectuais, jornalistas e sujeitos


interessados no mundo do samba.
Poesia do samba, enredo34, originalidade e conjunto são os quesitos oficiais.
Agora a letra do samba já é levada em consideração e parece que é neste ano que
surge o primeiro samba-enredo de fato, foi na Unidos da Tijuca terceiro lugar
naquele ano. O título foi para escola mais popular da cidade e preferida da
imprensa, a do morro de Mangueira, bicampeã do carnaval. A cobertura do Correio
da Manhãfoi entusiasmada: “a escola de samba de Mangueira foi, sem dúvida
alguma, um sucesso” (CABRAL, 1996: 82). A Unidos da Tijuca foi saudada pela
imprensa como a primeira vez em que um samba principal aparecia de acordo com
a descrição do enredo, era “O Mundo do Samba” da Unidos da Tijuca. Sabemos
que nesta época as escolas desfilavam com dois ou mais sambas, um de ida, um
de volta e quase sempre estes sambas eram improvisados na hora pelos
versadores da escola que iam improvisando segundo o clima do desfile e da plateia.
A Unidos da Tijuca veio com três sambas este ano e o terceiro veio com a novidade,
além da firmeza frente ao enredo, a ideia de uma segunda parte (Idem: 83), veja:

Somos Unidos da Tijuca


E cantamos o samba brasileiro
Cantamos com harmonia e alegria
O Samba é nascido no terreiro

Não queremos abafar


Nem também desacatar
Viemos cantar o nosso samba
Que é nascido no terreiro
Perante o luar

Os sambas enredos só se popularizaram por volta dos anos 40, mas, ajustes
importantes como este não podem passar despercebidos. O fato é que a
normatização do desfile seria um processo vivo dali em diante, quanto mais
aumentava a atenção despertada pelos sambistas no “mundo do asfalto” mais

_______________________________________________
34
O enredo já existia nos Ranchos. O Deixa Falar, que vira Rancho, desfila em 1932 com o enredo A
Primavera e Homenagem à Revolução de Outubro. Saudando o golpe político de 1930. A ideia de
enredos nacionalistas já começa a dar frutos, incentivado por mediadores, por opções dos próprios
sambistas e nessa época mesmo por opção do governo. Contrário do que alguns pensam, o
Estado Novo não outorga esta adequação, são as Escolas que a antecipam. E repito, não só por
vontade de inclusão, mas também por estarem inseridas em um sentimento que tomava ares
culturais e políticos de valorização da pátria em toda a população.
94

ampliava a interferência de elementos “externos” a sua formação. Fora isso as


escolas também se organizavam e tornavam-se mais profissionais, no caso da
Mangueira, por exemplo, em pouco tempo já incorporava em si um corpo
administrativo com assembleias, reuniões e etc. Mas a ideia de samba-enredo não
agrada a todos, o próprio Cartola apareceria como um de seus grandes críticos,
pois ela desvirtuaria o movimento fundante das escolas, amarrando mais o desfile e
o tornando espetáculo bastante organizado e calculado.
Este foi também a primeira vez em que o desfile havia sido inscrito no
programa oficial de carnaval elaborado pela prefeitura do Distrito Federal e pelo
Touring Clube. Pedro Ernesto deslocou pequena verba para o concurso, além de
realizar aparições nas comunidades prometendo quadras e etc. Essa proximidade
do prefeito com o universo das escolas até hoje o faz ser lembrado por muito
sambistas, ePaulo da Portela era um dos que o admiravam, como uma espécie de
patrono das escolas cariocas (Idem, 1997).
Um fato que demonstra esse avanço organizativo foi a tentativa de despejo
de sete mil moradores do morro do Salgueiro, em 1934. Emílio Turano, “dono” de
outros morros cariocas, dizia ter comprado o Salgueiro por 20 contos de réis. O
sambista Antenor Gargalhada organizou a resistência, transformando a Escola de
Samba Azul e Branco em uma verdadeira associação de moradores. Conforme
relata Cabral, “a escola contratou o advogado João Luís Regadas para defender os
salgueirenses e, no dia 8 de janeiro, o juiz da Terceira Pretoria Cível, Nelson
Hungria, deu ganho de causa ao pessoal do morro” (CABRAL,1997:87). Aí a escola
de samba assumiu claramente o papel de representante da comunidade na luta
contra a ameaça de despejo. Separar uma coisa da outra seria muito difícil, no
caso, despejar o povo do morro do Salgueiro seria o equivalente a despejar a
Escola de Samba Azul e Branco de seu local de origem35.
Neste mesmo ano, o carnaval fora antecipado para o dia de São Sebastião
(20 de janeiro) e o jornal O País, junto ao chefe do gabinete do prefeito, Lourival
Fontes, organizaram uma grande festa em homenagem ao prefeito Pedro Ernesto.

_______________________________________________
35
A Escola de Samba Azul e Branco localizava-se no Morro do Salgueiro que hoje tem como sua
representante a conhecida Acadêmicos do Salgueiro. Na verdade a atual escola surgiu da fusão,
em 1953, da Azul e Branco e da Depois Eu Digo. Em 1958 a escola adota o famoso slogan Nem
melhor, nem pior, apenas diferente.
95

Desta vez com bilheteria, onde as Escolas de Samba receberam apenas 7% da


renda (o restante da distribuição foi 35% para as Grandes Sociedades, 30% para os
Ranchos, 25% para os Blocos, e 3% para o Andaraí Clube Carnavalesco). E no final
das contas, as escolas de samba abrem mão da sua quantia minoritária em nome
das Grandes Sociedades. Pode ser que esta atitude demonstre um meio das
escolas serem “bem vistas”. A iniciativa foi do representante da Cada Ano Sai
Melhor, Rafael Alberto Corte e Flávio Costa, o presidente da Deixa Malhar do Rio
Comprido “deixou escapar” aos jornalistas que na verdade aquela havia sido uma
medida tomada com o intuito de que as escolas de samba ganhassem o apoio dos
grandes clubes da cidade para a sua própria festa (CABRAL,1997).
A Estação Primeira, que desfilou com o enredo “República da Orgia” sagrou-
se mais uma vez campeã. E recusou-se, já que eleita pelo júri “oficial” do evento no
Campo de Santana, a disputar um evento com júri popular realizado depois no
Estádio Brasil, colocando seu título a mercê de uma ‘guerra de torcidas’. A
vencedora deste segundo desfile foi a Recreio de Ramos. E de fato as coisas não
andaram muito bem no desfile no Estádio Brasil, houve uma violenta briga entre a
Azul e Branco e a Vizinha Faladeira. Um dirigente da Azul e Branco na época narrou
o seu lamentar pelo conflito: “temos nos batido para acabar com essa mentalidade
de rixa. E haveremos de conseguir” (CABRAL, 1998). ‘Essa mentalidade’ ia dando
lugar a uma nova realidade, mais ordeira, menos violenta, mas, ainda não tão vazia
de rivalidades, estas ainda serão muitas, mesmo que expressadas de outra forma.
Mais desfile e menos navalha.

1.7 Preparando os desfiles oficiais

Em 1934 a Escola de Samba Vai Como Pode solicita ao delegado Dulcídio


Gonçalves a renovação de sua licença de funcionamento. O delegado responde
sugerindo a mudança de nome da escola, e afirma que não daria a licença a
nenhuma Vai Como Pode (considerado pelo delegado nome chulo), sugere Portela
que era o nome da rua principal da comunidade, o pessoal aceita (CABRAL, 1998).
No mesmo ano, outro fato, de valor bastante relevante para a história do carnaval
acontece, é formada e sancionada em 6 de setembro a União das Escolas de
96

Samba. Eram as escolas se organizando na busca de alcançar o mesmo status das


grandes sociedades, dos ranchos e outros festejos. Em carta endereçada ao
prefeito e ao departamento de turismo a entidade explicita seus objetivos:

“os núcleos onde se cultiva a cultura verdadeira música nacional,


imprimindo em suas diretrizes o cunho essencial da brasilidade. [...]
Explicas que estão as finalidades desta agremiação, sob vosso patrocínio,
composta de 28 núcleos, num total aproximado de 12 mil componentes,
tendo uma música própria, seus instrumentos próprios e seus cortejos
baseados em motivos nacionais, fazendo restringir o carnaval de rua, base
de toda a propaganda que se tem feito em torno de nossa festa máxima”
(citado em AUGRAS, 1998: 34).

Em sintonia com o clima cultural e político da época as Escolas lançavam o


manifesto de fundação de sua entidade representativa. Ora, não podemos pensar
que isto tenha sido mera influência do poder público e pensar que os populares
estariam absolutamente desconectados do rebuliço de ideias que acontecia naquele
tempo. Outro elemento que mostra o avanço de seu grau de organização e
legitimidade é um dos artigos do decreto da prefeitura:

“Artigo único – Os auxílios às escolas de samba para a exibição no


carnaval, quando concedidos a juízo da Administração, serão entregues à
União das Escolas de Samba, que os distribuirá equitativamente pelas suas
federadas, sujeitas, porém, à fiscalização por parte da diretoria Geral de
Turismo que, para isso, registrará a lei da União” (Idem: 34).

Mesmo que a verba e a atenção recebida estivessem longe de acompanhar o


peso das Grandes Sociedades, ou mesmo dos Ranchos, as Escolas mostravam
disposição em se enquadrar nas regras do jogo e o prefeito, na época Pedro
Ernesto, não perderia tempo em incentivar a subvenção e a premiação. Segundo
Augras (1998) esse comportamento, das Escolas, caminha em sintonia com a
expectativa oficial. Não que isso se configure como um processo de repressão e
dominação, e sim como uma construção mútua das novas manifestações populares
no carnaval, ou mesmo do papel das classes populares no jogo político da cidade.
Até, pois como se sabe, Pedro Ernesto estava fundando o seu Partido Autonomista
do Distrito Federal. Segundo Queiroz (1984):

“A tolerância e mesmo a benevolência que a prefeitura do Rio de Janeiro


demonstrou então para com as Escolas de Samba sem dúvida decorreu
destas circunstâncias. Inúmeros testemunhos se referem às verdadeiras
transações que se operavam entre fundadores de escolas de samba, chefes
97

políticos em diversos níveis, candidatos e vários postos, altos funcionários


em diversos níveis, candidatos a vários postos, altos funcionários em busca
de prestígio. Destes solicitavam os fundadores das escolas melhorias e
privilégios para elas, contra certo número de votos no momento das
eleições; e obtiveram o que desejavam” (1984: 901).

Tudo bem que trocas e aproveitamentos se estabeleceram, mas só temos


que tomar cuidado com a tônica de que tudo fora decidido por cima, isto é, os
desfiles só ocorreram devido à boa vontade da prefeitura em aceitar a nova
manifestação. Esse elemento desvaloriza o empenho dos populares em garantir um
espaço reconhecido para suas manifestações e sua disposição em negociar para
concretizar esse objetivo. Ao mesmo tempo, que os ventos políticos e culturais pós-
1930 valorizam o carnaval popular, dispondo mesmo do interesse de integrar esta
parcela da população através da cultura. (SOIHET: 1998).
Tanto nos parece correta a argumentação de Soihet (1998), que se dermos
uma olhada no regulamento estabelecido pela UES encontraremos um elemento
bastante discutido nos estudos sobre Escolas de Samba, já no segundo ano de seu
funcionamento a entidade estipula a adoção de enredos nacionalistas, isto é, temas
nacionais, diferentemente do próprio Rancho que não exige tal referência. Uma
autocensura dos diretores das Escolas ora, já promovendo-se como raiz da cultura
nacional, ora, adequando-se, ou mesmo sendo um elemento do clima cultural e
político vigente. Isso não representa ser “fantoche” do Estado, até porque, o DIP só
iria incentivar essa “exigência” no carnaval de 194036. Acredito que a capacidade
das Escolas tornarem-se símbolo nacional, tem ligação muito íntima com esta
flexibilidade. Assim, segundo a mesma autora, a institucionalização do samba no
caminho da construção da UES seria resultado da:

“1 – preocupação dos sambistas com a sua organização, para facilitar a


divulgação e a aceitação do samba pelos diversos setores da sociedade
brasileira, não ficando este restrito aos segmentos populares;
2 – possibilidade de abrir um canal de comunicação entre as escolas e os
demais organismos da sociedade, prática cada vez mais necessária às
atividades dessas agremiações, especialmente na época do carnaval,

_______________________________________________
36
Em 1939 a Escola Vizinha Faladeira seria excluída dos desfiles por não abordar temas nacionais.
10 meses antes mesmo da criação do DIP. A censura mais dura frente aos sambistas se dará
somente com o governo Dutra. Podemos também entender, está autocensura dos sambistas no
período da ditadura, como uma medida que antecipa a exigência, mantendo relativa autonomia do
movimento.
98

quando era preciso haver um relacionamento mais estreito com os órgãos


responsáveis pelo planejamento das atividades carnavalescas;
3 – necessidade de os sambistas possuírem um órgão que defendesse
seus interesses, principalmente o controle dos direitos autorais dos
compositores, que, via de regra, tinham suas músicas furtadas por cantores
conhecidos que as registravam como de sua autoria” (1998: 141).

Todo esse clima de institucionalização, negociação, busca por respeito e


legitimidades, em muito tem ligação com a posição de grandes lideranças
comunitárias bastante articuladas com políticos, funcionários públicos e gente da
imprensa. Segundo Lutgarde Barros em pesquisa sobre a cultura popular no
nordeste brasileiro (1988), “a consequência mais imediata da cultura popular é o
surgimento de muitos homens do povo produtores de ideologia” (1988: 143). Aqui,
posso sugerir que as comunidades construíram seus intelectuais e lideranças, gente
que unificava e articulava sob um formato de liderança a representação coletiva
daquele lugar. Cartola e Carlos Cachaça unificaram o morro da mangueira em uma
Escola, em depoimento de Cartola recolhido em Moura (1988):

“eles viram (o povo do morro) a organização, o modo como mudamos da


água para o vinho e foram se chegando e foram acabando os bloquinhos.
Depois fez-se a junção geral. No ano seguinte, mestre Candinho, Tia
Tomásia foram praticamente tudo para a Estação Primeira, 'nós vamos
disputar com o Estácio! Vamos disputar com a Favela! É a Mangueira que
está em jogo' . E aquilo foi vindo, e nós chegamos onde está hoje”.

Antes de continuar esta questão, propriamente a do papel dos intelectuais e


lideranças, o discurso de Cartola demonstra que o próprio sentimento de
comunidade, gestado ao longo de mais de uma década é um elemento bastante
forte na constituição do formato das Escolas de Samba, vamos disputar com a
Favela! É a Mangueira que está em jogo. E a meu ver, as Escolas só ajudam a
reforçar mais ainda este elemento, porém ampliando o patrimônio social do samba
na cidade do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que amplia a legitimidade deste
setor da população para com o restante da cidade. Esse fator é muito forte, basta ir
ao ensaio de qualquer Escola de Samba, para perceber como seus membros
caminham na quadra como figuras ilustres ao meio de muita gente que nunca teve
contato com a comunidade. Fazer parte da Escola também poderia ter um elemento
de autoestima social.
Outro membro destacado das Escolas era Paulo Benjamin de Oliveira, o
Paulo da Portela, personagem de nosso próximo capítulo. Podemos dizer com certa
99

tranquilidade que este carpinteiro e lustrador fora uma das mais expressivas
lideranças populares da vida carioca. Além de grande compositor e passista, era
uma espécie de relações públicas da Portela. Na época de desfile Paulo corria às
redações de jornais da cidade diplomaticamente avisando as novidades do carnaval
portelense, além de tudo era grande apoiador de Pedro Ernesto (CABRAL, 1998).
Seu prestígio dentro e fora da comunidade era muito grande, do lado de dentro a
liderança de Paulo era muito clara, a Portela tinha que dar o exemplo, tinha que
acabar com a ideia de que Escola de Samba era lugar de vagabundo. Assim ele
anunciava: “Quero todos de pés e pescoços ocupados”, todo mundo de sapatos e
gravata no desfile, ninguém de chinelos, de camisa com colarinho aberto e gola de
pé como faziam os malandros daquele tempo. No mundo do samba, o prestígio de
Paulo era inquestionável.Ganhou mais de uma vez os diversos prêmios dados às
personalidades do samba, que era patrocinado por parte da imprensa carioca
edepois pela UES37. Na Figura 35, a seguir, Paulo Benjamim de Oliveira (Paulo da
Portela), Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Alcebíades Barcelos (Bide) e Armando
Marçal caminham no bairro Engenho de Dentro.

Figura 35 – Personalidades do samba

Fonte:(Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes>. Acesso em: 10


dez.2011).

_______________________________________________
37
Paulo da Portela é objeto do segundo capítulo desta pesquisa.
100

Na verdade, a maioria das escolas tinha o seu “Paulo”, o da Portela sem


dúvida foi o mais atuante. Como vimos, tinha também nos seus quadros gente com
relação boa com as “autoridades” da época. Mas mesmo assim, mostrando a
antecipação das Escolas frente à boa vontade do poder público, a polícia ainda
marretava em muito os sambistas, dizia-se naquela época que os maiores inimigos
das Escolas de Samba eram a polícia e a chuva.
Eram coisas que só iam acontecer no carnaval. Como o ritmo expressão dos
setores mais marginalizados da cidade cresceu a ponto de seu representante anual,
eleito cidadão do samba (depois cidadão Momo) escolher as regras de
comportamento na cidade no carnaval (evidentemente, tudo não passava de uma
brincadeira). Em 1936 Paulo da Portela, foi eleito Cidadão Momo38 da cidade, a
imprensa publicou o primeiro decreto de Paulo para o período do carnaval:

“Eu, Cidadão Momo de 1936, eleito pelos foliões desta cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro, de acordo com os poderes que me foram
conferidos para governar durante o tríduo da folia,
Considerando que o nosso regime republicano não se coaduna com um
reinado, nem mesmo carnavalesco,
Considerando que o samba nasceu no morro e rei não frequenta morro,
Considerando que no carnaval não pode haver vassalagem,
Considerando que a monarquia, pelas próprias extravagâncias do rei, por
mais popular que seja não pode encarnar o samba, a verdadeira alma do
carnaval,
Resolvo destronar o rei, que terá a sua cidade como ménage, ficando sem
efeito todo e qualquer decreto lavrado pelo monarca, a estas horas reduzido
à expressão mais simples” (CABRAL, 1998: 111).

Não era o mesmo povo que assistiu bestializado a formação da República


assinando, aqui pelas Escolas de Samba, sua aliança como novo regime? Agora
veremos as regras escolhidas por Paulo para gerir a cidade, sabemos que após o
decreto, o jornal A Pátria estampou em manchete: O RIO SOB A DITADURA DO
CIDADÃO DO SAMBA! Vejamos o decreto:

“1 Ficam suspensos todos os pagamentos de pensões, lavadeiras,


senhorios e a todos os cadáveres.
2 Os patrões dos empregados que forem despedidos por estarem a serviço

_______________________________________________
38
Em tempos de república, a ideia de Rei Momo pegava mal e virou Cidadão Momo, esse prêmio é
uma variação do cidadão do samba que Paulo já havia conquistado.
101

do Cidadão do Samba ficarão sujeitos a multas de 500 mil-réis a um conto


de réis, o que será escriturado nos livros de ouro das escolas a que
pertencerem.
3 Os homens da prestação ficam na obrigação de fornecer todas as
fazendas necessárias à indumentária de carnaval durante os folguedos da
República do Samba, sob a condição de receberem como sinal apenas um
por cento do valor da respectiva compra.
4 As patroas ficarão com a incumbência de tomar o lugar de suas
empregadas para o melhor brilhantismo da festa.
5 Todo cidadão encontrado na rua que não esteja completamente
embriagado pela alegria, sujeitar-se-á à pena de cinco dias de prisão na
Praça Onze, na balança, num roda de batucada, a fim de compreender as
delícias do samba.
6 Todos os aristocratas desta democratíssima república são condenados,
sumariamente, a aderir ao meu governo, a fim de compreenderem que o
samba é feito de pedaços d'alma, cintilações do cérebro, muito amor e
grande dose de amor pátrio.
7 Durante minha administração, os bebês ficam incumbidos de se
defenderem com suas mamadeiras, enquanto as babás caem no pagode
rasgado.
8 Todo aquele que, por atraso mental ou por mal fingida hipocrisia não
queira concordar com o absoluto domínio do samba, deve ir se desguiando
de fininho para não ser considerado desmancha-prazeres” (Idem: 112).

Na verdade, tudo não passava de uma boa brincadeira, mas na declaração


de Paulo estavam os elementos dafesta ao avesso, do mundo na forma que os
populares o queriam. Não que assim se fizesse o carnaval, como já disse a própria
polícia não entendia essa questão e continuava atrapalhando a festa. O discurso
traz em si elementos também de apoio à república e sintonia com o discurso de
valorização das coisas nacionais, anunciando a hegemonia do samba como seu fiel
representante e a futura, e breve, hegemonia das Escolas. Mas ao cuidado,
devemos atentar para não cair na polêmica que fora travada em cima da tese de Da
Matta (1978) sobre as suspensões sociais na época do carnaval, onde este se faria
“situação-limite de informalidade e de incontinência total”, enxergando este como
um período de communitas, onde é imperativa a marca de inversão das hierarquias
na sociedade. Se for de certo que Paulo com seu discurso disputa poder em defesa
do grupo que o faz representante, não podemos assimilar a situação do carnaval do
Rio de Janeiro como um papel de simples “inversão” (e nem me parece que assim
Da Matta o trata), mas sim de demonstração das concepções de mundo e vida dos
populares, tal como a época onde se demonstram com mais força suas estratégias
de negociação, organização e relacionamento social entre si e com o restante da
cidade.
Segundo Amaral (2000), Roberto Da Matta define o carnaval, dotado de um
ritual com um discurso simbólico que destaca certos aspectos da realidade e os
102

agrupa através de inúmeras operações como junções, oposições, integrações e


inibições. Segundo a autora, os rituais podem dividir-se em: ritual de separação ou
ritual de reforço, onde uma situação ambígua torna-se claramente marcada; ritual
de inversão, onde há quebra dos papéis rotineiros e ritual de neutralização,
combinação dos dois tipos anteriores (DA MATTA, 1978). O carnaval brasileiro é
considerado por Da Matta como um ritual de inversão, onde as hierarquias por
alguns momentos se apagam: o pobre fantasia-se de príncipe, o homem de mulher
e assim por diante. O indivíduo não desaparece no grupo, pois segundo Da Matta
(1978: 93), "o projeto da sociedade brasileira, com suas regras e seus ritos, é o de
dissolver e fazer desaparecer o indivíduo". No carnaval, contrariando o projeto
social, as leis são mínimas: "É o folião que conta. É o folião que decidirá de que
modo irá brincar o carnaval" (DA MATTA, 1978: 115 in AMARAL, 2000).
Essa perspectiva da inversão é criticada por Maria Isaura Pereira de Queiroz
(1992), que observa que isto pode acontecer no nível dos sentimentos e
expectativas. Como se formasse um clima de inversão, no entanto, diz ela, ao se
adotar essa perspectiva, acaba-se deixando de lado o fato de que a festa, tal como
se organiza, apresenta estruturas e hierarquias que devem ser analisadas de perto
para verificar se esta visão de que existem, na festa carnavalesca, orientações
opostas às do cotidiano não é simplesmente uma visão teórica que pode ou não
encontrar respaldo na realidade experimentada pelos indivíduos.
Em termos de estrutura social não existe, na verdade, nenhuma inversão no
Carnaval, seja ele o de rua, o das escolas de samba ou mesmo dos clubes. E a
tendência futura é de ampliação da exclusão das comunidades do desfile
carnavalesco e das festas populares. Ainda, segundo Queiroz:

“Adotando somente tal perspectiva para o conhecimento da festa


carnavalesca, este fica exclusivamente circunscrito às emoções que a
comemoração desperta nos participantes; e as emoções constituem, assim,
as únicas vias para se chegar a uma explicação dos comportamentos. [...]
Não levando em conta senão a ideia que se formula a respeito da festa,
perde-se todo um leque muito rico de significados que decorrem das
relações entre o mito que afirma a instalação da desordem social e a
conservação das estruturas sociais que, na verdade, continuam imutáveis
sob a desordem aparente” (QUEIROZ, 1992: 196).

Para a autora, os dias de folia devem ser compreendidos como um rito de um


mito sobre a sociedade ideal:
103

"O conceito de Carnaval [...] é concebido como resultado de aspirações,


conscientes ou inconscientes, orientadas para uma sociedade ‘outra’, na
qual não existiriam nem injustiças, nem coerções; assim, mobilizaria a ação
dos indivíduos no sentido de instalar uma sociedade de liberdade e paz.
Muito embora o ideal não tenha sido nunca atingido, apesar de a festa se
repetir ano após ano, acredita-se sempre que o objetivo será um dia
alcançado; em todo caso, o fato de que ela se realiza novamente nas datas
fixadas mostra que a esperança está sempre presente, assim como o apego
e o gosto pelo folguedo: uma vez que a sociedade alternativa pode durar
quatro dias, por que não poderia ela se instalar finalmente de modo
definitivo?" (QUEIRÓZ, 1992:182).

1.8 Cidadãos e Escolas de Samba: Alguns apontamentos para o balanço da


afirmação do samba nos anos de 1930

Mesmo que até a década de 1950 as Escolas de Samba ainda não


representassem o elemento máximo da festa carnavalesca brasileira, tentei neste
capítulo, compreendendo o período que nasce na Belle Epoque carioca até a
ascensão do Estado Novo demonstrar os elementos que deram a tônica no formato
das Escolas de Samba, e como com elas, as classes populares inauguram um novo
cenário de participação social na república. Tentei demonstrar como este cenário
não é fruto somente de uma ação do poder público para com os populares, como se
acostumou a pensar com o fortalecimento da ditadura Vargas. Tentei mostrar os
elementos sociais que favoreceram este acontecimento, em especial as ações das
classes populares na cidade do Rio de Janeiro, que terminaram na construção
daquele que passou a ser chamado de O maior espetáculo da Terra pelos cariocas.
Nos anos que circundam 1930, este elemento fica mais forte, pois a
compreensão de hegemonia em nosso país passa pelo entendimento de que, os
interesses dos diversos segmentos sociais não poderiam mais ser ignorados por
qualquer grupo que aspirasse à hegemonia política no Rio de Janeiro e no país,
fazendo-se esta cidade caixa de ressonância para todo o país e capital da república,
este cenário somente se fortalecia. A reconstrução da nacionalidade encontra no
samba um de seus elementos mais agregadores, até pelo comportamento de trocas
culturais flexíveis, desenvolvido pelos setores envolvidos no mundo do samba no
Rio de Janeiro. Soihet (1998) traz um importante elemento para este debate, onde a
autora acredita em um momento que as forças convergem. De um lado, os
populares, que se dispõem à conquista do espaço público não mais se contendo em
104

seus grupos religiosos e tradicionais. De outro, a proposta de valorização da cultura


popular por um Estado que se dispõe a realizar a união entre a elite e as massas e
que, com a junção entre natureza e cultura, por intervenção da política, faria a tão
sonhada integração. No caso, o carnaval, sendo a maior festa popular, passa a ser
alvo de forte atenção. Assim, as Escolas de Samba, simbolizam o crescimento da
participação popular no espaço simbólico e material da cidade, umas variedades de
elementos, que tentei esboçar neste estudo, facilitam esse acontecimento. Veremos
um cenário de concessões mútuas, onde os populares aproveitaram todas as
brechas dadas de forma bastante criativa e articulada, que podem ser bem definidas
em outra declaração do nosso Paulo da Portela: “devemos impor a cultura e a arte
de nossa raça, respeitando e fazendo respeitar as normas e leis. O sambista deve
ser responsável e correto, cultivando a união e evitando a violência” (ARAÚJO,
1991: 185).
Em 30 de janeiro de 1936, segundo Cabral (1998), um ensaio da Estação
Primeira era transmitido diretamente para a Alemanha nazista em edição especial
da Hora do Brasil. Era a escola usada como propaganda do regime ao seu “aliado”
no exterior, claro, que não podemos dizer que a Mangueira era nazista, acredito que
nem se tinha este questionamento, mas claramente apoiava a participação em tal
ação governamental, isso claramente dava legitimidade, o que foram mostrar aos
alemães para falar do Brasil? A Escola de Samba, que coisa estranha frente a
ideologia racial daquele país. E a disputa, não ficava só por conta do Estado, os
comunistas também entraram na disputa, seus periódicos como a Tribuna Popular
enfatizariam sempre a importância daquela manifestação da cultura popular. Os
anos da década de 40 viveriam uma verdadeira guerra fria39no samba, culminando
no fechamento pelo regime da UGES (agora União Geral das Escolas de Samba)
acusada de ter comunistas no seu quadro, em especial devido ao forte apoio da
Tribuna Popular a entidade, que culminou em um desfile no Campo de São
Cristóvão, no dia 15 de novembro de 1946, em homenagem a Luiz Carlos Prestes
sujeito bastante querido por Paulo da Portela. Também, não que os portelenses
fossem comunistas, mas o povo admirava o Cavaleiro da Esperança. Este elemento

_______________________________________________
39
Para saber mais sobre a relação estabelecida entre comunistas e escolas de samba ver a pesquisa
de Guimarães (2005).
105

serve para mostrar que as Escolas de Samba não estavam somente subordinadas a
ordem acima de tudo, mas também, aos poucos, vão deixando de ser patrimônio
somente de seus “fundadores”, entrando em cena mais como um espetáculo que
traz na sua expressão artística a mediação de vários interesses, cada qual com a
sua capacidade de influenciar e produzir a síntese cultural expressa na sua
produção. Influenciam, cada qual a sua intensidade relativa, o povo, a assistência, o
turista, o julgador, o patrocinador, o rádio, a indústria fonográfica, os políticos, e etc.
Mas, a comunidade onde ela se originou, continua tendo na escola, um canal
privilegiado de expressão de seus interesses e concepções de mundo, disso não
nos resta dúvida. Só fica difícil de perceber para aqueles que continuam
enxergando as classes populares de forma estanque, incapaz de construir
estratégias alternativas aos modelos clássicos de guerra social e outros
estereótipos de padrão reducionista.
No capítulo seguinte vamos nos aproximar mais de um personagem
específico no período aqui analisado, é Paulo Benjamin de Oliveira ou Paulo da
Portela. Como já fora dito aqui, Paulo foi a principal referência da Portela nesse
período, além de que fora uma das figuras mais respeitadas e articuladas no
universo do samba carioca. Compreendendo este personagem dentro de sua
conjuntura poderemos perceber com mais força o movimento de afirmação, ou
melhor, de integração da cultura popular no Rio de Janeiro do último século.
106

2. DE PÉS E PESCOÇO COBERTO: PAULO BENJAMIN DE OLIVEIRA

2.1 Indivíduos x Sociedade: o lugar sociológico da questão

Paulo da Portela foi uma das principais lideranças de um movimento artístico


que elevou as escolas de samba do Rio de Janeiro a ser uma das principais
atrações festivas da cidade. Sob todos os aspectos este movimento sócio histórico
modificou positivamente o lugar da cultura popular no Rio de Janeiro. Isto é, Paulo
foi liderança de um movimento que ajudou a remodelar o pacto urbano, onde a
população negra foi elevada ao nível de protagonista da maior festa popular da
cidade. As escolas de samba da capital fluminense são fundadas no final da década
de 1920 e em menos de trinta anos ganham a centralidade da festa carnavalesca
carioca. Em pouco tempo, as escolas se tornariam o cartão postal da cidade e
símbolo de identidade cultural do carioca em todo o país.
De que modo as escolas de samba funcionaram como dispositivo de
integração cultural da comunidade negra da cidade, no período entre a primeira
república e o governo Vargas?
O primeiro período, sobre o qual me prolonguei no capítulo anterior, é de
fundação das agremiações carnavalescas. Deste momento, participaram diversos
ilustres compositores bem conhecidos de nosso tempo, como Cartola, Paulo da
Portela, Ismael Silva, Noel Rosa e tantos outros. Acima de tudo, aquele foi um
tempo de união em busca de um lugar que mudasse a imagem e a realidade do
sambista na cidade.
Um segundo período pode ser identificado na história da escola de samba,
quando nos aproximamos da sua consolidação no início dos anos de 1960. Nesse
período, o crescimento das agremiações produz divisão, questionamento e
mudança, Cartola sai da Mangueira, Paulinho da Viola se afasta da Portela,
Candeia funda uma nova escola de samba se remetendo ao passado glorioso de
Paulo Benjamin de Oliveira.
Mesmo aqueles que concordavam com os rumos que as escolas tomavam
enxergavam nos seus fundadores a figura do herói. Ao analisar o discurso de
pessoas que conviveram com Paulo da Portela percebemos o tom enaltecedor.
107

Paulo é quase sempre tratado com alguém diferente e heróico (FARIAS, 1999).
Sem esquecer aqui a crítica de Bourdieu (1997) a certa magnificação da história da
vida como método de conhecimento histórico-sociológico, e levando em conta que
as pessoas se apropriam criativamente das histórias que vivem e nesse momento
como indivíduos portam os sentidos como espécie de objetividade coercitivamente
externa, é importante reter que realizam e reinterpretam ao interpretarem suas
atitudes. Munidos desse alerta, podemos seguir em frente, mas de todo modo, a
valorização da história de Paulo da Portela pelos seus contemporâneos parece ser
em si, um elemento que atesta a sua legitimidade no grupo.
Diversas vezes o pesquisador tem acesso a práticas sociais do passado
através de textos ou depoimentos. Melo (2010), debatendo com Chartier, percebe
que o fundamental no trabalho do pesquisador vem a ser justamente o de procurar
entender as relações entre o discurso, às práticas sociais e o contexto os quais ele
se refere. Nesse sentido o discurso deve ser pensado como mediação, e não deve,
portanto, ser entendido como possuindo uma identidade imediata com a as práticas
sociais de determinado grupo (MELO, 2010).
Tal como Farias (1999) e Melo (2010), entendemos o indivíduo como uma
entidade capaz de atribuir e recriar os sentidos. Dessa forma, a individualização é
incorporada não apenas como um atributo intrínseco ao agente pelas forças
homogeneizantes do concerto societal, porém diz respeito também ao modo como,
segundo circunstâncias e recursos específicos (culturais, simbólicos e materiais), os
sujeitos podem desenvolver táticas que incidem sobre o sentido (FARIAS, 1999).
Deste modo, se essas intervenções não subvertem toda uma ordem, podem,
contudo permitir ao indivíduo inserir no seu posicionamento na teia social tanto
diferença quanto distinção, ao impor a própria vontade mesmo contra resistências.
Paulo se tornou uma unanimidade nesse universo que circunda a produção
cultural do samba. Ao se remeter a um personagem dessa importância na trajetória
de seu grupo, seus membros podem elaborar visões que enaltecem o lugar de sua
principal referência e do seu próprio grupo. Como já alertado, isso não significa que
seu discurso não seja uma impressão complexa de uma realidade histórico-social e
mesmo, do lugar de determinado processo e personagem na história (FARIAS,
1999).
É claro também, que em ambientes de produção artística (ou mesmo em
movimentos culturais mais abrangentes) existe uma tendência a romantização do
108

passado, ou melhor, do momento de fundação. Tende-se a atribuir uma pureza a


este momento, como com os primeiros sambistas, os fundadores da Bossa Nova,
os instituidores do Partido Alto, os criadores do Rock and Rool e etc40.
Por esse caminho percebo Paulo como um personagem central na análise da
trama que envolve o sucesso dos desfiles carnavalescos na cidade. Por isso
enfrentaremos aqui uma discussão acerca da chave sociológica41 entre indivíduo e
sociedade.
Em "A Sociedade dos indivíduos" (1994), Elias demarca que a sociedade é
composta por indivíduos e estes são constituintes da coletividade, ambos
imbricados, não sendo plausível ponderar os termos de forma apartada. Não há
sociedades sem indivíduos e, analogamente, não há indivíduos sem sociedade.
Conforme seus habitus, para falar também em termos bourdieusianos, os
indivíduos, integram e compõem a sociedade, modelando-se e modelando-a ao se
pautarem uns com os outros.
A construção teórica de Elias sobre a questão indivíduo/sociedade explora as
relações ativas entre os termos – e suas caracterizações – em distintas sociedades
e tempos históricos. Segundo Bariani (2005), ao analisar a vida do compositor
Mozart, Elias propõe também um enigma superior: “Após lidar com a intrincada
questão da relação indivíduo/sociedade, e estabelecer as configurações e modos de
articulação possíveis entre os termos, como lidar com a incômoda figura do
indivíduo que – possuidor de características especiais, talento e peculiaridade –
ameaça transpor as barreiras que limitam a ação do homem singular numa
sociedade? A saber, como lidar com uma liderança como Paulo da Portela que, em
sua condição individual, extrapola os limites do homem comum e avança
vorazmente sobre as rédeas da história, tentando influenciá-la decisivamente”.
Segundo Elias:

_______________________________________________
40
Mais adiante veremos como esse tipo de visão permeou o discurso de uma geração de sambistas
que resolveu, em meados da década de 1970, questionar os caminhos rumo a espetacularidade e
a patronagem dos bicheiros, que modificaram sensivelmente diversas escolas de samba.
41
Nas últimas décadas, a sociologia é tomada por uma insatisfação com os modelos teóricos
predominantes no pós-guerra, acusando nestes uma tendência em operar dicotomicamente,
privilegiando ou ação, ou estrutura. São exemplos importantes dessa crítica acadêmica
pesquisadores como Elias, Giddens, Bourdieu, Habermas, entre outros.
109

“Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja a sua estatura, poderosa
sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis
autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para a qual eles
são dirigidos. Nenhuma personalidade, por forte que seja, pode [...] deter
mais do que temporariamente as tendências centrífugas [...]. Ela não pode
transformar sua sociedade de um só golpe”. (ELIAS,1994: 48).

Entretanto, cada sociedade e cada momento da história têm modos e ritmos


próprios que determinam formas particulares de configuração e de inter-relação
entre indivíduo e sociedade. A relação indivíduo/sociedade está permeada pelas
particularidades de cada sociedade, conjuntura, de cada período histórico. Não
existe uma fórmula geral indicando a grandeza exata da margem individual em
todas as fases da história e em todos os tipos de sociedade.
Tal como argumenta Elias (1994), o que caracteriza o lugar do indivíduo em
sua sociedade é que a natureza e a extensão da margem de decisão que lhe é
acessível dependem da “estrutura e da constelação histórica da sociedade em que
ele vive e age” (1994: 50).
De nenhum tipo de sociedade essa margem estará completamente ausente.
Entretanto, a forma e a extensão dessa margem individual de decisão podem variar
consideravelmente, conforme a adequação e a estatura pessoais do ocupante da
função. Aqui, a margem de decisão é não apenas maior como também mais
elástica; nunca, porém, ela é ilimitada (BARIANI, 2005).
Dessa forma analisamos o movimento de Paulo da Portela, homem de seu
tempo e que soube assumir a liderança de seu grupo se aproveitando de todas as
brechas de sua sociedade para modificar qualitativamente o lugar do seu grupo na
cidade do Rio de Janeiro. Paulo como indivíduo se relaciona com uma sociedade
que, como qualquer outra, tem por trás um sistema de coerções para que o
indivíduo se condicione. Mas, como esse indivíduo não se anula, ele percebe na
própria vida social os espaços de atuação que modificam a sua capacidade de
negociar, interferir e se posicionar em uma verdadeira disputa por poder.
Se olharmos mais profundamente a vida de Paulo, articulando sua trajetória
mais específica com o universo que consideramos no capítulo anterior, podemos
perceber como essa liderança emerge de seu contexto e, ao mesmo tempo,
negocia e dinamiza o seu ambiente. As principais referenciais à história de Paulo
Benjamin de Oliveira são extraídas da pioneira pesquisa de Silva & Santos (1980),
biógrafas de Paulo da Portela. A Fundação Nacional de Artes (Funart) durante
110

muitos anos financiou pesquisas sobre personalidade do universo cultural da cidade


do Rio de Janeiro, a pesquisa de Silva & Santos sobre Paulo da Portela foi uma
dessas. Outra fonte muito preciosa, foi o já bastante citado As Escolas de Samba do
Rio de Janeiro do jornalista e pesquisador Sérgio Cabral (1998).

2.2 Notas adicionais sobre o subúrbio carioca

Até o início do século XIX, a ida aos subúrbios era feita no lombo dos animais
ou nas carretas. A Estrada de Ferro Central do Brasil chegava somente até
Cascadura, que foi a região escolhida para a instalação de uma das quatro
primeiras estações da Estrada de Ferro Dom Pedro II da região, ainda em 1858.
É somente no ano de 1890, que o trem chega a Madureira e a implantação
da estrada de ferro torna o bairro um importante eixo ferroviário, remontando à
época em que fora ponto de convergência das estradas para Santa Cruz,
Jacarepaguá e Irajá, quando a região foi importante ponto de comércio e parada de
viajantes42.
A ramificação ficaria completa em 1898 com a inauguração da Linha Auxiliar,
inicialmente chamada Inharajá e, hoje, a importante Estação de Magno, assim
chamada em homenagem ao engenheiro Alfredo Magno de Carvalho. Ao lado desta
estação foi montado o mercado em 1914, em pouco tempo o bairro de Madureira
firmar-se-ia como o principal centro de comércio do subúrbio carioca. Nessa época,
também, fora instalado o bonde puxado a burro, o que durou até 1929 quando a
eletricidade chegou à linha que ia até Irajá.
Em 1937, com eletrificação dos trens suburbanos da Central, Madureira foi
definitivamente deixando para trás a configuração rural de outros tempos. O bairro
que já iniciara um processo de urbanização consolidava-se como o mais forte
núcleo comercial e cultural do subúrbio carioca. Se, no censo de 1920, Madureira

_______________________________________________
42
Uma importante pesquisa sobre o papel do sistema ferroviário no desenvolvimento do subúrbio do
Rio de Janeiro pode ser encontrada em: PECHMAN, Robert Moses - A gênese do mercado urbano
de terras, a produção de moradias e a formação dos subúrbios no Rio de Janeiro. IPUR, UFRJ,
1985, tese de mestrado.
111

sequer aparecia marcado como bairro, duas décadas mais tarde um novo censo
registraria um expressivo crescimento populacional: 111.300 habitantes onde
antesse contavam somente 27.106. Nesse ritmo, a antiga região agrícola tornou-se
uma zona residencial e comercial avançada na cidade. Pechman (1985), Santos
(1996), Vianna (2008). Abaixo, parte do pátio da estação de Madureira em 1909
(Figura 36). Reparar nas casas ao fundo, de construção bem típica da Central do
Brasil nessa época. (Foto Augusto Malta). A seguir (Figura 37) a mudança já com a
eletrificação do sistema em 1937.

Figura 36 – Parte do pátio da estação de Madureira em 1909

Fonte:(Disponíveis em: <http://www.estacoesferroviarias.com.br>. Acesso em: 10


dez.2011).

Figura 37 – Sistema eletrificado em 1937


112

Fonte: (Disponíveis em: <http://www.estacoesferroviarias.com.br>. Acesso em: 10


dez.2011).

Inicialmente, a modificação da região se deu, sobretudo na segunda metade


do século XIX, à medida que as novas estações iam surgindo apareciam novos
loteamentos oriundos do desmembramento das grandes fazendas de cana de
açúcar solapadas pela crise da economia canavial na cidade. Os lotes atraiam todo
o tipo de gente, de migrantes a pessoas que não podiam arcar com os custos da
moradia no centro urbano.
Os migrantes que ocupavam a região eram formados, sobretudo, por ex-
escravos e seus descendentes, provenientes das fazendas da região do Vale do
Paraíba, do interior de Minas Gerais, e de fazendas do interior do próprio Rio de
Janeiro. Essa gente, de essência rural, foi ajudando a elaborar uma comunidade,
marcadamente, organizada em torno das festas religiosas, da música e da dança.
Foi no ano de 1898, que foi inaugurada a estação Rio das Pedras, atual
Oswaldo Cruz. Mas a ocupação do bairro só ganharia força entre os anos de 1905 e
1920, como já visto, em especial pelo processo de reurbanização do centro do Rio
de Janeiro, empreendido por Pereira Passos, que como já decorri no capítulo
anterior superinflacionou o preço das moradias na cidade, levando várias famílias a
fazer sua vida nos subúrbios.
Paulo Benjamin de Oliveira, que nasceu no bairro da Saúde em 1901, chegou
em 1920 para morar com a família em Oswaldo Cruz, uma localidade com estilo
campestre, com propriedades simples, enfeitadas por mangueiras e abacateiros. A
113

vida da comunidade ia, aos poucos, organizando-se mesmo em torno dos hábitos
religiosos, das festas, da música e do futebol (Silva & Santos,1980).
Como já alertei, Paulo nasceu em meio ao rebuliço político da reforma
urbanística, onde a população pobre, em especial a parcela negra, teve que se
redefinir material e simbolicamente enquanto grupo social nos morros43 e subúrbios
da cidade. A implantação da ordem positivista e higienista da República Velha criou
a necessidade de reestruturar a cidade.
Com o grande número de migrantes em direção ao Rio de Janeiro, a
ocupação populacional das regiões suburbanas da cidade, como Oswaldo Cruz,
aumentou. Essa região foi se transformando em área residencial para as camadas
populares, fator impulsionado, como já dito no capítulo anterior, pela industrialização
dos subúrbios e com eles a construção de diversas vilas operárias; o papel
desempenhado pelos trens e pelos bondes; o custo mais baixo das moradias e,
principalmente, a reforma urbana que desalojou as pessoas do centro urbano.

2.3 A trajetória de Paulo da Portela

Paulo se mudou para Oswaldo Cruz na década de 1920. Podemos dizer que
o bairro que deu origem a Portela lembrava em muito uma cidade do interior, uma
roça oriunda do desmembramento de diversas fazendas. A população suburbana,
em sua maioria, se deslocava diariamente para trabalhar no centro do Rio de
Janeiro, ou em outros subúrbios (em especial nas fábricas e em pequenos
estabelecimentos comerciais). Segundo Silva & Santos (1980), diferente de
Madureira, que já contava com bonde, se andava mesmo de cavalo. O bairro era
repleto de currais e valões. Não havia calçamento nem luz, as pessoas moravam
em pequenas chácaras, vilas e habitações coletivas. A parte mais pobre do subúrbio

_______________________________________________
43
Muitos trabalhadores permaneceram no centro da cidade por falta de condições econômicas para
mudarem para outras regiões, como as suburbanas. Como já informei a principal alternativa para
esses indivíduos foi à ocupação dos morros que era o lugar de moradia barata. O primeiro capítulo
constitui uma referência bem completa sobre esse processo.
114

lembrava em muito as favelas urbanas. Na Figura 38 abaixo, a moradia de Paulo e


sua família localizada na Estrada da Portela, 338.

Figura 38 – Moradia de Paulo da Portela

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:102)

Os espaços de lazer e encontro foram sendo forjados pelos seus moradores


dando continuidade a tradição das festas rurais44. As festas têm um elemento
fortíssimo de coesão social nessa região, as pessoas viviam como um grupo onde
todos se conheciam.
Dessa forma, várias residências se tornaram ponto de encontro da
comunidade, quase sempre por motivação artística ou religiosa. Seu Napoleão, na
Estrada da Portela. Seu Vieira, na rua Perdigão Malheiros (local hoje conhecido
como buraco quente), eram importantes festeiros do bairro. Dona Martinha, Dona
Neném e Dona Esther famosas mães-de-santo da época tinham sua casa sempre
aberta para a comunidade. O binômio festa-religião articulava a vida social do
grupo, e é quase impossível separar um do outro. As celebrações religiosas em
geral, tal como os terreiros de candomblé eram locais de folguedos constantes.
No Brasil diversos autores das ciências sociais trataram a temática da festa,
e para a maior parte destes autores, em especial aqueles que trataram do universo
do samba (GOLDWASSER, 1975; LEOPOLDI, 1978; DA MATTA, 1978; MAGNANI,

_______________________________________________
44
Como já dito, grande parte dos moradores de Oswaldo Cruz viam de migrações rurais e da fuga da
especulação imobiliária no centro da cidade. É importante também frisar que boa parte das
referências, curiosidades e dados foram extraídos da excelente pesquisa de SILVA, Marília T.
Barbosa e SANTOS, Lygia. Paulo da Portela. Traço de união entre duas culturas. Edição Funarte,
Rio de Janeiro, 1980.
115

1984; BRANDÃO, 1989), a festa brasileira possui sempre uma face positiva,
mediadora e edificante. Brandão (1989), ao estudar as festas no interior de vários
estados brasileiros, observaria que a festa é:

"[...] o lugar simbólico onde cerimonialmente separam-se o que deve ser


esquecido e, por isso mesmo, em silêncio 'não festejado', e aquilo que deve
ser resgatado da coisa ao símbolo, posto em evidência de tempos em
tempos, comemorado, celebrado". (BRANDÃO, 1989:8).

A festa envolve os mesmos sujeitos, objetos e estrutura de relações da vida


social e os transfigura. Para Amaral (2000), a festa exagera o real. Ela se apossa da
rotina, mas não a rompe; excede sua lógica, e é nisso que ela força as pessoas ao
breve momento da transgressão. Assim, a ideia de transgressão relaciona-se, para
ele, ao exagero, à ultrapassagem de limites, ao excesso. As próprias inversões são
exageros, simbolizando aspectos sempre latentes no comportamento das pessoas.
A festa no Brasil tem especificidades desde o princípio da colonização, como
aponta Mary Del Priore (1994). Em primeiro lugar, porque é uma festa que a maior
parte das vezes não “nasce” no Brasil, tendo sido para cá transplantada pelos
colonizadores do período colonial, que fizeram dela entre outros, instrumento de
inserção dos portugueses, catequização dos índios e negros e tornou menos difícil a
vida num lugar estranho, com um meio ambiente desconhecido e por vezes hostil.
Como não podia deixar de ser, atenta Rita Amaral (1998), todos acresceram
à festa sua parcela de símbolos, enriquecendo-a. Para se moldar à realidade
cultural brasileira a festa europeia foi sofrendo grandes transformações, não apenas
dos aspectos mais formais, mas também de sentido, sendo uma festa ao mesmo
tempo lúdica, transgressora, utópica e uma linguagem para a qual se traduziram e
se traduzem, desde sempre, as expectativas populares, vindo a constituir inclusive
um “modelo de” e “para” (GEERTZ, 1978) a ação popular e de organização coletiva
(AMARAL, 1998).
A pesquisa da antropóloga Rita Amaral (1998), sobre os sentidos das festas
brasileiras, argumenta que a festa brasileira possui um papel constitutivo, que não
pode ser visto como inconsequência e simples busca do prazer, mas antes, do que
se pode chamar de uma:

“primeira "tomada" de consciência dos direitos e deveres de cidadão, em


tudo que isto implica de aprendizado de participação, seleção e negociação;
116

que ela pode conter tanto o desejo de extravasar sentimentos e anseios,


como preocupações de ordem social e/ou políticas” (1998:56).

As festas eram determinantes na rotina dos subúrbios e Paulo da Portela


estava sempre presente. Seu parceiro Antônio Caetano45, em depoimento para Silva
& Santos (1980), conta que o primeiro bloco de Oswaldo Cruz foi fundando por
Paulo. Era um bloco bem pequeno (com 12 membros na fundação) e ainda não
tinha o formato que daria origem às escolas de samba, era um bloco de marcha-
rancho, mais um fato que atesta a relação construída no capítulo anterior de Paulo,
tal como de outros sambistas que criaram as escolas de samba, com a estrutura
dos Ranchos carnavalescos46.
Mesmo distante do miolo central, Oswaldo Cruz também era frequentado
pelos outros sambistas do restante da cidade. A casa de seu Napoleão, por
exemplo, era muito frequentada pela turma de sambistas do Estácio: Brancura,
Baiaco, Aurélio e Ismael Silva, que eram frequentadores do candomblé que seu
Napoleão mantinha no bairro do Estácio, na Rua Maia de Lacerda.
Depois das sessões religiosas, começava a festa de batucada (CABRAL,
1996).Na Figura 39 abaixo, uma imagem de uma festa em Oswaldo Cruz no ano de
1930.

Figura 39 – Festa em Oswaldo Cruz em 1930

_______________________________________________
45
Antônio Caetano, como veremos adiante, fundou, com Paulo da Portela e Antônio Rufino dos Reis,
o Conjunto Carnavalesco de Oswaldo Cruz, que depois deu origem à Portela. Estes três
personagens ficaram conhecidos como o “primeiro triunvirato da Portela”.
46
No primeiro capítulo demonstrei a estreita relação entre o modelo dos Ranchos e das Escolas de
Samba.
117

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:102)

O "novo ritmo", o chamado Samba Moderno que se gestava no Estácio tinha


nessas festas ponto de encontro com a cultura local de Oswaldo Cruz. Foi nessa
casa que pessoas como Paulo da Portela e Ismael Silva se conheceram. Na
verdade, estou afirmando aqui, que mesmo com a reorganização espacial da
cidade, diversos espaços continuaram funcionando como local de troca e encontro
entre grupos geograficamente mais afastados.
Segundo a pesquisa do musicólogo Thiago Aquino (2004), sobre o jongo no
Rio de Janeiro, nessa época, as festas de Oswaldo Cruz não eram animadas pelo
samba, mas sim pelo Jongo e pelo Caxambu47, que era uma manifestação de
origem rural e oriunda das tradições africanas.

_______________________________________________
47
Ainda, segundo Edson Carneiro (1966), na cidade do Rio de Janeiro, a região compreendida pelos
bairros de Madureira e Oswaldo Cruz, já nos anos imediatamente posteriores à abolição da
escravatura, centralizou durante muito tempo a prática desta manifestação na zona rural da antiga
Corte Imperial, atraindo um grande número de migrantes ex-escravos, oriundos das fazendas de
café do Vale do Paraíba. Entre os precursores da implantação do Jongo nesta área se destacaram
a ex-escrava Maria Teresa dos Santos muitos de seus parentes ou aparentados além de diversos
vizinhos da comunidade, entre os quais Mano Elói (Eloy Anthero Dias), Sebastião Mulequinho e Tia
Eulália, todos eles intimamente ligados a fundação da Escola de Samba Império Serrano, sediada
no Morro da Serrinha.
118

Estes ritmos foram fundamentais no sistema de trocas que deu origem ao


samba moderno e fazem parte do cenário de Oswaldo Cruz até nossos dias. O
Jongo da Serrinha é um importante movimento de resgate cultural. Agrupa diversos
jongueiros da cidade e trata de preservar a tradição e o folclore do movimento. A
página eletrônica do Jongo da Serrinha traz informações relevantes:

"O jongo influenciou decisivamente o nascimento do samba no Rio de


Janeiro. No início do século 20 o jongo era o ritmo mais tocado no alto das
primeiras favelas pelos fundadores das escolas de samba antes mesmo do
samba nascer e se popularizar. Os antigos sambistas da velha guarda das
escolas de samba realizavam rodas de jongo em suas casas. Nessas festas
visitavam-se uns aos outros, recebendo também jongueiros do interior [...].
O jongo, por ser uma festa de divertimento, mas com aspectos místicos, fez
com que a dança se restringisse aos ambientes familiares. Por isso, ao
contrário do samba, que logo conseguiu hegemonia nacional, acabou sendo
pouco divulgado. O fato do jongo ser praticado apenas por idosos e proibido
para os mais jovens foi outro fator que levou a dança a um processo
acelerado de extinção".

O interessante nessa citação é o fato de que as próprias informações


oferecidas pelo grupo atestam uma espécie de "sagacidade" do samba moderno em
ocupar o espaço de representante da cultura afro-brasileira na mediação com o
restante da cidade.
Atestam dois elementos importantes, a separação (mesmo que apenas
formal) entre festa e religião negra e o fato do jongo ser proibido para os mais
jovens. Este segundo elemento está diretamente ligado ao primeiro, pois a ideia de
que só os mais velhos podem participar tem ligação com o respeito das tradições
religiosas que só poderiam ser levadas a cabo por pessoas experientes e
trabalhadas na religião.
Outro elemento precisa ser também anotado, as tradições do “samba rural”
ou “regional” vão sendo suplantadas mais facilmente no meio urbano e nas favelas,
pois ali se faz mais forte o fortalecimento do campo da profissionalização artística,
onde o samba-regional vai se aproximar de ritmos de salão como o lundo e a
modinha demarcando uma transformação no ritmo fundamental para sua entrada na
sociedade do Rio de Janeiro, tal como pode ser atestado na importante pesquisa de
Carlos Sandroni (1998), sobre as transformações do universo rítmico do samba
carioca.
Retornando as festas do subúrbio da cidade, Paulo da Portela aos poucos foi
se forjando como o principal organizador dos eventos festivos de Oswaldo Cruz.
119

Como nos atesta Silva & Santos (1980), tornou-se organizador das festas da casa
de Dona Esther, a mais famosa mãe de santo do bairro. As festas de D.Esther em
pouco tempo se tornaram o centro da vida social da região. Sua casa era
frequentada desde pela comunidade até por artistas de rádio, como Pixinguinha,
Donga, Ademilde Fonseca, entre outros. Tal como aconteceu na casa da negra
Ciata na Praça Onze, a casa de D.Esther se tornou importante espaço de encontro
entre diversos grupos da cidade, desde gente muito pobre, mediadores culturais,
até políticos locais.
Ainda, segundo as autoras e Cabral (1998), Paulo da Portela é relatado por
seus contemporâneos como um “mestre de cerimônias” dessas festas, dotado de
algumas características fundamentais para entender sua força no grupo: liderança
ecarisma.
A casa de D.Esther pode ser compreendida dentro da discussão feita no
capítulo anterior sobre a pequena África, a casa da negra Ciata. Dona Esther e seu
marido possuíam condição financeira privilegiada para os padrões do bairro, foram
morar lá por desavenças com o bloco onde eram casal de mestre sala e porta-
bandeira em Madureira. Sua casa era frequentada pela comunidade e se fazia
assim lugar de conexão entre outras pessoas da cidade, desde sambistas de outra
região até políticos locais, jornalistas e artistas da indústria fonográfica.
Tal como já apontei no inicio desta pesquisa, lugares como a casa de Tia
Ciata e Dona Esther apontam o entrecruzamento e a convivência dos “mundos
aparentemente paralelos” da sociedade carioca (elite e povo), sendo usados como
exemplo de permeabilidade os encontros onde se reuniam chorões, batuqueiros,
sambistas e capoeiras, ao lado de representantes da elite intelectual e artística.
Este grupo forma uma elite da comunidade popular e passa a atuar como
força social ativa nas negociações sociais engendradas na comunidade, em
especial, pelo respeito que adquirem para além de suas casas.
Além de que, é nas casas das tias que se reafirmavam valores e símbolos da
comunidade negra. Estes espaços são um laboratório constante para novas
experiências estéticas onde as novidades da cultura urbana eram divulgadas.
Assim, funcionavam como espaço de mobilização social. Porém funcionavam
também como espaço de mediação, levando em consideração que pessoas com
certa influência no mundo exterior (à comunidade) transitavam pelo local.
120

Na Figura 40 abaixo, Dona Esther já mais velha, no aniversário de Antônio


Caetano em 1950. Ela está no centro da foto com os braços no ombro de Caetano.

Figura 40 – Dona Esther em 1950

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:104)

Na Figura 41, Eusébio Rosa, marido de Dona Esther, figura muito conhecida
em Oswaldo Cruz.
121

Figura 41 – Eusébio Rosa, marido de D. Esther

 
Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:102)

Fala-se que D.Esther tinha um estilo muito rígido e brigão. Segundo Silva &
Santos (1980), alguma colocação em demasiado autoritário de Dona Esther teria
aborrecido Galdino Marcelino dos Santos, partideiro respeitado nas rodas de samba
de Oswaldo Cruz, que ao brigar com D.Esther, saiu de seu bloco e estimulou a
criação um bloco que saísse a rua, e não somente ficasse no quintal, como
acontecia com o de D.Esther.
Dessa forma, no ano de 1922, a rapaziada de Galdino Marcelino resolveu
fundar um bloco que desfilasse na rua48, e assim nascia o baianinhas de Oswaldo
Cruz, que tinha como ponto de localização a esquina da Estrada da Portela. Foi
nesse bloco que se deu o encontro definitivo de Paulo da Portela, Antônio Rufino e
Antônio Caetano, os futuros fundadores da Portela.

_______________________________________________
48
Um fator interessante é o início do relaxamento para com as manifestações negras. Elas começam
a ocupar a rua, antes tinham que ocorrer em casas fechadas e sob a máscara de ritual religioso.
Nesse momento também, as casas das tias deixam de ser um local tão privilegiado enquanto
foram nos tempo de repressão. Era somente ali que aconteciam as trocas culturais mais amplas e
mediadas com o restante da cidade.
122

Em 1923, o bloco já tinha até estatuto e visava uma organização séria,


inclusive, com estrutura de diretoria. Paulo era o segundo diretor de harmonia.
Foi nessa época também que se firmou o apelido de Paulo da Portela. Bento
Ribeiro era a estação vizinha a Oswaldo Cruz e lá vivia outro Paulo, também
sambista. Para diferenciar o pessoal começou a chamá-los de Paulo Bento Ribeiro
e Paulo da Portela, em referência a Estrada da Portela, principal via de Oswaldo
Cruz. (SILVA & SANTOS, 1980)
Entretanto, o bloco não durou muito tempo, em especial por conta de uma
briga entre seus membros, e o triunvirato Paulo, Rufino e Caetano criavam no ano
de 1926 o Conjunto Carnavalesco Escola da Samba de Oswaldo Cruz, já fazendo
uma referência direta ao movimento que se fortalecia no Estácio e na Mangueira.
Paulo era o presidente, Caetano o secretário e Rufino o tesoureiro. Os encontros do
conjunto se davam num espaço alugado atrás de um botequim, no número 412 da
Estrada da Portela. As reuniões se davam nas casas dos participantes e também
dentro dos vagões do trem (Idem). Veja o relato de Ernani do Rosário, um de seus
passageiros, citado em Nóbrega (1997:85):

"O pessoal da Portela se reunia diariamente. Mas era no trem. A reunião era
na Central. Aqueles que trabalhavam vinham no trem das seis e quatro, da
Central para Osvaldo Cruz, esse trem era paradouro, vinha parando em
todas as estações desde o Engenho de Dentro a Cascadura. A turma
desabava toda em Osvaldo Cruz, a maioria. Outros iam para Bento Ribeiro,
Madureira e adjacências.
Ali se passava o samba. Já começava a passar o samba na Central,
enquanto esperava a hora do trem. O pessoal ia chegando quatro horas,
quatro e meia, até seis e quatro, quando chegava o trem. E uma turma ia de
Osvaldo Cruz. Quando chegava umas cinco horas, tomava um banhozinho,
botava o paletó, enfiava o tamborim debaixo do braço e partia pra lá pra se
reunir. Na estação D. Pedro II, o carro de prefixo Deodoro era a sede móvel
da Portela, a sede volante. As pessoas iam de Osvaldo Cruz até a Central
pra poder voltar junto. Nesse tempo não tinha roleta, não tinha coisa
nenhuma. O sujeito entrava no trem, o condutor ia cobrando, picotando as
passagens. Muita gente não pagava.
O hábito de viajar no seis e quatro durou muito tempo. Meu pai era
sapateiro. Eu ajudava a ele. Se acabava mais cedo, não tinha importância:
esperava o seis e quatro".

Segundo depoimento de Antônio Osário, membro do grupo:

"Ali no trem passávamos os sambas. Quando chegava no domingo, grande


parte já conhecia de cor. Saía nego de mansinho, aí, tamborim debaixo do
braço, pandeiro, só não tinha cuíca. [...]
Paulo vinha sempre nesse carro, andava de um lado para o outro no trem,
advertindo às vezes quem se comportava mal. Ele sempre organizando.
Tinha bastante moral sobre os outros." (SILVA & SANTOS, 1980:44)
123

Nélson Fernandes da Nóbrega (1997), geógrafo estudioso do


desenvolvimento das escolas de samba do Rio de Janeiro, dá uma importante
impressão sobre o grupo que se formava nas reuniões do trem da central:

"No alvorecer da Portela, impressiona desde logo como esses grupos


populares foram capazes de aderir a projetos próprios com uma militância
profunda, suficiente para superar os estratagemas de exclusão e
confinamento previstos no urbanismo “desurbanizante e desurbanizador” da
República Velha. Um dos episódios que marcam esta epopeia foi o
estabelecimento de uma “sede” móvel da Portela, no trem da Central das
18:04 h, que, mesmo depois da obtenção de sede fixa, deve ter continuado
a ser um dos meios de aglutinação daqueles sambistas que, ao invés de se
alienarem e se entediarem com a longa viagem, discutiam seus problemas,
estabeleciam parcerias artísticas e musicais". (1997:51)

Muita gente que morava em Oswaldo Cruz trabalhava no centro e voltava


junto no trem cantando e discutindo sobre a escola de samba. Interessante notar,
que Osário, em seu depoimento, destaca o papel de Paulo em não permitir a
bagunça, já fazendo referência a sua reputação de ordeiro, de estimulador de um
tipo de comportamento que retirasse o estigma de baderneiro dos sambistas.
O mesmo processo, como aparece no capítulo anterior, ocorreu na fundação
da Mangueira, através da unificação dos blocos do morro sob a liderança dos
Arangueiros de Cartola, estimulando um determinado tipo de comportamento que
aparecia como propício à obtenção de êxito.
Os membros do conjunto de Paulo confeccionaram ternos brancos iguais,
sapatos tipo carrapetas e chapéus de palha. Esse tipo de estratégia ia à sintonia de
mudar a imagem dos sambistas. Utilizar vestimenta refinada ao invés de sandálias e
camisetas que, perante a sociedade da época, só eram reforçadores dos estigmas
já sofridos pelos negros.
Nessa época Paulo cunhou o seguinte lema: Sambista, para fazer parte do
nosso grupo, tem que usar gravata e sapato. Todo mundo de pés e pescoço
ocupados. Nas fotos abaixo podemos perceber o estilo dos sambistas de Oswaldo
Cruz.
Na Figura 42, foto clássica de Paulo da Portela, percebemos o estilo elegante
do sambista.
124

Figura 42 – Paulo da Portela

Fonte: (Disponível em: <http:// portelaweb.com.br>.


Acesso em: 10 dez.2011).

Na Figura 43, foto do conjunto vocal organizado por Paulo da Portela ainda
nos anos 30.

Figura 43 – Conjunto vocal

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:102)


125

Na Figura 44, foto do grupo regional de Paulo da Portela em apresentação


em 1938.

Figura 44 – Grupo regional de Paulo da Portela

 
Fonte: (Disponível em: <http:// portelaweb.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).

Segundo suas biógrafas (SILVA & SANTOS, 1980:74), essa estratégia49 teve
como ponto de reflexão uma festa que ocorrera em Oswaldo Cruz, na casa de
D.Esther, neste evento iria muita gente importante para os padrões do lugar.
O grupo de sambistas do Estácio chegou vestido de camiseta e bermuda e
não pode entrar. É como se a associação ao estigma impedisse a mobilidade de
parte do grupo social, logo outra parte do grupo se apressa em modificar seu
comportamento negociando sua inclusão.
Tal como analisado no capitulo anterior, esse movimento não pode ser
compreendido somente nos marcos de uma estratégia de adequação, é preciso
compreender quanto existe de um mundo no outro (elite x povo), e quanto do
entrecruzamento cultural na sociedade do Rio de Janeiro foi forjando novos
horizontes na cultura popular. Os chorões se tornaram a referencia quanto à

_______________________________________________
49
Seria impossível afirmar se a estratégia de Paulo visava somente remover o estigma. No campo
das individualidades esse tipo de ação é mais complexa, envolvendo, inclusive, o agente com os
movimentos mais gerais que a sociedade executava.
126

profissionalização artística na cidade por troca entre elite e povo, e por representar
uma possibilidade de reconhecimento e integração.
Dirigindo-se ao momento de fundação da escola de samba Portela, Antônio
Caetano, um dos seus fundadores, traz elementos esclarecedores sobre a relação
com o Estácio em depoimento às biografas de Paulo da Portela:

"Eu resolvi chamar de escola de samba porque, nessa época, a gente


cantava samba que o Estácio fazia, aprendia com eles o ritmo. Agora, o
Estácio era um grupo, um conjunto daquele pessoal que cantava ali no
Estácio e ia para a Mangueira, São Cristóvão. Eles ainda não tinham
organização de escola de samba, mas usavam o nome". (Idem:44)

Se o samba moderno, tal como ritmo, nasceu no Estácio, seu modelo de


organização no formato de escola de samba aprumou-se em Mangueira e Oswaldo
Cruz. Segundo o outro fundador, Antônio Rufino, falando de Ismael Silva:

"O próprio Ismael Silva, com todo o respeito eu digo, ele foi um homem de
muito valor para a MPB. Foi o homem que, dizem, e eu acredito, tivesse
trazido um ritmo de samba para desfile de escola de samba, isso é muito
comentado. Mas não é um sambista de dirigir escola de samba e fazer o
que o Paulo fez". (Idem:46, grifos meus)

Nosso personagem, apesar de ser considerado por todos no mundo do


samba um grande compositor, ficou, de fato, marcado como o grande organizador
da escola de samba Portela e de um padrão de escola de samba, ou mais ainda, de
uma estratégia de comportamento “bem sucedida”, que influenciou e/ou estimulou
outros grupos a adotar. Ao perceber a eficácia do comportamento de Paulo, outros
grupos tendem a acompanhar o exemplo. Como já decorremos, Paulo também
seguiu um exemplo já executado pela estrutura organizativa dos ranchos que
gozavam de certo prestígio nos festejos carnavalescos e pela mediação entre
grupos sociais ocorridas nas casas das tias de lei, como Ciata e Esther. É
interessante notar como essas lideranças processaram via cultura a modificação do
lugar simbólico do negro na cidade. Como bem observou o estudioso da
religiosidade negra no Brasil, Júlio Braga:

“O negro soube criar e soube valer-se de situações sociais e culturais que


lhe permitiram, de alguma maneira, alcançar resultados práticos,
necessários à consolidação de alguns de seus interesses fundamentais [...]
Toda vez que interessou aos propósitos de suas reivindicações sociais o
negro soube, com extrema competência, aproveitar-se da situação social
em que vivia. Conduziu seu projeto maior de ascensão social com
127

habilidade, sabendo negociar, aproveitando as raras ocasiões favoráveis


para sedimentar bases sólidas que ainda servem de substrato às diferentes
frentes de lutas” (1995:18).

Outro fator também atribuído a Paulo foi a introdução de baianas mulheres


nos desfiles, como já disse no capítulo anterior. Antes, quem ia vestido de baiana
eram os homens, inclusive, com uma navalha na perna para "garantir" e defender o
bloco. Mas, como percebemos, os tempos vão mudando e a navalha e a briga vão
sendo suplantadas pela ordem e disciplina.
Daqui em diante entrarei mais na ação de Paulo no universo dos desfiles
carnavalescos. Focarei mais no universo de Paulo, enquanto o capítulo anterior
demarcou o movimento mais geral de afirmação das escolas de samba na cidade.

2.4 Nascem as escolas de samba: o crescimento da popularidade de Paulo


da Portela

Segundo Silva & Santos (1980), o conjunto musical de Paulo da Portela em


pouco tempo se tornava o mais popular do bairro de Oswaldo Cruz, e diferente da
rivalidade de outros tempos Paulo procurava participar dos outros blocos e ranchos
que nasciam no bairro, levava sambas para eles e invariavelmente era convidado
para ser padrinho de um novo bloco ou rancho.
Esse tipo de atitude diminuía a rivalidade, e motivava gente que queria fazer
um bloco, inclusive, a abrir mão para participar do conjunto de Paulo. Esse tipo de
relação seria fundamental no futuro das escolas de samba, onde a rivalidade nos
desfiles seria equilibrada com uma relação de alguma coesão entra as escolas,
fundando inclusive, adiante, uma importante organização, a UES, a União das
Escolas de Samba do Rio de Janeiro.
Aos poucos a estrutura de escola de samba foi se firmando, sempre em prol
da organização e da disciplina. Nô, membro antigo da escola de samba Portela, nos
traz um depoimento sobre o início da escola, demarcando o estilo da fantasia da
comissão de frente:

" [...] a primeira vez que nós saímos, foi uma cartolinha azul e branca, calça
de flanela branca e paletozinho azul, porque cada escola de samba naquele
128

tempo era muito simples" (Idem:60).

Repare a referência à simplicidade da comissão de frente se comparada aos


tempos atuais. Entretanto, a fantasia era um terno com cartola, muito semelhante,
guardada as devidas proporções, as roupas elegantes utilizadas, inclusive, no
centro urbano revitalizado.
Detalhes como esse mostram no mínimo a interação cultural na cidade,
porém, ainda podem revelar elementos de negociação com a ordem. A vestimenta
da comissão de frente é uma prova do processo de mediação cultural que ocorria.
Tanto pela vontade de se mostrar “civilizado”, quanto pelo efetivo sistema de trocas
culturais que ocorriam na cidade. Nos desfiles de escolas de samba, um elemento é
certeiro, existe sempre a busca de certa inversão (pobre se fantasia de rei, etc.),
mas aqui a inversão é condicionada, de alguma forma, pela ordem. No lugar de um
desfile desordeiro, uma comissão de frente elegante na roupa e na coreografia
apresenta a escola de samba, dando a tônica do modelo de festa que esta
apresentaria para a cidade.
O comportamento das escolas de samba começa aos poucos a modificar o
sentido da festa carnavalesca estimulando no lugar da transgressão a ordem.
Mesmo que ocorra inversão, a ironia e a sátira aparecem de forma controlada.
Paulo da Portela apareceu como o cicerone desse espetáculo, que ao invés de
produzir rompimentos, produziu integração e valorização da produção artística
popular. Mas a integração é a custa da redução da autonomia artística das
comunidades, tal como analisei no capítulo anterior, a adequação a ordem é
fundamental para compreender o sucesso dos desfiles carnavalescos.
No ano de 1931 o conjunto de Paulo da Portela muda de nome e se firma
como escola de samba, nasce a Vai como Pode. Nome que seria substituído em
1935 por Portela. Em pouco tempo os blocos de sujos, desorganizados e
indisciplinados segundo o padrão da época se aproximariam dos modelos de
organização bem sucedidos do rancho carnavalesco. Na Figura 45 abaixo, Paulo e
outro componente fantasiado no carnaval de 1930 para o desfile.
129

Figura 45 – Paulo e outro componente da escola de samba

 
Fonte: Disponível em Cabral (1997:123)

Silva e Santos (1980), biógrafas de Paulo e principal referência dos dados


aqui analisados, são unanimes em dizer que a maior parte de seus entrevistados
atribui a Paulo da Portela a adaptação social dos sambistas de Oswaldo Cruz. Isto
é, os contemporâneos de Paulo destacam o papel dele na modificação do
comportamento do sambista. O plano de Paulo era apresentar o sambista como
alguém civilizado e ordeiro, disposto a participar do clima integrador e de
valorização do folclore50 que se fortalecia na ditadura de Vargas.

_______________________________________________
50
No capítulo seguinte veremos como aos poucos a visão “folclorista” foi determinante para o formato
do projeto de identidade nacional do regime varguista.
130

Um fator interessante que as autoras citam é uma briga da Deixa Falar com o
Jornal do Brasil. A confusão fez com que o jornal lançasse nota atacando o rancho
que começava a ter problemas com a imprensa. Em contraponto, as autoras citam a
boa relação de Paulo com a imprensa como determinante para o seu sucesso num
mundo mais amplo que o seu. Segundo as autoras Paulo dizia sempre: "Todas as
minhas conquistas, eu digo, sem pejo de errar, devo-as à imprensa, esse poder
inconfundível que honra e dignifica a nossa nacionalidade" (Idem:72).
Paulo mais do que dividir quer integrar o seu grupo, por isso escolhe a via
diplomática, sempre muito bem apresentado, ele estava nas redações de jornal
divulgando o mundo do samba, depois, a sua futura relação com o prefeito Pedro
Ernesto o fará porta-voz direto das escolas com a prefeitura.
Em 1935 o desfile das escolas de samba, gozando do sucesso dos anos
anteriores, passa a fazer parte do calendário oficial da prefeitura. Nesse ano é
fundada também a UES (União das Escolas de Samba). Nasceu um regulamento
mais rígido, premiações em dinheiro, patrocínio e uma relação mais íntima e
clientelista dos novos sambistas com o poder público. Como já analisado no
capítulo anterior, o governo municipal se torna o principal financiador, junto a
imprensa, dos desfiles.
Neste ano, a Vai como Pode viraria definitivamente Portela, por sugestão do
delegado Dulcídio Gonçalves, que não gostava do nome anterior, achava um nome
desordeiro e sugeriu Portela para liberar o registro, a rapaziada da escola de samba
aceitou a sugestão, tudo isso no clima onde a ordem suplanta a desordem.
(CABRAL, 1998)
A radicalidade da primeira república em criar um projeto de civilização
embranquecida e positivista vai sendo substituída pelo projeto pedagógico e
integrador da Era Vargas, mediante, é claro, uma integração controlada. Tal como a
boa afirmação de Rocha (2008:219):

“Frente ao processo civilizatório, imaginado como inelutável pelos


defensores do iluminismo e, por conseguinte, do Evolucionismo aplicado à
sociedade, os valores e os costumes correspondentes ao mundo da cultura
popular considerados ameaçados de desaparecimento passaram a merecer
a defesa de inúmeros intelectuais que, em concorrência àqueles
movimentos intelectuais, viram nas festas, na poesia, nos jogos, nas
músicas e nas danças das classes subalternas, não só uma forma de
resistência cultural, senão um sistema cultural de preservação do 'espírito
do povo'”.
131

Nesse momento de valorização de uma identidade popular, mesmo que


folclórica, dirigida por cima (como anotei no capítulo anterior), podemos pensar que
os sambistas caem numa armadilha tutelar, mas na verdade, sua vida e seu
prestígio mudam na medida em que se inserem no processo vigente.
Paulo da Portela é um personagem totalmente inserido nessa mudança, quer
redefinir o lugar do seu grupo, à medida que os empecilhos vão diminuindo vai se
aproveitando das situações de conotação progressistas e integradoras
empreendidas pelo Estado.
Se antes o negro encontrava se em condições de segregação o clima
integrador do novo governo fora utilizado como espaço de fortalecimento da cultura
popular na cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, foram as ações empreendidas
pelos sambistas que fizeram com que as escolas de samba se tornassem a
representação maior produção cultural popular no Rio de Janeiro. A disposição em
suplantar o conflito pela ordem ou pela mediação resultou na inclusão das escolas
de samba na máquina clientelista do Estado.
Na Era Vargas, como bem analisa Farias (1999), o debate em torno da
questão do nacional e do ser brasileiro “toma o caminho norteado pelo primado
modernista do elo entre a tradição colonial popular (folclore) e a vanguarda moderna
internacional”. A literatura especializada no tema já debateu satisfatoriamente a
transformação do campo cultural brasileiro nesse momento, “quando passa a
comportar a proposta de mestiçagem e o elemento popular se torna o núcleo
ontológico da cultura brasileira (da brasilidade)”. (FARIAS, 1999).
Ainda, segundo o autor, como reposição do passado colonial, os modernistas
apreendem na cultura popular a primitividade originária da nação. É, então, aquela,
legitimada como a fonte de insumos para um projeto político e ideológico de
construção de uma identidade nacional (ORTIZ, 1984), cuja obra de Villa-Lobos se
torna o modelo exemplar.
Concordo com Edson Farias (1999), em ótimo artigo sobre a vida de Paulo
do Portela, este percebe que, o advento da Revolução de Trinta e da Era Vargas
transfere seletivamente para a esfera do poder estatal parcelas dos grupos urbanos
imbuídos da mentalidade de modernização do país (militares, empresários,
acadêmicos, músicos e outros) e de alguma forma envolvidos com as
manifestações pelo fim do poder oligárquico e da supremacia do modelo
agroexportador, ocorridas durante os anos vinte.
132

Entre esses, incluíam-se justamente vários dos intelectuais ocupados com a


temática da cultura brasileira, devotados ao tema do popular. Incluem-se como
especialistas simbólicos, verdadeiros tutores das representações sociais e dos
modos de classificação das práticas culturais, imprescindíveis na tarefa articuladora
inclusa nas atividades do ordenamento político central (FARIAS, 1999).
É nesse ambiente propicio a trocas e integração, que as escolas de samba
se fortalecem aproveitando-se da possibilidade de negociar sua entrada na arena
cultural “oficial” da cidade, em um primeiro momento, como cliente do Estado.

2.5 Paulo da Portela, cidadão do samba

No dia 14 de março de 1935, o jornal A Nação, lançava um concurso que


visava segundo sua própria matéria:

"o triunfo final da gente humilde, da gente que vive nos meios mais ou
menos inferiores. O operário nunca foi lembrado num grande certame para
ser o vencedor. E esse sensacional concurso que hoje iniciamos, ninguém a
não ser dos morros poderá concorrer, pois que é um concurso
exclusivamente para os homens que vivem nos morros. Nunca até hoje o
malandro do morro, o sambista que passa a vida inteira lá em cima, a olhar
as luzes que banham essa cidade maravilhosa teve a coroa de um reinado,
de um grande triunfo". (SILVIA & SANTOS, 1980:84)

Antes de qualquer coisa, quero reforçar a confusão que o próprio jornal faz
com a associação mítica do samba ao morro. Este lugar comum da nossa história já
fora debatido no capítulo anterior. Entretanto, o concurso diz ser exclusivo para o
pessoal do morro, no entanto, logicamente envolve o subúrbio, está ai estabelecida
uma conexão, ou confusão, interessante entre precariedade, exotismo e identidade.
Retornando ao concurso de 1935, o pessoal de Oswaldo Cruz percebe nele
uma importante fonte de legitimação da sua agremiação e lança Paulo como
candidato ao prêmio de "Maior Compositor das Escolas de Samba". Segundo Silva
& Santos (1980: 87), Antônio Caetano assume o papel de cabo eleitoral comprando
uma enorme quantidade de jornais e os distribuí em Oswaldo Cruz. Cada jornal
tinha um cupom cédula que deveria ser recortado e depositado na urna do jornal. A
cada semana saia a parcial, Paulo liderava e o jornal comentava no dia 11 de abril:
133

"Paulo da Portela continua sendo o mais cotado dos concorrentes ao nosso


sensacional concurso para eleição do maior compositor das nossas Escolas
de Samba. Aliás, justifica-se a dianteira em que se acha o sério concorrente
de Madureira. É que Paulo sabe cativar a simpatia do público, com seus
bons modos, com a sua distinção e, sobretudo, pela camaradagem com a
qual ele se dá com o pessoal que o rodeia. Quando seu nome surgiu na
lista entre os que procuraram galgar o primeiro posto, todos demonstraram
a solidariedade a Paulo" (grifos meus).

A imprensa elogiava o candidato que tinha se mostrado distinto reelaborando


a imagem do sambista na cidade. O que Paulo estabelece, de forma esclarecida ou
não, é um pacto com imprensa e Estado. Uma relação que pode custar um preço, a
adequação a um padrão de cliente, por outro lado, colocou a população negra da
cidade em melhores condições de negociar sua integração, mesmo que essa se dê
com modificações dos seus hábitos, comportamentos e tradições.
No dia 18 de junho, A Nação publica a vitória de Paulo:

"Paulo da Portela venceu. Com a última apuração ontem realizada, finalizou


o concurso [...]. Madureira pode ser hoje considerada a "bastilha do samba"
[...]. O vencedor é um legítimo rei que agora se consagrou. Contribuindo há
largos anos para a supremacia que o samba, nossa verdadeira música,
agora adquiriu, não poderia ser mais oportuna a consagração que vem de
receber". (Silvia & Santos, 1980:90)

No ano seguinte Paulo recebeu um prêmio de outro órgão da imprensa, o


jornal Diário da Noite elegeu o sambista de Oswaldo Cruz Cidadão-Momo do
carnaval carioca. Exatamente no dia 21 de fevereiro, mais de cem mil pessoas se
apertavam nas ruas compreendidas entre a estação Pedro II e a Esplanada do
Castelo, para saudar Paulo, que chegou de trem escoltado pela escola de samba
Portela. Centenas de automóveis formaram-se atrás do caminhão onde Paulo se
apresentou vestido com seu já tradicional terno e gravata. Silvio Caldas51 entregou o
prêmio em dinheiro e a chave da cidade para Paulo que discursou para o povo. No
dia seguinte, a imprensa publicou os decretos de Paulo:

“Eu, Cidadão Momo de 1936, eleito pelos foliões desta cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro, de acordo com os poderes que me foram
conferidos para governar durante o tríduo da folia, considerando que o

_______________________________________________
51
Silvio Caldas fora um dos grandes cantores da chamada "Era do Rádio".
134

nosso regime republicano não se coaduna com um reinado, nem mesmo


carnavalesco, considerando que o samba nasceu no morro e rei não
frequenta morro, considerando que no carnaval não pode haver
vassalagem, considerando que a monarquia, pelas próprias extravagâncias
do rei, por mais popular que seja, não pode encarnar o samba, a verdadeira
alma do carnaval, resolvo destronar o rei, que terá a sua cidade como
ménage, ficando sem efeito todo e qualquer decreto lavrado pelo monarca,
a estas horas reduzido à expressão mais simples” (CABRAL, 1998: 111).

Dessa vez Paulo está atacando a ideia de um Rei Momo, aproximando do


debate já feito por parte da imprensa e da UES, tal como do poder público, em não
fazer referências à monarquia, exaltando assim os valores da república. No ano
seguinte a UES, junto o jornal A Rua, organizarão o concurso chamado Cidadão
Samba.
Entretanto, um elemento aqui pode mostrar que as coisas começavam a não
ser tão unanimes em torno de Paulo. Segundo (SILVIA & SANTOS, 1980:104) Em
1936 a UES já havia brigado pela organização do concurso junto com o jornal A Rua
alegando que não deveria existir o concurso que Paulo ganhou, já exigindo a
criação do cidadão-samba, mesmo assim Paulo participou ativamente da premiação
de cidadão-momo, sendo, como observamos, aclamado pelo povo nas ruas da
cidade.
No ano seguinte, durante a organização do concurso, o jornalista Enfiado que
pertencia a UES saiu do jornal A Rua indo para A Pátria e quis levar o concurso com
ele. A UES apoiou o concurso de A Pátria. Porém, Paulo ganhou o concurso do A
Rua criando um clima polêmico com a entidade, mas não com a comunidade mais
geral do samba.
Noel Rosa (SILVIA & SANTOS, 1980:105) já tinha se manifestado contrário
ao concurso que Paulo ganhou, inclusive se recusando a participar, de "maior
compositor" em 1935. Ele alegava que o concurso não estava procurando premiar o
melhor compositor de fato. E é verdade, que Paulo era mais um organizador do que
o maior compositor. Paulo era uma relação pública muito mais “eficiente” do que
Cartola que era considerado, talvez, o grande compositor do morro segundo o
próprio Noel.
De alguma forma, o sucesso de Paulo começava a incomodar figuras do
mundo do samba. Seu excesso de prestígio começava a ofuscar os outros e dava
poder a Oswaldo Cruz, em detrimento das coirmãs. Mas, mesmo assim, a UES
voltou atrás na sua decisão de não apoiar o concurso de 1937 e ratificou o prêmio
135

aPaulo, que nunca mais voltaria a ganhar. Na Figura 46 abaixo a cédula utilizada no
concurso, extraída pesquisa de Silva & Santos (1980:112).

Figura 46 – Cédula de votação do


concurso de Maior Compositor

Fonte: (Disponível em: <http://portelaweb>.


Acesso em: 10 dez.2011).

O jornal A Pátria , no dia 4 de fevereiro de 1937, estampou em manchete: O


RIO SOB A DITADURA DO CIDADÃO DO SAMBA! Vejamos o decreto:

“1. Ficam suspensos todos os pagamentos de pensões, lavadeiras,


senhorios e a todos os cadáveres.
2. Os patrões dos empregados que forem despedidos por estarem a serviço
do Cidadão do Samba ficarão sujeitos a multas de 500 mil-réis a um conto
de réis, o que será escriturado nos livros de ouro das escolas a que
pertencerem.
3. Os homens da prestação ficam na obrigação de fornecer todas as
fazendas necessárias à indumentária de carnaval durante os folguedos da
República do Samba, sob a condição de receberem como sinal apenas um
por cento do valor da respectiva compra.
4. As patroas ficarão com a incumbência de tomar o lugar de suas
empregadas para o melhor brilhantismo da festa.
5. Todo cidadão encontrado na rua que não esteja completamente
embriagado pela alegria, sujeitar-se-á à pena de cinco dias de prisão na
Praça Onze, na balança, num roda de batucada, a fim de compreender as
delícias do samba.
6. Todos os aristocratas desta democratíssima república são condenados,
sumariamente, a aderir ao meu governo, a fim de compreenderem que o
samba é feito de pedaços d'alma, cintilações do cérebro, muito amor e
grande dose de amor pátrio.
7. Durante minha administração, os bebês ficam incumbidos de se
defenderem com suas mamadeiras, enquanto as babás caem no pagode
rasgado.
8. Todo aquele que, por atraso mental ou por mal fingida hipocrisia não
136

queira concordar com o absoluto domínio do samba, deve ir se desguiando


de fininho para não ser considerado desmancha-prazeres.(CABRAL, 1998:
114)”

O mesmo jornal anunciava ainda:

"Foi com um vozerio alegre que o povo abriu alas aos batedores da polícia.
Pouco depois a multidão rompeu numa estrondosa salva de palma: é que o
Cidadão-Samba, elegantíssimo dentro de sua casaca branca, guarnecida
de alamares prateados e envolvido pelos reflexos berrantes dos fogos de
bengala, surgia à frente saudando o povo carioca e pedindo passagem para
a sua gente! (Idem: 114)”

No jornal Gazeta de Notícias de 13 de fevereiro de 1937:

"Quando entrou na Praça Onze o cidadão-samba à frente da Escola de


Samba Portela, a multidão prorrompeu em aclamações e estrepitosas
palmas, demonstrando assim a grande popularidade de que Paulo da
Portela já é credor". (SILVIA & SANTOS, 1980:109)

Mais alusões à elegância (as normas e padrões de etiqueta daquele “negro


civilizado”), carisma e liderança atribuídos a Paulo da Portela. O grande diplomata
de Oswaldo Cruz e Madureira, segundo o Jornal do Brasil, em 24/02/1937: "Como
era esperado, estiveram no galho a Embaixada de Ouro da Escola de Samba
Portela, chefiada por Paulo da Portela, o intérprete número um do samba no Brasil".
Os anos de 1935, 1936 e 1937, apesar das dissidências, foram fundamentais na
escalada de sucesso de Paulo da Portela. Passou a ser uma espécie de
embaixador do samba na cidade, era convidado para eventos de todo o tipo, o que
o levaria inclusive a se afastar um pouco da organização do carnaval de sua escola
de samba.
Outro elemento que atesta o sucesso de Paulo em Oswaldo Cruz é o seu
número de afilhados na região, segundo suas biógrafas eram 36 ao total. É muito
comum em situações de maior precariedade vislumbrar no padrinho alguém que
posa “orientar” ou mesmo “ajudar” o afilhado no decorrer da vida. Elementos como
este demarcam a força dos laços comunitários e o respeito da comunidade por
Paulo.
Enaltecendo a ação do indivíduo Paulo da Portela, Silva & Santos (1980),
fazem um interessante comentário sobre a trajetória de Paulo, levantando algumas
opiniões, que destacam a sagacidade do personagem, como um dos elementos de
sua distinção. Destaco que as próprias biógrafas, no decorrer da pesquisa, atribuem
137

a Paulo características distintivas que de alguma forma diferenciariam sua ação na


sociedade. Aqui, entendo este tipo de narrativa, que projeta o personagem quase ao
nível de herói, como uma exaltação que atesta o lugar e o reconhecimento do
próprio personagem na história:

"Sua ideia de vencer era a de conseguir chances na outra cultura, adotar-


lhe os padrões, ter fama, dinheiro, ser aceito como igual. Quantas pessoas,
na comunidade de Oswaldo Cruz, queriam para si o que Paulo da Portela
queria para elas? Muito poucas, talvez nenhum sonhasse tão alto. Mas ele
continuava querendo, à revelia dos dois lados: a favela que zombava de
suas incompreensíveis pretensões e a outra cultura que tentava caiar-lhe a
pele, dando-lhe títulos em troca de seu talento - príncipe negro, preto alma
branca. Procurando ser amado pelos dois lados, Paulo não percebia que
um deles acabaria por crucificá-lo. Ou os dois" (SILVIA & SANTOS,
1980:94).

O comentário das biógrafas de Paulo da Portela mostra Paulo como alguém


que percebeu para além da comunidade, das desavenças menores, modificando o
lugar do seu grupo. Mas ao mesmo tempo, mostra a incapacidade de um
personagem suportar a pressão de agradar concomitantemente ao binômio elite x
povo. Segundo elas, ao adotar padrões da elite Paulo abriu a porta para a entrada
da sua cultura, entretanto os esquemas de mediação estabelecidos nem sempre
são harmônicos, gerando algum tipo de conflito.
Em novembro de 1937, um evento no Uruguai aumentaria as animosidades
entre Paulo e a UES. José da Rocha Soutello, presidente da Federação das
Pequenas Sociedades (composta em maioria pelos Ranchos) organizou uma
viagem de um grupo de sambistas a Montevidéu. Entre outros, o grupo era
composto por Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Marília Batista, a concertista
de violão Ivone Rabelo, o maestro Júlio de Souza e o grupo Turunas Cariocas.
Alcunhou o grupo de Embaixada do Samba.
O presidente da UES, em franca oposição ao prestígio de Paulo questiona a
viagem, alegando que ela não representava as escolas de samba e publica, aos 29
de novembro de 1937, no Diário da Noite, a seguinte nota: "Mas esse senhor,
embora se conheça nele um perfeito sambista, não quer dizer que esteja
credenciado para representar oficialmente a gente do samba". E continua:

"forçado pela atitude desse senhor, que se aliara a pessoas que tudo
fizeram para desprestigiar a diretoria desta União, e, consequentemente, as
próprias escolas, agitando o meio sambista, procurando cindir uma
organização oficial e representante máxima do samba". (SILVIA & SANTOS,
138

1980:115)

O presidente da UES ainda finaliza dizendo que o grupo levaria para o


Uruguai não é de samba, mas sim de "uma série de marchas nacionais". Esta última
declaração em sintonia com a afirmação do samba moderno frente a tradicional
marcha rancho que vinha saindo aos poucos de moda.
Segundo Silvia & Santos (1980), O grupo que foi para o Uruguai era bastante
amplo, desde integrantes de ranchos até cantores do rádio. Segundo o presidente
da UES Paulo estaria viajando com gente que havia, de alguma forma,
desprestigiado as escolas de samba. Entretanto, Paulo se colocava acima das
rivalidades, sendo sempre lembrado como mediador e negociador, o que pode em
algum momento desgastar sua legitimidade frente um grupo ou outro membro
descontente. As relações nesse universo ainda se dão em demasiado no âmbito
das pessoalidades, uma questão não atendida a uma escola, um bloco, um
sambista, quase sempre é levada como uma desavença pessoal e desonrosa.
Veremos que esta ideia “de levar para o lado pessoal” é fundamental para entender
a variedade de rixas e problemas que atravessavam o universo das escolas de
samba e da vida da comunidade em geral.
No ano de 1938 não houve vencedor dos desfiles das escolas, uma chuva
tomou a cidade prejudicando a apresentação. Entretanto, como já citado no capítulo
anterior, este ano marca a antecipação das escolas frente à política nacionalista do
governo federal. As escolas agora, por determinação da UES, terão que apresentar
somente temas nacionais em seus enredos.
No ano seguinte, a UES caça o cargo de Paulo no conselho fiscal da
entidade com a alegação de que Paulo não vinha tendo tempo de se dedicar por
inteiro a entidade. Tal fato leva o sambista a se empenhar com toda a força no
carnaval da Portela. Seus contemporâneos dizem que, neste ano, Paulo assumiu a
liderança de todos os setores da escola de samba: enredo, samba, harmonia,
fantasia, ficara tudo por sua conta. Rosário, amigo de Paulo, em depoimento para
Silva & Santos conta como foi:

"Esse ano eu não saí na Portela, não. Mas eu frequentava muito a sede,
ficava na sede com o Paulo. Ele resolveu que todo mundo ia fantasiado de
acadêmico, porque o nome que ele deu ao enredo era Teste ao Samba. A
capa dos acadêmicos era de crepe-cetim ou cetim-lamé. Aí o Paulo fez
crepe-cetim, que era mais caro, e eu saí no bloco de Olaria, porque não
139

podia gastar tanto dinheiro. Do samba eu me lembro, sim! todos gritavam


respondendo à tabuada" (1980:112).

As mesmas autoras, afirmam que Paulo da Portela, ressentido com as


disputas com a UES, desde os tempos de Cidadão do Samba, não poupou recursos
para fazer da Portela a maior escola do desfile daquele ano. Segundo elas, “a
resposta do príncipe negro aos dirigentes da UES viria no desfile” (idem: 123). O
samba desse ano também tem uma novidade, tal como o da Unidos da Tijuca de
1933, tem mais cara de samba enredo, com duas partes e uma sequencia baseada
diretamente no enredo. Vejamos o samba:

Vou começar a aula


Perante a comissão, muita atenção
Que eu quero ver
Se diplomá-los posso
Salve o "fessô"
Dá nota à ele senhor
Quatorze com dois doze
Noves fora tudo é nosso

Cem dividido por mil


Cada um com quanto fica?
Não pergunte à caixa surda
Não peça cola à cuíca
Lá no morro
Vamos vivendo de amor
Estudando com carinho
Que nos passa o professor

Paulo estruturou toda a escola em função do samba. Na frente da escola


vinha Paulo, vestido de professor entregando diplomas aos jurados. A alegoria
principal era um gigantesco quadro negro com os dizeres antenados ao clima
político vigente: Prestigiar e amparar o samba, Música típica e original do Brasil, e
incentivar o povo brasileiro.
Naquele ano Paulo fora tão ovacionado como a escola, depoimentos da
época dizem que as pessoas se empolgavam e queriam ver Paulo, o dono da noite
naquele ano. Conforme o relato de Cabral:

“O desfile de 1939 voltou à Praça Onze, vencendo a resistência do


Delegado Dulcidio Gonçalves que queria levar todos os desfiles das
‘pequenas’ sociedades para o Campo de São Cristóvão. Conseguiu tirar da
Av. Rio Branco as apresentações dos Ranchos e dos Blocos [...].
E a grande sensação do desfile das escolas foi a Portela. Pela primeira vez
uma escola de samba (com exceção da ala das baianas e dos mestres-
salas e porta-bandeiras) apresentou-se com as fantasias inteiramente
140

voltadas para o seu enredo. Até então, fosse qual fosse o enredo, não
poderiam faltar os sambistas ostentando as cabeleiras brancas de algodão
e as fantasias de nobres dos tempos imperiais.
Naquele ano, porém, Paulo da Portela criou o enredo ‘teste ao samba’ e fez
a escola inteira exibir-se com uniforme de estudante, enquanto fazia o papel
de professor. O samba, também composto por ele, tinha um pouco daquele
non sense das letras das marchinhas carnavalescas de Lamartine Babo e,
ao mesmo tempo, não deixava de ser um samba enredo, pois a letra tinha
tudo a ver com o tema apresentado pela escola.
[...] Foi uma sensação, Paulo entregava um diploma e cada integrante da
escola. O repórter do jornal O RADICAL assinalou em sua matéria sobre o
desfile: ‘Um fato despertou a nossa curiosidade: foi o interesse que todo o
público acotovelado na Praça Onze demonstrou em torno da figura de Paulo
da Portela.
Parecia que grande parte daquela multidão lá estava somente para aplaudir
o famoso sambista, a quem não regateava as melhores demonstrações de
simpatia. Pode-se dizer assim que, depois da Portela e da Mangueira, Paulo
da Portela foi a grande atração que a Praça Onze apresentou" (CABRAL,
1998: 122).

Em janeiro de 1940 foi inaugurado no jardim do Palácio Monroe o busto de


Catulo da Paixão Cearense, famoso seresteiro brasileiro. A homenagem a Catulo
está em sintonia com o novo governo, que mesmo de forma autoritária busca dar
sentido positivo ao cancioneiro popular. Naquele dia, o maestro Villa-Lobos, um dois
mais importantes mediadores culturais do período organiza um grande desfile onde
seria revivido o carnaval antigo, o grupo ganhou o nome de Sociedade do Cordão.
(CABRAL, 1998).
Índios, morcegos, diabinhos, rainhas compunham as fantasias do grupo,
típicos dos folguedos até o início do século XX. Nesses trinta anos muita coisa
mudou e entre elas, a transferência da hegemonia dos ranchos para as escolas de
samba. Mas o que parecia acontecer era que o samba de fato ganhava espaço de
destaque no rádio, nos salões e nas festividades urbanas. O choro, o maxixe, a
modinha ainda eram os mais tocados nos salões, mas na festa do carnaval, a
hegemonia das escolas de samba começava a nascer, nas próximas décadas
estaria plenamente estabelecida (Idem).
Para este mesmo ano Paulo idealizou o enredo Homenagem a Justiça.
Conta-se que, contrariando a vontade de Paulo, um grupo de pastoras da Portela,
ao invés de cantar "salve a justiça", cantou "pau na justiça" no decorrer do desfile,
fato que teria desagradado o júri e prejudicado o bicampeonato, a escola ficou em
quinto lugar (CABRAL, 1998). Os depoentes sobre a situação não sabem dizer se
fora uma atitude de cabeça pensada das pastoras, o que mostraria a face da ironia
(elemento forte das práticas culturais populares e, em especial, do samba de rua do
141

Rio de Janeiro) de alguma forma aparecendo e perturbando a harmonia do


movimento de integração a qual Paulo da Portela estava ligado.
Com a chegada da década de 1940 as escolas começam a ultrapassar os
ranchos em popularidade. Segundo Sérgio Cabral (1998), no ano de 1941 termina o
Ameno Resedá, o maior dos ranchos cariocas, pondo fim a uma tradição de mais de
30 anos de desfile. As escolas de samba, finalmente começavam a se tornar
representantes maiores da festa popular carioca.Neste ano, Paulo preparou
novamente o enredo, que se chamava Dez anos de glória. O enredo era uma
homenagem as dez anos do governo de Getúlio Vargas, mostrando a sintonia de
Paulo e do universo do samba com o novo regime. Quando falamos dessa sintonia,
não podemos atestar aqui o quanto à estratégia de Paulo e dos sambistas tem de
esclarecida, ou mesmo ciente das concessões feitas, ou mesmo quanto o clima
político da época animou de “esperança” os populares. Esta última me parece uma
opção sempre mais palatável, isto é, Paulo e as pessoas do mundo do samba, do
universo popular em geral, parecem se “animar” com o clima integrador
estabelecido no pós-1930. (Idem)
Paulo, porém, não pode acompanhar de perto o desenvolvimento final do
carnaval da escola de Oswaldo Cruz. No dia 5 de fevereiro viajou para São Paulo
com Cartola e Heitor dos Prazeres, junto a um grupo de ritmistas e pastoras para
cumprir um exaustivo calendário de apresentações organizado pelo Centro Paulista
de Cronistas Carnavalescos e pela Rádio Cosmos de São Paulo. A Folha da Manhã
anunciava no dia 5 de fevereiro de 1941:

“A chegada dos maiorais guanabarianos, Cartola, Heitor dos Prazeres e


Paulo da Portela a esta capital, acompanhados de suas escolas de samba,
trouxe, sem dúvida alguma, uma colaboração das mais eficientes para o
abafativo Carnaval do Povo que a conhecida emissora do Dr. Ferreira
Fontes está levando a efeito em terras de Piratininga. Autênticos ases da
música popular brasileira, para a qual vêm trabalhando sem
desfalecimentos, os sambistas visitantes conseguiram firmar rapidamente
entre nós um prestígio duradouro e que nada mais é do que a expressão
viva e eloquente da bossa inata da gente do morro”. (CABRAL, 1998: 125)

Paulo já era conhecido nos circuitos sambistas de São Paulo e Cartola


depois que teve seu samba Quem me vê Sorrindo gravado pelo maestro
142

Stokowsky52gozou de alguma fama. Os três fizeram grande sucesso em sua


passagem pela terra da garoa. Entretanto precisavam voltar ao Rio de Janeiro para
o desfile de suas escolas, no dia 21 de fevereiro (CABRAL, 1998). Paulo e Cartola
eram figuras máximas de suas escolas, impossível pensar o desfile sem eles, mas
as coisas não correram bem. Os laços pessoais, as rixas e desavenças, por vezes,
são decisivas nas trajetórias dos personagens aqui.
Paulo chegou ao Rio de Janeiro em cima da hora do desfile e combinou com
Cartola e Heitor dos Prazeres que os três desfilariam nas escolas de cada um:
Portela, Mangueira e De Mim Ninguém se Lembra (de Heitor). Eles usariam um
terno com listras preto e branco que poderiam ser usados em todas as escolas, era
o traje do Conjunto Carioca, como ficou conhecido o grupo em São Paulo.
(CABRAL, 1998; SILVA & SANTOS,1980).
O depoimento de Nô nos ajuda a reconstruir o fatídico e determinante
episódio, veja:

“Mané Bam-Bam-Bam (presidente da Portela na época), enxergou Heitor


dos Prazeres e seu sangue ferveu. Lembrou dos desentendimentos, das
apreensões, do samba roubado do Rufino, da navalhada. E dirigiu-se ao
chefe:
- Seu Paulo, o senhor pode desfilar com roupa de outra cor, mas eles não.
Só o senhor de preto e branco. O resto, só de azul e branco.
- Que é isso, Mané? Nós viemos direto da Central, meus amigos são
convidados, eles vão comigo!
- Não, Paulo, você pode ficar no conjunto de qualquer maneira, em qualquer
lugar. Eles têm que ficar atrás da bateria.
O sangue de Mané Bam-Bam-Bam continuou a ferver, olhos cravados no
rosto impassível de Heitor dos Prazeres. Paulo, com a firmeza e calma do
líder, consciente do indispensável de sua presença para o bom andamento
de tudo, retrucou:
- Olha, Mané, ou vamos os três, ou eu não desfilo!
- Então está bem, Seu Paulo pode sair! Respondeu Bam-Bam-Bam
levantando a corda.
Paulo passou por debaixo do cordão de isolamento seguido pelos dois
companheiros de trabalho e viagem.
Os componentes, perplexos, continuavam em silêncio, bocas e bateria
mudas. Só que não dava mais tempo para discutir se foi certo ou errado.
Lá da frente veio a ordem: Entrar a Portela!”(SILVA & SANTOS,1980:87).

_______________________________________________
52
Leopold Stokowski foi um famoso regente orquestral norte-americano, bem conhecido por conduzir
sem batuta. Stokowski também foi retratado em um desenho do Pernalonga em um desenho de
1948.
143

E naquele ano ganhou a Portela. Paulo não tinha participado do desfile por
uma questão de desavença de Bam-Bam-Bam com Heitor dos Prazeres. Todos os
três já tinham desfilado com aquela roupa na Mangueira e na De Mim Ninguém se
Lembra. Na Portela não puderam desfilar. Paulo ficou em demasiado aborrecido e
se afastou definitivamente da escola.
Depois da confusão, Paulo foi para a casa de Cartola na Mangueira. Dona
Neuma e Cartola dão depoimento interessante a Silva & Santos sobre o diálogo que
estabeleceram com Paulo depois do ocorrido:

“ – Cartola, eu não podia permitir que ele me desse ordens. Afinal por que é
que eu fui a São Paulo? Pra divulgar o samba, levar mais alto ainda o nome
da Portela! Então? E ele ainda vai me desacatar em público, me mandar
sair por baixo da corda, desacatar você e o Heitor? Que cor diferente coisa
nenhuma! Você sabe que quando a gente desfila todo ano o pessoal do
Estácio invade a nossa corda com aquelas sombrinhas vermelhas e
ninguém diz nada. E são dez, vinte pessoas. Como é que ele ia impedir a
entrada de três pessoas só porque estavam de preto e branco? E logo nós,
que todo mundo sabe quem somos! Não, foi desaforo, foi pretexto, a
Mangueira não impediu que nós três desfilássemos, a De Mim Ninguém se
Lembra também aceitou. Isso não foi desculpa, Cartola. Está muito mal
contado, foi desaforo demais. Ou eles se desculpam direitinho ou nunca
mais piso lá!” (1991:89)

Passado uma semana foram Cartola, Carlos Cachaça e Paulo a Oswaldo


Cruz para tentar resolver a questão. Pegaram um táxi e ainda levaram junto um
valentão da Mangueira, o Chico Porrão, era para o caso de Bam-Bam-Bam (que era
um valente53 de Oswaldo Cruz) esquentar com eles.
Cartola relata que ao chegar à quadra subiu numa mesa e fez um discurso
sobre a importância de Paulo para a Portela. Conta que se assustou com a
recepção fria da escola e a resposta de Bam-Bam-Bam: “Nós não queremos mais
esse moleque aqui dentro”. Paulo ficou muito alterado e gritou uma frase jamais
esquecida por vários membros da Portela, lembrada até hoje na escola: “Senhores,
senhoras e crianças da Portela: Vós sois uns ursos!” (Idem:89).
Paulo então foi para a Lira do Amor, e no enredo do carnaval de 1946,
mostrou mais uma vez sua relação de entusiasmo e apoio com os movimentos do

_______________________________________________
53
A figura do valente é antiga no universo das escolas de samba, dos morros e subúrbios.
Normalmente é alguém muito forte e que participava de brigas e gozava de algum respeito além do
coercitivo.
144

novo regime político, em entrevista ao jornal Tribuna Popular de 22 de fevereiro de


1946:

"Posso adiantar que os feitos de nossa gloriosa FEB não serão esquecidos.
Aliás, a nossa escola sempre teve em alta conta os soldados
expedicionários, os melhores filhos do povo. Aproveito o ensejo para frisar o
seguinte: em meados do ano de 1944, quando mais intensos eram os
preparativos para o embarque da Força Expedicionária, a fim de participar,
juntamente com os gloriosos exércitos aliados do completo esmagamento
do nazi-fascismo, a escola de samba Lira do Amor ofertou à Liga da Defesa
Nacional, instituição patriótica que melhor zelou pelos nossos pracinhas,
apreciável soma em dinheiro e centenas de maços de cigarros".

Na mesma entrevista mostra a vocação para a liderança e conclama a


prefeitura a reduzir os impostos para o que ele chama de carnaval da vitória, isto é,
um desfile em homenagem a vitória dos aliados na segunda grande guerra.

"Necessitamos obter da prefeitura, a isenção do pagamento dos impostos,


bem como da licença a nós exigida de alguns anos para cá. A
municipalidade tal como fazia antes do início da segunda guerra mundial,
deve restabelecer, e em melhores condições, o pagamento do auxílio
financeiro às escolas de samba, atração dos turistas e divertimento máximo
do povo. Os diretores das escolas de samba devem filiá-las à União das
Escolas de Samba, a fim que tenham uma entidade que zele pelos seus
interesses perante as autoridades. Filiadas as escolas a esta entidade, a
mesma poderá patrocinar, no carnaval que se avizinha um desfile da Vitória
que a nossa gloriosa FEB ajudou a obter contra o nazismo sanguinário nos
campos de batalha do Velho Mundo".

No mesmo ano, a Tribuna Popular, jornal ligado ao Partido Comunista


Brasileiro, numa política de aproximação com o meio popular cariocaresolve
patrocinar um desfile das escolas de samba, que contaria, inclusive, com a
presença do senador Luís Carlos Prestes no Estádio de São Januário. Ainda
retomaria a escolha, agora pelo seu jornal, do Cidadão-Samba e da Embaixatriz do
Samba.
O desfile do dia 15 de novembro foi um sucesso, foi montado um júri
diferente dos anteriores (em maioria composto por jornalistas). Criou-se uma
comissão principal, com a presença do etnógrafo Edson Carneiro, do maestro
Francisco Mignone, do jornalista Pedro Mota Lima, do compositor Mario Lago e do
desenhista Paulo Werneck(CABRAL, 1998; SILVA &SANTOS,1980).
A Tribuna Popular de 1946 destaca o enredo da Lira do Amor, a nova escola
de Paulo:
145

"'HOMENAGEM AO SENADOR DO POVO'

A Escola de Samba Lira do Amor abafou também. Os rapazes da Paulo da


Portela, o famoso compositor popular que nasceu e foi criado no samba,
cantaram perante o palanque onde se encontrava a Comissão Julgadora, e
os convidados de honra, o senador Luis Carlos Prestes, o ministro da
Polônia, outros parlamentares e escritores, o seguinte samba de autoria de
José Brito, que arrancou prolongados aplausos da enorme assistência:
Prestes, Cavaleiro da Esperança.
Foi o homem que pelo povo relutou
Seu nome foi disputado dentro das urnas
Oh! Carlos Prestes
Foi bem merecida a cadeira de Senador
És o cavaleiro que sonhamos
De ti tudo esperamos
Com todo amor febril
Para amenizar nossas dores
E levar bem alto as cores
Da bandeira do Brasil" (CABRAL,1998:129)

Paulo estava lá, de pé no palanque da Comissão de Honra, ao lado de


Dorival Caymmi e do próprio Prestes. Quando a Lira Passou, Paulo deu um grande
abraço em Prestes que retribuiu o abraço (Idem). Pedro Ernesto e Prestes sempre
foram os políticos preferidos de Paulo da Portela. O interessante é que as relações
de clientela entre Pedro Ernesto e Paulo não impediam a autonomia do personagem
e sua admiração conhecida por Prestes (que era uma figura muito querida no país,
apesar da sua prisão). Como relatei no capítulo anterior, a relação entre o PCB e o
mundo do samba se aqueceu nesse período. Segundo a mesma matéria da Tribuna
Popular:

"Poucos minutos antes da Lira do Amor desfilar, Paulo da Portela, o famoso


compositor que todo o Rio conhece, o Paulo da Portela, dos grandes
carnavais do passado, subiu ao palanque para dar um abraço em seu nome
e no da sua Escola ao Senador Luiz Carlos Prestes. Foi um momento de
grande emoção para todos os presentes. O senador mais votado da
República retribuiu o abraço de Paulo da Portela com outro bem forte".

Logo depois, no dia 29 de dezembro de 1946. Paulo declarava à imprensa


sua adesão ao Partido Trabalhista Nacional. O Diário trabalhista, no mesmo dia,
assim anunciou:

"[...] estamos diante de Paulo Benjamin de Oliveira, o grande Paulo da


Portela, o maioral do samba carioca, o homem que centraliza as atenções
das escolas de samba e ranchos cariocas. Nos nossos morros, nos nossos
subúrbios, mais longínquos, o tamborim, a cuíca e o pandeiro, num ritmo
todo nosso, refletem o estado de alma das nossas grandes massas
trabalhadoras que reúnem cerca de cem mil adeptos. Escusado é dizer que
se trata de enorme massa de trabalhadores, das mais variadas profissões,
146

desde o simples gari até o metalúrgico ou o pequeno lavrador. E Paulo da


Portela é o líder dessa gente humilde, boa e operosa, cheia de fé nos
destinos do Brasil".

O jornal já coloca Paulo como um líder popular, a principal referência do


universo do samba na cidade. Tendo em consideração a popularidade do samba
nos morros e subúrbios, Paulo se fortalece como grande liderança popular. E segue
a interessante entrevista:

"-Já pertenceu a algum partido político?


-Nunca fiz parte de qualquer organização política. A minha política tem sido
a do samba. Já ajudei a muitos políticos e se promessa valesse? ... As
nossas Escolas de Samba, as nossas casas nada têm.
-Qual foi o maior amigo das Escolas de Samba?
-Pedro Ernesto. Depois dele, só os jornalistas.
-Qual o seu programa?
- Messias Cardoso fez-se credor da minha confiança e é um grande amigo
das Escolas de Samba. Tive também o apoio do grande jornalista que é
Eurico de Oliveira, diretor do Diário Trabalhista e assim apresentei no
Partido Trabalhista Nacional o meu programa que foi integralmente aceito e
que é o seguinte:
1 - Auxílio permanente e eficiente ao recreativismo;
2 - Isenção de Impostos e facilidades de locomoção para nossas grandes
exibições públicas;
3 - Criação de eficiente serviço de assistência social, pelo governo, nas
sedes das Escolas de Sambas;
4 - Construção de sedes adequadas, embora simples;
5 - Criação de escolas diurnas e noturnas nos morros;
6 - Proteção à infância abandonada e à velhice desamparada;
7 - Desenvolvimento do folclore nacional.
- E como conseguiu se identificar com esse novo partido?
Levado pelos meus amigos, os jornalistas Oscar Messias Cardoso, Peixoto
do Valle e K. Noa e os meus colegas Benjamin Luiz da Silva e Flávio Costa.
O nosso primeiro encontro foi em Itacurussá, numa concentração trabalhista
ali realizada no domingo".

A entrevista demonstra um Paulo da Portela encarnando a figura de grande


representante de um dos maiores espetáculos populares do país. O ingresso de
Paulo na política não seria diferente, seria a articulação de um discurso em defesa
das escolas de samba e de seu povo. Seu programa gira em torno do lazer, da
produção de cultura popular, e da assistência social e educacional aos mais
desfavorecidos. Conforme explica Silva & Chinelli (2002), sua inserção na política
se dará por demandas exclusivas a favor das escolas de samba e de clientela com
a comunidade. O povo do samba cobra a fatura da mediação pedindo mais acesso
as estruturas e serviços públicos, e na maior parte das vezes essa relação se dá
nos marcos do clientelismo.
147

Na matéria, Paulo cita mais uma vez a sua boa relação com Pedro Ernesto e
com a imprensa. Um quanto o outro foram peças chave no crescimento das escolas
de samba do Rio de Janeiro. As subvenções e apoio dado pela prefeitura e por
parte da imprensa foram decisivos para que as agremiações carnavalescas
chegassem ao estrelato nacional.
Paulo, como grande mediador entre universos sociais distintos, era também o
grande cicerone do mundo do samba carioca, se chegava alguém importante que
quisesse conhecer o samba Paulo era logo chamado. Ele era uma espécie de guia
no subúrbio, diversos turistas estrangeiros foram levados a Oswaldo Cruz “sob os
cuidados de Paulo”. Segundo suas biógrafas, entre os diversos visitantes ilustres de
fora estiveram o professor Henri Wallon da Sourbone de Paris, a famosa artista
Josephine Baker, o museólogo norte-americano Aaron Copland, este último levado
pelo maestro Villa-Lobos para conhecer Paulo. Vários políticos famosos também
foram ciceroneados por Paulo, como Frederico Trotta, Lindolfo Collor, Lourival
Fontes, Pedro Ernesto, Mourão FIlho entre outros.
O depoimento do sambista Nonô do Jacarezinho a Silva & Santos
(1991:135), destaca o papel cicerone e diplomático de Paulo:

"Paulo andava de escola em escola e eu também gostava de andar assim


pelas escolas. Então, eu via muito a atuação do Paulo da Portela. Nós
tínhamos uma senhora que foi uma das fundadoras da escola, grande
trabalhadora, dona Andreza Nogueira, que deixou muita saudade no
Jacarezinho. Então, por intermédio dela, o Paulo da Portela ia sempre lá no
Jacarezinho e quando ele chegava comandava o ensaio. De lá íamos para
o Recreio de Inhaúma, para o cenáculo do Samba, que tinha no Caxambi,
para os Acadêmicos do Engenho da Rainha, e ele chegava, sozinho ou com
aquela comitiva e puxava o samba, entendeu? Quer dizer que ali, no meio
da comitiva, os sambas eram deles e daqueles rapazes".

O interessante do depoimento de Nonô é a forte relação que Paulo construía


com as escolas de samba "menores". É sabido que Paulo sempre foi um
incentivador delas, chegando mesmo a ajudar financeiramente e com sobras da
Portela outras escolas. Dessa forma também aumentava o respeito por Paulo nas
diversas escolas que nasciam na cidade.
No dia 24 de agosto de 1941, Paulo seria o cicerone da visita de Walt Disney
ao universo do samba carioca. O desenhista estava na cidade e quis conhecer o
samba brasileiro, o pessoal de Oswaldo Cruz, e diversos biógrafos da cultura
popular (SILVA & SANTOS,1980; CABRAL, 1996), contam que baseado em Paulo
148

da Portela nasceu a primeira versão do papagaio Zé Carioca, que é um pouco


diferente da consagrada hoje em dia.
Acompanhado de uma enorme equipe, Walt Disney chegou ao Brasil
hospedando-se no Copacabana Palace. A embaixada americana foi quem entrou
em contato com Paulo da Portela.
Paulo já tinha se afastado da Portela nessa época, mas passando por cima
das desavenças fez sua última visita a escola ciceroneando Walt Disney numa
triunfal apresentação da escola de samba. A equipe de Walt Disney gravou tudo
para utilizar em um musical sobre os ritmos latinos. Era o musical Alô Amigos que
estreava nos cinemas com um personagem baseado em Paulo da Portela (a
primeira versão do Zé Carioca). Ainda relacionado ao cinema, Paulo participou do
elenco de três filmes: Favela de Meus Amores de Humberto Mauro e O bobo do Rei
e Pureza de Joracy Camargo e Mesquitinha.
Tudo isso em uma vida relativamente curta que teria fim no dia 30 de janeiro
de 1949. O Globo noticiava no dia seguinte:

"Morreu Paulo da Portela. Em sua residência, à Rua Carolina Machado,


n.950, em Oswaldo Cruz, faleceu ontem vítima de um ataque cardíaco, o
velho carnavalesco Paulo Benjamin de Oliveira, mais conhecido por Paulo
da Portela".

No dia seguinte publicou O Radical:

"A morte traiçoeira e implacável roubou, aos morros, o sambista maior:


Paulo da Portela - tamborim, pandeiros, cuícas e ganzás emudeceram e a
dor, em silêncio, tomou conta de tudo - Favela, Mangueira, São Carlos,
Matriz e Salgueiro no pranto mais sentido - Uma popularidade que se
traduziu na apoteótica consagração das multidões ao animador das escolas
de samba.
[...] a morte do sambista que foi mais um poeta do povo, porque era pelo
povo que ele ritmava os acordes de seus sambas incomparáveis".
[...] Pelo samba de Paulo da Portela, as figuras mais representativas do
Brasil artístico, do Brasil cultura e do Brasil sociedade subiram, finalmente,
as ladeiras íngremes dos morros cariocas. Foram estatelar-se nas rodas
dos catretas, embasbacados aos sacolejos das pastoras. E mais do que
isso: pelo samba de Paulo da Portela o morro perdeu a forma sinistra de
outros tempos e, aos olhos dos descrentes, apareceu, melhor e mais
humano, na sua miséria, na miséria de seus habitantes que, como Paulo da
Portela, se tinha um crime, esse crime era o da própria miséria pelas culpas
alheias" (SILVA & SANTOS,1980:131 grifos meus).
149

Paulo da Portela estava num circo e ao perceber a sua presença a plateia


começou a aplaudir, conclamaram Paulo a ir ao palco do circo. De lá Paulo
comandou sua última festa de samba da qual saiu carregado.
Ao chegar à casa morreu dormindo às cinco horas da manhã.Seu enterro
fora realizado às duas horas da tarde do dia seguinte. O Correio da Manhã noticiou
assim o enterro no dia 31 de janeiro de 1949:

"[...] Avaliava-se a afluência de gente ao enterro de Paulo da Portela em


mais de 15.000 pessoas.
O comércio de Madureira fechou para o saimento e aquela massa de gente
foi atrás do caixão até Irajá: o bumbo marcava a cadência, uma espécie de
cantochão saía em fio de voz, dos lábios da multidão".

O bicheiro Natal, então presidente da Portela, quis levar Paulo para ser
enterrado na quadra da escola, mas sua esposa não deixou e Paulo foi velado por
uma multidão em sua própria casa. No dia seguinte a centena do jogo do bichou
deu 2908 número do túmulo de Paulo da Portela, imagino que muita gente ganhou
um trocado por isso. Porém, na verdade, pode ter sido uma última homenagem do
bicheiro Natal ao amigo falecido.
Abaixo imagens do velório, ou gurufim, de Paulo da Portela.

Figura 47 – Velório de Paulo da Portela

Fonte: Disponível em Silva & Santos (1980:101)

2.6 Algumas considerações


150

O ambiente analítico que circunda a nossa análise é a complexificação da


história através da análise da sociedade resgatando a história de vida de um
indivíduo destacado no contexto (FARIAS, 1999; BARIANI, 2005; MELO; NABES,
1988). Sem Paulo da Portela as escolas teriam seguido a marcha que analisamos
aqui? Provavelmente sim, mas o importante aqui é analisar como um negro no Rio
de Janeiro da virada do século se tornou um protagonista destacado na guinada da
condição cultural de seu grupo. Na realidade, me interessa, ao estudar a vida de
Paulo, a ampliação de horizontes na pesquisa. Recorro a uma citação de Elias:

"[...] cada pessoa singular está realmente presa; está por viver em
permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que
ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente,
são elos nas cadeias que as prendem. Essas cadeias não são visíveis e
tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais
mutáveis, porém não menos reais e decerto não menos fortes. E é a essa
rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras,
a ela e a nada mais, que chamamos sociedade” (ELIAS, 1994:21).

Sendo o Rio de Janeiro capital da república era de se esperar que como


“caixa de ressonância” da cultura e política nacional a cidade elaborasse símbolos
que atravessassem o país. Tentei até aqui analisar os elementos que levaram as
escolas de samba ao triunfo na cidade do Rio de Janeiro. Analisando as
movimentações de Paulo da Portela e seu grupo, percebemos como o povo negro
pode se beneficiar e modificar sua condição na urbe se articulando com
determinada conjuntural cultural e política que se estabelecia no país.
Nesse sentido, entre as diversas manifestações artísticas se destacou aquela
que conseguiu agrupar as “novas” comunidades e se apresentar como disposta a
negociar a integração cultural em vigência.
Recuperando Elias, preocupei-me aqui em analisar uma espécie de habitus
da jovem liderança do mundo do samba. Trata-se de uma proposta teórica capaz de
historicizar a figura do indivíduo destacado, com base na análise da trajetória
individual (social) de Paulo da Portela. O contexto social aparece em conexão à vida
e à obra do trabalho de Paulo; a figuração estava em mutação. De uma sociedade
que reprimia a manifestação da cultura popular a uma sociedade que passou a
valorizar as coisas do povo, mesmo que de forma tutelada (FARIAS, 1999).
151

A escolha de Paulo da Portela, em "colaborar" com a ordem estabelecida


pode parecer frente uma análise prematura resignada. Entretanto, Paulo aparece
como um indivíduo virtuoso e consciente do papel que seu grupo teria de realizar
para se elevar naquele tempo sem choques ou mesmo ruptura.
Paulo não era um dirigente político, um ativista social, nada disso, era uma
liderança popular, que como uma espécie de diplomata negociou com a elite o
desenvolvimento da sua produção cultural e da sua comunidade. Se o país mudava
se ocupou em movimentar a inscrição dos negros sambistas nesse cenário, acima
de tudo se sentia sendo incorporado, acreditava que seu modo de viver poderia ser
reproduzido, aumentando a chance de o grupo ser aceito na cidade.
Utilizando-me da análise de Bakhtin (1999;1997) acerca da festa
carnavalesca nos tempos do Renascimento, posso dizer que a principal diferença
entre a produção artística de Paulo da Portela e daquela analisada por Bakhtin é a
supressão de alguma ironia e espontaneidade que ocorre nas festas populares e
em especial no carnaval, por um clima de condicionamento, seriedade e
“profissionalização” dos desfiles, isto é, de parte da festa carnavalesca.
O improviso irá aos poucos ser substituído pelo ensaiado, o controle e o
formato de concursos serão fundamentais para amarrar às escolas um padrão. É
esse padrão que faz com que a festa apareça como “controlável” para governo e
elites. Mas, não podemos esquecer que o preconceito com a produção artística
popular ainda era muito forte e foi essa “vontade” de se transformar para se integrar
que garantiu ao povo negro carioca colher os frutos de sua integração cultural.
É interessante perceber que partindo de Bakhtin (1999;1997), iremos
compreender as festividades, qualquer que seja o seu tipo, como uma forma
primordial de interação marcante na civilização humana. A vinculação com os fins
superiores da existência humana, com o mundo dos ideais, é condição essencial
para que aconteça um clima de festa (MELO; MONTES, 1996).
Esta relação, contudo, só se realiza plenamente nas festas populares e
públicas, em especial no carnaval. Nele cria-se a sensação onde todos
temporariamente são iguais, penetrando o povo momentaneamente no reino utópico
da universalidade, liberdade e abundância; ocorre o triunfo de uma liberação
temporária da verdade dominante e do regime vigente, abolindo-se provisoriamente
todas as relações hierárquicas, regras e tabus (MELO; MONTES, 1996).
152

Estabelecem-se, desta forma, entre os indivíduos, relações novas,


aparentemente mais humanas, desaparecendo provisoriamente a distinção social.
Importa acentuar que para o autor o princípio da festa popular do carnaval é
indestrutível, fecundando os diversos domínios da vida e da cultura.
Não retomarei aqui a discussão abordada no primeiro capítulo sobre a tese
de inversão das hierarquias sociais de Da Matta (1984). Entretanto, quando retorno
a Bakhtin (1999) quero demonstrar como as escolas de samba de alguma forma se
chocam com a espontaneidade das festas populares. A autocensura realizada pelas
próprias escolas impôs regras e condicionamentos para a realização dos desfiles,
modificando, como nas palavras de Monis Sodré (1998), a essência do ritual, antes
dirigido para si (para a comunidade) e depois dirigido para falar de si (para a
plateia)54. Falar de si para a cidade e se apresentar como um espetáculo
organizado, digno de representar a urbe para todo o mundo. Morre um pouco do
lúdico, da espontaneidade, da ironia, das raízes e renasce um processo que é o
resultado das trocas culturais estabelecidas entre povo e elites no Rio de janeiro.
Entender este processo significa tentar perceber como os sambistas se
tomaram da tarefa de penetrar na conjuntura da forma mais “eficiente” possível, isto
é, sentindo, se envolvendo e procurando se integrar ao processo em curso no pós
1930.
Tal como destacou Farias (1999), Paulo da Portela deve ser analisado ao
nível da experiência individual de um microcosmo, ou seja, nas relações de sua
comunidade, viagens pela Brasil e sucesso prematuro, convívio com detentores do
capital simbólico e financeiro, a elite e a imprensa, aliado ao macrocosmo, isto é, o
momento de efervescência de um Brasil em ebulição e mudança.
A partir de sua experiência individual Paulo da Portela tentará transformar as
regras do campo cultural reinantes à época da Primeira República. Por mais que
não se tenha feito hegemonia, esse período agiu com bastante preconceito sobre a
cultura popular. Farias (1999), anota que os sambistas, nada mais eram do que
referências do atraso. Por meio de suas experiências individuais supracitadas,

_______________________________________________
54
Sodré (1998) acredita que o samba perde a sua característica de ritual onde todos participavam
ativamente na elaboração da festa e se torna um ritual elaborado por uns para outros apenas
assistirem, sem interferir no andamento daquele ritual.
153

Paulo da Portela tentará reagir de uma forma específica às estruturas que regiam à
lógica do campo cultural, exigindo um maior reconhecimento sem, no entanto, fazer
exigências geradoras de demasiado conflito.
Se as condições históricas para o desenvolvimento das escolas de samba do
Rio de Janeiro se solidificavam, Paulo adentrou por dentro delas. O incremento da
possibilidade de comunicação e circulação do universo do samba com o restante da
cidade é um ponto complexo nas mudanças estruturais sofridas na capital da
República no período Vargas (Idem). As ações do grupo de Paulo se sintonizam
com as mudanças, entretanto, remodelam o pacto que se estabeleceria dali em
diante. Segundo Nóbrega (1999:36):

“A história das escolas de samba é também uma parte da história da


relação dos grupos populares do Rio de Janeiro com seu espaço vivido e
meio ambiente, os bairros populares, subúrbios e favelas. Foi
especialmente através desta instituição que os grupos expulsos da cidade
contra-arrestaram a marginalização e a segregação político-cultural
“desmoralizante”, inerentes ao processo de modernização urbana do Rio de
Janeiro, posto em marcha desde o final do século XIX. Através delas estes
grupos construíram e aperfeiçoaram o convívio comunitário, se
reinterpretaram e conquistaram uma identidade na cidade".

Farias (1999), reforça a relação com as pesquisa de Elias sobre os indivíduos


destacados, que ele chama de gênios. Percebemos que a genialidade é construída
a partir da experiência individual/ social. Elias objetiva explicar sócio historicamente
o que aos olhos do senso comum paira sem explicação: o gênio. Aparentemente, as
qualidades artísticas são inatas (de origem divina, ou biológica, a depender da
crença), sem relação com os contextos históricos em que o indivíduo existe.
Constrói-se aqui uma tentativa de demonstrar como as experiências
individuais são absolutamente indissociáveis ao problema da estrutura de um
determinado tipo de sociedade. Não fosse a experiência individual jamais teria
reagido à ordem social; ao passo que não fosse o momento em que se encontrara a
figuração de sua sociedade teria alcançado o sucesso e a fama.
De qualquer forma, a experiência de Paulo da Portela ilustra o fato de que as
estruturas constroem cotidianamente os indivíduos, no entanto, apenas os
indivíduos e suas articulações sociais são capazes de transformar, cotidianamente,
as estruturas. Da relação entre o macro e o micro, no jogar com as escalas,
constata-se quão profícua é a articulação entre os níveis sociológicos de
observação.
154

Paulo tornou-se uma liderança de seu grupo, reproduzindo em Oswaldo Cruz


o ambiente de sucesso já encontrado na casa da negra Ciata na Praça Onze, isto é,
o ambiente de troca entre dois mundos diferentes, porém nunca desarticulados55.
Soube, além disso, se articular com as elites e a diversidade dos mediadores
culturais existentes na cidade. Na verdade Paulo apresentou seu povo de outra
forma para o restante da cidade. O governo embutido de uma lógica integradora se
aproximou deste movimento, conferindo vantagens, mesmo que orientadas pelo seu
projeto de desenvolvimento nacional (FARIAS, 1999).
Ao contrário do Mozart de Elias que enfrentou uma sociedade da corte que
restringiu sua possibilidade de transformação, Paulo foi se adaptando ao cenário de
mudança que ocorria e dele foi tirando proveito e compromisso.
Nosso personagem chegou talvez ao estrelato máximo que um sambista
poderia chegar naquela época e por estas ações pagou também o preço de um
pequeno isolamento até seu trágico afastamento da Portela. Nesse caso, Paulo saiu
da Portela, mais do que por sua relação com governo e imprensa, e sim por sua
relação com o mundo do samba.
Paulo se tornou o diplomata não oficial das escolas de samba, isto é, maior
do que a própria Portela. Paulo colocou-se a frente das rivalidades ainda existentes
e isso colaborou para sua saída. Seu tencionamento se deu, também, com as
outras escolas “grandes” da cidade que desejavam ampliar seu poder no pacto
clientelista entre escolas, Estado e imprensa. No mundo do samba, pensando de
uma forma mais ampla, a legitimidade de Paulo era incontestável.
Ao morrer não conseguiu gravar mais do que duas músicas, seu talento
político era maior que o de compositor, Paulo era, acima de tudo, o “relações-
públicas” da Portela e das escolas de samba.
A trajetória de Paulo expressa neste capítulo complexifica a história do
apogeu das escolas de samba e servirá como referência para o próximo capítulo.
Onde Paulo aparece como um mito e referência para aqueles que discordam dos
rumos das escolas de samba por volta dos anos de 1970. As escolas de samba que
antes integraram pela via cultural o negro da cidade passam a ser questionadas

_______________________________________________
55
Ver no capítulo 1 esse tipo de discussão acerca das relações históricas de trocas entre povo e elite
no Brasil.
155

culturalmente pelos seus e por outros mediadores culturais. A árvore que perdeu a
raiz é o nome do manifesto que Candeia e outros sambistas lançaram para criticar
os caminhos dos desfiles.
Paulo será retomado no futuro como um herói pelos sambistas insatisfeitos.
Entretanto, a mudança na festa,a diminuição da espontaneidade, a entrada de
novos grupos sociais dentro das escolas de samba, entre outros elementos,
começou nos tempos de Paulo da Portela. As escolas de samba representaram o
momento em que a ordem suplantou a desordem, aliados a prefeitura e a imprensa
configurou-se um novo lugar cultural para o negro no Rio de Janeiro.
Daqui em diante o processo só tende a crescer e culminar nos colossais
desfiles de nosso tempo, ampliando ainda mais o hiato entre as raízes da festa
popular e os atuais desfiles carnavalescos.
Se a tese de Da Mata (1984) aparece mostrando a inversão, a ironia, o lúdico
da vida nos dias de folia, as escolas de samba pressionam de alguma forma para a
teatralização da festa, da festa que tenciona, em outros espaços, para a inversão.
Os desfiles organizam e criam modelos de conduta, reduzindo parte do inesperado,
da surpresa, da espontaneidade.
Mas ao que eu entenda os desfiles das escolas de samba se propuseram a
outro objetivo. O processo até aqui é, tal como na expressão de Raquel Soihet
(2002), estudiosa das letras de samba-enredo, a ordem suplantar a desordem
realizando assim, a integração cultural. No capítulo a seguir avançaremos alguns
anos no espetáculo carnavalesco e tentaremos entender melhor as transformações
ocorridas nas escolas de samba do Rio de Janeiro.
156

3. OS DESFILES RUMO AO APOGEU: ESPETÁCULO, DIVISÃO E


PATRONAGEM NAS ESCOLAS DE SAMBA

Na primeira parte desta tese tentei demonstrar como os mecanismos da


produção artística popular impulsionaram a modificação do lugar simbólico do negro
na sociedade do Rio de Janeiro. No período anterior, as escolas de samba agitaram
um movimento de integração cultural da parcela negra da cidade, elevando o lugar
das comunidades a elas relacionadas, mais precisamente, subúrbios e favelas.
Nesse jogo de negociação e conflito a sociedade do Rio de Janeiro
reacomodou as relações entre raça, cultura e política. Nos anos que se sucedem as
escolas de samba vão rapidamente se tornando um símbolo cultural fundamental na
identidade da cidade, inclusive, do pacto de negociação passiva e clientelista
estabelecido entre elite e povo na Era Vargas. Com a ampliação do espetáculo
carnavalesco, as escolas de samba vão, aos poucos, deixando de ser patrimônio
prioritário dos seus fundadores ou de sua comunidade de origem.
Esse processo já estava claro nos capítulos anteriores. O sucesso inicial das
escolas de samba acontece na medida em que esta aparece como um movimento
cultural disposto a negociar a sua integração, mediando o conflito e estabelecendo
um pacto com governo, imprensa e uma diversidade de mediadores culturais.
Forjam-se novamente canais de encontros entre dois universos que durante
determinado tempo tiveram seus mecanismos de negociação truncados.
Com a conjuntura política pós 1930, se remodelam os entendimentos sobre o
papel do povo no novo regime, mesmo que este seja chamado a viver uma
integração regulada, na qual o equilíbrio de forças tende a realizar transformações
que mantenham o status quo do grupo dominante.
Daqui em diante, daremos um salto de aproximadamente trinta anos na
história, onde encontraremos a primeira crise nesse processo, crise que
acompanhará uma modificação do entendimento político e cultural do lugar do
negro na sociedade brasileira. Nos anos de 1970 a valorização de uma nova
estética cultural negra se espalha pelo Brasil e por todo mundo, esta se fez presente
nas cisões ocorridas no universo das escolas de samba, que, nesse momento,
passam a ser questionadas como um lugar que não representa a “cultura autêntica”
157

do negro e sim, cada vez mais, uma cultura espetáculo dirigida a um público cada
vez mais eclético.
É nesse período que se fortalece a figura do carnavalesco externo a
comunidade, na maior parte, artistas plásticos oriundos das escolas de belas-artes
que passam a assinar o desenvolvimento do carnaval. Os sambistas insatisfeitos,
que defendem um retorno às origens, passam a questionar o presente, isto é, os
desfiles impecáveis, gigantescos e com temas “complexos” que podem fazer toda a
diferença na acirrada disputa que se tornou o desfile carnavalesco.
Por isso, me aproximo de uma figura destacada nessa “oposição” ao triunfo
das escolas de samba, Antônio Candeia Filho, que protagonizou um racha na
escola de samba Portela denunciando com eco na sociedade os “descaminhos” das
escolas de samba. Sua trajetória e seu movimento podem nos ajudar a
compreender um ciclo fundamental de um processo, isto é, do nascimento à
consolidação e a primeira crise importante. Se as escolas ajudam a integrar
culturalmente o povo negro na cidade, agora passam a ser questionadas, por um
grupo, por promover um desserviço ao passado e também ao movimento de
politização do negro – e da cultura em geral – que estava em voga naquele tempo.

3.1 Ditadura e engajamento artístico.

O início da década de 1960 representa um período de fortalecimento do


autoritarismo político encarnado no regime militar instalado em 1964. A ditadura
atrofiou os canais de questionamento, comunicação e participação política,
perseguindo de forma violenta seus opositores. Diversos autores, entre eles,
Fernandes (1977), Ferreira (2003), Fico (2003), Ridenti (2004), exploraram o caráter
antidemocrático e autoritário do movimento militar de 1964.
Segundo o historiador Jorge Ferreira (2005), depois de sobreviver às "crises
da República" de 1954, 1955 e 1961, o sistema instaurado em 1945 foi derrubado
pelo golpe militar e civil de abril de 1964. Para o autor, o novo tipo de ditadura
explicar-se-ia pela fobia da Revolução Cubana nas administrações norte-
americanas e nas elites conservadoras brasileiras; pela radicalização de parcelas
158

significativas da sociedade brasileira – à direita e à esquerda do espectro político –


e pelas incoerências dos defensores da "legalidade constitucional".
A Doutrina de Segurança Nacional e serviços de informações, censura,
propaganda e polícia política truncam o direito à livre expressão democrática. Neste
cenário, a produção artística como arena de disputa se fortalece no país. Como já
dito, apesar da forte censura instalada, são inúmeras as manifestações artísticas de
oposição à ditadura, se fortalece uma linguagem de protesto onde as manifestações
artísticas passam a ser fundamentais na denuncia do modelo vigente.
O engajamento artístico foi buscar temas e discussões que questionassem o
modelo de desenvolvimento nacional e as pressões autoritárias embutidas a ele.
Este discurso pretendia esclarecer o povo da opressão a qual eram submetidos.
Acreditava-se aqui que a arte engajada poderia ajudar a denunciar o sistema
autoritário e restabelecer a democracia. O artista assumiria o dever pedagógico de
denunciar ou mesmo de esclarecer a população da realidade social brasileira
(SANTOS, 2010).
Este novo discurso, colocado como “revolucionário” ou pelo menos, “anti-
autoritário”, é posto em prática no cenário cultural brasileiro. É nesse período que se
fortalece a “canção de protesto”, que levantaria um importante debate em torno do
engajamento do artista e do papel da produção artística em geral na transformação
social.
Esse movimento é articulado à política dos Centros Populares de Cultura
(CPC)56 da União Nacional dos Estudantes (UNE), que possuíam como slogan:
Fora da arte política não há arte popular, esse processo redefine não só o papel da
música enquanto objeto artístico e cultural, como a do próprio artista enquanto
agente social. Em outras palavras, para um grupo de artistas o uso social e político
da arte passa a ser revelado, incentivando seu papel transformador, formando o
artista declaradamente engajado (SANTOS, 2010).

_______________________________________________
56
O CPC também realizava, além da experimentação musical, trabalhos com a literatura, o teatro e o
cinema, com destaque para a produção do filme Cinco Vezes Favela, de Cacá Diegues. Antes do
próprio CPC, é importante anotar a criação, em 1944, no Rio de Janeiro, do Teatro Experimental do
Negro, ou TEN, que se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da cultura negro-africana. Muitos
de seus quadros aderiram ao projeto do CPC.
159

O engajamento nas artes se ampliou modificando sensivelmente o campo


artístico. Um bom exemplo são compositores como Sérgio Ricardo, Edu Lobo,
Carlos Lyra, Nara Leão e até mesmo Vinícius de Moraes que, apesar de usufruírem
do status alcançado na Bossa Nova, dentro desse cenário, migram para um novo
posicionamento estético e político.
Márcia Tosta Dias (2000), no seu livro Os Donos da Voz, importante estudo
sobre a indústria fonográfica brasileira –, marca, como os principais levantes
artísticos da época: o Cinema Novo, o Tropicalismo, o Centro Popular de Cultura
(CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), e a Bossa Nova (WANDER, 2002).
Segundo Wander (2002), antes do golpe de Estado de 1964, a produção
cultural no País era intensa e dialogava muito com o pensamento político e social. A
partir do golpe, essa produção passa a ficar mais escondida e, em 1968, com o AI-5
(Ato Institucional nº 5), entra na clandestinidade. “O Tropicalismo chega nessa
época flertando com várias vertentes, do subterrâneo até o mais comercial, e atacou
o regime pelo veio mais moral do que político. A Jovem Guarda teria outra postura,
também menos engajada e mais comercial” (Idem).
Ainda segundo Dias (apud Wander, 2002), os movimentos mais imersos na
luta política e ideológica, “ocorrerão nas cisões da Bossa Nova e no fortalecimento
do “artista engajado”, no Cinema Novo, nos teatros Opinião (de Oduvaldo Vianna
Filho57, o Vianninha), Arena (de José Celso Martinez Correa) e no do Oprimido (de
Augusto Boal). Como discutimos aqui, boa parte desses movimentos cresceram ou
se articularam no seio do CPC da UNE” (Idem).
Frederico Coelho (2008), percebe no célebre espetáculo Opinião um ritual
contestatório da classe média carioca com figuras importantes da produção artística
popular. “Nara Leão, Zé Keti e João do Valle sintetizavam as contradições do país,
assumindo em cima de um palco, seus papéis de agentes sociais naquele agitado
ano de 1965. A peça funcionava como um espetáculo engajado, onde diversos
temas relevantes para o desenvolvimento nacional eram discutidos”. A desigualdade
social e a crise política estabelecida eram motes principais das canções apresentas.

_______________________________________________
57
Para saber mais sobre a interessante trajetória de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, ver o
excelente trabalho de Moraes (2001).
160

Nara Leão, uma das cantoras mais conhecidas do Brasil, ao gravar o LP


Opinião afirma seu encontro com a música como discurso social, aparecendo aqui
como um mediador de relações entre o seu grupo artístico e sambistas como Zé
Keti e João do Valle. O clima é de se aproximar e experimentar a cultura popular,
trocar, romantizar, proteger, ou mesmo alertá-la da perda de sua memória
(COELHO, 2008). A letra de Zé Keti, cantada no espetáculo é uma síntese da
denúncia dos problemas das favelas cariocas, veja a seguir a letra da música e
algumas imagens relacionadas ao espetáculo:

Acender as velas, já é profissão,


Quando não tem samba, tem desilusão.
Desilusão!...
É mais um coração que deixa de bater.
Um anjo vai pro céu...
Deus me perdoe, mas vou dizer...
Deus me perdoe, mas vou dizer:
O doutor chegou tarde demais
Porque no morro não tem automóvel pra subir,
Não tem telefone pra chamar
E não tem beleza pra se ver...
E a gente morre sem querer morrer!...
(Acender as velas - Zé Keti)

Figura 48 – Zé Keti e Nara Leão no espetáculo Opinião

Fonte: (Disponível em: < http://blogln.ning.com>. Acesso em: 10 dez.2011).


161

Figura 49 – João do Vale, Zé Keti e Nara Leão em cena no


espetáculo Opinião, em 1964

Fonte: (Disponível em: < http://blogln.ning.com>. Acesso em: 10 dez.2011).

O historiador Arnaldo Contier (1998), em pesquisa sobre a relação da canção


de protesto e o CPC da UNE, explica que a inserção da canção popular no âmbito
do contexto cultural e político dos anos 60 nos levou a discutir a música como um
discurso altamente complexo na sua feitura e na sua recepção pelos públicos. No
show Opinião, por exemplo, deu-se uma convergência de músicas oriundas de
outros contextos culturais e estéticos, ainda segundo autor:

“Eu sou o morro e Malvadeza Durão, dos filmes neo-realistas de Nélson


Pereira dos Santos, de 1955 e 56 (Rio, 40 graus e Rio, Zona Norte) ou
Borandá de Edu Lobo (cantada nos espaços de Copacabana) ou trechos do
filme de Glauber Rocha - Deus e o Diabo na Terra do Sol - ou ainda a
Marcha de Quarta-Feira de Cinzas de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes
lançada com sucesso em 1962. Essa rápida difusão do projeto nacionalista
na canção popular de colorações engajadas levou a uma valorização da
música nas peças de teatro (a descoberta da dramaturgia de B. Brecht),
filmes, shows ou manifestações políticas (passeatas)”.
162

O conceito vanguardista e totalizante de cultura defendido pelo CPC interferiu


na criação e na divulgação da música que circulou nos mais diversos espaços da
cidade do Rio de Janeiro. A música Upa, Neguinho, originalmente um segmento da
peça Arena contra Zumbi58, tornou-se um sucesso isolado de Elis Regina nos palcos
do Teatro Paramount, em São Paulo, e transmitido através do video-tape para as
principais cidades do país. Foi apresentada, inclusive, no famoso teatro Olympia em
Paris (CONTIER, 1998).
A construção e sacralização desse imaginário musical num discurso
engajado, segundo Contier (1998), marcadamente ideológico, implicaram no
afloramento de rivalizações no cenário artístico. Diversos movimentos artísticos
foram considerados pelos defensores da canção de protesto como alienantes, tais
como: alguns temas da Bossa Nova (o sorriso, o violão, a flor, o mar de
Copacabana); o iê-iê-iê, o rock, defendido pelos artistas da Jovem Guarda ou
mesmo até pelo movimento tropicalista. Sintetizando, Contier (1998) demonstra que
a chamada “canção de protesto”,num primeiro momento, representava uma possível
intervenção política do artista na realidade social do país, contribuindo assim para a
transformação desta numa sociedade mais justa. Ainda segundo o autor:

“Imbuídos desse imaginário político, aproximaram-se de arranjadores


(maestros), de intérpretes, de intelectuais (ligados aos CPCs, ISEB ou
Departamentos de Sociologia das Universidades), de instrumentistas,
almejando induzir, implícita ou explicitamente, através de suas canções
(formas, instrumentos ou ritmos sacralizados como representações de uma
memória genuinamente brasileira ou nacional: violão, frevo, urucungo,
moda-viola) algumas práticas revolucionárias, a partir de suas mensagens”
(1998).

O matiz ideológico que representava a “canção de protesto” e o seu conteúdo


político atingiam um segmento do público sintonizado com essa proposta política:
estudantes universitários, profissionais liberais dos grandes centros urbanos. Outros
textos, não explicitamente políticos, excessivamente metafóricos por vezes, como o
movimento tropicalista, atingiam todos os tipos de público, incluindo setores mais
conservadores da sociedade (CONTIER, 1998; RIDENTI, 2000).

_______________________________________________
58
Arena conta Zumbi é um musical escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal em 1965, com
música de Edu Lobo, direção de Augusto Boal e direção musical de Carlos Castilho.
163

Segundo Ridenti (2000), dentro desse cenário que envolve rivalizações e a


pressão do autoritarismo político, a canção de protesto não se representou como
hegemônica nesse embate, tendo a produção considerada “não-engajada” maioria
do mercado consumidor musical. Entretanto, sua “mensagem” e sua forma
embutida de fazer arte se espalharam por todo o país, representando um importante
movimento de renovação estética e artística e ademais, de revelação de uma
vanguarda artística articulada aos movimentos democratizantes e crítica à
desigualdade social.Ainda articulando artistas e engajamento político, outro
depoimento interessante pode ser dado pelo compositor bossanovista Carlos Lyra
em entrevista para o sítio eletrônico da União Nacional dos Estudantes, ele fala da
importância do processo gestado no CPC da UNE em dezembro de 2006:

“Movimentou tudo, na cultura, na música, porque foi o movimento que


transformou a Bossa Nova em MPB. Nós aproximávamos a música do
morro, da área rural à classe média. Foi a partir dali do CPC, que surgiu a
música regional que existe do jeito que ela é hoje, o forró, outros ritmos,
tudo veio dessa maneira. Aquilo influenciou o Rio de Janeiro, a arte, a
música brasileira e nós acreditávamos que era mesmo uma revolução
cultural. Queríamos levar aquilo pro povo todo, pro Brasil inteiro”.

E segue, revelando mais informações sobre a sua formação:

“Juntamos dinheiro para construí-lo vendendo um disco da UNE chamado


"O Povo Canta". Depois que arrumamos lá tínhamos todo tipo de atividade,
desde cinema, peças, show, poesia, literatura de cordel, fazíamos de tudo.
As apresentações eram sempre abertas ao público e muita gente
comparecia de todo o Rio de Janeiro. O lugar era realmente um grande
centro cultural, e o trabalho do CPC tinha grande a aceitação e a
participação do público. Chegamos a fazer um show no Teatro Municipal
que ficou famoso, reuniu Cartola, Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Tom,
Vinícius e outros artistas”.

O depoimento de Carlos Lyra revela o teor vanguardista e pedagógico do


projeto do CPC. Nós aproximávamos a música do morro, da área rural à classe
média é a representação consciente do papel de vanguarda (para o seu grupo) e de
mediador cultural. O discurso revela ainda a vontade de conhecer e divulgar os
ritmos populares de todo o país.
Essa percepção dá andamento ao movimento modernista, porém, amplia a
ligação entre pesquisa (de descoberta e preservação) e “desalienação” (política e
cultural) da população, em especial aquela considerada marginalizada. Aqui a arte
teria o sentido pedagógico de revelar a realidade do país e combater a ditadura
164

militar. O show citado por Carlos Lyra que colocou no mesmo palco Cartola e
Vinícius de Moraes é uma representação desse encontro entre artistas populares e
mediadores culturais. Esse encontro só reforçou a ida de diversos sambistas
oriundos das escolas para o cenário da nascente Música Popular Brasileira (MPB),
lá foram realizar sua arte “autêntica”, enquanto as escolas se uniformizavam e
passavam a só responder pela festa carnavalesca.
Uma boa representação dos encontros entre artistas populares e outros
setores da classe média pode ser bem representado na Figura 50, retirada no ano
de 1963 no bar Zicartola, do compositor mangueirense Cartola. Na fotografia estão:
Sérgio Cabral, Zé Keti, Ferreira Gullar, João do Vale, Hermínio Belo de Carvalho,
entre outros. Essa interação alimentou uma banda bem crítica ao caminho que
seguiam as escolas de samba. Zé Keti mesmo, nessa época já se apresentava
como um sambista que começava a se desvincular das escolas de samba. É como
se para esse grupo, as escolas começassem a deixar de ser a representação mais
pura da festa popular carioca e da cultura negra, e passassem a ser um evento para
a mídia, o público, o patrocinador, o turista.

Figura 50 – Sérgio Cabral, Zé Keti, Ferreira Gullar, João do Vale, Hermínio


Belo de Carvalho, entre outros, no bar Zicartola em 1963

Fonte: (Disponível em: <http://memoriadosamba.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).


165

Figura 51 – Roda de samba no bar Zicartola (1)

Fonte: (Disponível em: <http://memoriadosamba.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).

Figura 52 – Roda de samba no bar Zicartola (2)

Fonte: (Disponível em: <http://memoriadosamba.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).


166

Na Figura 51, uma fotografia de roda de samba no Zicartola. A Figura 52


mostra outra roda de samba no mesmo local, esta com Anescarzinho do Salgueiro,
Jair do Cavaquinho, Paulinho da Viola e Zé Keti. À esquerda, abaixo, o compositor
Hermínio Bello de Carvalho.
Segundo Maurício Barros Castro (2004), que desenvolveu uma dissertação
de mestrado sobre o estabelecimento, o Zicartola foi criado por Cartola no ano de
1963, e em pouco mais de dois anos de atividade foi um importante local de
renovação e entrecruzamento cultural. A programação musical da casa era
invejável. A seleção de artistas fixos contava com Nelson Cavaquinho, Zé Keti,
Leléu, Jorge Zagaia, Padeirinho, João do Vale, Geraldo das Neves e, é claro, o
próprio Cartola. Também havia lugar para novos nomes, como por exemplo,
Paulinho da Viola, que recebeu ali seu primeiro cachê como profissional.
Cabral (1998:78) conta, que o estabelecimento de Cartola foi transformado
pela classe média da Zona Sul em ponto de encontro da moda e, a cada noite,
atraia centenas de fregueses interessados em se aproximar da cultura popular. O
local também começou a reunir pessoal do Cinema Novo e os artistas de esquerda
ligados ao CPC. Esse tipo de encontro foi definitivo nas transformações artísticas do
período. Diversos músicos se aproximam dessa preservação e “denúncia social”, se
autonomizando, ou mesmo abandonando as escolas de samba, que nesse
momento começam a viver exatamente seu auge de popularidade na cidade como
um todo.
Dessa forma, paralelamente à renovação promovida em espaços como o
Zicartola, as escolas de samba conquistaram efetivamente a hegemonia do
carnaval carioca. Como abordarei adiante, os desfiles cresceram, se tornaram mais
organizados e de maior apelo popular. Além disso, como veremos adiante, a partir
do final da década de 1950, com a decadência da marchinha e do samba tradicional
como trilha sonora da folia, o samba-enredo se desenvolveu e ocupou o espaço
deixado pelas outras modalidades.
Entretanto, o engajamento e o encontro artístico produzido na relação entre
compositores populares e artistas da classe média levarão diversos sambistas a
denunciarem o crescimento e perda de sentido no espetáculo que se tornaria o
desfile das escolas de samba.
Diversos compositores, como o já citado Zé Keti, Paulinho da Viola, Cartola e
Candeia, mesmo que oriundos das escolas de samba, nesse momento começavam
167

a se destacar como artistas da MPB. Dessa forma, como alertei antes, suas
produções artísticas começavam a se tornar, de alguma forma, independentes das
escolas de samba.
Outro espetáculo realizado pelo CPC que mostra também esse tipo de
encontro e preocupação foi o Rosa de Ouro. Lançado em março de 1965 no Teatro
Jovem, alcançou sucesso semelhante ao show Opinião. “Concebido pelo produtor,
compositor e poeta Hermínio Bello de Carvalho, o show promoveu o retorno aos
palcos da grande dama do Teatro de Revista, Aracy Cortes, acompanhada por um
grupo de cantores-compositores formado por Paulinho da Viola, Elton Medeiros,
Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho e Anescarzinho do Salgueiro” (DOMUS,
2009).
O grande destaque do Rosa de ouro, no entanto, foi Clementina de Jesus,
uma senhora de 64 anos que estreava profissionalmente como cantora, até então
ela trabalhara como empregada doméstica. “Recém-descoberta por Hermínio,
Clementina arrancava entusiasmados aplausos da plateia ao entoar com sua voz
poderosa os belos sambas e cantos africanos de seu repertório” (Idem).
Cartola, que participou do espetáculo, também fora reencontrado pelo
jornalista Sérgio Porto, ele estava esquecido na Mangueira e trabalhava como
lavador de carros. Com o apoio de amigos da “classe média” abriu o bar Zicartola
com sua esposa Dona Zica, dai em diante sua carreira, antes interrompida, tomaria
sucesso que nunca tinha encontrado (CASTRO, 2004).
Procurando uma síntese, posso afirmar que a trajetória de um artista neste
período, estaria necessariamente vinculada a uma escolha dentre as possibilidades
do campo artístico, a partir, inclusive, de sua postura política. A cisão que o discurso
“engajado” conseguiu criar na cultura nacional agia diretamente na formação de
públicos e mercados consumidores.
Dessa forma, o reencontro entre a música popular e outros segmentos
artísticos foi um dos elementos que impulsionaram a criação de um novo
movimento, bastante articulado com a ideia de “denúncia”, “preservação e troca
cultural”, atingindo, o debate acerca da questão da autenticidade da produção
artística.
Vamos pensar no seguinte cenário: a produção artística popular se torna
base simbólica da formação nacional e matéria privilegiada no mercado cultural
(condições interligadas), torna-se cultura de massa e adquire a conceituação de
168

inautêntica por um grupo, porém, como observamos aqui, essa autenticidade está
em demasiado marcada pela questão do engajamento estético e político do artista.
No primeiro momento analisado (década de 1930/40), a produção artística
popular começa a se massificar junto ao desenvolvimento de uma identidade
nacional. Participa, através de uma série de intermediações, tanto do Estado,
quanto da mídia e da indústria cultural, da articulação dos símbolos formadores das
identidades nacionais. Porém, pretendo prolongar outro elemento que é a
prevalência de uma visão folclórica sobre a cultura popular nessa fase (Estado
Novo), este debate é fundamental para compreender a modificação na visão da
produção artística popular no período analisado aqui.
Tal como relata o estudo de Vilhena (1997,1990), ainda até os anos de 1950
o folclore era considerado um tema quente, segundo o autor, tomou formato de
movimento organizado, produtivo e influente no cenário cultural brasileiro.
Um dos elementos que reforça essa visão é a forte atuação da Comissão
Nacional do Folclore (CNFL), que funcionou até 1967. As grandes críticas que se
abateram sobre os folcloristas começaram, sobretudo na universidade, o rigor
exigido pela crescente sociologia não deixaria impune o olhar folclórico sobre a
cultura do povo. Ainda, segundo Vilhena & Cavalcanti (1990:88):

“O confronto entre a escola paulista de sociologia, representada por


Florestan Fernandes, e os folcloristas da CNFL nos revela um debate entre
dois modelos distintos de ciência, modelos esses que apontam para
diferentes projetos de modernização para o Brasil. Do ponto de vista da
produção de conhecimento, a hegemonia obtida pelo primeiro modelo no
campo das ciências sociais no decorrer desse período pode ser identificada
como uma das causas da marginalização nos estudos do folclore”.

Francisco de Oliveira (1992:72), também anota que a identidade entre o


folclore e a cultura popular se rompe nos anos de 1950, folclore passa a ser
tradição; cultura popular; transformação. Aqui a arte popular passou a significar um
meio para atingir determinado fim e dar consciência ao povo. Se antes o folclore era
visto como parte do processo de construção da nação, passou a ter uma conotação
negativa já no decorrer dos anos de 1950. Passou a ser visto como expressão de
atraso cultural.
169

A produção cultural popular começa a ganhar forte carga ideológica, Vilhena


(1997) mais uma vez alerta que, tal como no movimento folclorista que ajudou a
redefinir o lugar da “cultura popular”59 no projeto nacional, o movimento que
culminou no CPC da UNE também organizou uma gama de intelectuais imbuídos de
uma missão e um projeto na construção de uma cultura nacional. Tal como elabora
o sociólogo e ativista do CPC, Carlos Estevam no seu livro manifesto sobre a
entidade:

“A cultura popular, essencialmente, diz respeito a uma forma


particularíssima de consciência: a consciência política, a consciência que
imediatamente deságua na ação política. Ainda assim, não a ação política
em geral, mas ação política do povo. Ela é o conjunto teórico-prático que
co-determina juntamente com a totalidade das condições materiais
objetivas, o movimento ascensional das massas em direção à conquista do
poder na sociedade de classes” (1963:30).

O discurso de Estevam ganha conotação explicitamente marxista. É


interessante aqui também expor um depoimento do poeta Ferreira Gullar (1965:1).
Participe influente do processo do CPC.

“A expressão 'cultura popular' surge como uma denúncia dos conceitos


culturais em voga que buscam esconder o seu caráter de classe. Quando
se fala em cultura popular acentua-se a necessidade de pôr a cultura a
serviço do povo, isto é, dos interesses coletivos do país. Em suma, deixa-se
clara a separação entre uma cultura desligada do povo, não-popular, e outra
que volta para ele e, com isso, coloca-se o problema da responsabilidade
social do intelectual, o que obriga a uma opção. Não se trata de teorizar
sobre a cultura em geral, mas de agir sobre a cultura presente procurando
transformá-la estendê-la, aprofundá-la”.

A passagem com o texto de Gullar aprofunda o sentido político inscrito na


'missão' e 'projeto' destinados ao intelectual frente à cultura popular (como um todo)
e ao engajamento da produção artística popular. O antropólogo Gilmar Rocha
(2008), nos seus estudos sobre o folclore no Brasil, aponta que esse processo
revelaria três formas de pensar a cultura popular, a primeira como arte do povo,

_______________________________________________
59
Embora eu já tenha afirmado nesta pesquisa que prefiro os termos produção cultural, ou produção
artística que simplesmente cultura, por diversas vezes (em especial na referência de outros
autores) ele pode aparecer aqui relacionado à 'cultura popular' ou simplesmente 'cultura'. Quando
não existirem referências, estou tratando de cultura no termo mais amplo, quando não, estarei
chamando de produção artística ou cultural.
170

como o equivalente do folclore; a segunda como arte popular relacionada à indústria


cultural (onde entraria o samba também); e a terceira como arte popular
revolucionária, segundo o autor, a arte “produzida pelos intelectuais e artistas com o
propósito de produzir consciência de classe e, por conseguinte, a transformação da
realidade social” (2008:226).
A produção artística popular vai se deslocando da visão folclórica e vai se
aproximando de uma visão revolucionária. O extremismo dessa posição vai apostar
que a 'cultura popular' era portadora de uma cultura 'autêntica', 'pura' e, portanto,
menos corrompida.
A massificação da produção artística passa a ser questionada, passa a ser
acusada de “inautêntica” e “despolitizada”. O fato é que a massificação inicial do
samba não é vista com maus olhos pelos sambistas, mas com o estabelecimento
das transformações que relato a seguir, diversos sambistas, jornalistas, intelectuais,
e etc., irão questionar a escola de samba como um processo artístico que perdeu
sua autenticidade e se subjugou a outros interesses.
Diversos membros das escolas de samba se juntam ao movimento de
engajamento artístico, que como alertei, procura nas raízes da arte popular a saída
para a arte mercadológica, em especial aquela que era financiada ideologicamente
pelo Estado autoritário.
Entretanto, o debate sobre a autenticidade da arte aparece na crise das
escolas de samba interligado a diversos componentes. Como já fora descrito, o
engajamento afeta membros das escolas de samba, e sua maior expressão se dará
na preservação da identidade cultural africana.
O movimento intelectual e político do engajamento artístico atinge o
compositor popular, mas seus debates mais entusiasmados ficarão mais restritos
aos círculos militantes de classe média. O mais interessante desse processo para
as escolas de samba é o encontro de diversos de seus membros como esse clima
de engajamento artístico. Muitos deles irão sair ou criticar as transformações que
ocorrem nos desfiles carnavalescos e nas estruturas das escolas de samba.
Esse movimento politiza a atuação do compositor popular, ao mesmo tempo
em que faz este reforçar a sua “cultura original”. Aqui, o sambista começa a mirar
para a África e redescobrir o sentido de ser negro no Brasil. Evidente, que nesse
clima de engajamento artístico, a questão racial também aparece como pauta
política e cultural e está totalmente ligada ao debate aqui colocado sobre
171

engajamento político e estético, que em outras coisas, reascendeu a valorização de


uma estética “autêntica”, popular e "livre" das influências mercadológicas.

3.2 A influência do debate racial

Embora, não tenha sido a chave determinante na transformação cultural do


universo racial brasileiro das primeiras décadas republicanas, o movimento negro é
fundamental para entender o clima de engajamento no debate político da época
adiante. É parte importante de um universo que articula sambistas com a política
racial específica, isto é, para além da atuação engajada (dos CPC's) discutida
anteriormente60.
No início dos anos de 1960, são encontradas diversas organizações de
cunho acadêmico e artístico que visam à autoafirmação negra. Inspirados nas lutas
dos negros norte-americanos e nas guerras de libertação africanas, os movimentos
brasileiros miram para os EUA e a África como resposta a seu suposto estado de
“alienação”.
Ao invés da integração racial e cultural a palavra de ordem passa a ser
reparação. Estes movimentos reivindicam a ideia de que os negros têm uma história
baseada em sua herança africana e querem fazer com que esta história seja
resgatada, expandida e assumida.
É nesse período que se fortalecem e surgem tanto a Quilombo de Candeia,
como o Centro de Estudos Afro Asiáticos, a Sociedade de Estudos da Cultura Negra
no Brasil, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África, o Instituto de Pesquisas das
Culturas Negras, o Centro de Pesquisas da Cultura Negra, o Movimento Negro
Unificado, entre outros movimentos políticos e culturais, e espaços de pesquisa
acerca da questão racial. (MOURA, 1989; HANCHARD, 2001).

_______________________________________________
60
Já alertei que tanto o movimento de engajamento artístico, quanto o movimento negro não se fazem
hegemonia no período, são aqui analisados porque são muito influentes no processo que analiso,
isto é, de rompimento com a massificação cultural das escolas de samba. Os trabalhos de
Hanchard (2001), Moura (1989), Nascimento (1982), são importantes fontes de aprofundamento
das questões aqui apresentadas, além de servirem como referência para este tópico.
172

Acima de tudo, no plano das pesquisas questiona-se o mito da democracia


racial atribuído a Gilberto Freyre, que seria acusado de escamotear a opressão
histórica sofrida por negros no Brasil. E é nesse clima, de retorno às origens que
uma parcela do movimento negro passa a ter nas escolas de samba um alvo de
acusação, que representa distorção, alienação e destruição do passado africano.
A questão é bastante complexa, o clima é de autoafirmação negra, a
influência americana chega mais nos intercâmbios acadêmicos e culturais do que
propriamente no clima de guerra civil que tomaram os guetos americanos daquele
tempo. Comportamentos, mudanças nas vestimentas, na música, no corte afro de
cabelo, revelando uma estética positiva black is beautiful, mais do que propriamente
um movimento político organizado, ocorreu uma modificação da autoestima negra
no Rio de Janeiro e em todo Brasil.
A cultura de rua dos guetos americanos é muito importante na reformulação
do ambiente cultural do negro nas grandes cidades brasileiras. Na imagem abaixo,
o cantor Tim Maia, em 1968, aparece como uma representação desse estilo black.
Note que o cantor valoriza um estilo diretamente influenciado pela black music
norte-americana. As roupas, o ritmo, o cabelo remetem aos grupos de soul music
dos EUA. Nas fotos abaixo comparo Tim Maia, o cantor e ator Tony Tornado e a
referência da Soul Music norte-americana, James Brown.

Figura 53 – Semelhança de estilos entre James Brown, Tony Tornado e Tim Maia

Fonte: arquivo pessoal

Por outro lado, o movimento organizado exige reparação aos negros. Em um


movimento que denuncia a opressão sofrida pelo negro ao longo da história do
Brasil, tal como a ausência da cultura negra na história oficial.
173

Sua influência no meio da produção cultural se dará nos grupos que se


remetem a África, onde o negro teria uma cultura riquíssima que precisava ser
preservada. Sabendo seu passado, o negro se orgulharia dele e imporia com
autoestima renovada e visão esclarecida seu lugar na sociedade brasileira.
Por mais que para estes últimos Paulo da Portela seja um mito das escolas
de samba, os negros não devem fazer aquele movimento inicial de incorporação à
sociedade (denunciada como) preconceituosa, usando ternos clássicos no samba,
modificando seus hábitos e costumes. No quilombo de Candeia o traje e as cores
são de referência cultural negra e a invocação da África é permanente.
Um detalhe que irei aprofundar adiante é essa reinvenção do passado. Os
fundadores das escolas de samba, que iniciaram o processo de integração, são
tratados como heróis, enquanto o presente representa a desconfiguração do que as
escolas de samba já foram um dia. Quando alertei a complexidade do tema, falo da
confusão operada entre passado e tradição, tal como a sua ligação com a
superação dos problemas de ordem racial no país. É por ai que quero chegar. E
alerto, não tratarei aqui de uma história do movimento negro no Brasil, me interessa
a influência desse clima cultural e político no maior espetáculo popular carioca
daquele tempo.
Vale a pena aqui ressaltar novamente, a critica elaborada por Hobsbawm
(2002), onde o estudo das tradições aparece como um caminho para esclarecer as
relações humanas com o passado. Todas as pessoas, inclusive os pesquisadores,
acabam por forjar imagens do passado que tem, por algumas vezes e em diversos
níveis, um fundo político, uma apreensão romântica, idealizada etc (SANTOS,
2000).
Dessa forma, alguns discursos sobre o passado contribuem,
conscientemente ou não, para a reestruturação de imagens do passado que
pertencem não só ao mundo da investigação acadêmica, mas também à esfera
pública onde o homem atua como ser político (SANTOS, 2000).
No capítulo 2 alertei sobre as construções feitas sobre a imagem de Paulo da
Portela nas entrevistas realizadas com seus contemporâneos. De toda forma,
sabemos que esse tipo de referencia “heróica” a um personagem da História
representa, de alguma forma, uma grande legitimidade desse personagem em seu
grupo e na sociedade de sua época.
174

Retornando as transformações culturais ocorridas durante a década de 1970,


destaco que a influência da cultura negra estadunidense toma ares de uma
renovação estética e de autoestima nos circuitos culturais urbanos. No meio
acadêmico e político fortalecerá pesquisas e reivindicações acerca da ideia de
ampliação dos direitos civis.
Dá África, além do matiz artístico, virá à referência às lutas por
descolonização, uma transformação da visão do lugar histórico do negro na
sociedade brasileira, denunciando o abuso do passado escravista e a necessidade
de reparação e esclarecimento no presente.
Entretanto, o Brasil, pós-abolição do escravismo, não viveu no plano dos
direitos uma segregação racial oficial, tal como ocorrerá em alguns estados dos
EUA e na África do Sul. Logo, esse tipo de reivindicação perderia força para a ideia
de reparação. As próprias pesquisas se preocuparão mais em desenvolver os
entraves impostos a incorporação do negro na sociedade brasileira, fortalecendo o
sentimento de retorno as questões do passado escravocrata (VERDECANNA,
2009).
A pauta que vai se fortalecendo nos núcleos políticos negros é a ideia de que
o negro tem uma história escamoteada, e que foi obrigado a se escravizar. De
alguma forma esse “equivoco” do passado precisaria ser reparado. E aqui, o
movimento negro surge como o espaço de obtenção de valorização de uma
identidade, que mesmo após a abolição continua a ser reprimida. É um espaço
onde membros marginalizados no processo social construíam suas significações e
manifestaram seu pertencimento. Que o antropólogo Kabelengue Munanga, vice-
diretor do Centro de Estudos Africanos da USP, define como:

“A tomada de consciência de um segmento étnico-racial excluído da


participação na sociedade, para a qual contribuiu economicamente, como o
trabalho gratuito como escravo, e também culturalmente, em todos os
tempos na história do Brasil” (1994:187).

Dessa forma, o movimento negro constituiria uma afirmação baseada na


ideia de dívida histórica. Alertaria que os negros foram submetidos a trabalho
forçado e não remunerado envolvendo uma série de castigos corporais. A retomada
da identidade negra é objetivo da ação desse grupo por meio da luta contínua por
reparação e reconhecimento da dívida histórica com a parcela negra da sociedade
175

brasileira. Tentando incentivar a equiparação das desigualdades sócio raciais no


país. Ainda, segundo Munanga, falando sobre o mito da democracia racial:

“O mito da democracia racial, baseado na dupla mestiçagem biológica e


cultural entre as três raças originárias [...] exalta a ideia de convivência
harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos
étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e
impedindo os membros das camadas não-brancas de terem consciência
dos mecanismos de exclusão da qual são vitimas na sociedade. Ou seja,
encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como
brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de
consciência de suas características culturais que teriam contribuído para a
construção e expressão de uma identidade própria. Essas características
são “expropriadas”, “dominadas” e “convertidas” em símbolos nacionais
pelas elites dirigentes” (2006:89).

Levando em conta a relevância do professor Kabelengue Munanga no


movimento negro, percebemos na passagem anterior os elementos formadores do
discurso reparatório. A escravidão é a grande liga entre passado e presente.
Lembrá-la é um alerta para o negro contemporâneo. Ela é a chave da reivindicação
e estará presente em diversos espaços de efervescência negra nos anos de 1970,
junto dela a remissão à cultura africana que teria sido enfraquecida por um modelo
que privilegiou os valores das elites nacionais brancas. Segundo Abadias
Nascimento, outro importante expoente ideológico e político do movimento negro
brasileiro:

“Evocar o tráfico, lembrar constantemente a escravidão, deve constituir para


os brasileiros uma obrigação permanente e diária, sem que isso represente
nenhuma forma de autoflagelação patológica e muito menos o
extravasamento de um pieguismo lacrimogêneo. Esta hipótese está muito
distante da minha proposição. O que quero dizer é que o tráfico e
escravidão formam parte inalienável do ser total dos afro-brasileiros.
Erradicá-los da nossa bagagem espiritual e histórica é o mesmo que
amputar o nosso potencial de luta libertária, desprezando o sacrifício dos
nossos antepassados para que nosso povo sobrevivesse” (NASCIMENTO,
2002:98).

Todas as citações anteriores são de intelectuais engajados nos círculos


militantes do movimento negro. As coloquei aqui no intuito de demonstrar a visão
que gerou o atual discurso de reparação pelas questões do passado escravista. O
encontro entre o movimento político internacional e o brasileiro modificou
substancialmente a configuração das lutas acerca da questão racial no Brasil. Como
176

já coloquei anteriormente, esse processo estará baseado em dois elementos: a


ideia de reparação e a crítica ao mito da democracia racial.
O antropólogo Peter Fry (2005), no seu “A persistência da raça” pode nos dar
importantes pistas para travar esse debate entre o clima racial brasileiro e a leitura
construída pelos círculos militantes negros. O encontro que o pesquisador
estabelece entre Brasil e África é determinante para que ele se aproxime de uma
visão de que os processos raciais no Brasil, embora existam paralelos, são
diferentes dos africanos e norte-americanos. Esse elemento é muito importante para
entender as dinâmicas particulares do processo brasileiro.
Segundo Fry, tanto no Brasil quanto em outras colônias portuguesas ocorreu
um privilégio da ideia de conversão do nativo a cultura dominante, isto é “a
conversão dos diversos grupos étnicos à cultura dominante”. No período posterior a
República Velha se inicia “o elogio da miscigenação cultural e biológica” (2005:175).
É por isso, segundo o autor, que o desenvolvimento das questões raciais no Brasil
toma caminho peculiar.
Aqui recoloco a ideia de que no Brasil não aconteceu à mesma separação
entre negros e brancos ocorridas nos EUA e na África do Sul. Segundo Fry (2005),
nos EUA predominaram a ideia de que um único ancestral negro era suficiente para
produzir um “afro-americano”, no Brasil se acredita na ideia de que um indivíduo
herda características de todos os seus ancestrais. Isso geraria segundo o autor, um
“arco-íris de categorias raciais que vai do preto-azulado ao mulato-claro. Uma
pesquisa realizada em 1976 revelou a existência de nada menos que 135
categorias desta natureza” (2005:176).
Outro elemento peculiar é a difusão das práticas culturais afrodescendentes.
A religião e o samba são rapidamente difundidos na cidade. Como já alertado no
capítulo inicial, foi no universo da produção cultural e da religião que a identidade
negra se difundiu com mais força e mediou sua integração na cidade do Rio de
Janeiro.
Nas casas de santo e nas escolas de samba foi se fortalecendo uma primeira
identidade de grupo capaz de intervir positivamente pelos seus membros na cidade.
Espaços que serviram como dispositivos de integração e mediação cultural.
Nas escolas de samba, os desfiles, os encontros, eram um espaço lúdico em
que sempre havia a inserção de reivindicações identitárias. No carnaval, colocar a
escola de samba nas ruas era uma forma de por alguns dias, negociar com a
177

cultura padrão e apresentar a cultura negra à cidade. Nas casas de santo as figuras
de referência, que exercem a formação espiritual, colaboram para a fundamentação
do pensamento ideológico. Por meio da valorização religiosa e cultural, educa seus
devotos para uma atuação política e racial.
Como já esclareci, no pós-golpe militar de 1964, se amplia o movimento
negro organizado, se fortalece a ideia de dívida histórica com o passado da
escravidão. E se fortalece também num universo mais amplo que o dos próprios
negros um sentimento valorativo frente às favelas e a cultura e a arte popular,
movimento que se articula com a política do CPC da UNE61 e com a investida de
intelectuais de esquerda nas camadas populares, que de uma forma pedagógica
pretendiam dar-lhes consciência política.
A presença da cultura negra é comum à vida cultural brasileira. Quero
levantar a hipótese de que a influência do movimento negro não se fez hegemônica
nos círculos culturais. Mas se fez presente, no capítulo seguinte quero mostrar
como ela aparece no discurso do sambista Antônio Candeia Filho. Na realidade,
levantei toda essa discussão para mostrar que existe uma pressão para o negro
olhar para o passado e preservar sua cultura, além de lutar por sua identidade e
história. Esse movimento criará uma nova banda artística, uma nova valorização
estética, mas nunca os ares de guerra urbana do gueto estadunidense.
O negro passa a ser valorizado pela sua produção cultural, num termo mais
amplo que os alicerces da cultura popular, passa a ser agente de redefinição do seu
espaço, seja na apreciação da estética black is beautiful dos guetos
estadunidenses, ou mesmo na valorização do engajamento político por equidade
sócio racial no país. O detalhe importante, é que o próprio clima político autoritário,
como já alertado, empurra o movimento da política clássica, para a arena da
produção cultural.
De todo modo, o movimento black e a redefinição da identidade negra no Rio
de Janeiro, modificou comportamento, gostos, criando novos símbolos de etnia para

_______________________________________________
61
Vale uma nota para esclarecer que o movimento artístico negro sofre influência do movimento
política, mas isso não significa uma adesão, pelo contrário tende a continuar aquecendo o espírito
de trocas que acompanha a sociedade brasileira dos últimos tempos. O próprio Teatro Negro de
Abdias do Nascimento critica o CPC por tentar se apropriar da luta racial para seus interesses
políticos.
178

a população negra (e inclusive um novo mercado artístico em torno dele). Em pouco


tempo os bailes musicais blacks ficariam lotados em todo o Rio de Janeiro, embora,
como já alertado, não tivessem os contornos dos conflitos ocorridos nos guetos
americanos, são fundamentais para a compreensão da identidade negra no Brasil.
Segundo o antropólogo Peter Fry:

“A proliferação de bailes afro-sul em São Paulo e no Rio é um exemplo de


situações em que os brasileiros negros criam novos símbolos de etnia, de
acordo com sua experiência social. Embora algumas pessoas acreditem
que esses fenômenos são exemplos de 'dependência cultural’, ou da
capacidade das multinacionais de vender os produtos que bem entenderem,
não tenho dúvida de que, apesar de tudo, eles representam um movimento
de grande importância no processo de identidade no Brasil” (FRY, 1982:15).

Os primeiros bailes, no inicio dos anos de 1970, ficaram conhecidos como


"Bailes da Pesada", eram realizados aos domingos no bairro de Botafogo, na casa
de shows Canecão. Segundo a pesquisa de Hermano Vianna (1988) sobre o
nascimento do funk carioca, o locutor de rádio Big Boy e o discotecário Ademir
Lemos, duas figuras lendárias para os funkeiros, foram os responsáveis pelos
Bailes da Pesada, que reuniam cerca de cinco mil pessoas de diferentes bairros da
cidade. Abaixo uma foto dos DJs Ademir Lemos e Big Boy (Figura 54) e outrado
cartaz da festa (Figura 55).

Figura 54 – DJs Ademir Lemos e Big Boy


179
180

Figura 55 – Cartaz do Baile da Pesada

Fonte: (Disponível em: <http:// funk10.net>. Acesso em: 10


dez.2011).

Como conta o jornalista Silvio Essinger (2005), no seu “Batidão: uma história
do funk”, Newton Alvarenga Duarte, o Big Boy foi Formado em Geografia e
acumulou inúmeras funções na área de jornalismo e produção cultural. Ele foi o
primeiro a quebrar a regra das locuções rígidas nos rádios. Com o estilo de locução
bem acelerado e, digamos assim, “meio louco”, Big Boy ganhou vários adeptos
entre os inúmeros ouvintes da Rádio Mundial, chegando a ter três programas ao
mesmo tempo no ar: Cavern Club, Big Boy Show e Ritmos de Boate.
Big Boy foi uma figura fundamental na história dos grandes bailes que se
realizaram ao longo dos anos 70, onde centenas de equipes de som disputavam a
preferência de milhares de jovens. Os lendários Bailes da Pesada eram verdadeiros
confrontos de equipes, onde o equipamento de cada equipe de som (isto é, a
potência e a qualidade do som) era fundamental como elemento de distinção e
sucesso do baile. Cada DJ se desdobrava para mostrar ao público as novidades do
Soul Music americana, bem como, os grandes DJs e equipes do movimento
internacional. O DJ famoso era aquele que além da melhor equipe detinha o melhor
acervo e contato com as novidades vindas do exterior (ESSINGER, 2005:67).
181

Big Boy foi o difusor de uma série de modismos e comportamentos em seus


programas de rádio: sapato na época chamava-se pisante, dentre outros costumes.
Algumas das características principais dos frequentadores dos bailes da pesada
eram as seguintes: cabelos no estilo black power, óculos escuros, gravata
borboleta, bengala, calça boquinha de sino e sapato cavalo de aço (Idem).
Embora essas festas tocassem também rock e outros ritmos da indústria pop
internacional (em maior parte dos EUA), o que estava em efervescência e no centro
da festa era o soul de James Brown, Wilson Pickett e Kool and Gang (Idem).
Com o passar dos anos, os Bailes da Pesada foram transferidos para clubes
do subúrbio carioca. Um dado interessante foi que a partir de então, esses bailes
passaram a ser realizados a cada fim de semana num bairro diferente, favorecendo
o surgimento de novas equipes de som que animavam pequenas festas e
descentravam os grandes bailes.
Na Figura 56 e na Figura 57abaixo, um baile da equipe Khaunna no clube
Mackenzie do Méier, ainda na década de 70, demonstra algumas característica dos
bailes nos subúrbios cariocas, as potentes caixas de som e quantidade grande de
frequentadores, em sua maioria, negros.

Figura 56 – Baile da equipe Khaunna (1)

Fonte: (Disponível em: <http://somdapesada.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).


182

Figura 57 – Baile da equipe Khaunna (2)

Fonte: (Disponível em: <http://somdapesada.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).

Como estes bailes estavam sempre lotados, diversas equipes de som, como
a Soul Grand Prix, Revolução da Mente, Black Power, Atabaque, Khaunna, dentre
outras, conquistaram fama e algum dinheiro nessa época. Em pouco tempo o
subúrbio carioca era tomado pela febre da black music.
Porém, segundo Hermano Vianna (1988), as grandes equipes de som
começaram a tomar uma atitude pedagógica de valorização da identidade negra,
seguindo o movimento cultural que diversos outros grupos da cultura negra seguiam
na sociedade. O interessante aqui é que se fortalece um mercado fonográfico e de
diversão “marginal”, desalinhado da indústria fonográfica dominante. Embora
diversos artistas permaneçam nas gravadoras tradicionais, grupos marginalizados
começam a montar uma indústria fonográfica periférica no subúrbio carioca.
O que acontece, é que nesse momento, o funk perdia as características de
pura diversão e passava a se constituir como um movimento político de superação
do racismo (o que acabou por empurrar os bailes para os subúrbios); e segundo,
porque a polícia do regime militar achava que por trás das equipes de som
existissem grupos clandestinos de esquerda, de forma que alguns discotecários
ligados ao movimento Black Rio chegaram a ser presos. Conforme Vianna (1988), o
engajamento artístico nos bailes foi um motivo para o esvaziamento destes em
183

alguns pontos da cidade, produzindo cisões no grupo, mas, reforçando uma


identidade negra muito forte no subúrbio da cidade.
É por isso, que mesmo com o processo de “guetização” dos Bailes da
Pesada, o crescimento destas festas despertou o interesse comercial das
gravadoras do país, além de criar novas gravadoras oriundas do próprio subúrbio e
das equipes dos bailes. Os primeiros discos lançados levavam o nome das equipes
mais famosas, começando pelo LP Soul Grand Prix depois chegando à vez da
Dynamic Soul, da Black Power e mais tarde da Furacão 2000 (Vianna, 1998).
Os exemplos do Teatro Opinião e do Baile da Pesada são fundamentais para
compreender o cenário racial do Brasil da década de 1970. Em um primeiro
momento ocorre um reaquecimento histórico das relações de troca entre artistas
populares, mediadores culturais e elites. Em um segundo momento, que não
atravessa necessariamente o primeiro, uma parte dos grupos artísticos populares
radicaliza na luta pela valorização da cultura afro-descendente. Esse segundo plano
irá produzir cisões e ira acusar as escolas de samba, por exemplo, de terem perdido
sua essência, de não representarem mais a herança cultural negra.
Retornando ao cenário mais geral, é certo que em tempos de repressão, a
música, o comportamento e a estética em geral mais uma vez aparecem como
canal de proliferação de símbolos alternativos ao sistema vigente e ao ambiente
cultural mais amplo da sociedade. A luta política organizada ainda precisaria
enfrentar a derrubada da ditadura militar para ver sua expansão se efetivar. Mas
pelas ruas, novos signos conviviam com o ambiente nacional remodelando mais
uma vez as relações entre cultura, raça e política nos principais centros do Brasil.
É muito difícil separar esses universos, o novo tipo de engajamento acerca
da questão racial, o movimento artístico e comportamental e a valorização da
cultura africana. A escola de samba funcionou como um lugar de integração e
passou a ser questionada culturalmente pelo seu próprio universo criador. Aqui as
escolas de samba, espaço fundamental para entender a integração cultural do
negro no Rio de Janeiro, passam a ser criticadas, dentro de um campo artístico em
transformação, como uma árvore que perdeu a raiz (na comparação criada por
Antônio Candeia), que deixou de ser porta-voz da identidade negra e passou a ser
um espaço “invadido”, onde o que interessa é agradar jurados, elites e mídia.
Percebemos que a dureza desse tipo de acusação anda perto da modificação
da visão da questão racial no país e da redefinição da valorização estética negra, ao
184

mesmo tempo em que meche com a romantização da tradição. Os sambistas


descontentes miram no passado africano e na fundação quase mítica de suas
agremiações, a resposta para a perda da autenticidade da produção cultural ligada
às escolas. Era como se as escolas devessem ser veículos propagadores da
cultura, da história, da herança negra, ajudando este a superar a “alienação” e se
engajar na luta por equidade social entre as raças. Além disso, deveria ser também
mais resistente as “inovações” que poderiam ferir sua autenticidade.
Na primeira parte desta pesquisa, as escolas de samba eram o principal
espaço de sociabilidade do subúrbio carioca, agora teriam que rivalizar com os
bailes black, charme e shows realizados nos clubes por artistas populares que vão
se autonomizando das escolas de samba e ganhando público próprio no envolto
cultural da recente Música Popular Brasileira ou mesmo do movimento de
gravadoras de pequeno porte oriundas dos Bailes da Pesada.
Nesse cenário, as escolas de samba não gozam da mesma legitimidade que
possuíam no meio artístico popular, pois esse campo se redefiniu em diversos
sentidos. Entretanto, um deles prevaleceu, foi à valorização da cultura popular, de
suas raízes, de sua complexidade e sofisticação. Essa é a banda cultural que
entrará em choque com as transformações ocorridas nas escolas de samba e nos
desfiles carnavalescos.
A escola de samba será acusada de ter perdido sua autenticidade e servir a
uma gama de interesses cada vez mais expressados na “deformação” da cultura
popular. No capítulo seguinte esse debate (autenticidade) irá aparecer em uma face
mais complexa, na análise do manifesto crítico de Candeia dirigido às escolas de
samba.
Adiante, irei penetrar no universo mais restrito das escolas de samba nesse
período para no capítulo seguinte me aprofundar na rachadura iniciada por Antônio
Candeia na Portela. Vamos conhecer adiante as principais transformações ocorridas
nas escolas de samba nos dois períodos analisados aqui nesta pesquisa. Com mais
alguns elementos poderemos mapear os fatores que podem ter intensificado as
divergências no universo carnavalesco carioca.
185

3.3 A espetacularização dos desfiles62

Em 1960, como relata Cabral (1998), Nélson de Andrade, presidente da


Acadêmicos do Salgueiro, faz um convite ao então responsável pela cenografia do
Teatro Municipal e julgador do carnaval carioca Fernando Pamplona para que este
elaborasse o enredo do carnaval da escola naquele ano. O enredo era Zumbi dos
Palmares e o artista plástico aceitou o convite levando junto de si seu companheiro
de trabalho no Municipal, o cenógrafo e figurinista Arlindo Rodrigues e o aderecista
Nilton Sá, tal como Pamplona, oriundo da Escola de Belas-Artes. A escola de samba
já contava com o casal de artistas Marie Louise Nery e Dirceu Nery ela era suíça e
especialista em folclore, ele nordestino e cenógrafo teatral (COSTA, 1992:67;
CABRAL, 1998).
O Salgueiro é considerado a primeira escola de samba a fazer essa ponte,
normalmente os responsáveis pelo desenvolvimento do desfile eram pessoas
autodidatas oriundas da própria escola, existiam um ou outro figurinista do teatro de
revista que trabalhavam nas escolas nas proximidades do desfile. Alguns sambistas
descontentes dirão que aumenta ai a ingerência de membros externos à
comunidade. Entretanto, a presença de um “técnico”, aderecista, cenógrafo,
escultores, mesmo que autodidata, é constante na história da preparação dos
festejos no carnaval carioca.
No período de glória dos grandes Ranchos que, como já alertei no capítulo 1,
servem de referência às escolas de samba, essas funções estavam bem definidas.
No pós-1960, essa mudança revelaria uma transformação estética no formato dos
desfiles. A influência desses carnavalescos modificaria desde a concepção do
enredo, comportamento de alas, padrão de alegorias, entre outros elementos.
Com o aumento da popularidade dos desfiles e do número de setores da
sociedade envolvidos direta ou indiretamente com as escolas de samba, seu

_______________________________________________
62
A maior parte das referências deste ponto do capítulo foi extraída da obra. As Escolas de Samba do
Rio de Janeiro de Sérgio Cabral (1997) e da pesquisa da historiadora Monique Augras intitulada: O
Brasil do Samba-Enredo (1998). Ainda se encontra a importante colaboração de Nei Lopes no seu:
O samba, na realidade: A utopia da ascensão social do sambista (1981).
186

patrimônio se amplia e nesse processo novos mediadores e personagens entram na


definição do formato e padrão das apresentações carnavalescas.
Se pensarmos na análise feita anteriormente de que a produção artística da
elite e do povo encontram constantes canais de troca, mediação e redefinição,
podemos pensar as escolas de samba, como um movimento que, embora tenha
suas raízes na cultura popular foi se remodelando no encontro com o universo
cultural mais amplo da cidade. Passou a representar e responder por um patrimônio
maior que a comunidade que a originou.
Segundo afirma Cabral (1998), a primeira apresentação de Pamplona teve
alguma resistência da comunidade do Salgueiro e o papel do presidente como
mediador dos interesses foi fundamental. No carnaval se consagrou a máxima de
negros pobres fantasiados de reis, rainhas, representando um momento lúdico onde
estes se tornavam o maior personagem do evento. No enredo de Pamplona eles
viriam fantasiados de escravos numa enorme ala.
Com uma leveza nunca vista, e com a bateria pela primeira vez fantasiada de
acordo com o enredo o Salgueiro sagra-se campeão naquele ano, impondo, assim a
reflexão sobre o novo padrão de desfile ali inaugurado. Entretanto, se a glória do
Salgueiro parece continuar com a vitória do carnaval de 1963. Nilton de Sá, da
equipe de Pamplona, dá entrevista ao Correio da Manhã às vésperas do carnaval
daquele ano, onde se coloca arrependido de ter participado do carnaval da escola.
Segundo Nilton:

“Embora tenha sido uma das coisas mais bonitas que já fiz e tenha visto o
meu trabalho admirado por milhares de pessoas, o que envaidece um
artista, a tese que defendo é que a intromissão do intelectual nos fatos da
tradição popular concorre para a sua degeneração. […] ameaça o caráter
forte que o negro imprimiu à escola de samba. A artista plástica quer se
utilizar da escola de samba porque ela está em evidência. Os ranchos, de
menor interesse do público e das autoridades, ficaram intocados pelos
intelectuais, assim como as escolas menores. Já chega a péssima
influência do teatro de revista, notadamente nos últimos anos, em seus
figurinos e coreografias. A Portela é a que mais se ressente com essa
imitação, visível pelo mau gosto das plumas e das baianas de umbigo de
fora.” (CABRAL, 1998: 186).

Nilton de Sá já chama a atenção para uma tendência à imitação dentro das


escolas de samba, sugerindo que a força da cultura negra vinha sendo substituída
pelo estilo extravagante das coreografias e vestimentas do teatro de revista. Aqui
ele se coloca como alguém que se arrepende de interferir na tradição negra, quase
187

uma devoção à originalidade da cultura, que estaria ameaçada de perder sua


autenticidade.
A vitória de 1963 fora triunfal, o desfile se mudou para a Avenida Presidente
Vargas e pela primeira vez foram cobrados ingressos. Cerca de 30 mil espectadores
assistiram a vitória do Salgueiro com o enredo em homenagem a Chica da Silva. Tal
como em Zumbi dos Palmares, a jovem escola, com seu slogan nem melhor e nem
pior, apenas diferente, iria a rompimento ao clima de valorização dos heróis da
história oficial, valorizando, agora, personagens de outra banda, antes
marginalizados (CABRAL, 1998).
É importante se atentar a uma questão aqui, embora sejam considerados
membros externos (pelos oposicionistas à sua presença) às escolas, os
profissionais de belas-artes estão inseridos no clima de valorização da cultura
africana, e ainda mais, em um clima pedagógico de valorizar novos heróis e novas
questões.
O desfile do Salgueiro contava com uma ala coreografada pela bailarina
Mercedes Batista que levantou muitos questionamentos no universo das escolas,
mas que arrebatou os jurados. Aí em diante o Salgueiro passa a incomodar as
outras escolas, no sentido de que a inovação estava rendendo títulos. Sérgio Cabral
(1998) relata que a pergunta mais frequente, no meio do samba, naquele ano fora:
isto é carnaval? Questionando o título do Salgueiro.
Abaixo, na Figura 58, uma imagem do desfile demonstra a modificação
estética pela influência dos novos carnavalescos. Além de fantasias elaboradas com
novos recursos e materiais, de uma proposta estética refinada, percebemos
também a coreografia de alas como um elemento que causa tremendo impacto no
público, mas reduz a liberdade do folião dentro do desfile.
188

Figura 58 – Desfile (1)

Fonte:(Disponível em: <http://memoriadosamba.com.br>. Acesso em:


10 dez.2011).

Outras fotografias ajudam a mostrar a transformação no impacto visual do


desfile do Salgueiro.

Figura 59 – Desfile (2)

Fonte: (Disponível em: <http// memoriadosamba.com.br>. Acesso em:


10 dez.2011).
189

Figura 60 – Desfile (3)

Fonte: (Disponível em: <http:// memoriadosamba.com.br>. Acesso


em: 10 dez.2011).

Porém, a ideia de redução de liberdade com a ala coreografada pode ser


relativizada. Candeia mesmo era um grande organizador de alas coreografadas, a
famosa Ala dos Impossíveis na Portela. O que pegou e chamou a atenção no desfile
do Salgueiro, foi o estilo clássico da coreografia, remetendo-se à influência da
bailarina Mercedes Batista, do Teatro Municipal, que foi quem a elaborou. Na Figura
61 abaixo, Mercedes Batista naquele ano, no desfile do Salgueiro:

Figura 61 – Mercedes Batista

Fonte:(Disponível em: <http:// memoriadosamba.com.br>. Acesso em:


10 dez.2011).
190

Mercedes Batista foi a primeira bailarina negra do Teatro Municipal, isso


mostra o quanto é complexa essa relação entre pessoas “de dentro” e “de fora” das
escolas de samba. O próprio carnavalesco Fernando Pamplona se mostra, como já
citado, um elaborador de enredos que exaltam a história dos negros. Sua relação
com Abdias de Nascimento, importante liderança política do movimento negro,
mostra o quanto ainda seria imbricada essa relação no futuro das escolas de
samba. Abaixo mais imagens do desfile e do atelier criado por Fernando Pamplona
no barracão da escola de samba.

Figura 62 – Atelier criado por Fernando Pamplona

Fonte: (Disponível em: <http://memoriadosamba.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).


191

Figura 63 – Minueto com a Candelária ao fundo

Fonte: (Disponível em: <http://memoriadosamba.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).

A clássica cena do minueto dançado com a Candelária ao fundo (Figura 63


acima) foi o diferencial da coreografia de Mercedes Batista. Se hoje se discute se a
teatralização em alas ou carros alegóricos é ou não a nova tendência nos desfiles
na Sapucaí, naquele ano, o Salgueiro desafiou os desfiles da época ao trazer
Mercedes como coreógrafa do palco do carnaval. Fruto de sua experiência como
bailarina do Teatro Municipal carioca, Mercedes Batista é, portanto, introdutora de
uma concepção artística inovadora para as escolas de samba. Entretanto, como já
alertei a grande mediação que compõe os desfiles permite que a estratégia do
Salgueiro tenha respaldo em um corpo de jurados composto por diversos membros
das escolas de belas-artes e em alguma parte da imprensa que quer celebrar o
pacto entre este setor e sambistas (CABRAL, 1998).
O pioneirismo do Salgueiro, não se deu somente na entrada dos profissionais
artísticos, também se marcou na presença do público na quadra da escola. Desde
os anos de 1950, as escolas começam a receber um público cada vez mais eclético
em suas quadras e o Salgueiro foi a escola que melhor soube adaptar sua quadra
ao gosto da classe média e dos turistas, fazendo-se referência nesse tipo de
frequência naquele tempo, inclusive nos anos de 1970, leva seu ensaio para clubes
de classe média fora da favela (CABRAL,1998).
O fato é que seguir o exemplo do Salgueiro pode ser uma tentação
irresistível, tendo em vista o prestígio precoce alcançado por seus carnavais. Mas
192

esse processo não é simples, escolas como a Mangueira e a Portela veem na sua
tradição a força dos seus desfiles. A Mangueira contratou em 1964 o escultor de
vanguarda Amílcar de Castro para confeccionar algumas de suas alegorias. Os
sambistas da Mangueira não gostaram do resultado, alegando conotações fálicas
no carro e dispensaram o trabalho (Idem).
O clima era de questionamento e Pamplona, que não dirigiu o carnaval de
1963, ficando este a responsabilidade de Arlindo Rodrigues, responde as acusações
no jornal a Tribuna da Imprensa:

“Dizem que o Salgueiro contrata figurinistas e bailarinos profissionais para


organizarem e dirigirem o espetáculo. Isso é importante, pois que infâmia.
Jamais qualquer um de nós foi contratado ou recebeu um centavo sequer
pelo seu trabalho para o carnaval. Parece que o mesmo não ocorre em
outras escolas. A Portela, cinco anos atrás, tinha uma figurinista e
decoradora francesa, Deb Bourbonis, que fez vários carnavais para ela.
Sorense, figurinista da TV Tupi, cobrava a quatro anos Cr$ 2 mil para cada
desenho que fazia para as escolas de samba. E figurinistas das revistas da
Praça Tiradentes que ainda hoje trabalham para o carnaval das escolas?”.

O jornalista Haroldo Costa (1984), no seu Salgueiro, 50 Anos De Glória,


conta que o Salgueiro não era uma escola com muito dinheiro, seu bicheiro Osmar
Valença era de porte econômico modesto. Na Portela de Natal já existia como
atesta Pamplona pessoas ligadas ao teatro de revista. Entretanto, a revolução
estética que sacudiu o carnaval nasceu no Salgueiro. Isabel Valença, esposa de
Osmar e destaque da escola, foi convidada a levar sua roupa de Chica da Silva ao
desfile de fantasias de luxo do Teatro Municipal estabelecendo uma relação
definitiva entre determinada vanguarda artística e os sambistas.
Pamplona retornaria ao Salgueiro, ao lado de Arlindo Rodrigues em 1969,
após uma participação de Clóvis Bornay como carnavalesco. Em entrevista cedida a
Helenise Guimarães, o artista faz um balanço de sua participação no Salgueiro:

“se não tivesse havido Arlindo Rodrigues, Joãozinho Trinta, Pamplona,


Maria Augusta, haveria outros, porque é mais ou menos por aí, como a
galinha e o ovo, o material ajuda a progredir a solução e ela exige que haja
novos materiais para que você possa fazer a revolução estética” (SANTOS,
2009:56).

Na pesquisa de Nilton Santos (2009) aqui estaria um dos elementos


importantes da transformação estética, a introdução de novos materiais, como a
ráfia e o isopor, tal como o destaque dado ao figurino e ao apelo visual. Aqui se
193

encontrariam dois universos, como podemos perceber nas “novas” temáticas, como
Zumbi, Chica da Silva, encontrando o mundo dos “intelectuais” da Escola de Belas-
Artes com o universo da produção cultural popular. Como atesta Pamplona em
entrevista para site O batuque (2008), esse mundo estava em circularidade.
Inclusive, é como se mediadores culturais do nível de Pamplona integrassem
intelectuais negros de fora da escola com elas, como pesquisadores, políticos e etc.

“o presidente me convidou para fazer o Salgueiro. Eu falei pra ele: “Só se


for uma coisa que está na minha cuca, que é o Quilombo dos Palmares”. Eu
tinha colaborado com Abdias Nascimento vendendo ingresso pro Teatro
Experimental do Negro, com Solano Trindade. Fotografei tudo de graça.
Trabalhei com a Mercedes Batista, com o maestro Abigail Moura, que fazia
a Orquestra Afro-Brasileira. Eu quis fazer uma homenagem ao maior negro”.

Pamplona atesta nesse comentário sua relação com uma figura importante
do movimento negro brasileiro, no caso, Abdias Nascimento. Entretanto, as críticas
acerca do futuro das escolas de samba irão colocar a ingerência da dupla
carnavalesca– patrono como o nó da crise que se instalaria com o rompimento de
Candeia na Portela.
Em mais uma passagem da entrevista, Pamplona revela mais elementos do
seu encontro com a cultura popular e com o Salgueiro:

“Carnaval não era meu interesse fundamental, e nunca foi. Era uma
expressão cultural, popular e autêntica. Uma vez, estava conversando no
Vermelhinho, que naquela época era o ponto de reunião do Rio de Janeiro,
pois não havia teatro e nem galeria na Zona Sul. Quem trabalhava com arte
se reunia no Vermelhinho, na Araújo Porto Alegre, em frente à ABI, onde
todos os grandes nomes da época se reuniam. Do Di Cavalcanti ao Pancetti
ao Augusto Rodrigues, Mário Pedrosa, Mário Barata e vai por aí. E um dia,
um sujeito chamado Mereceu Tati, que era o copydesk do Jorge Amado,
trabalhava no Departamento de Turismo e Certames, que hoje é a Reitor, e
que comandava todas as festividades no Rio, me convidou para ser jurado e
fui júri do carnaval de 1959.
Eu fui criado com conto de fadas, não foi com super-herói, não. Eu gostava
muito do Império Serrano. Eu achava que Império Serrano era uma serra
onde tinha castelo, onde havia uma princesa. Como eu comecei a
frequentar a UNE, mesmo antes de começar minha vida universitária, fui
influenciado por um sujeito chamado Rogê Ferreira, que morreu em São
Paulo e foi fundador do partido Socialista. Entrei pro partido e virei um
revolucionário chinfrim. Eu adorava o nome Mocidade Independente. Eu
queria ser mocidade e ser independente. Era uma escola pequena. Mas
quando eu vi o Salgueiro entrar pela primeira vez – e eu era Rio Branco, no
Acre, que era vermelho-e-branco também – virei Salgueiro. O presidente me
convidou para fazer o primeiro enredo”.
194

Pamplona destaca as escolas de samba como expressão cultural, popular e


autêntica, foi convidado para ser jurado dos desfiles num ambiente social repleto de
mediações, que são a representação da história das escolas de samba. Porém,
perceba uma face do processo: os membros do júri que se tornam carnavalescos
são os que irão agradar ao júri, provocando um processo de remodelação dos
desfiles por pressão da ascensão das escolas que adotavam “novos padrões”. Não
quero dizer que é um processo intencional. Entretanto, é natural que ao perceberem
o crescimento do Salgueiro, outras escolas adotem seu comportamento.
No carnaval do ano de 1970, notam-se outras mudanças significativas no
desfile quanto ao seu porte. A transferência para a Av. Presidente Vargas eleva para
25 mil o número de expectadores. Ao todo foram distribuídas 1200 credenciais de
imprensa. A TV Tupi e a TV Rio realizam a cobertura junto a inúmeras estações de
rádio. Pela primeira vez seria configurada uma revista oficial do desfile para ser
distribuída entre os espectadores. Nesse período aumenta consideravelmente a
frequência da classe média nos ensaios e no desfile das escolas de samba. Desde
o ano de 1965, a Portela apresentava uma ala inteira apenas com artistas da mais
poderosa rede televisiva da época, a TV Excelsior (CABRAL, 1998).
Outro fator interessante de anotar foi que a Secretaria de Turismo,
preocupada com os atrasos dos desfiles, que prejudicavam a transmissão de
televisão63, instituiu a punição de dez pontos para cada escola que não respeitasse
o tempo limite de 75 minutos para o desfile, além da limitação para 2500
componentes. Esse tipo de medida gerou vários protestos entre os sambistas. Tanto
que no primeiro ano de sua execução, o Salgueiro que havia se consagrado
campeão, teve que dividir seu título depois com Mangueira, Império e Portela, que
perderam pontos por atrasar sua passagem na avenida (Idem).
Importante notar que a força dos laços entre Estado, imprensa e escolas de
samba apresentava por vezes turbulências, mas nunca capazes de desestabilizar
uma relação que parecia para ambos a marca da consagração das escolas de
samba. Porém, a divisão e o descontentamento começam a tomar parte dos grupos
que são alijados de algumas escolas para que essas continuem seu movimento de

_______________________________________________
63
Inclusive, segundo Lopes (1998), o desfile já era transmitido diretamente, ou em videoteipe para
mais de dez países no planeta.
195

inovação e mediação ou mesmo de patronagem, criando protestos articulados de


oposição às escolas.
Em 1970, uma pesquisa realizada pelo Jornal do Brasil, atestou que 53% dos
cariocas consideravam as escolas de samba a maior atração do carnaval carioca
(CABRAL, 1998:187). É nessa época que as quadras começam a mudar seu perfil
de frequência. E, além disso, as escolas começaram a realizar ensaios especiais
fora de suas comunidades, atingindo assim um público cada vez maior. O Salgueiro
logo saiu da sua quadra no alto do morro e foi para o Clube Maxwell na Tijuca, a
Portela foi se apresentar no Clube do Botafogo. Já a Estação Primeira de
Mangueira inaugurava o seu Palácio do Samba, uma obra de grande porte, com
camarotes, bares, áreas reservadas (Idem).
Os ensaios da Mangueira fizeram a quadra da verde e rosa o maior cliente da
cervejaria Brahma na cidade (Idem). Definitivamente os ensaios não eram mais
lugar de um acerto de alas, de resolver problemas de harmonia e coreografia, isso
seria a parte técnica. Agora eram também festas para turistas, classe média,
personalidades e etc. Esse cenário de mudanças estéticas e sociais é bem
explicitado por Sérgio Cabral, que aqui representa um agente ligado ao mundo do
samba e crítico a algumas das transformações ocorridas no interior das escolas,
basta lembrar que Cabral escreve o prefácio do livro de Candeia, entretanto, como
já se passou nesse capítulo, enaltece o trabalho de Pamplona no Salgueiro64.
Segundo este importante biógrafo da cultura popular:

“Os elementos ligados à tradição do samba – a harmonia, a dança, a bateria


e o próprio samba – abriam espaço para as atrações mais ligadas ao
aspecto visual do samba. E, também de ano para ano, era cada vez menor
o número de negros desfilando. Os mais extremados chegaram a sentenciar
a morte dessa manifestação carnavalesca do povo do Rio de Janeiro”
(CABRAL, 1998:196).

_______________________________________________
64
A ideia de separar a invasão das belas artes no samba, do alijamento político de seus membros é
um ponto importante que será discutido no final do capítulo. Até que ponto, qual o elemento que
provoca a crise no mundo das escolas de samba? No quadro geral das críticas feitas por
sambistas tradicionais, o alijamento do poder decisório para modificar o cenário de invasão de
membros externos, isto é, a perda de poder para o retorno às tradições forma o movimento mais
plausível.
196

O samba-enredo se popularizou ainda mais com as gravações que vinham


ocorrendo desde 1969. No ano de 1972, o samba-enredo do Salgueiro, Festa para
um rei negro torna-se a música mais executada nos arredores do carnaval carioca,
consagrando o termo Pega no ganzê. Naquele ano a revista O Cruzeiro (que
realizava tradicional cobertura do carnaval do Rio) alerta que “as escolas de samba
entraram definitivamente na era da comunicação de massa”, e que o “samba-
enredo tradicional longo e pesado, traz problemas quase insolúveis para a sua
divulgação radiofônica em horários que não sejam exclusivamente dedicados ao
samba”. Na mesma matéria, o presidente da Associação das Escolas de Samba,
Amauri Jório, concordava com a crítica de que as escolas de samba haviam
“perdido a sua autenticidade”, mas observava: “honestamente não vejo nenhum
prejuízo nisso. Pelo contrário. Jamais seriam o que são hoje se não fosse o
crescente espírito de criatividade” (Idem: 197).
Nesse depoimento se coloca uma das chaves de minha análise, a disputa
entre tradição e inovação. As posições se dividem entre aqueles que querem as
escolas mais ligadas às comunidades, ao seu sistema rítmico e visual original e
aqueles que percebem a inovação como um processo positivo para as escolas.
Como o corpo de jurados já era composto por pessoas oriundas do Teatro
Municipal, da Escola de Belas-Artes, jornalistas e pesquisadores do carnaval, parte
das mudanças fizeram sucesso com o júri, incentivando outras escolas a seguirem
o caminho “irreversível” da “profissionalização”65 e do espetáculo. Além de que, isso
apareceu como uma forma das escolas “menores” disputarem com as tradicionais.
Em entrevista recente que realizei com, Walter Duarte, diretor de carnaval da
Imperatriz Leopoldinense pude atestar esse tipo de estratégia, segundo ele:

“Todo mundo fala que a Imperatriz faz desfile frio, técnico, impecável. Mas
ai ganhou três carnavais seguidos, voltamos a ganhar em 1989. Foi a forma
que encontramos de nos aproximar das grandes e vencer desfiles. Hoje os
desfiles são decididos por décimos, é isso, ou é profissional ou não vence”.

_______________________________________________
65
Ao utilizar o termo profissionalização é importante destacar alguns pontos. As escolas de samba
não assumem um formato de empresa, ou mesmo de uma estrutura profissional.
Profissionalização aqui aparece como a entrada de especialistas nas escolas, seja na elaboração
do carnaval, na construção das alegorias, ou mesmo na composição do samba-enredo.
197

E junto a essa marcha, começa a se fortalecer a figura do patrono, oriundo


do jogo do bicho. Na Portela, o bicheiro Natal indicou para a presidência o outro
bicheiro Carlinhos Maracanã. Nota-se aqui a interessante relação entre futebol e
samba, explico: anos antes Natal indicou Carlinhos para a presidência do Madureira
Atlético Clube. Depois Castor de Andrade, além de financiar a Mocidade
Independente de Padre Miguel, sustentava também o clube do Bangu.
Natal era um bicheiro de outro tipo se comparado aos que conhecemos de
trinta anos atrás. Era um sujeito oriundo de Oswaldo Cruz e muito ligado à
comunidade, negro e apaixonado pela Portela. Até hoje, Natal é considerado junto a
Paulo da Portela um dos maiores nomes da história da agremiação. Seu período na
direção da Portela fora o mais vitorioso de todos os tempos. A mesma legitimidade
de Natal não acompanharia o bicheiro português Carlinhos Maracanã que teria que
enfrentar várias crises no período em que esteve frente à escola de samba Portela
sucedendo Natal.
O crescimento dos desfiles levou, no ano de 1972, as escolas de samba,
através de sua associação, a entrar com uma ação judicial exigindo direito de arena,
isto é, que as emissoras de televisão pagassem uma taxa pela transmissão dos
desfiles. Entretanto essa questão ainda se arrastaria até o ano de 1984. No ano
seguinte, através de um acordo com a gravadora Top Tape, sai o primeiro disco
oficial dos sambas-enredo, este fora um dos mais vendidos e executados em todo
território nacional (CABRAL,1998).
Com esse novo dinheiro, oriundo das vendas e execuções do disco, as
escolas passaram a pagar os compositores vencedores, o que, segundo alguns
sambistas, gerou um processo de mercantilização do samba-enredo, onde diversos
grupos começaram a formar escritórios especializados em criar sambas leves e
animados que caíssem na boca do povo antes do carnaval. Esses grupos
disputavam em várias escolas, ganhando vários prêmios e impondo esse tipo de
prática aos compositores tradicionais das escolas. Sobre o problema desses
“escritórios” o compositor Gustavo Clarão e o músico e biógrafo da cultura popular
Haroldo Costa dão interessante depoimento ao jornalista Sidney Rezende:

“Sei de alguns que pegam quase todas as sinopses e fazem os sambas.


Aproveitam-se do talento que tem, mas aí também já é demais. Acho que
deturpa as disputas e, com o dinheiro que eles têm, acabam dominando os
discos de samba-enredo - comenta Gustavo Clarão.
Por outro lado, é inegável a boa qualidade de alguns sambas de escritório.
198

Compositores, críticos e sambistas são unânimes ao comentarem que


alguns hinos entraram para a galeria de inesquecíveis.
Não se pode negar que eles são bons. Não são maioria, mas sem qualidade
eles não venceriam, sem dúvidas - avalia Haroldo Costa “66.

No ano de 1974, Castor de Andrade assumia a direção da Mocidade


Independente de Padre Miguel. Castor já era bastante poderoso no arredor de
Bangu, pois era, além de bicheiro diretor do Bangu Atlético Clube, financiando o
time num período em que o Bangu teve a felicidade de levar o título estadual de
1966. Castor é uma daquelas figuras controversas, que despertava respeito na
comunidade, além de um bicheiro era uma referência carismática fundamental para
entender as relações sociais nas regiões dominadas pelo jogo do bicho na periferia
do Rio de Janeiro.
Agora já eram três os bicheiros nas escolas, sinalizando um processo que
vinha se fortalecendo, no futuro cada bicheiro vai querer ter uma escola, serão
poucas as que ficariam sem sua ingerência. Mais do que os fundadores, quem
manda agora são os bicheiros que vão se apoderando, em especial, de escolas de
menor tradição, com exceção da Portela que tem a entrada de Carlinhos Maracanã
apadrinhada por Natal.
A patronagem se estabelecia como uma prática constante nas escolas
modificando o lugar de gerência nos assuntos do carnaval. Um episódio ocorrido na
Portela é bem esclarecedor da crise que se formava em algumas escolas. Carlinhos
Maracanã impôs a escola o samba composto por Jair Amorim e Evaldo Gouveia,
passando por cima da comissão de compositores da Portela, decretou o samba feito
por elementos externos como o que seria executado no carnaval.
Evidente que se gerou enorme crise, que culminou no afastamento de
Paulinho da Viola, Zé Keti e Candeia. Jair e Evaldo, compositores de boleros não
tinham alguma ligação com a Portela. Quebrou-se uma velha tradição que só
admitia sambas compostos por sambistas com mais de um ano de filiação na ala de
compositores. Carlinhos veria ocorrer na Portela, duas cisões, uma criadora da
Quilombo e outra mais a frente que criaria a Tradição em 1983.

_______________________________________________
66
Blog do jornalista Sidney Rezende, 11/08/2008. http://www.sidneyrezende.com/noticia/16558.
199

3.4 A patronagem e as escolas de samba

Se a revolução estética incomodou alguns setores do mundo do samba, fora


a ingerência da patronagem que modificou radicalmente a estrutura de poder
estabelecida no carnaval carioca. Em busca de prestígio e poder, diversos
banqueiros de jogo do bicho se aproximam do carnaval e também do futebol. As
escolas de samba se tornam o maior símbolo da cidade e se o espetáculo não para
de crescer, é com o dinheiro dos banqueiros de bicho que ele será financiado.
Tal como afirma Machado & Chinelli (2004), em artigo nodal para a
compreensão do tema:

“trata-se de poder propriamente político. As escolas, na mesma proporção


em que se tornam peças-chave do carnaval carioca, são um importante
instrumento eleitoral. Por si só, isto já obrigaria os partidos e as máquinas
políticas a se relacionarem com os banqueiros do bicho que controlam ou
fazem parte da diretoria das escolas. Mas, além disto, é preciso não
esquecer que o próprio jogo do bicho é, independentemente de sua
associação com as escolas de samba, ele mesmo importante reduto
eleitoral. Isto significa que as escolas de samba também desempenharam
um papel mais passivo, funcionando, às vezes, como simples mediadoras
entre as organizações políticas e o jogo do bicho” (2004: 208).

Trata-se de através do prestígio de ser organizador da maior festa popular


carioca ampliar seu poder de barganha frente o governo e os partidos políticos. A
escola de samba aparece como mediador da relação entre o jogo do bicho e o
restante da sociedade carioca. Repare o caso de Castor de Andrade, importante
bicheiro de Bangu e Padre Miguel, que termina sua vida morando na Av. Atlântica
em Copacabana, onde oferecia festanças convividas pela alta sociedade carioca. O
que permitiu a Castor transitar entre esses diversos níveis sociais fora a capacidade
mediadora da escola de samba e do futebol, que como eu disse, se tornou
patrimônio e referência para um setor da sociedade para além da favela e
subúrbios. Outro ponto importante, é que como o negócio do bicho é ilícito, as
escolas se tornaram uma forma também de administrar o dinheiro utilizado no
esquema. Ele entrava na escola e saia limpo no desfile de carnaval.
Na Figura 64abaixo, o bicheiro Castor de Andrade, e os sambistas João
Nogueira e Beth Carvalho no desfile da Portela já em 1979.
Figura 64 – Castor de Andrade, João Nogueira e Beth Carvalho
200

Fonte: (Disponível em: <http:// memoriadosamba.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).

Entretanto, essa relação é mais intricada, se voltar ao início desta pesquisa


perceberá que as escolas constroem um modelo de natureza apolítica.
Concordando com Machado & Chinelli (2004), no primeiro momento as escolas se
aliam aos partidos políticos, ao poder público (como clientes) e a imprensa para ver
o interesse do seu grupo garantido. Tal como asseverava Paulo da Portela, o
candidato do samba é aquele que ajuda o samba. Foi nessa época que políticos
como Pedro Ernesto se tornaram “parceiros” das escolas. Nessa fase o clientelismo
é fundamental para entender a relação estabelecida entre a prefeitura e as
agremiações.
Num segundo momento, com o seu crescimento e visibilidade, as escolas
passam a ser financiada por bicheiros que injetando dinheiro na escola a utilizam
como um espaço de mediação de seus interesses com o restante da sociedade, tal
como de fomento de prestígio e carisma. Nessa fase, o patronato vai substituindo as
relações de clientela. Ainda segundo os autores:

“associadas às organizações de jogo do bicho numa relação que, é bom


não esquecer, confere aos banqueiros um poder indiscutível e crescente –
se organizam e racionalizam internamente, procuram livrar-se da posição de
clientes do poder público pressionando cada vez mais pela autonomia
definida em termos econômicos” (Idem: 209).

O jogo do bicho tem sua provável criação em 1892 pelo barão João Batista
Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. A intenção por
trás da ideia era atrair mais gente para o zoológico e compensar o corte de verbas
do governo. Para alimentar todos os animais, Drummond mandou imprimir o
201

desenho de 25 bichos nos ingressos. Pontualmente às 5 da tarde, sorteava um


deles. Quem tivesse a figura vencedora ganhava 20 vezes o valor da entrada.
Segundo Raiter (2008), em pouco tempo, o jogo do bicho deixou de ser um
simples sorteio e se transformou em um jogo de azar. “Para combater as apostas,
que se tornaram uma mania em toda a cidade, a Prefeitura impediu o sorteio em
1895. Entretanto, a proibição de alguma forma fortaleceu os bicheiros”. Se antes
eles compravam os ingressos no zoológico e os revendiam pela cidade, a partir
daquele momento eles se juntaram para realizar o sorteio por conta própria.
Ainda, “nem a criminalização do jogo, em 1946, conseguiu segurar o
esquema. Àquela altura, o bicho já era um costume instalado no imaginário popular,
apoiado em uma rede de relações pessoais e na tradicional corrupção para driblar a
repressão. A condenação mais comum ao jogo era que ele representava uma
vontade de ganhar dinheiro e viver a vida sem trabalhar” (Idem). E como já foi
esclarecido no início desta pesquisa, havia, entre as elites republicanas daquele
tempo, um constante esforço de dignificar o trabalho e um estilo de vida que
condenava determinadas práticas sociais estabelecidas na cidade.
O esquema do jogo do bicho multiplicou-se conforme prosperaram a febre
das apostas e os negócios ilícitos em torno dele. O jogo produzia diariamente
instantes de efervescência coletiva entre os citadinos. A tensão provocada pela
expectativa do resultado foi descrita pelo cronista Luiz Edmundo:

“De duas e meia às três da tarde as cozinheiras entravam em férias. Hora


mestra do dia, hora de correr o bicho! De resto, toda a cidade está
sobressaltada e atenta. […] De repente, a lufada da notícia na cidade:
– Urso, com 92! Urso!
A nova corre célere de boca em boca. Meia hora depois não há uma pessoa
na cidade que não saiba o resultado do jogo. Nas casas é um verdadeiro
delírio!”(1987:65).

Se o jogo já era uma prática comum na cidade desde a virada do século XIX,
a entrada de um banqueiro numa escola de samba se deu com Natal da Portela nos
anos de 1930. A vida de Natal é interessante, ainda jovem, Natal fora vitima de um
grave acidente que amputou seu braço direito. Depois disso, pela dificuldade de
trabalho, passou a ser anotador de jogo do bicho. Mesmo sem compor um único
samba, Natal, após transformar-se em bicheiro, passou a patrocinar a Portela,
tornando-a primeira escola de samba a ter um bicheiro como patrocinador.
202

Natal conquistou respeito e admiração na comunidade e, além disso, passou


a representar a escola em todos os lugares onde era requisitado, executando a
função que antes era de seu amigo Paulo da Portela. Natal veio a falecer em cinco
de abril de 1975, deixando três filhos e vários fãs, além da escola de samba que
ajudou a divulgar. Após sua morte, a agremiação decidiu elegê-lo presidente de
honra da Portela em homenagem póstuma.
Natal era a representação das relações entre escola de samba, imprensa e
poder público, tal como Paulo da Portela rodava as redações de jornal em busca de
apoio, Natal era um homem com algum acesso ao gabinete da presidência da
república. O ministro Negrão de Lima convidou, no ano de 1959, Natal e a Portela
para uma exposição ao Palácio do Itamaraty para se apresentar a Duquesa de
Kent. Podemos considerar Natal um tipo diferente de bicheiro, pois era um membro
já da Portela e com muito respeito na comunidade. No capítulo seguinte, podemos
atestar essa imagem analisando a visão positiva de Candeia sobre Natal. Nas
fotosabaixo, extraídas do sítio da Portela, Natal aparece primeiro sozinho (Figura
65) e depois com Fernando Barata, secretário de turismo do Rio de Janeiro (Figura
66).

Figura 65 – O bicheiro Natal

Fonte: (Disponível em: <http:// portelaweb.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).


203

Figura 66 – O bicheiro Natal e o secretário de turismo Fernando


Barata

Fonte: (Disponível em: <http:// portelaweb.com.br>. Acesso em: 10 dez.2011).

Se já existiam bicheiros no mundo do samba, é no transcorrer dos anos de


1970 que se modifica o cenário de ação individual, de um ou dois bicheiros que
gostavam de carnaval, para a ação de grupo que culminaria nos anos de 1980 na
criação da Liga Independente das Escolas de Samba, hegemonizada pelo poder do
jogo do bicho. Os bicheiros controlariam em pouco tempo toda a estrutura dos
desfiles. E assim, essa estrutura vai se autonomizando da condição de cliente do
Estado atendendo a um novo “chefe” que vai se dotando de carisma, na maior parte
das vezes dispensando o uso de “testa de ferros” e assumindo diretamente a
presidência das escolas.
A escola de samba se ampliou o suficiente para se tornar um enorme aporte
de prestígio. Isso em parte explica a atração exercida nos banqueiros e também nos
profissionais de belas-artes que passam a trabalhar diretamente na execução do
carnaval dos bicheiros.
204

A magnitude dos desfiles vê no dinheiro do bicho a saída para o sucesso.


Além dos mais, como pesquisou Chinelli (1992), as escolas de samba vão
ampliando suas atividades no decorrer de todo o ano, com atividades assistenciais,
esportivas e etc., que precisam de uma quantidade maior de recursos para seu
funcionamento. O dinheiro do bicho modifica a escola radicalmente, impõe a
liderança do patrono, modifica as relações de poder na escola, permite a entrada de
novos membros no desfile, e diversifica a atividade das escolas, ligando-as,
principalmente, a práticas assistenciais, que reforçam o poder do patrono e a
legitimidade da agremiação na comunidade. Entretanto, o jogo é de mão dupla, o
poder dos bicheiros não é absoluto, é baseado na intima combinação entre carisma,
isto é, na capacidade da escola vencer, e também na violência.
Outro famoso patrono do Rio de Janeiro é Aniz Abraão David, o Anísio. Em
pouco tempo, Anísio transformou a modesta escola Beija Flor de Nilópolis em uma
das mais conhecidas do Rio de Janeiro. Anísio chegou em 1974 e nos dois
primeiros anos de existência a Beija Flor veio com enredos homenageando o golpe
militar de 1964. Anísio era descendente de libaneses que foram morar na região de
Nilópolis, lá ele se tornou importante banqueiro de jogo do bicho (CABRAL, 2008).
Anísio contratou o carnavalesco Joãozinho Trinta, que na época tinha se
sagrado campeão no Salgueiro, por salário nunca visto no carnaval. Aplicou uma
enorme quantidade de recursos pessoais na escola de samba. (Idem) Nos tempos
atuais, além de controlar economicamente o jogo do bicho na região, Anísio tem seu
irmão como prefeito da cidade de Nilópolis, sendo ele mesmo também prefeito em
outra ocasião.
Tentando criar uma conexão com o passado, a tendência que se fortalece
nos anos de 1970, com relação ao primeiro capítulo que trata dos anos pós-1930, é
a mudança do clientelismo de Estado para a situação de patronagem. E com o
incremento dessa prática, a tendência é que os banqueiros passem a atuar em
bloco defendendo seu interesse nas escolas, tal como faziam na divisão das áreas
de atuação do bicho, onde tentavam estabelecer regras de convivência para não
prejudicar os negócios e não ter problemas com a polícia. O interessante é que a
LIESA viria a ser depois um espaço de encontro e equilíbrio entre os banqueiros de
bicho do Rio de Janeiro, mas essa consolidação só ocorreria no ano de 1984, com a
criação da liga dirigida pelos bicheiros.
205

Silva & Chinelli (2004), mais uma vez, sintetizam alguns pontos que ajudam a
explicar o processoda relação escola e patronagem: a) a escola de samba necessita
de mais recurso, tendo em vista o gigantismo do espetáculo, as subvenções do
Estado se tornam insuficientes; b) o bicheiro tem na escola de samba espaço de
prestígio e poder, aumentando o seu poder de barganha com outros agentes; c) a
escola de samba amplia suas atividades na comunidade em víeis assistencial,
utilizando-se dos recursos do bicho para tal; d) e por fim, a relação histórica
estabelecida entre o universo popular e a contravenção do jogo do bicho.

3.5 Entendendo a crise que se estabelece entre sambistas “tradicionais” e


escolas de samba

Neste capítulo, tentei sintetizar a conjuntura que circunda os anos de 1970 no


Rio de Janeiro, me direcionando sob aspectos mais relevantes da produção artística
negra.
Tal como coloco no início do capítulo, neste período a identidade do grupo
afrodescendente brasileiro sofre significativa modificação, pela influência dos
movimentos de libertação no continente africano, da luta por direitos civis nos EUA,
mas, em especial é expansão da produção artística vinculada ao movimento black
que toma ares de revolução comportamental e estética. Dessa forma, entendo esse
movimento como uma expressão bastante ampla, que envolve desde um estilo
musical, uma forma de se vestir, de cortar o cabelo, de falar.
O importante é compreender que este movimento tem como característica
central a valorização de uma estética negra, um estilo que se remete, mesmo que
comercialmente, à África e aos guetos estadunidenses.
A canção de protesto se fortaleceu na medida em que a ditadura militar
empurrava a luta política para o campo da produção artística. O artista engajado,
além de valorizar a arte brasileira, precisava pedir o fim do regime autoritário.
Embora esse modelo não possa ser considerado generalizante, ele serve para
explicar uma pressão sobre o campo artístico para torná-lo, sob uma cara
pedagógica, instrumento de conscientização política. Uma grande parte, inclusive,
do mercado constituído da indústria fonográfica brasileira se tornou consumidor
206

dessa proposta, diversas vezes rivalizando com os grupos considerados por eles
“alienados”, como a jovem guarda, por exemplo.
Outro aspecto que já vinha ocorrendo desde os tempos de CPC da UNE, era
uma reaproximação entre intelectuais e povo. Como relatei aqui no capítulo o show
de João do Vale, Zé Keti e Nara Leão é um marco dessa relação. A denúncia dos
problemas sociais se dá no encontro entre compositores populares e uma variedade
de mediadores culturais. Se em um primeiro momento, na década de 1930, esse
encontro proporcionou a valorização da cultura popular (de forma folclórica), agora,
amplia a universalização do movimento democratizante, tendo em vista que passa a
perceber no povo uma chave fundamental para as transformações sociais.
Neste ambiente, de valorização e engajamento dos artistas é natural que este
clima se faça também presente na produção artística das camadas populares. Uma
banda da produção artística negra e popular estará preocupada em através da arte
valorizar a história do seu povo, isto é, através da produção cultural resgatar a
história do negro e valorizar sua cultura. Candeia, que conheceremos melhor no
capítulo a seguir, pode ser inserido nessa banda. Queria que as escolas de samba
se tornassem um lugar de preservação e valorização da cultura negra e de luta
permanente contra o racismo.
O grupo de Candeia representa a articulação entre membros do universo do
mundo do samba e uma diversidade de mediadores culturais que enxergam a
valorização da produção cultural do povo e a sua respectiva preservação como um
elemento muito importante. Como mostrarei adiante, o manifesto de Candeia é a
representação dessa articulação. A preocupação que está colocada aqui é preservar
a escola de samba que estaria se descaracterizando e perdendo suas raízes. Os
grupos descontentes se enfraqueceram em boa parte das escolas que seguiram o
irreversível caminho da espetaculização.
Quando Joãozinho Trinta ganhou o segundo carnaval pelo Salgueiro em
1975, o Jornal do Brasil dedicou uma página inteira para uma reportagem de Lena
Frias com o seguinte título: Escolas de Samba S.A. A matéria falava do crescimento
vertiginoso dos desfiles e já levantava a polêmica sobre as transformações nas
escolas de samba, sobre a perda da originalidade, da espontaneidade das
agremiações (CABRAL, 1998).
No mesmo ano, Cartola, em depoimento ao jornalista Sérgio Cabral afirma:
207

“Isso tudo é uma esculhambação, não tem nada a ver com a gente. Não dá
mais para entrar numa escola, em qualquer escola. Há uma invasão, um
cinismo. Isso virou uma indústria e cada um quer levar o seu”. (CABRAL:
1998, 210)

Cartola é uma figura de suma importância na história da música popular


brasileira, além disso, é uma importante referencia das escolas de samba na
cidade. Sua irritação com os desfiles mostram o quanto perdem espaço os grupos
mais “tradicionais” nas escolas de samba.
Em entrevista para a revista Fatos & Fotos em janeiro de 1977, O interprete
Dominguinhos da Costa Oliveira, mais conhecido como Dominguinhos do Estácio,
revela mudanças significativas no formato do samba-enredo, veja:

“Não dá mais para fazer músicas com letras muito grandes, repassadas de
poesia. O negócio agora é aguentar no refrão e jogar pra frente. Hoje tudo
funciona num esquema profissional. É dinheiro, só dinheiro. Samba-enredo
como poesia pura, sem apelação, não cola mais”. (Idem, 211)

Dominguinhos é um personagem superintegrado ao universo das escolas de


samba, possui emprego no carnaval carioca como “puxador” até os dias de hoje (já
passou, inclusive, por diversas escolas). Esse depoimento nos remete um pouco ao
espírito que vai cercando o “negócio” do desfile carnavalesco naquele tempo.
Quando se fala em jogar refrão pra frente o cantor fala em jogar para a animação,
para a empolgação, no sentido de empolgar a plateia cada vez mais diversificada.
Embora, isto não seja assunto tratado nesta pesquisa, nesse período o andamento
rítmico do samba-enredo enredo é notadamente acelerado.
Cabral (1996), conta que o tradicional compositor de Nilópolis Cabana, lhe
confidenciou que Joãozinho Trinta alterou 27 dos 31 versos escritos pelos
compositores da escola no samba-enredo de 1977. Mas o reinado de Joãozinho e
Anísio se carregava das glórias de transformar uma pequena escola da baixada
fluminense em bicampeã do carnaval carioca.
Os desfiles caros e monumentais dirigidos por carnavalescos oriundos da
escola de belas artes provocaram cisões no universo do samba. Mas o certo é que
a maior parte das escolas de samba foi se adequando ao crescimento do
espetáculo. O desfile foi tomando formato cada vez mais técnico e seu alto custo foi
aos poucos substituindo o antigo clientelismo de estado, o apoio da imprensa, pelo
208

financiamento econômico dos desfiles por patronos oriundos do esquema do jogo


do bicho.
Roberto Pontual,crítico de artes plásticas e jurado de desfiles carnavalescos,
presta um interessante depoimento em entrevista ao Jornal do Brasil em Janeiro de
1977:

“O desfile das escolas de samba vai se tornando, ano a ano, um show


maior, uma parada em processo de elefantíase, um concurso de
monumentos, uma Disneylândia pátria, um circo de maravilhamento, um
bolo para o refinado apetite dos gourmets. É coisa que só os olhos cegos
não querem ver. […] Culpar isoladamente as artes plásticas por se ter
chegado a esse ponto é procurar um atalho mais rápido para uma resposta
que lembra muito a condição de bode expiatório”. (Cabral, 1998: 215)

Esse pacto entre artistas, escolas de samba e bicheiros nem sempre se deu
de forma tranquila. Alguns desses bicheiros agem por trás das escolas, ficando em
segundo plano, alguns se tornam presidentes e também, a principal referencia
carismática das escolas. Nas escolas de samba com menos tradição esse
movimento é bastante claro. O bicheiro se torna além de financiador do desfile a
principal referência da escola, seja seu estilo, mais carismático, ou mais coercitivo,
mais “durão”.
Uma das consequências do crescimento da estrutura dos desfiles e das
escolas é o aumento da quantidade de dinheiro dentro das agremiações. A escola
de samba começa a pagar pelos serviços prestados a ela (como costureiras,
aderecistas, figurinistas, carnavalescos etc.). Com o valor do direito autoral sob a
gravação fonográfica dos sambas enredos, as escolas passaram a pagar prêmios
para os vencedores, criando uma carreira de compositores que viviam de disputar
samba-enredo, também, como uma forma de sustento, ou renda extra, para além do
status da vitória no concurso.
Uma série de compositores da favela e da periferia é beneficiada com o
crescimento das escolas de samba. Fora do período dos desfiles, diversos deles
realizam shows pela cidade, alguns alcançando também grande sucesso na
indústria fonográfica. Adiante, veremos que esse elemento fortaleceria a autonomia
de alguns desses cantores e compositores das suas escolas de origem.
Estes músicos serão fundamentais para entender a critica ao formato dos
desfiles. Diversos deles, como Cartola, Paulinho da Viola, Zé Keti, Candeia, e tantos
outros, estarão abandonando suas escolas de origem, ou mesmo todo o processo
209

dos desfiles, se dedicando em maior parte a MPB e a uma carreira de artista


profissional.
Outros sambistas enxergam o crescimento das escolas como a ascensão
social e elevação cultural do seu grupo. O sucesso dos desfiles é um elemento que
aumenta a autoestima do povo das favelas e periferia. Diversos membros das
comunidades se encontram envolvidos em demasiado com a escola de samba para
ocorrer-lhes o rompimento.
O rompimento se dará nos grupos articulados entre compositores de escolas
de samba, artistas, jornalistas, intelectuais, entre outros mediadores de diversos
extratos sociais. Candeia se relacionou com esses grupos, foi membro do
Movimento Negro Unificado (MNU) e se articulou com o rompimento do movimento
de integração cultural vigente desde os tempos de Paulo da Portela. Como tentei
elaborar aqui a ideia é valorizar e preservar a cultura negra, mirando para o
passado africano e a necessidade de reparação da exploração da escravidão.
Quando o Quilombo de Arte Negra é criado por Candeia é pensado como um
lugar de resgate, preservação e difusão da cultura africana. Além disso, se presta
também a tarefa pedagógica de “desalienar” o negro brasileiro, resgatando as
tradições da cultura africana e sua história de opressão. Tal como relata João
Batista Vargens em 1975 quando entrevistava Candeia:

“Candeia [...] entusiasma-nos falando vibrantemente de sua ideia de criar


um centro de arte negra capaz de fazer frente à espoliação que o sambista
vem sofrendo e de pesquisar e difundir a cultura negra, sem dúvida para ele
a viga mestra da cultura brasileira” (VARGENS, 1987:15).

Para Candeia todos ganhavam na festa carnavalesca e o sambista mal pago,


subempregado era o explorado que perdia suas raízes culturais na transformação
que ocorria nas escolas de samba cariocas. No capitulo adiante iremos explorar a
trajetória de Candeia e a criação da Quilombo.
210

4 - ESCOLA DE SAMBA: A ÁRVORE QUE PERDEU A RAIZ

Ana Maria Rodrigues (2002), no seu “Samba Negro, espoliação branca”,


explica que escolas de samba são submetidas a um processo disciplinador nos
seus desfiles; e no decorrer das décadas seguintes, do controle, passa-se à
descaracterização, apropriação e expropriação das mesmas. A oficialização do
carnaval, segundo a autora, dará início não só a perda da espontaneidade, desta
manifestação cultural, como a sua comercialização gradativa no decorrer tempo.
Essa é a visão mais comum sobre o processo que transforma aos poucos as
escolas de samba do Rio de Janeiro.
Entretanto, tentei demonstrar até agora como esse processo fora mais
complexo. Até aqui analisamos a década de 1930 como um período onde a escola
de samba funciona como um movimento de integração cultural das manifestações
populares na cidade do Rio de Janeiro. Mas do que uma imposição do poder
público, os integrantes das escolas de samba demonstram afinamento e vontade
política de se integrar a cidade e a política oficial, mais do que se separar. São duas
fases diferentes como tentei mostrar até agora. O processo pedagógico e integrador
da Era Vargas incluiu o povo, que num jogo de negociação e conflito modificou
positivamente o seu lugar na nova sociedade brasileira.
Esse movimento, encabeçado por figuras, como o aqui analisado, Paulo
Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, foi fundamental para o crescimento rápido
e estrondoso dos desfiles carnavalescos, embora certa "dureza" na pesquisa de
Rodrigues (2002) não perceba as estratégias populares a fundo, reduzindo em
demasiado o processo a uma orquestração das elites, aconteceu de fato uma
modificação do ritual original que formou as escolas de samba, e isso se deu com a
participação direta dos sambistas.
O samba falava para si, o ritual se bastava e todos eram participes (SODRÉ,
1998). Com as escolas de samba ocorre a transformação, a especialização, a
apresentação, o público na arquibancada. Modificavam-se elementos importantes
da festa popular. A escola de samba trazia a organização, caminhava para a ordem,
em sintonia com o novo regime e como tentei comprovar até aqui, com o apoio dos
sambistas. Tal como explica Augras (1998), os desfiles aos poucos vão ajudando a
embutir um padrão nas apresentações, o qual descarta sensivelmente
211

imprevisibilidades políticas e artísticas. Como tem avaliação e premiação, as


escolas vão se condicionando as normas que definiam a apresentação
carnavalesca.
Dessa forma, a espontaneidade seria quebrada pela previsibilidade, isso
interessaria a todos que organizam uma festa que supera o espectro de seus
fundadores e se torna patrimônio de toda a cidade. Ao mesmo tempo em que a
festa se modifica, altera-se também o status cultural do grupo negro marginalizado,
embora essa integração cultural signifique também uma possível perda de
autonomia do grupo, no caso dos negros ex-escravos de matriz africana e regional.
Se nos anos de 1930 o povo era convidado a de forma regulada participar da
entrada do Brasil na modernidade, em 1970 o povo se dividida no olhar sobre o
regime autoritário; se uma parte dele se empolgava com o "Brasil Grande" da
ditadura, outra parte se alinhava ao campo artístico de protesto, protesto esse que
ultrapassava a crítica ao regime e, como vimos no capítulo anterior, tomava ares de
revolução estética e comportamental. Diversos intelectuais se voltaram para a
produção cultural do povo, estimulando e acentuando um sentimento de retorno às
raízes, de busca da autenticidade.
Descobrir a arte do povo e politizar o povo, preservar e ao mesmo tempo
militar pela difusão da história, do processo, da diversidade da história do negro
africano. Caro leitor, esse capítulo se aprofunda num personagem central nesse
dividido ambiente artístico, Antônio Candeia Filho iria protagonizar um dos
momentos de maior crise na história daquele que é considerado, por muitos até
hoje, a maior expressão da cultura popular carioca.
Em seu manifesto anuncia que a escola de samba é uma árvore que perdeu
a raiz, se "embranqueceu", se distanciou do projeto original dos seus criadores. O
passado aparece como a saída para a crise do presente. Candeia quer resgatar a
história, mas também quer educar os membros de seu “quilombo” para a luta
política e cultural pela equidade racial. Ao invés de integração, o movimento aqui é
de afirmação e reparação.
Candeia é um artista engajado que se envolve no clima de questionamento
acerca da questão racial e que influencia diretamente no processo de crítica a
"espetacularização" dos desfiles das escolas de samba. Tal como Paulo da Portela,
estudar a vida desse personagem só enriquece o propósito dessa pesquisa. Adiante
212

vamos adentrar a história da vida de Candeia e do Grêmio Recreativo de Arte Negra


Quilombo.

4.1 - A trajetória de Antônio Candeia Filho67

Candeia nasceu em 17 de agosto de 1935 no bairro de Oswaldo Cruz.


Candeia vinha ao mundo enquanto Paulo Benjamin de Oliveira se tornava a
principal referência cultural do bairro. Filho do gráfico Antônio Candeia e de Maria
Candeia, foi criado sob a forte identidade cultural da escola de samba Portela.
A imagem de Oswaldo Cruz elaborada no segundo capítulo, aos poucos vai
se remodelando pela presença dos conjuntos habitacionais e diversos campos de
futebol. Cerca de vinte anos passados, diversos migrantes de todo o país ajudavam
a ocupar a região. A Portela já tinha uma quadra, e diversos outros blocos
incrementavam a cultura sambista da região.
Candeia morava próximo a linha férrea, na Rua João Vicente, seu pai, como
dito, também chamado Candeia, era uma figura muito conhecida no bairro e
participe direto dos festejos locais, tal como nos retrata Francisco Santana, um dos
maiores compositores da Portela em entrevista para Vargens:

“Todos os domingos ele fazia uma sopa e, depois de tomarmos umas e


outras, íamos para a casa dele. Cantávamos sambas debaixo das
amendoeiras e lá para três ou quatro horas é que voltávamos para nossa
casa para o almoço. A sopa sustentava mesmo, o Casemiro dizia que aquilo
não era sopa e sim um cozido. O velho era boa praça. Saía na ala dos
Cacetes, antigo nome da comissão de frente” (2008:24).

O pai do sambista Candeia, além de tipógrafo era flautista e foi uns dos
criadores das Comissões de Frente das escolas. Assim, nascido em casa de

_______________________________________________
67

_______________________________________________
As principais referências sobre a vida de Antônio Candeia foram retiradas da obra de
Vargens (2008) e das pesquisas de Buscácio (2005), e de Cunha (2009).
213

bamba, o garoto já frequentava as rodas onde conheceria Zé com Fome, Luperce


Miranda, Claudionor Cruz e outros. Com o tempo, aprendeu violão e cavaquinho,
começou a jogar capoeira e a frequentar terreiros de candomblé (Idem, 25).
O clima boêmio e festivo fazia parte do bairro e na casa de Candeia sempre
estavam presentes sambistas de toda a região. Um relato interessante da infância
de Candeia é dado por ele mesmo em entrevista dada ao Jornal do Brasil no dia 20
de dezembro de 1974:

“Papai Noel não sabe sambar. Por isso nunca foi convidado para o Natal em
casa do velho Antonio Candeia, na Rua João Vicente, em Oswaldo Cruz.
Pagodeiro ilustre, portelense antigo, com estágio em gloriosas associações
carnavalescas (Ameno Resedá, Rancho das Flores, Kananga do Japão),
Antonio Candeia comemorava o Natal à sua moda, à moda do seu povo.
Nada de pinheirinho, peru com farofa, nozes e alienações similares. Natal
era com feijão e samba a noite inteira. No aniversário dos filhos a dose se
repetia. [...]
Eu tinha uma tristeza. No aniversário das outras crianças tinha bolo, essas
coisas. No meu era feijoada, limão, partido-alto. Festa de adulto”.

A forte marca cultural da ceia da casa de Candeia demonstra que todo o


processo que chamo de integração cultural (capítulo 1 e 2) foi feito sobre um
ambiente de concessões e restrições, isto é, de mediação, negociação e conflito. Na
casa de nosso personagem a cultura natalina (pois a ceia aparecia) precisaria
conviver com cultura ancestral. O ambiente natalino se entrecruza com a vida do
negro desde o período colonial, não seria diferente aqui, entretanto, é importante
ressaltar a presença da cultura negra nas modificações que o ritual natalino, e
diversos outros, passaram em nossa sociedade. O desenvolvimento da cultura
religiosa brasileira foi evidentemente marcado por uma série de negociações, trocas
e incorporações. É por isso, que ao mesmo tempo em que podemos ver a presença
de equivalências e proximidades, também temos uma série de particularidades que
definem várias diferenças. O sincretismo, o entrecruzamento artístico e religioso, e
outros tipos de trocas, acabaram articulando uma experiência cultural própria para a
sociedade do Rio de Janeiro e de outras regiões brasileiras, tal como Salvador. A
canção abaixo, de Martinho da Vila, conhecido sambista e amigo próximo de
Candeia traz elementos interessantes para compreender as relações sincretistas no
samba.

" Saravá, rapaziada! - Saravá !


Axé pra mulherada brasileira! - Axé!
214

Êta, povo brasileiro! Miscigenado,


Ecumênico e religiosamente sincretizado
Ave, ó, ecumenismo! Ave!
Então vamos fazer uma saudação ecumênica
Vamos? Vamos!
Aleluia - aleluia!
Shalom - shalom!
Al Salam Alaikum! - Alaikum Al Salam!
Mucuiu nu Zambi - Mucuiu!
Ê, ô, todos os povos são filhos do senhor!

Deus está em todo lugar. Nas mãos que criam, nas bocas que cantam, nos
corpos que dançam, nas relações amorosas, no lazer sadio, no trabalho honesto
(Idem).

Onde está Deus? - Em todo lugar!


Olorum, Jeová, Oxalá, Alah, N`Zambi. . . Jesus!
E o espírito Santo? É Deus!
Salve sincretismo religioso! - Salve!
Quem é Omulu, gente? - São Lázaro!
Iansã? - Santa Bárbara!
Ogum? - São Jorge!
Xangô? - São Jerônimo!
Oxossi? - São Sebastião!
Aioká, Inaê, Kianda - Iemanjá!
Viva a no Nossa Senhora Aparecida! - Padroeira do Brasil!
Iemanjá, Iemanjá, Iemanjá, Iemanjá
São Cosme, Damião, Doum, Crispim, Crispiniano, Radiema. . .
É tudo Erê - Ibeijada
Salve as crianças! - Salve!
Axé pra todo mundo, axé
Muito axé, muito axé
Muito axé, pra todo mundo axé
Muito axé, muito axé
Muito axé, pra todo mundo axé
Energia, Saravá, Aleluia, Shalom,
Amandla, caninambo! - Banzai!
Na fé de Zambi - Na paz do senhor, Amém!"

Até hoje, diversas festas como as de São Jorge no bairro do Campinho


reúnem milhares de representantes da umbanda carioca (onde São Jorge é
sincretizado como Ogum). Tive a oportunidade de visitar essas festas algumas
vezes e é muito comum a presença de fiéis de todos os tipos, desde aqueles que
vão visitar somente a igreja católica de São Jorge (a festa é do lado da igreja) e
outros que vão praticar rituais afro-religiosos na festa. Muitos outros, vestidos com
camisas vermelhas (em homenagem ao santo), vão continuar a batucada e a
bebedeira de cerveja ao lado da própria igreja.
215

Como já relatei no capítulo 2, a interação entre festa e religião é muito forte e


definidora no perfil da região suburbana do Rio de Janeiro. Criado nesse ambiente,
o filho de seu Candeia foi aos poucos desenvolvendo sua habilidade para o mundo
do samba. Em algum tempo, o jovem Candeia se juntou aos filhos de outros
sambistas e formou um grupo que ficou conhecido como a Turma do Muro. Vargens
(2008:27) nos conta que a Turma do Muro se vestia muito bem e se portava com
educação e garbo. Terno de linho, gravata e sapatos encomendados sob medida
em Madureira.
Repare a sintonia de Candeia e seus amigos com o estilo de Paulo da
Portela e de diversos outros sambistas. Sempre bem arrumados, com elegância e
um estilo de vestimenta que remete a discussão colocada no início da pesquisa, isto
é, a ideia de integração cultural. Os sambistas queriam demonstrar ao restante da
cidade que não eram desocupados, vestidos de qualquer forma. Mas aqui, o ponto
central é que os sambistas procuram se vestir de forma tão elegante quanto aos
homens que passeavam no centro urbano da cidade.
Embora, fosse semelhante o estilo, os sambistas colocavam suas diferenças,
como o sapato bicolor, o terno branco, o uso do chapéu de palha, o lenço no
pescoço, entre outros adereços.
Vale lembrar o episódio, exposto no capítulo 2, sobre a expulsão dos
sambistas do Estácio de uma festa na Casa de Dona Esther, em Oswaldo Cruz. Os
sambistas chegaram de camiseta furadinha, bermuda e chinelos, como tinha gente
importante no samba, D. Esther solicitou que eles se retirassem da festa. Paulo da
Portela sempre citava esse episódio como fundamental na sua visão de que os
negros deveriam mostrar ao restante da cidade que também eram “civilizados”.
Paulo dizia, “de pés e pescoço cobertos”, e o jovem Candeia seguia a ideia do
fundador da Portela.
Precocemente, Candeia se tornaria também um promissor compositor da
escola de Madureira e Oswaldo Cruz e aos 17 anos de idade ganhava o seu
primeiro samba na Portela. Isso em 1953, em sintonia com o primeiro movimento
das escolas de samba, o samba era nacionalista e exaltador da República, veja o
samba (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008):

"Foi Tiradentes, o Inconfidente / Foi condenando a morte / Trinta anos


depois o Brasil se tornou independente / Era o ideal se formar um país livre
e forte / Independência ou morte / Mais uma nação livre era o Brasil
216

Foi em 1865 que a história / Nos traz Riachuelo, Tuiuti / Foram duas vitórias
reais / Foram os marechais Deodoro e Floriano / E outros vultos mais / Que
proclamaram a República / E quantos anos após foram criados / Hinos da
pátria amada / Nossa bandeira foi aclamada / Pelo mundo todo foi
desfraldada"

Embora uma parte do movimento artístico brasileiro estivesse se


aproximando cada vez mais da canção de protesto no universo do samba isso se
daria pela entrada de figuras de destaques das escolas de samba na nascente
MPB. No capítulo anterior mostrei como esse processo se aqueceu no decorrer dos
anos 60. Diversos setores da sociedade carioca começam demonstrar alguma
insatisfação com o caminho vultuoso que tomava o espetáculo carnavalesco da
cidade.
Mas, nas escolas de samba em geral ainda prevalecia um ambiente mais
particular, o pacto entre Estado, imprensa e escolas ainda vigorava e agora
ganhava um novo e determinante participe: a máquina do jogo bicho. Como
perceberemos, o "racha" na Portela, liderado por Candeia, acontecerá num
momento de radicalização dessa ampliação do patrimônio das escolas de samba.
Não podemos esquecer, que o momento do rompimento se dará, quando o bicheiro
Carlinhos Maracanã se torna presidente da escola e desautoriza a comissão de
compositores, convidando dois respeitados cantores de boleros para fazer o samba
da agremiação.

4.2 - O retorno à tradição como saída para a “crise” das escolas de samba

A questão do embate sobre a espetacularização dos desfiles é acentuada


nas décadas de 1960 e 1970 através da entrada, nas agremiações, de algumas
pessoas oriundas de espaços não tradicionais e que possibilitaram com que
perspectivas diversas reorganizassem as concepções dos desfiles das escolas de
samba.
Ressalto que a “entrada” de “pessoas estranhas” nas escolas de samba diz
respeito diretamente à entrada destas pessoas em suas estruturas organizacionais
e não somente como espectadores. Nessa época, inicia-se o processo de
associação da figura do carnavalesco a de um intelectual competente em criação
217

artística (que incluía adereço, fantasia, figurino entre outros) e que passa a ser a
figura central na definição dos rumos das escolas de samba nos desfiles.
Esse processo ocorria em sintonia com a valorização do desfile das escolas
de samba, nesse tempo já existia a gravação do LP com os sambas do ano
(naquela época cantados pelos cantores de maior destaque na indústria
fonográfica), a transmissão em video-tape (para diversas partes do mundo), e uma
nascente indústria turística que orbitava em torno do desfile das escolas. As
quadras das escolas ficavam lotadas, como já alertei, de diversos setores da
sociedade carioca.
A tendência "irresistível" para a espetacularização vai chegar com mais força
nas escolas de menor tradição na época, como foi o caso do Salgueiro. Cavalcanti
(1995:57) nos conta que o presidente do Salgueiro, Nelson Andrade, em 1960,
contratou Fernando Pamplona e toda a sua equipe para a escola de samba.
Fernando Pamplona teria sido o jurado que deu as notas mais altas para a vermelho
e branco no carnaval anterior. Pamplona foi para o Salgueiro e fez um desfile que
recebeu notas máximas dos jurados, ai se criou uma "tendência irresistível", era
preciso fazer como o Salgueiro para vencer as grandes, ou era preciso fazer o que
seria dali em diante a marca de diversas escolas na Avenida Marques de Sapucaí,
quem mandava era o bicheiro, e o sambista deveria fazer o seu papel, distanciando-
se dos tramites dirigentes da escola de samba.
Acima de tudo, tal como os desfiles em forma de competição ajudaram a dar
normatização para o processo, a entrada do universo das “belas artes” configurou
um novo padrão carnavalesco, os sambistas descontentes poderiam, inclusive,
serem castigados por um júri e uma sociedade que parecia cada vez mais aprovar a
novidade. Quem estava insatisfeito era gente mais tradicional do samba, intelectuais
diversos, acadêmicos, artistas da MPB, alguns jornalistas etc.
Como relatado no tópico de abertura deste capítulo, o jovem Candeia parecia
caminhar em sincronia como o movimento tradicional das escolas de samba.
Percebemos que as estratégias adotadas por ele coincidem com o movimento do
grupo maior no qual está inserido, o dos compositores de escola de samba. As
primeiras composições vitoriosas de Candeia estão em sintonia com a visão
ufanista da letra de samba enredo que ganha força durante o período do Estado
Novo e perpetua com força até os anos de 1960.
218

Entre 1952 e 1959, Candeia emplacou cinco vitórias na disputa da escola.


Todos os sambas se remetiam a valorização dos símbolos e glórias nacionais. Em
1959, o enredo “Brasil, panteão de Glórias”, em parceria com os compositores
Waldir 59 e Casquinha. O samba ufanista, além da exaltação aos pracinhas da FEB,
cita personagens como Duque de Caxias, Santos Dummont, Ruy Barbosa, entre
outros (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008). Veja a letra do samba:

“Brasil, pantheón de glória


Salve os heróis de nossa história
Há muitos anos atrás
Felipe Camarão e outros vultos mais
Expulsaram os invasores
Do território nacional
Salve, Caxias imortal guerreiro
Patrono do brioso Exército brasileiro
Santos Dumont
Pioneiro da aviação
Rui Barbosa
Imortalizou a nação
Com sua rara inteligência,
Naquela nobre conferência
Salve a FEB imponente, viril
Nós saudamos as glórias do Brasil
Lá, lá, lá
Lará, lará…”

Com tantas vitórias Candeia se torna um dos sambistas mais respeitados na


Portela. E no ano de 1961, – junto de Casquinha, Arlindo, David do Pandeiro, João
do Violão, Piccolino e Bubu da Portela – funda o grupo “Mensageiros do Samba”.
Segundo a pesquisa de Castro (2004), o grupo se apresentou diversas vezes no
famoso bar de Cartola e Zica, o “Zicartola”. Em 1966 lançaram seu primeiro LP pela
gravadora Polydor (Idem).
Um detalhe interessante sobre o grupo de Candeia é a “profissão oficial” de
cada sambista. Naquela época era praticamente impossível um sambista viver
somente da música. Candeia era policial civil, Casquinha bancário, Arlindo era
detetive, David do Pandeiro, policial militar, João do Violão era funcionário público
de baixo escalão, Piccolino, estivador e Bubu da Portela era torneiro mecânico.
Como já relatado nesta pesquisa, diversos sambistas encontravam “tranquilidade”
em cargos de menor escalão do funcionalismo público. A maior parte destes cargos
era articulado por alguém de influência pública que acabava ajudando os sambistas
(BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008; CUNHA, 2009).
219

Depois dos anos de 1950, outra profissão que começa a ser comum no
mundo do samba é a de policial. No próprio grupo de Candeia, são três os
sambistas que tem essa profissão. Candeia passou no concurso para a polícia no
início dos anos 60. Antes era também funcionário público, trabalhava no Ministério
da Aviação e Obras Públicas executando serviços burocráticos gerais. Ser policial
nos 60 garantia um salário razoável, além de que dotava o sambista de distinção
social, ele adquiria poder e o respeito, embora coercitivo, de um policial. Negro, alto,
forte, destemido e bom de briga, o policial Candeia se tornou temido até pelos
amigos do samba, como atesta seu principal biógrafo João Baptista Vargens
(2008:56).

“A figura dele era controversa. Muitos sambistas antigos reclamavam que


ele chegava cobrando identidade e levando em cana quem estava em
situação irregular. Consta que chegou a prender o próprio irmão. Mas outros
dizem que ele estava certo, já que era a função dele”.

Ainda menino, Vargens se tornou amigo de Candeia. Após a morte do


sambista, ele resolveu participar do concurso de monografias da Funarte. O
resultado é o livro “Candeia — Luz da inspiração”, que tal como mencionado no
início do capítulo, é a principal fonte de informações organizadas sobre a vida de
Candeia. O livro de Vargens é a fonte privilegiada de informações desse capítulo,
além de Vargens uma diversidade de entrevistas e artigos jornalísticos também
serviram de base para esta parte da pesquisa.
Vargens conta ainda que Candeia ficou tão truculento que certa vez chegou a
esbofetear uma prostituta que lhe rogara uma praga. Algum tempo depois, ao voltar
de uma noitada, já na manhã de 13 de dezembro de 1965, Candeia se envolveu em
uma briga de trânsito no Centro do Rio. Depois de bater em dois passageiros e
esvaziar seu revólver nos pneus do caminhão que se chocara com seu carro, ele
levou cinco tiros do motorista.
Das várias histórias que rondam esse acidente, popularizou-se a história que
a praga da prostituta vingou. E o que pega, no universo da cultura popular, fica
como verdade. Assim se formou a ideia de que Candeia teria sido vítima de uma
praga. Diversos sambistas falam dessa história. A força da religião, do mau olhado,
dos bons presságios, da limpeza espiritual, e tantos outros termos e processos
místicos era assunto levado muito a sério pelos sambistas.
220

O fato é que a vida de Candeia mudaria completamente dali em diante. O


acidente é sempre citado pelos sambistas, e por seu principal biógrafo, como um
momento de mudança radical na vida e no posicionamento político-social de
Candeia. Acho interessante expor aqui o relato de Vargens sobre o acidente de
Candeia. Como já dito, além de pesquisador, Vargens era um amigo pessoal de
Candeia e demonstra em seu relato o nível de envolvimento que tinha com o
sambista.

“Duas horas da madrugada, fui embora. Estava em Madureira esperando


um táxi e ele, que foi levar o pai em casa, me chamou para ir ao Leblon.
Insistiu e, por ele estar bêbado, resolvi ir. Candeia ia levar uma pequena em
casa. Ele morava em Botafogo e trabalhava no Leblon. Passamos na
Mangueira, lá não estava bom. Então, seguimos pro Leblon. Quando
chegamos, a moça resolveu ir para Botafogo e de lá, pensando que
fôssemos para a farra, decidiu voltar para Madureira.
Na saída do Catumbi-Laranjeiras, quando vínhamos no final da Marquês de
Sapucaí, perto da Presidente Vargas, Candeia bateu no caminhão e botou o
carro na frente. Desceu. Olhou o para-lama. Viu que estava amassado. O
ajudante pulou. Caiu perto de Candeia. Candeia deu uma 'colada' no cara e
o cara fugiu. O outro ajudante pulou e a mesma coisa. Ai, ele falou pro
italiano que estava dentro da boleia: agora é você! O cara mandou tiro e
saltou a pé. A garota do Candeia correu atrás do cara com o revólver sem
bala. E Candeia caído. Suspendi o homem, botei-o no ombro e fiquei na
frente de um táxi. A pulsação dele a zero. Ao deixar o Candeia no Souza
Aguiar desmaiei. Depois fui apanhar a arma do Candeia e os documentos
no caminhão”.

Candeia levou ao todo cinco tiros, ficou mais de três meses no hospital e de
lá saiu paralítico da cintura para baixo. É um consenso geral em todos que falam
sobre Candeia, que este episódio fora bastante definidor na vida do sambista. Dai
em diante Candeia entra em um período de profunda depressão. Um ano depois do
acidente Candeia escreve a seguinte carta para amigos:

“Inicio de um Ano Novo, antevisão da derrota me apavora: começo a perder


a fé em minhas possibilidades de recuperação. Sinto que os amigos e
parentes também já não acreditam na minha reabilitação, até os de casa já
se mostram saturados.
Estou morrendo de dentro para fora. Somente um milagre poderá modificar
esta situação. Perco gradativamente o interesse pelo presente e pelo futuro,
vejo-me amarrado dentro de um barco, que se encaminha lentamente para
o precipício.
Apesar de todas as adversidades, continuarei lutando, praticando os
exercícios e tomando medicamentos. Em momento algum me entregarei ao
desânimo ou ao desespero.
Após um ano decorrido, sou obrigado a reconhecer que não obtive
nenhuma melhora digna de registro”. (VARGENS, 2008: 51-52)
221

Passado alguns meses, os amigos de Candeia organizariam uma grande


festa no Jacarepaguá Tênis Clube. Foi a primeira vez que Candeia cantou em
público novamente após o acidente. Vargens (2008), conta que, mesmo que muito
receoso, Candeia aceitou ir ao evento. Quando chegou ao clube e viu todos os
amigos, tudo lotado, não quis nem descer do carro. Só saiu porque a multidão de
amigos logo o cercou. Nesse dia Candeia sai do seu exílio doméstico, e numa
cadeira de roda voltou a comandar uma roda de samba para uma multidão que se
espremia na quadra do Jacarepaguá Tênis Clube (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS,
2008).
No mês seguinte seus parceiros o levam para São Paulo, onde Candeia se
apresenta na quadra da Mocidade Alegre e em algumas estações de rádio. Retorna
ao Rio de Janeiro e aos poucos vai reencontrando sua produção musical. Segundo
Vargens (2008), aposentado do emprego, em uma cadeira de rodas, o sambista
começa a canalizar toda sua energia para os assuntos relativos ao mundo do
samba. Seja na arte da composição, seja na militância pela preservação das raízes
culturais das agremiações carnavalescas. Essa militância o levaria a romper com as
outras escolas de samba e criar a Quilombo.
Um interessante detalhe que Vargens (2008) demarca, é que devido ao
estado físico de Candeia, seu retorno ao mundo samba transformou sua residência
numa local de festa permanente. Quase todos os dias aconteciam rodas de samba
comandadas por Candeia nos fundos da sua casa. Assim Candeia voltava a
produzir. Passa o momento mais difícil e o sambista “sentado em trono de rei, ou
aqui nessa cadeira”, retomaria sua vida artística com uma amplitude nunca
alcançada antes. Em 1970, é lançado seu primeiro disco solo chamado: “Autêntico,
Samba, Original, Melodia, Portela, Brasil, Poesia”. Neste disco, reconhecidamente
uma obra prima do mundo do samba, todas as faixas são compostas por Candeia.
Dai em diante Candeia começa a ser gravado por diversos sambistas mais
conhecidos, como Paulinho da Viola e Clara Nunes, ambos ligados a Portela.
E em seu segundo disco, em 1971, lançaria o samba que demarcaria seu
retorno e sua nova fase:

“De qualquer maneira


Meu amor eu canto
De qualquer maneira
Meu encanto, eu vou sambar
Com os olhos rasos d'água
222

Com o sorriso na boca


Com o peito cheio de mágoa
Ou sendo a mágoa tão pouca
Quem é bamba não bambeia
Falo por convicção
Enquanto houver samba na veia
Empunharei meu violão
Sentado em trono de rei
Ou aqui nesta cadeira
Eu já disse, já falei
Seja qual for a maneira
Quem é bamba não bambeia
Falo por convicção
Enquanto houver samba na veia
Empunharei meu violão”

Seu terceiro disco seria lançado em 1975, se chamava “Samba de Roda” e


apresentava um conteúdo mais diversificado, contava com ritmos afro-brasileiros
como o jongo, pontos religiosos de umbanda, cantigas de maculelê e capoeira.
Ainda contava com diversos partidos de compositores amigos de Candeia. Este
processo, de usar diversos compositores amigos em algum disco, era e é muito
comum no mundo do samba, quando um compositor popular se destacava ele se
esforçava para gravar sambas de seus amigos que “ainda” não estavam fazendo o
mesmo sucesso, era uma forma de alavancar a carreira alheia (CUNHA, 2009).
Este processo ocorreu na gravação do LP “Partido em Cinco”. Candeia
alavancou a carreira de outros sambistas. Vargens (2008), conta que foi ai que o
hoje conhecido sambista Wilson Moreira conseguiu largar a profissão de carcereiro
e viver financeiramente somente da música.
Abaixo algumas imagens da trajetória de Candeia. A seguinte é uma foto de
Candeia em frente à casa que morou na infância, onde na época morava sua avó.

Figura 67 – Candeia em frente à casa da


família
223

Fonte: Disponível em: Vargens (2002:103)


Figura 68 – Ala dos Impossíveis: Candeia, Waldir
59 e Mazinho

Fonte: Disponível em: Vargens (2002:103)


224

A Ala dos Impossíveis, montada por Candeia ainda na Portela. O interessante


é que a ala inovou na coreografia do samba. A fantasia fiel ao ambiente ufanista.
Abaixo o jovem Candeia e seu violão ainda antes do acidente.

Figura 69 – O jovem Candeia (1)

Fonte: Disponível em Vargens (2002:103)


Figura 70 – O jovem Candeia (2)

Fonte: Disponível em Vargens (2002:104)

Candeia em casa após o acidente. Nas fotografias abaixo, já notamos o


sambista aparecendo publicamente com suas cadeiras de rodas que o
acompanhariam nas rodas de samba até o final de sua vida.

Figura 71 – Candeia em cadeira de rodas


225

Fonte: Disponível em: Vargens (2002:104)


Figura 72 – Candeia em cadeira de rodas na TV Tupi

Fonte: Disponível em: Vargens (2002:104)

Em paralelo ao crescimento de sua carreira artística, aumentava também o


prestígio de Candeia na Portela, lembre que antes do acidente Candeia já era da
ala dos compositores, tendo vencido diversos concursos de samba na escola. Como
alertei, é nesta fase que vai começar o tensionamento entre Candeia e Carlinhos
Maracanã, o bicheiro, novo presidente da Portela. Embora o prestígio de Candeia
226

aumentasse com a comunidade da escola de samba, a autonomia dos sambistas


era severamente reduzida com a presença dos patronos, os bicheiros do samba.
Sem espaço para opinar,em 11 de março de 1975, Candeia, Paulinho da
Viola, André Motta, Carlos Monte e Cláudio Pinheiro lançam um documento
endereçado para Carlinhos Maracanã propondo mudanças na escola. O documento
propunha elementos radicais como: a redução do número de componentes, maior
controle da ala dos compositores, proibição de torcidas organizadas na escolha do
samba-enredo. Ao que parece, Carlinhos Maracanã nem considerou o documento.
Abaixo destaco algumas importantes passagens do texto em questão.

“Escola de Samba é Povo em sua manifestação mais autêntica!


Quando se submete às influências externas, a escola de samba deixa de
representar a cultura de nosso povo.
Se hoje em dia são unanimes opinião e posição contrárias da imprensa em
relação à Portela, é porque a Portela, apesar de sua tradição de glória, se
deixou descaracterizar pelas interferências de fora. Aceitou passivamente
as ideias de um movimento que, sob o pretexto de buscar a evolução,
acabou submetendo o samba aos desejos e anseios das pessoas que nada
tinham a ver com o samba.
Durante a década de sessenta, o que se viu foi a passagem de pessoas de
fora, sem identificação com o samba, para dentro das escolas. O sambista,
a princípio, entendeu isso como uma vitória do samba, antes desprezado e
até perseguido.
O sambista não notou que essas pessoas não estavam na escola para
prestigiar o samba. E aí, as escolas de samba começaram a mudar. Dentro
da escola, o sambista acabou fazendo a mesma coisa com o desfile”.

Aqui já fica claro o caminho que Candeia iria tomar. Como sinalizei no
capítulo anterior. Candeia começa a acusar a atual diretoria da Portela de
descaracterizar as tradições das escolas de samba. Aqui o sambista elabora a ideia
de que foram os próprios sambistas que permitiram a entrada de “influências
externas” nas escolas de samba. Em um primeiro momento o sambista entendeu
isto como uma vitória do samba, um sucesso da penetração do ritmo em todo o
país, mas Candeia quer dizer que foi ai que começou a descaracterização, foi ai que
o sambista perdeu o controle da escola.
O documento segue em tom de alerta para os perigos desta
descaracterização. Aqui os autores falam, do que chamei, no capítulo anterior, de
tendência irresistível, isto é, uma tendência inevitável a copiar o formato de desfile
que mais agrada o júri e a opinião pública mais geral.

“A Portela adotou a Águia porque era o símbolo do que voa mais alto, acima
227

de todos. E, inatingível, a Portela nunca imitava nada dos outros. Sempre


criava. Hoje, o que a Portela está fazendo é procurar copiar o que se pensa
que está dando certo em outras escolas”.

A pesquisadora Ana Cunha (2009), em sua pesquisa sobre Candeia, levanta


alguns eixos fundamentais do documento, estes eixos são determinantes no projeto
cultural que culminaria na fundação da Quilombo. Abaixo as principais visões (e
saídas) do grupo de Candeia na crise da Portela:

2. A centralização demasiada das decisões nas diretorias, alijando os


componentes da escola do processo. Como sugestão, separar os
organizadores das atividades da escola em dois setores:
administrativo e carnavalesco. O principal ponto seria transformar o
departamento cultural em uma “comissão de carnaval”, que teria
mais liberdade na condução da organização dos desfiles e
independência nas suas decisões em relação ao setor
administrativo;
3. O “gigantismo” dos desfiles, devido ao excesso de participantes,
aos quais chamaram de “figurantes” em contraponto aos
“componentes”. A solução do problema se daria com o
encerramento das inscrições de novas alas na Portela; a limitação
do número de componentes em cada ala; a eliminação de alas sem
representatividade na Portela; e principalmente o ingresso dos
componentes no quadro social da Portela e a presença das alas
nos ensaios com a bateria. Nesse processo de “redução do efetivo
da escola” seriam adotados como critério a antiguidade, obediência
ao figurino e desempenho nos últimos anos;
4. A autonomia demasiada do figurinista – que atualmente
corresponderia ao carnavalesco – e o desacordo na confecção dos
figurinos diante do desconhecimento dos componentes da escola. A
principal sugestão seria recrutar auxiliares para o figurinista entre
pessoas que pertençam à escola e preparação de uma fantasia
modelo para cada ala, com indicação de tipos de tecido a serem
usados, preços dos materiais e local onde poderão ser adquiridos;
228

5. A grandiosidade das alegorias, que eram usadas como recurso para


os participantes que não sabem sambar. Para a redução da
grandiosidade das alegorias a sugestão principal seria a escolha de
um artista capaz de dar confecção leve, com material moderno, à
concepção dos carros. Um ponto importante seria a possibilidade
futura de os integrantes da escola fazerem suas próprias alegorias
e fantasias;
6. As restrições impostas à liberdade de criação dos compositores da
escola. Nesse ponto são sugestões: dar liberdade de criação ao
compositor, quanto ao número de versos; modificar o procedimento
de escolha do samba-enredo, que passaria a ser feito pela
comissão de carnaval; a obrigatoriedade de, no mínimo, dois
compositores para cada samba de enredo; a retomada dos
concursos e festivais de samba, não só de sambas-enredo, mas
também de samba de terreiro e partido alto; e a fixação de um
número de compositores, condicionando a filiação à abertura de
vagas na ala dos compositores;
7. Os destaques “intrusos” que desconhecem os enredos e
atrapalham a evolução da escola. Para esse ponto foi proposta a
avaliação anual dos destaques conforme as necessidades de cada
enredo;
8. O desconhecimento dos enredos e de como se portar no desfile por
parte dos integrantes. Para correção desse ponto, a sugestão foi a
promoção de mais encontros com os diretores responsáveis pelas
alas, principalmente a participação nos ensaios; a promoção do
ensaio geral, com a formação das alas em sua ordem de desfile; e a
melhoria da comunicação interna na escola, entre componentes e
diretorias, por meio de jornais, quadros de avisos, entre outros
meios;
9. A postura descomprometida da Portela com o seu “papel de
liderança no samba”, ocasionando prejuízos para a evolução e a
inovação dos desfiles das escolas de samba e a submissão aos
regulamentos. A posição dos signatários era que a Portela, e as
escolas de samba em geral, deveriam estar à frente da elaboração
229

dos regulamentos e definição dos critérios de julgamento dos


desfiles das escolas de samba.

Nota-se a dureza do texto. Era um ataque ao modelo de carnaval vigente na


cidade. A única saída para Candeia seria mesmo a criação de uma nova escola de
samba, que acabaria reunindo sambistas de todas as outras.
As escolas que se transformavam e que se harmonizavam com as novas
regras agradavam o júri e levavam o título do campeonato de desfiles. A
concorrência por títulos estimulava uma padronização dos desfiles. As escolas que
trouxeram as “inovações” agradaram um público mais amplo, como seria possível
disputar sem ceder? A questão é que as escolas mais recentes procuraram na
diferenciação uma forma de rivalizar a disputa do carnaval carioca, antes
concentrada nas escolas mais tradicionais. Mais uma vez, o documento se coloca
claramente contra as inovações que, segundo eles, descaracterizam o mundo do
samba. Não tendo sua revindicação atendida, Candeia e Paulinho da Viola saem da
Portela. Alguns anos depois diversos outros sambistas, como João Nogueira, Clara
Nunes, seguirão o mesmo caminho. Para Candeia o triunfo – que o samba
acreditava viver – seria o fim das próprias escolas.
O capítulo anterior serviu para reconstruir o ambiente social de Antônio
Candeia Filho. Nesse capítulo nos interessa mais a imersão no manifesto de
rompimento redigido em 1972 por Antônio Candeia e Isnard Batista. Aqui Candeia
vai questionar as transformações no mundo do samba, o compositor vai valorizar a
tradição, a autenticidade e o engajamento do sambista em defesa de seu patrimônio
artístico e cultural. Vale a pena explicar que autenticidade aqui foge do debate
erudito x popular, seria a articulação entre autêntico e cultura de massa, isto é, a
capacidade de um grupo ter uma visão própria sobre o que é autêntico, e como, a
cultura de massa pode emular uma autenticidade a alguma manifestação artística.
Aquilo que é considerado autêntico em uma apresentação de samba por um
grupo de turistas, por exemplo, – a performance, a dança e os excessos físicos –
seria considerado totalmente inapropriado a um cantor de música clássica. O que se
coloca aqui, nesta pesquisa, não é uma suposta diferença entre essas expressões
musicais, até porque elas parecem óbvias por si, e sim como a articulação entre
autenticidade, cultura de massa e comercialismo, se desdobra na música e nas
culturas.
230

Entendo claramente que Candeia questiona os excessos comerciais das


escolas de samba, que ferem a autenticidade do espetáculo, entretanto seu maior
questionamento estará na transferência de poder nas decisões da escola. Esse
poder passa do sambista para o patrono, no caso o bicheiro, interessado em
ampliar o patrimônio social da escola de samba, para assim ampliar seu respeito na
cidade, o que acaba por descaracterizar os desfiles.
Mas a questão central não é somente a descaracterização dos desfiles, é
como isso se deu. Para Candeia foi através da gradual perda de poder do sambista
para as “pessoas de fora” da escola. O grupo de Candeia rompe com a Portela
porque suas revindicações não seriam atendidas pela escola, na Portela quem
mandava agora era o bicheiro Carlinhos Maracanã.
Como já relatei, diversos setores da sociedade carioca, ligados ao mundo do
samba, se tornam solidários a Candeia. Hoje mesmo se tornou senso comum
algumas pessoas questionarem as transformações dos desfiles carnavalescos. A
maior parte das críticas está na ideia de que as transformações do espetáculo
retiraram a espontaneidade da festa. A festa padronizada atende a interesses tão
amplos que não pode mais se parecer com uma procissão popular, e sim um desfile
de gala, caro e disputado por turistas de todo o planeta.
O grupo de Candeia busca no passado a resposta parcial para o presente. A
outra parte está na ação engajada do sambista, para defender sua história e sua
cultura. A escola de samba precisa atender a um grupo muito amplo, de
patrocinadores ao jogo político dos bicheiros. Candeia resolve que a única forma de
ativar seu protesto é romper não só com a Portela, mas também com a liga das
escolas de samba. Candeia criaria a Quilombo, uma escola que não participaria dos
desfiles oficiais da cidade.
231

4.3 - A criação da Quilombo através do livro Escola de Samba: a árvore que


perdeu a raiz de Candeia e Isnard

Vale aqui a leitura de parte da sincera apresentação escrita por Sérgio Cabral
ao livro de Candeia e Isnard:

“Este livro é um grande avanço na luta dos artistas populares contra os


preconceitos. É uma obra sem intermediários, escrita pelos próprios
personagens. Não é, portanto, um livro de escritor, mas um repositório de
informações, experiências e posições que não são apenas dos dois autores.
Pertencem também aos velhos sambistas que formaram um dos mais
importantes centros de criação popular do Rio de Janeiro, a Escola de
Samba Portela.
Antônio Candeia Filho é uma figura fascinante. A vontade de contribuir com
sua gente ultrapassa até os limites do grande compositor que é. Ele
promove, protesta, sugere e estimula. Quando notou que as escolas de
samba estavam saindo do controle dos sambistas, tratou de criar a
Quilombo que é atualmente um exemplo vivo de como o povo carioca pode
cultivar suas manifestações sem servir aos interesses dos aproveitadores.
[…]
Lembro-me de um telefonema de uma leitora para a redação, no qual ela
manifestava a sua preocupação: - eu gostaria de visitar uma escola de
samba … mas não há perigo?
Quando foi constatada a falta de perigo, as escolas quase foram tomadas
de assalto. Figurinistas famosos encontraram nelas um novo campo de
trabalho e de experiências profissionais. Participantes dos desfiles de luxo
do baile do teatro municipal passaram a misturar-se com os sambistas
numa promiscuidade que só fez atrapalhar a beleza da apresentação das
escolas de samba. Os jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão
abriram seus espaços para o acontecimento – é a passarela era bem maior.
Um prato cheio para todas as vaidades.
O negro e o mulato jogados e abandonados pelo preconceito social e racial
aos morros, às favelas, aos bairros de baixo nível econômico das cidades,
começaram a exprimir seu sofrimento, sua desesperança e também sua
vontade alegre de viver na batucada, no lundu, no maxixe, no choro,
capoeira, no frevo, no caxambu, no jongo, no samba, no samba-choro, no
samba-canção, no samba de breque, no samba batucada que em nossos
dias representam grande parte do patrimônio do povo brasileiro. Os cultos
do candomblé dão sentido à vida e amenizam os sofrimentos de um mundo
incerto. O candomblé penetrou no povo brasileiro, criando valores estéticos
(artísticos), utilizando o canto acompanhado de atabaques, agogôs,
cabaças e outros instrumentos de percussão, as danças características, as
vestimentas próprias dos participantes, a grande aglomeração de
espectadores”. (CANDEIA & ISNARD, 1968: 3-4)

Comumente, as pessoas que compartilhavam das reuniões de culto afro-


brasileiro se integravam às manifestações ligadas às Escolas de Samba, Blocos e
Ranchos. Os divertimentos daqueles que partilhavam das sessões religiosas eram
os blocos e as escolas de samba, pela identificação que existe e também pelo
232

padrão socioeconômico que representam, mantendo-se a autonomia de cada uma


delas.
Nessa parte do texto é elaborada uma espécie de legado da cultura negra e
da cultura do mundo do samba para a formação cultural nacional. São explicadas a
variantes rítmicas que compõem este universo como o lundu, o jongo, o caxambu e
a capoeira. Aqui Candeia também iria revelar uma visão que afirma a difícil luta por
integração racial no Brasil. Expressões como “venceu o preconceito” são usadas
diversas vezes no decorrer da pesquisa. Esse tipo de pesquisa vai de encontro a
ideia defendida por Candeia de resgatar a História dos negros no Brasil, lembrar a
escravidão, as humilhações, mas também a riqueza da sua cultura e das suas
manifestações sociais. Cita a religião, a festa, a culinária, a música, a vestimenta
para recompor um universo mais nítido ainda nos dias atuais (CUNHA, 2009).
Seriam estes negros, oriundos do candomblé, do jongo e da capoeira que
fundam as escolas de samba. Para os autores, libertos das senzalas se deslocam
para favelas e bairros periféricos dando fortalecimento a sua cultua e ao seu laço
comunitário. Candeia aqui reata a discussão que é apresentada no capítulo 1, isto
é, os primeiros caminhos da integração cultural negra no Rio de Janeiro, que
tiveram nas escolas de samba a sua maior expressão para fora de seu grupo.
O livro continua se fixando nas “proezas” dos antepassados, na valorização
da figura de Paulo da Portela, o fundador da Portela. Os autores usaram mais de 50
páginas para demarcar a importância da história da agremiação. Realizaram uma
tremenda coleta de dados com diversos membros da escola, no decorrer do texto
diversas histórias, citações e informações são atribuídas a estas pessoas. Abaixo
observamos uma citação a casa de Dona Esther (capítulo 2), mãe de santo e
principal organizadora dos festejos locais ainda antes da fundação da Portela.

“Dona Esther alojava em sua casa mais de cinquenta pessoas. Sua


residência era tão grande que ia de uma rua a outra (Joaquim Teixeira a
Antonio Badaje, em Osvaldo Cruz). As pessoas de sua época fazem
questão de lembrar que dona Esther era mulher muito bonita e de boa
condição financeira, ajudando sempre que possível ao Conjunto Osvaldo
Cruz (Portela). […] Dona Esther era considerada da lei, ou melhor, fazia
suas reuniões místicas (macumba). Contam em Osvaldo Cruz, pessoas do
bairro, que ela demorou tanto a morrer porque adiava a sua morte
mandando outras pessoas em seu lugar”. (Idem: 23)

Tal como cito no primeiro e segundo capítulo desta tese as Donas de Lei
como Tia Ciata e Dona Esther foram fundamentais na interlocução do samba com o
233

restante da cidade, suas residências foram importantes espaços de intercâmbio


social e cultural. Eram figuras respeitas no bairro e carregadas de estigmas
religiosos, como o “dom” da feitiçaria e do curandeirismo. O interessante é mostrar
como Candeia tem um cuidado em construir o passado mais privativo de Osvaldo
Cruz, valorizando o papel de cada figura de destaque, mais de cem personagens
locais são citados em seu livro (CUNHA, 2009). Abaixo, outra passagem relevante
sobre a fundação da Portela fala da importância destas festas, organizadas no
bairro de Osvaldo Cruz, veja:

“Sr. Napoleão, pai de Natal, Vicentina e Nozinho, organizavam, em seu


terreiro, reuniões de caxambu. A essas reuniões compareciam elementos
do Estácio como Ismael Silva, Brancura, Valdemar da Babilônia, Baiaco
entre outros. Esses convidados compareciam às festas através da irmã do
Sr. Napoleão, tia de Natal, que por sua vez era de outra lei e só participava
depois de conseguir Marlene (benção, licença, perdão) do Sr. Napoleão, o
dono e responsável pelo terreiro. É inegável a influência destas festas, tipos
reuniões de caxambu e jongo que o Sr. Napoleão e o Sr. Vieira faziam
realizar. Essas reuniões duravam, às vezes, dois dias. Eram também
precedidas de baile com sanfona, onde todos comiam e bebiam e
principalmente se divertiam. Queremos deixar claro que o Estácio não
existia como Escola de Samba, mas os integrantes daquela região que
vinham a roça, como era considerada Osvaldo Cruz, incentivavam os
primeiros sambistas da azul e branco e indiretamente influenciaram o
nascimento da Portela” (Idem: 45)

Aparece a imagem rural do subúrbio aliada a importância das festas na vida


social da comunidade, espaços de intercâmbio e celebração de um determinado
modo de viver a vida. Aqui Candeia ratifica a influência do Estácio no nascimento da
Portela, tal como faz um relevante relato destas festas, do lugar da religião, da
música, da cultura em geral. Em outra passagem, os autores salientam a
importância do estilo “civilizado” adotado pelos primeiros sambistas. Em suma, o
manifesto de Candeia remonta a história da Portela e mostra uma leitura muito
articulada do passado:

“Outro fato marcante da fundação foi o de Caetano, Paulo, Rufino, Zé da


Costa e Álvaro Sales terem resolvido comprar ternos iguais, chapéu de
palha, sapato tipo carrapeta e anel de prata com iniciais de seus nomes. A
finalidade era moralizar o que faziam, ou seja, mostrar a polícia que
considerava os elementos ligados ao samba, como malandros, que eles
apesar de sambistas eram homens de bem, que apenas gostavam de
cantar e compor seus sambas”. (Idem: 47)
234

Aqui os autores demonstram o conhecimento da estratégia adotada, “A


finalidade era moralizar o que faziam”. No início deste capítulo, através dos relatos
de Vargens (2002), identifico que a geração de Candeia adotou a mesma estratégia
na juventude. A chamada “turma do muro”, da qual Candeia era membro, mandava
fazer seus ternos sob medida em Madureira, essa estratégia foi aos poucos se
tornando uma marca forte na estética do mundo do samba.
Adiante Candeia levanta um elemento muito interessante, já expliquei a
história do bicheiro Natalino José do Nascimento, o Natal na Portela. Contei que foi
um bicheiro diferente, de ligação forte com a comunidade, nascido e criado em
Osvaldo Cruz. Embora os sambistas descontentes ataquem o atual presidente, o
bicheiro Carlinhos Maracanã, o que parece mesmo importar é o seu desenlace com
as raízes portelenses. Natal é citado diversas vezes de forma muito elogiosa no
manifesto. “Natal muito ajudou para a Portela atingir o sucesso, na compra da sede,
no apoio financeiro e pessoal” (Idem: 89).
Aos três anos de idade, Natal veio com o pai para o Rio de Janeiro. Aos 19
anos foi trabalhar na Central do Brasil e com 25 anos sofreu o acidente de trem em
que perdeu o braço direito. Após o acidente, envolveu-se com o jogo do bicho e
fundou a Haia, que durante muito tempo foi uma das maiores organizações do jogo
do bicho da cidade do Rio de Janeiro. Como falei no capítulo anterior, marcou sua
passagem também como grande incentivador do Madureira Futebol Clube. Natal
era conhecido por ajudar instituições de caridade e igrejas, e por quem lhe pedisse
dinheiro. A história da Portela está intimamente ligada à vida de Natal, desde a
participação de seu pai na história de fundação da Portela (BUSCÁCIO, 2005;
VARGENS, 2008; CUNHA, 2009).
Foi com a morte de Paulo da Portela, em 1949, que Natal resolveu investir na
escola de samba. Patrono da escola, Natal construiu, em 1959, a antiga sede da
Portela, conhecida como a Portelinha, motivo de grande orgulho dos Portelenses,
assim, nota-se porque Natal era um bicheiro distinto. E como já falei, o português
Carlinhos Maracanã veio pelas mãos de Natal, mas nunca teria a mesma
legitimidade que o outro bicheiro. No ano de 1980, o próprio filho de Natal, Nézio
Nascimento, rompido com a Portela, fundaria uma nova escola com outros
portelenses, a GRES Tradição (Idem).
Retirando algumas passagens do manifesto de Candeia e Isnard, tentei
demonstrar a visão do passado, a pesquisa histórica descritiva realizada pelos dois.
235

Nesse estilo, Candeia vai passear pela história do samba e da Portela, descrevendo
minuciosamente cada estória, relato, curiosidade, títulos, desfiles, história dos
ritmos musicais e uma variedade de outras informações sobre o universo do samba
carioca e de Osvaldo Cruz. Adiante o sambista retoma o confronto e começa um
capítulo intitulado: “Cultural própria da Escola de Samba”, onde aponta:

“Vamos nos colocar no chão com a cultura popular brasileira, buscá-la onde
estiver: no morro, na Escola de Samba, no bloco, no botequim, no terreiro,
na rua, nas rodas de samba e congêneres. Vamos respeitar a arte popular,
sem preconceito ou paternalismo, tudo sem impor nada, respeitando
sempre sua espontaneidade, sua força original, sua criatividade” (Idem: 67).

E segue:

“Ao substituirmos os valores autênticos das escolas de samba, nós estamos


matando a arte-popular brasileira que vai sendo desta maneira aviltada e
desmoralizada no seu meio-ambiente, pois Escola de Samba tem sua
cultura própria com raízes no afro brasileiro. Deixar a manifestação popular
realmente entregue ao povo (sambistas); Extinção das subvenções do
Estado, uma vez que já não significam tanto para as Escolas de Samba.
Estabelecendo-se aí uma distinção entre os verdadeiros sambistas e os
profissionais (faturamento fabuloso); Distinção entre Escola “Show”e Escola
Cultura Popular; Preparação dos jurados; Infiltração da classe média
substituindo os valores autênticos pelo poder econômico” (Idem: 65).

Na passagem anterior aparecem as raízes do projeto que culminaria na


formação da Quilombo, Candeia chega a chamar a criação de uma Escola Cultura
Popular, uma agremiação engajada no resgate histórico e na militância pela
equidade racial. É destaque também a influência da classe média, dos artistas e dos
frequentadores. Candeia, alijado do poder na Portela, vai criar uma nova escola de
samba. E mirando para o futuro conclui seu manifesto:

“Consideramos de máxima importância a preparação das novas gerações


de sambistas que na própria Escola poderiam e deveriam ser estimulados.
E para tal, podiam lançar mão de sambistas especializados nos diversos
setores supervisionando e criando técnicas de atividades e torneios infantis
e juvenis. Estas questões que levantamos em nosso trabalho estão
vinculadas ao futuro e ao ideal das Escolas de Samba, nossa finalidade não
é outra senão a de preservar e defender a arte-popular cujos valores
precisam ser alicerçados”. (Idem: 69)

O projeto sambista de Candeia é pedagógico, como já disse quer esclarecer


as futuras gerações do que ele considera um esquecimento de raízes, as escolas
de samba não representam mais “seu povo” e Candeia além de sambista vai se
236

aproximar de um tipo muito particular de militância política, vai montar uma escola
de samba que seja veículo dessa ação. Segundo Candeia e Isnard:

“Os brasileiros fortemente pigmentados de escuro somam cerce de trinta


milhões. Certos apóstrofos da miscigenação pregam a rápida extinção do
negro. E assim estaria automaticamente resolvido o problema. A parte
branca, ou menos negra, continuará monopolizando o poder político, o
poder econômico, o privilégio da instrução e do bem-estar, alheia as
imposições da famigerada Lei Áurea – a Lei da Magia Branca, na correta
definição de Antonio Callado. Sob a Lei da Magina Branca, o negro é igual a
qualquer outro brasileiro” (Idem: 83).

Para Candeia, o papel dos negros na construção histórica do Brasil é


fortemente notado através de diversas manifestações artísticas e sociais. Os
negros, os sambistas, estavam sendo cada vez mais alijados do “poder” nas
escolas de samba. E sem conhecimento do processo, as novas gerações seriam
absorvidas por uma espécie de nova cultura. A Quilombo teria como principal
finalidade levar a conscientização para a sua comunidade. A escola iria organizar
festas, cursos, oficinas artísticas e iria desfilar fora do desfile oficial, sem disputar,
seu carnaval também seria completamente idealizado pela comunidade
(BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008; CUNHA, 2009).
A marca do debate racial fora fortíssima na nova agremiação, fundada no ano
de 1977, desfila até 1986, e apresentou os seguintes enredos em seus desfiles:
1977 – Apoteose de Mãos, enredo sob a necessidade de união dos negros; 1978-
Ao povo em forma de Arte, que propõe o resgate da cultura negra; 1979 – 90 anos
da abolição; 1980 – Dia de Graça, em homenagem as festas religiosas negras;
1981 – Solano Trindade, importante poeta negro; 1982- Zumbi dos Palmares; 1983
– Revolta da Chibata; 1984 - Rainha Mina do Maranhão; 1985 – Luis Gama,
advogado e jornalista negro; 1986 – Cinco séculos de resistência afro-brasileira.
Vejamos adiante mais alguns detalhes sobre a criação da Quilombo, antes
passando por mais uma passagem do manifesto de Candeia e Isnard:

"Os verdadeiros sambistas, ou seja, Mestre-Sala e Porta-Bandeira, os


passistas, os ritmistas, os compositores, as baianas, os artistas natos de
barracão, são, hoje em dia, colocados em segundo plano em detrimento de
artistas de telenovelas, dos chamados ‘carnavalescos’, ou seja, artistas
plásticos, cenógrafos, coreógrafos e figurinistas profissionais. Ao
substituirmos os valores autênticos das Escolas de Samba, nós estamos
matando a arte-popular brasileira, que vai sendo desta maneira aviltada e
desmoralizada no seu meio-ambiente, pois Escola de samba tem sua
cultura própria com raízes no afro-brasileiro."(Idem:56)
237

Candeia, já sem espaço na Portela, recebeu de um amigo o pedido de ajuda


na compra de instrumentos para um bloco, intitulado Quilombo dos Palmares, que
pretendia fundar em um terreno baldio, na Rua Pinhará, no bairro de Rocha
Miranda.
Foi aí que o que era uma simples ideia começou a se tornar realidade: a
criação de uma nova escola de samba, livre das imposições que tomavam conta do
carnaval, feita por pessoas que tinham identificação na luta pela preservação do
samba. Nascia então, no dia 08 de dezembro de 1975 o "Grêmio Recreativo de Arte
Negra Escola de Samba Quilombo", ou simplesmente, o GRANES Quilombo.
Segundo Vargens (2008), as cores da escola foram escolhidas pelo próprio
Candeia: o dourado, que representava o ouro e homenageava Oxum (que no
sincretismo religioso é representada por Nossa Senhora da Conceição), o branco,
que simbolizava a paz e a pureza e o lilás, que nas palavras de Candeia, era
inspirado na beleza de uma flor e representava a África.
Seu símbolo, uma palmeira, em homenagem ao mais conhecido quilombo, o
Quilombo de Palmares. Entre seus fundadores destacavam-se Waldir 59, (parceiro
de Candeia em diversos sambas enredo feitos para a Portela), Paulinho da Viola,
Wilson Moreira, Élton Medeiros, Monarco, os jornalistas Lena Frias e Juarez
Barroso, entre outros. Abaixo uma imagem com símbolo da nascente escola.
238

Figura 73 – Símbolo da Quilombo

Fonte: Disponível em:


<http://www.portelaweb.com.br>. Acesso em: 13
jan.2010

Como já dito, muitos foram os colaboradores de Candeia na construção da


nova escola. Como foi abordado no capítulo anterior, já havia em torno da ideia do
Quilombo, e de outras frentes culturais, uma rede de sociabilidade para tomada de
decisões que antecedia e preparava a fundação. Torna-se relevante pensar sobre o
universo simbólico que o Quilombo busca construir – tendo inicialmente Candeia
como principal articulador – e como se deram as fronteiras do Quilombo: o
imaginário compartilhado desse quilombo contemporâneo, dotado de “liberdade”,
“autenticidade” e “tradição”, enfim, de proteção contra os “inimigos”. E, sobretudo,
como espaço de “resistência” e de “defesa” (BUSCÁCIO, 2005; CUNHA, 2009).
Entre os fundadores estavam amigos da “turma do muro”, parceiros de
samba e da Portela, da polícia, jovens artistas, jornalistas, pesquisadores,
universitários e familiares, com destaque para os nomes a seguir. Da “turma do
muro”, destaque para Waldir 59, que foi amigo e parceiro de Candeia em dezenas
de músicas.
Dos companheiros da Portela estavam presentes Paulinho da Viola, Isnard
Araújo (que redige o manifesto aqui apresentado junto com Candeia), Monarco e
239

Wilson Moreira. Isnard, médico e morador de Oswaldo Cruz, em 1975, compunha o


departamento cultural da Portela como responsável pelo projeto de pesquisa sobre
a história da escola, nominado Museu Histórico Portelense, cujo trabalho iniciou
gravando depoimentos dos componentes mais antigos da escola. Esse trabalho de
pesquisa de Isnard foi fundamental para a elaboração do manifesto dele e de
Candeia.
Wilson Moreira, outro grande parceiro de Candeia, que utilizamos um
depoimento adiante, foi um dos primeiros integrantes da ala dos compositores da
escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, mas, em 1968,
transferiu-se para a Portela e foi parceiro de Candeia em sambas-enredo para a
escola. Participou da ala de compositores do Quilombo e assinou, em parceria com
Nei Lopes, os sambas-enredos de 1978 e 1979. Como Candeia, era reconhecido
como bamba nas rodas de partido-alto (BUSCÁCIO, 2005; VARGENS, 2008).
Segundo a pesquisa de Buscácio e de Cunha, dos compositores que
acompanharam Candeia, destaque para Elton Antônio Medeiros, o Elton Medeiros,
e Rubem Confete. Elton, em 1964, passou a frequentar o Zicartola, ocasião em que
conheceu Paulinho da Viola. De 1967 a 1969, integrou o conjunto Os cinco crioulos,
formado por Paulinho, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do
Cavaquinho. Rubem dos Santos, conhecido como Rubem Confete, nasceu e foi
criado em Madureira; é compositor e jornalista. No Quilombo, atuava como
compositor e mestre-sala. De 1975 a 1977, trabalhou na Rádio Roquete Pinto como
comentarista e produtor do programa A Hora e a vez do samba. No ano de 1976 foi
um dos fundadores do Instituto de Pesquisa de Cultura Negra (IPCN). De 1975 a
1992 escreveu para vários jornais e revistas, entre eles, Pasquim, jornal Lampião,
Revista Nacional, Revista Panorama, jornal Tribuna da Imprensa e revista Unidos
da Tijuca. (BUSCÁCIO, 2005: 128; CUNHA, 2009)
Entre os jornalistas, a participação destacada de Juarez Barroso, Marlene
Ferreira Frias, ou Lena Frias, como costumava assinar, e Dulce Alves. Juarez
Barroso foi jornalista, do Jornal do Brasil e escritor. Nasceu em Campos Belos (CE)
em 19/10/1934. Faleceu no Rio de Janeiro em 1976. Lena Frias era tida como
conhecedora da cultura popular, especialmente da cultura afro-brasileira. Em 1973,
por indicação de Juarez Barroso, passou a ser redatora do Jornal do Brasil e tornou-
se especialmente conhecida em 1976, quando publicou, também no JB, uma série
de reportagens sobre o movimento negro e o movimento que, segundo alguns, foi
240

intitulado por Lena de Black Rio. Faleceu em 12 de maio de 2004. Dulce Alves,
também radialista, trabalhou por mais de 26 anos na Rádio Tupi e era comentarista
de carnaval. Faleceu em 1992 (Idem).
Na época, o recém-formado em Letras, João Baptista Vargens, após um dos
inúmeros encontros promovidos por Candeia para a criação da escola em dezembro
de 1975, escreveu um manifesto de fundação, que exprimia de forma incisiva os
propósitos e ideais da nova escola que nascia (BUSCÁCIO, 2005, CUNHA, 2009).
Vargens criou uma relação de bastante proximidade com Candeia, e como já alertei
é fonte privilegiada para este capítulo. Abaixo, o manifesto de fundação escrito por
Vargens
:

Estou chegando...
Venho com fé.
Respeito mitos e tradições.
Trago um canto negro.
Busco a liberdade. Não admito moldes.
As forças contrárias são muitas.
Não faz mal. Meus pés estão no chão.
Tenho certeza da vitória.
Minhas portas estão abertas. Entre com cuidado.
Aqui, todos podem colaborar. Ninguém pode imperar.
Teorias, deixo de lado.
Dou vazão à riqueza de um mundo ideal.
A sabedoria é meu sustentáculo,
O amor é meu princípio,
A imaginação é minha bandeira.
Não sou radical.
Pretendo, apenas, salvaguardar o que resta de uma cultura.
Gritarei bem alto desafiando um sistema que cala vozes importantes
Que permite que outras totalmente alheias falem quando bem entendem.
Sou franco-atirador. Não almejo glórias.
Faço questão de não virar academia. Tampouco palácio.
Não atribua a meu nome o desgastado sufixo -ão.
Nada de forjadas e malfeitas especulações literárias.
Deixo os complexos temas à observação dos verdadeiros intelectuais.
Eu sou povo.
Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem.
Quero sair pelas ruas dos subúrbios com minhas baianas rendadas
sambando sem parar.
Com minha comissão de frente digna de respeito.
Intimamente ligado às minhas origens.
Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais,
profissionais:
Não me incomodem, por favor.
Sintetizo um mundo mágico.
Estou chegando...
241

O final do manifesto é bastante significativo daquele clima, quase "romântico"


de rompimento. Aqui o grupo coloca claramente algumas de suas críticas, perceba
nas passagens extraídas do manifesto acima: Com minha comissão de frente digna
de respeito, criticando aqui as comissões coreografadas que começavam a surgir;
Intimamente ligado às minhas origens, na busca da raiz da sua identidade cultural;
Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais, profissionais:
Não me incomodem, por favor. Um ataque direto as interferências estéticas e
organizacionais de membros externos a escola de samba. Note que Candeia não
cita a questão do jogo do bicho, seu problema com o bicheiro de sua ex-escola
estava muito mais na questão do poder. É claro que após o rompimento com a
Portela a ação política de Candeia vai para além das adequações que ele tinha
proposto a agremiação. Candeia avaliou, talvez só depois, que era preciso romper
com o esquema tradicional de desfiles para colocar seu plano em prática.
O Jornal do Brasil anunciava, no dia 17 de dezembro de 1975, em uma
reportagem de página inteira, o nascimento do Quilombo. Veja um trecho da
reportagem de Juarez Barroso, abaixo também a fotografia de Candeia no desfile:

Figura 74 – Candeia em desfile da Quilombo

Fonte: Disponível em: <http://www.portelaweb.com.br>. Acesso em: 13


jan.2010

"As escolas de samba cariocas agigantaram-se, deformaram-se à medida


que se transformaram (ou pretenderam transformar-se) em shows para
turistas. O tema é polêmico, tratado por quase sempre em tom
242

passional. Deformação ou evolução? Será possível o retorno à pureza, ao


comunitarismo dos anos 30, quando essas escolas se consolidaram? (...) O
sambista Candeia, liderando outros sambistas descontentes com a
situação, prefere responder de modo objetivo. E responde com a fundação
de uma nova escola de samba, Quilombos, escola que terá sede em Rocha
Miranda e irá para a Avenida mostrando como era e como deve ser o
samba. (...) E continuava o sonho: ‘Uma escola em que tudo fosse feito pelo
povo. As costureiras do lugar fazendo as fantasias. Não ia ter esse negócio
de figurinistas de fora não. As alegorias também, tudo de lá mesmo,
escolhido lá.’ (...) E uma coisa fica bem clara: Quilombos, mais que uma
escola de samba, será uma escola de sambistas, um modelo para outras
escolas, uma referência."

O sambista Wilson Moreira, amigo e parceiro de Candeia, relembra:

"Ele falou: ‘Wilson, eu vou fundar uma escola de samba. Você tá comigo?’.
Eu falei: ‘Candeia, eu só não vou sair da Portela...’. “Não, não precisa sair
da Portela, ninguém precisa sair de suas escolas. Como o Xangô tá com a
gente, Elton tá com a gente, Clementina tá com a gente, fulano, beltrano,
sicrano..., Jorginho Peçanha tá com a gente’. Jorginho do Império. Eu falei:
Tá legal! Vamos fundar a Quilombo."

Em 1976, em matéria para o jornal Última Hora, o próprio Candeia resume os


propósitos do GRANES Quilombo:

“- Desenvolver um centro de pesquisas de arte negra, enfatizando sua


contribuição à formação da cultura brasileira;
- Lutar pela preservação das tradições fundamentais sem as quais não se
pode desenvolver qualquer atividade criativa popular;
- Afastar elementos inescrupulosos que, em nome do desenvolvimento
intelectual, apropriam-se de heranças alheias, deturpando as das escolas
de samba, e as transformam em rentáveis peças folclóricas;
- Atrair os verdadeiros representantes e estudiosos da cultura brasileira,
destacando a importância do elemento negro em seu contexto;
- Organizar uma escola de samba onde seus compositores, ainda não
corrompidos “pela evolução” imposta pelo sistema, possam cantar seus
sambas, sem prévias imposições. Uma escola que sirva de teto a todos os
sambistas, negros e brancos, irmanados em defesa do autêntico ritmo
brasileiro.” (VARGENS, 2002: 56)

Candeia se tornou um importante ativista da questão racial. E com a situação


política do Brasil naquela época, em que a falta de liberdade ainda imperava,
mesmo com o regime militar já enfraquecido, favoreceu a capacidade que a
Quilombo de Candeia alcançou de “aglutinar as pessoas”, funcionando como uma
“válvula de escape”, “um lugar de resistência”, segundo Vargens um Quilombo dos
Palmares revivido. Vargens (2008:70) exemplifica o processo:

"Então, a ideia do Candeia e do grupo que o apoiou era salvaguardar isso,


243

que é, na verdade, uma identificação com a cultura nacional. Em uma época


em que todas as forças progressistas trabalhavam para aglutinar.
Essa era uma maneira de aglutinar as pessoas, não é? Foi por isso que a
Quilombo conseguiu juntar 3.000 estivadores, ou juntar 3.000 ou mais
trabalhadores da construção civil durante as suas festas lá. E não era só
samba e comida. Havia palestras, exibição de filmes, debates. Esse espaço
você não tinha nem dentro das universidades, porque havia uma repressão.
Então era um quilombo mesmo, um lugar de resistência.
A coisa não foi tão elaborada conscientemente, não é? Mas, partindo das
pessoas que criaram o grupo – isso a gente vê hoje, trinta e tantos anos
depois –, era um movimento... Na verdade, uma válvula de escape para
aquilo que não se tinha: um, na universidade; outro, dentro do seu jornal;
outro, dentro da sua escola de samba. Então, como o Quilombo dos
Palmares, que aglutinou não só negros, todo mundo sabe disso, mas
pessoas que estavam marginalizadas dentro da sociedade na época e
foram para lá, para o Quilombo, porque lá tinha abrigo e tinha proteção.
E o escudo eram os grandes artistas que frequentavam, como Martinho da
Vila, Paulinho da Viola, Clara Nunes. Essas pessoas foram importantes
também, porque deram visibilidade à coisa, ao trabalho. E o Candeia, que,
além das ideias, tinha o dia todo para ficar telefonando, desde o fornecedor
de carne ou de cerveja até o artista, o amigo, o jornalista para divulgar. Ele
tinha tudo na mão dele".

Como já dito, a Quilombo vai articular todo um universo artístico que se


posiciona criticamente a espetacularização dos desfiles. Assim, eu seu primeiro ano,
a escola não só se apresentou pelas ruas dos subúrbios de Coelho Neto e Acari,
como fechou o carnaval na Avenida Presidente Vargas. O impacto parece ter sido
positivo, como sugerem os comentários da imprensa:

"A presença da Escola de Samba Quilombo foi, na verdade, a grande


novidade no desfile de campeões do Carnaval 77, fechando com chave de
ouro uma festa que teve tudo igual aos anos anteriores. [...] Com um
contingente de 400 pessoas, dentre as quais os astros da música popular
Paulinho da Viola, Candeia, Martinho da Vila, Xangô e Clementina de
Jesus, diversos intelectuais e sambistas de outras agremiações, Quilombo,
com suas fantasias tricolores, branca, lilás e dourado, quase rouba o
espetáculo, que ficou por conta da Beija-Flor e seu Carnaval-Evolução, e do
Canarinho das Laranjeiras. [...] Desfilando livre e descontraída pela avenida,
sem esquemas, imposições, figurinos ou estrelas, despreocupada com
novas fórmulas de 70, apresentação musical ou com contagem de pontos, a
escola de samba Quilombo mostrou, ontem, o verdadeiro papel de uma
escola de samba e apresentou seu Carnaval de 77 visando apenas realizar
a mais genuína festa brasileira". (A Notícia, 23/2/1977).
"A escola desfilava sem subvenção e carregava apenas duas faixas fazendo
alusão ao “samba sem pretensão” e ao “samba dentro da realidade
brasileira”. Para os mais atentos, esta diferença tomou outra dimensão nas
cinco horas que antecederam o momento do desfile. Na Rua General
Caldwel, esquina com a Presidente Vargas, o Quilombo reunido, tendo
Candeia ao centro, tocava samba-de-roda, lutava capoeira e dançava o
jongo – dança dos escravos – quase esquecido da festa de que participaria
em breve"(Movimento, 7/3/1977).
244

Candeia era, tal como foi Paulo da Portela, a principal figura daquele
movimento. Para se ter uma ideia da importância de Candeia na organização e
estruturação da escola, cito o depoimento do sambista Pedro dos Santos, um dos
primeiros integrantes da Quilombo (VARGENS, 2008):

"Em 77, tinha o Candeia, o Quilombo tinha uma facilidade tremenda. Ele
chegava e falava assim: ‘O que é que está faltando aí?’, para os chefes de
alas. ‘Está faltando o quê?’ Ou para as costureiras. E eu falava: ‘Para a Ala
das Crianças e para a Ala das Baianas está faltando pano.’
O Candeia saía e, quando ele voltava, o carro cheio de peças de pano. A
gente: ‘Comprou aonde?’ ‘Comprei?! Eu sou o Candeia, rapaz! Eu sou o
Candeia! Eu ganhei. Foi doado para o Quilombo. Ia em São Paulo e trazia
peças de bateria do Quilombo, trazia essas coisas todas. Era tudo
facilidade. Tinha as costureiras, tinha as máquinas... A esposa dele que
comandava tudo, a dona Leonilda. Fazia aquelas feijoadas, aquelas
comidas, fazia festival de chope, para angariar fundos, para o Quilombo
fazer alguma coisa".

O desfile de 1978 foi especial: marcava a última participação de Candeia no


comando de sua escola. O samba enredo foi composto por Wilson Moreira e Nei
Lopes. "Ao povo em forma de arte" é uma obra prima, que demonstra a
preocupação do sambista em preservar sua cultura e seus valores em um tempo
em que tudo parecia se perder.
Quem esteve lá pôde presenciar a emoção do Casquinha que às lágrimas
dizia: "Tá tudo direitinho. tudo certinho. Parece a Portela de antigamente". Eis o
samba daquele ano:

Quilombo pesquisou suas raízes


E os momentos mais felizes
De uma raça singular
E veio pra mostrar essa pesquisa
Na ocasião precisa
Em forma de arte popular
Há mais de quarenta mil anos atrás
A arte negra já resplandecia
Mais tarde a Etiópia milenar
Sua cultura até o Egito estendia
Daí o legendário mundo grego
A todo negro de "etíope" chamou
Depois vieram reinos suntuosos
De nível cultural superior
Que hoje são lembranças de um passado
Que a força da ambição exterminou
Em toda a cultura nacional
Na arte e até mesmo na ciência
O modo africano de viver
Exerceu grande influência
E o negro brasileiro
245

Apesar de tempos infelizes


Lutou, viveu, morreu e se integrou
Sem abandonar suas raízes
Por isso o Quilombo desfila
Devolvendo em seu estandarte
A história de suas origens
Ao povo em forma de arte

A letra do samba resume bem os propósitos da nova escola de samba:


resgate, memória, educação e resistência. Aqui Candeia resume bem a sua visão
da epopeia de Paulo da Portela: E o negro brasileiro / Apesar de tempos infelizes
/Lutou, viveu, morreu e se integrou / Sem abandonar suas raízes / Por isso o
Quilombo desfila / Devolvendo em seu estandarte / A história de suas origens / Ao
povo em forma de arte. O projeto de Candeia é pedagógico e quer disputar
hegemonia, isto é, se colocar como uma alternativa de arte engajada para o artista
negro daquele tempo.
A seguir, algumas fotografias 68e imagens da vida de Candeia e da Quilombo.
Abaixo algumas imagens de Candeia na sede social da Quilombo no Clube Vegas
em Acari69.

Figura 75 – Candeia em família

_______________________________________________
68
_______________________________________________
Fotografias disponíveis em: <http://www.portelaweb.com.br>. Acesso em: 13
jan.2010.

69
_______________________________________________
As fotografias de Candeia que não citarem referência foram extraídas da pesquisa de 
Vargens (2008).
246
247

Figura 76 – Ensaio na Quilombo

Figura 77 – Candeia na sede social da Quilombo


248

Na foto acima Candeia brinca com o megafone na gravação do filme "Partido


Alto" de Leon Hirszman em 1976 na sede da Quilombo. Abaixo, com Elton
Medeiros, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito.

Figura 78 – Candeia entre outros

Na próxima foto, Candeia aparece na sede da Quilombo em matéria para o


Jornal do Brasil com a presença de diversos sambistas. Na legenda da foto se lê:
Não se toma o lugar do padre.

Figura 79 – Candeia em matéria para o Jornal do Brasil

Fonte: Disponível em: <http://www.portelaweb.com.br>. Acesso em:


13 jan.2010
249

Em apresentação com o sambista Martinho da Vila no Jacarepaguá Tênis


Clube, um ano após seu acidente:

Figura 80 – Candeia com Martinho da Vila

Fonte: Disponível em: <http://www.papodesamba.com.br>. Acesso em:


13 jan.2010

Com seu novo espaço cultural, Candeia adentra o universo político que
atravessa a questão racial no país, como levantei no capítulo anterior, a postura de
Candeia está em sintonia com a de diversos grupos orgânicos do movimento negro
brasileiro. O espaço da Quilombo não será só frequentado por sambistas
insatisfeitos, será tomado por intelectuais de diversos tipos alinhados a questão
racial e da crítica ao processo de espetacularização da cultura popular. Ele cria uma
escola que mira no passado e tenta se proteger da descaracterização, imposta,
segundo o sambista, pela invasão externa, pela entrada de diversos grupos de
interesse que se apropriaram das escolas de samba. Adiante, em minhas
conclusões apontarei como o passado aparece aqui para tentar salvar o presente. O
ambiente engajado da cultura dos anos 70, a agitação política, o clima político na
África e nos EUA se esbarram com negros que não iriam aceitar o movimento de
distanciamento de suas bases operadas em algumas escolas. Concluo com a letra
do samba exaltação da GRANES Quilombo:
“De manhã, quero os raios de sol / Quero a luz, que ilumina e conduz”. Com
a esperança de novos tempos, Candeia compôs o samba Nova escola, em 1977. O
250

samba simbolizou as expectativas de seu autor – mentor e idealizador do GRANES


Quilombo – em relação ao futuro do samba e das escolas de samba na cidade do
Rio de Janeiro. Candeia acrescenta:

“A magia, e a fascinação / Voa um poeta, nas asas da imaginação / A arte é


livre e aberta / A imagem do seu criador / Samba é a verdade do povo /
Ninguém vai deturpar seu valor / Canto de novo”.

Os versos de Candeia projetam sua visão de arte relacionada à liberdade do


sambista como protagonista dessa liberdade, da representação do samba, como
expressão artística popular, e da resistência às mudanças de “valores” que
acreditava como intrínsecos ao samba. Era a primeira grande crise da história das
escolas de samba, e dali em diante o universo do samba carioca, como veremos
adiante em nossas conclusões, nunca mais seria o mesmo.
Candeia não conseguiu frear em definitivo o processo que as escolas de
samba viviam, mas estimulou os sambistas a novas aventuras por fora de suas
escolas, é como se, as escolas, neste momento perdessem um pouco do seu
respeito numa parte considerável do mundo do samba carioca.
251

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa foi elaborada em cima de dois ícones na história do samba


carioca. Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela e Antônio Candeia Filho. A
ideia de comparar estes dois personagens, além de nos trazer uma dimensão mais
particular desta história, se deu, acima de tudo, na ideia de que em um primeiro
momento, o de Paulo, a escola de samba iria se configurar como um importante
mecanismo de integração cultural na cidade e depois, no momento de Candeia,
como um espaço culturalmente criticado por diversos membros do complexo
universo do samba e das escolas de samba cariocas. As escolas nascem e se
fortalecem na primeira parte desta pesquisa, num segundo momento passam a ser
questionadas por um grupo que promove o primeiro rompimento sério no processo
de fortalecimento dos desfiles carnavalescos.
A criação da Quilombo foi fruto do sentimento de diversos sambistas, nos
anos 80 as escolas de samba viveriam uma verdadeira diáspora de seus membros
mais tradicionais, que se sentiam cada vez mais distantes do campo decisório,
quem mandava cada vez mais na escola eram os patronos do jogo do bicho, os
patrocinadores, os visitantes.
Embora Candeia mire Paulo da Portela de forma romântica, pois procura na
busca do passado a resposta da crise de seu tempo, Paulo iniciou esse caminho de
integração, procurou dar ordem ao samba, insistiu que os membros das escolas de
samba precisavam de um comportamento exemplar. Paulo pôs fim às brigas e
confusões nos desfiles, exigia vestimenta elegante na tentativa de valorizar seu
grupo e mostrar, dessa forma, sua vontade de se integrar a modernidade,
mostrando que suas manifestações culturais podem contribuir com o projeto
nacional, coisa que de fato tomaria vulto no período de governo de Getúlio Vargas.
Com o povo na vitrine do novo regime, o samba carioca é elevado ao status
de símbolo nacional. O sambista passa a ser valorizado e alvo de atenção do
governo e da imprensa. Se o projeto nacional varguista passava pela hegemonia
dos setores populares, o samba não poderia ficar de fora e se portou como
expressão muito eficiente para esse processo de normatização. Aceitou as normas,
as subvenções e conseguiu construir os desfiles no centro da cidade.
252

O Governo de Getúlio Vargas entendia que as escolas de samba formavam


um conjunto de valores culturais, originários de uma diversidade de comunidades
representativas dascamadas populares; dentro de sua ação de aproximação com o
povo, seria de grande relevância dar o apoio estatal para a realização do evento. A
iniciativa e a participação efetiva dos governantes ao longo dos anos possibilitou
que os desfiles fossem reconhecidos pelas autoridades, trazendo,
consequentemente em seu bojo o reconhecimento das diversas classes sociais,
refletidas na imprensa. Durante a Era Vargas, a imprensa já se mostra bastante
afeita ao evento, desaparecendo, quase que por completo as designações de
selvageria, barbárie ou inculto em relação às escolas de samba.
Esse processo pressionava um comportamento especial dos sambistas frente
à ordem. Os desfiles normatizavam, o Estado Novo tencionava a elaboração dos
enredos, o júri composto em maior parte pela imprensa acabava por premiar um
determinado padrão de desfile, que como já explicado, acaba por criar uma
tendência irresistível para as outras escolas. No final de sua vida o próprio Paulo da
Portela já demonstra sua insatisfação com a Portela e as outras escolas. Paulo foi
um militante do samba, se tornou uma figura nacional e o sambista mais conhecido
do Rio de Janeiro. Mas o final de sua vida é a prova de como a escola de samba já
era cobiça de um setor muito mais amplo que seus fundadores. O que ainda
mantém a Portela mais ligada a suas tradições é a longa presidência de Natal, que
após a morte de Paulo passa a dirigir a Portela. Embora fosse bicheiro, nossa
pesquisa já levantou diversas vezes a particularidade deste processo.
Os sambistas da primeira geração controlaram sua mediação com o restante
da sociedade. Em um determinado momento a escola de samba começa a ficar
muito maior que estas personalidades. Cartola iria romper com a Mangueira, tal
como diversos sambistas “tradicionais” romperam com suas agremiações.
Entretanto as escolas seguem sua marcha, permanecendo por diversos anos como
a principal atração do carnaval carioca.
Resumindo, na primeira fase desta pesquisa analisamos o processo de
nascimento e fortalecimento das escolas de samba do Rio de Janeiro. Para isso
entramos mais fundo na vida do principal personagem social daquele processo,
Paulo da Portela. Minha preocupação é mostrar como o samba se torna símbolo
nacional, e com eles as escolas, através de um sofisticado processo de mediação
cultural. Sambistas negociaram seu futuro com a cidade, aproveitaram todas as
253

brechas dadas e tiraram os frutos de uma integração, mesmo que imperfeita, que
modificou o status quo do grupo na cidade. Tento fugir de uma visão romântica do
processo, que tende a atribuir ao sambista da primeira fase uma fascinação quase
heroica e insurgente. Parece-me que a ordem sobrepôs à desordem, os desfiles
acabaram com o violento carnaval do centro urbano, e de alguma maneira foram
integrando ao restante da cidade, o ambiente cultural dos subúrbios e favelas
cariocas.
Todos saudavam a ordem e como relatei na primeira parte, inclusive os
próprios sambistas de alguma forma entendiam benefício em se organizar, sentiam
como positiva a presença pública, não policial é claro, em suas comunidades.
Entenda que a única presença pública, até a Era Vargas, nas favelas cariocas, é a
policial, e que aparecia para reprimir “comportamentos indesejados”, como rodas de
samba e capoeira, e rituais religiosos.
O governo Vargas poderia contar com as escolas de samba no esforço de
propagação dos ideais nacionalistas, fenômeno esse que não foi restrito ao Brasil,
e sim uma realidade que solapou o mundo no período entre guerras. Não há,
portanto, “manipulação” pura se não houver o desejo de “ser manipulado”.
Nenhuma relação se estabelece em mão única. Os dois lados estabelecem seus
interesses, conquistando vantagens, cedendo em alguns pontos, ocasionando
assim uma relação que se estabelece no terreno da “aliança” do “pacto”, no campo
da “negociação e do conflito”.
Essa é a chave do capítulo 1, como o processo de segregação da Primeira
República, não conseguiu se fazer hegemonia no plano local e nem tão pouco no
plano nacional. O projeto positivista seria substituído por outro integrador, o olhar
sobre o popular se modificaria, com o fortalecimento dos estudos sobre o folclore se
tentaria dar ao povo o sentido de uma cultura nacional. O samba, o rádio, a
imprensa e diversos outros agentes seriam fundamentais nessa tarefa.
Com essa disposição das duas partes, isto é, Estado e povo, estabelece-se
um complexo jogo de negociação e conflito com a participação ativa de diversos
mediadores culturais. É essa gama de agentes que eleva a escola de samba à
condição de espetáculo maior da cidade. Mas esse processo se dá com ativa
participação dos sambistas, é isso que tento provar na primeira parte. A escola de
samba ajuda o grupo a se apropriar das situações políticas criadas para mudar
diversos valores a seu favor.
254

Paulo da Portela se torna uma figura conhecida na cidade, tem reuniões


constantes com políticos, viaja o país representando a Portela, era pessoa
frequente nas redações jornalísticas (FARIAS, 2008). O plano tinha dado certo, as
escolas cresceram, mas com elas cresceu o interesse de todos por seu capital
social, sua força política, sua potência carismática. O crescimento do espetáculo
recheou as escolas de novos atores, que modificariam de forma definitiva sua forma
de se organizar, apresentar e se relacionar com sua comunidade. É aqui que
aparece a trajetória de Candeia na Portela.
Conforme relatamos, nos anos de 1960 o Salgueiro, impressiona com um
novo padrão de desfile carnavalesco. O desfile tinha sido todo elaborado pelo artista
plástico Fernando Pamplona. A coreografia foi toda elaborada pela bailarina negra
Mercedes Baptista do corpo oficial do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O enredo
performático, com alas distintas e bem vestidas, levou a escola ao campeonato. O
Salgueiro é um exemplo de escola que se articulou com o crescimento das escolas
de samba no Rio de Janeiro. Ela detinha muito menos prestígio que Portela e
Mangueira, por isso trouxe para dentro da escola diversos profissionais que
indiretamente participavam do desfile, seja na crítica, na consultoria artística, ou no
próprio corpo de jurados do desfile. Fernando Pamplona antes de ser carnavalesco
era jurado, se seu desfile agradou o júri e a crítica mais geral da cidade estava ai
criada uma “tendência irresistível” a seguir o modelo adotado pelo Salgueiro.
Antes as quadras eram precárias e mínimas. A frequência era muito limitada
à comunidade, sambistas de outras agremiações e algumas figuras ilustres (como
políticos, jornalistas) que por vezes apareciam por lá. Antes de todas as escolas, o
Salgueiro levou seu ensaio para o Clube Maxwell na Tijuca, ficou lotado. As outras
quadras também se ampliaram e passaram a receber público cada vez maior nos
fins de semana. Nos anos 70 a Mangueira inaugurava o seu Palácio do Samba,
uma quadra mais moderna pronta para atender o público com mais conforto. Na
mesma década a Mangueira era o maior cliente da cervejaria Brahma no Rio de
Janeiro.
Era uma nova época para os desfiles, a transmissão televisa atingia (em
video-tape) pelo menos 25 países na década de 60. Era a principal atração turística
da cidade e como contou o jornalista Sérgio Cabral, quando a classe média
descobriu que era seguro frequentar as quadras todas ficariam lotadas no fim de
semana. Essa tamanha quantidade de interesses modificaria a escola, mas
255

outroelemento seria ainda mais decisivo nesse jogo, a chegada dos barões do jogo
do bicho como patronos das escolas.
Ao apoiar uma escola de samba ou um clube de futebol, o patrono “limpava”
seu dinheiro e sua imagem de contraventor. Ao ser um mecenas daquela
comunidade se tornava uma referência local importante, ganhava favores na
sociedade, elegia vereadores e etc. Hoje, o presidente da escola de samba Beija-
Flor de Nilópolis governa a cidade da escola, tem vários vereadores e uma
tremenda legitimidade com a comunidade. A Portela tinha o seu bicheiro, o amigo
pessoal de Paulo da Portela, Natal. Foi durante a gestão vitoriosa de Natal que
Candeia acendeu como compositor da escola. Aqui o tempo já era outro e as coisas
estavam bem diferentes do tempo de Paulo.
Paulo da Portela, analisa Farias (2008),“não assistiu as transformações que
se iam desenhando no carnaval carioca, em consonância às transformações
materiais e simbólicas vivenciadas pela cidade (e o país), tendo seu momento
dinâmico na década de cinquenta. Sua morte prematura, o tinha impossibilitado de
assistir a entrada em cena de um conjunto de trabalhos intelectuais e artísticos
imbuído do intuito de redefinir a participação e situação da população negra no país
e a valorização de uma estética afro-brasileira”.
Paulo, também, ainda segundo o autor, não viveu por completo a situação na
qual o comando político e estético do sambista e da escola de samba foi
gradualmente cedendo lugar a novos atores - carnavalescos, patronos, aderecistas
etc.– afinados com a racionalização instrumental das ações capazes de garantir
política e economicamente a monumentalidade do desfile, garantindo divulgação
nacional e internacional para o desfile das Escolas de Samba, tal como afirma
Farias (2008), “a intenção cosmopolita do samba balizou o projeto cultural de Paulo.
É fruto da colisão entre o sentido da direção tomada pelo encadeamento de
relações na base do carnaval da cidade com a intençãopioneira de Paulo de
emancipar a população negra como grupo étnico, a partir da valorização das
expressões culturais afro-brasileiras como objetos de lazer e entretenimento para
desfruto de todos”.
Paulo precisava agir dentro de um campo muito mais pantanoso que nosso
segundo personagem, Candeia. Mas, de alguma forma, Paulo atuou sobre as
condições subjetivas e objetivas de seu tempo, seu plano – mesmo que
historicamente diferente do de Candeia – era modificar simbolicamente o lugar da
256

cultura negra no Rio de Janeiro, elevando a escola de samba e com elas sua
comunidade.
Paulo viveu o período em que os elementos da ascensão social do sambista
começaram a aparecer com mais força já perto de sua morte, viveu dentro deste
ambiente de negociação entre escolas e outros agrupamentos sociais. Paulo, acima
de tudo, viveu no momento de integração cultural que tinha na cultura do samba sua
maior chave. Candeia não, sua fase mais engajada se alinha com o período de
reafirmação da questão racial e com o clima de engajamento político do artista em
um país solapado por uma ditadura militar. Vive também a crise da visão folclórica,
para Candeia qualquer projeto cultural era um projeto político e pedagógico de
esclarecimento das pessoas articuladas à cultura afro-brasileira.
Na tentativa de pontuar os processos, posso resumir em alguns pontos a
trajetória das escolas de samba no período analisado. Como já sabemos, as
escolas de samba nascem no final dos anos de 1920, e em menos de vinte anos
estariam ocupando papel privilegiado nos festejos do carnaval carioca. Podemos
destacar aqui algumas fases fundamentais:

a) Os tempos de Luta por Integração: Data de sua fundação, até sua


afirmação na chamada Era Vargas. Trata-se de entender como o
samba, manifestação cultural dos segmentos mais discriminados e
precarizados da cidade toma relevo na cidade. Ampliando seu
patrimônio e estabelecendo trocas com segmentos das elites, e da
classe média urbana o movimento das escolas de samba vai aos
poucos ajudando a modificar o lugar do negro e sua produção
cultural na sociedade carioca. Dentre os trabalhos que analisaram
este período destaquei a pesquisa pioneira de Vianna (1995), ainda
Fenerick (2003), Cunha (2001), Soihet (2003), Sodré (1985) e Moura
(1983 e 1987);
b) Os tempos de afirmação: O novo projeto de país apresentado no
Estado Novo modifica o consenso político estabelecido no período
anterior, inserindo o povo e suas manifestações culturais em um
novo pacto político. Mesmo que dirigido por cima o país toma um
clima de valorização do popular e sua produção como essência da
identidade nacional. As escolas de samba, inclusive por suas
257

próprias estratégias, inserem-se nesse projeto estabelecendo


espaços de negociação com o Estado (nesse período o Estado
passa não só a organizar os desfiles como pressionar “enredos” às
Escolas de temas de seu interesse). Tupi (1985), Soihet (2003),
Augras (2004) e Lopes (2004) são importantes trabalhos de
pesquisa sobre o período. Além do valioso compêndio de entrevistas
e pesquisas e fontes jornalísticas de Cabral (1974), este, fonte
inesgotável de informações para o decorrer de toda a pesquisa.
Estes também são tempos quentes, de disputa por acesso aos
espaços de produção cultural entre Estado e comunistas, vale a
leitura de Guimarães (2004) acerca do tema;
c) Os tempos do mecenato, jogo do bicho e da academia: no final dos
anos de 1960, as escolas de samba já ocupam espaço bastante
privilegiado no cenário do carnaval carioca e é evidente que essa
ascensão não se dará de maneira combinada a melhoria das
condições de vida da parcela mais carente da cidade. É nessa
época que surgem dois elementos bastante importantes no mundo
do samba, o polêmico aparecimento do mecenas (normalmente na
figura do contraventor, o “bicheiro” de nossos tempos) e a entrada de
membros “externos” à sua origem em seu seio, isto é, estamos aqui
falando da entrada de membros, em especial, da faculdade de belas
artes (aqui seria cunhado o termo tão falado hoje no mundo do
samba: academia), quer seriam carnavalescos, escultores, bailarinos
e etc. Também começa a ficar mais intensa a participação de outros
segmentos sociais no fazer desfile, na elaboração do enredo, e na
arquitetura de carros alegóricos e fantasias. Nesse período podemos
perceber a escola de samba com a cara de nosso tempo, ali está
uma virada, a escola de samba vai deixando definitivamente de
compor-se como patrimônio “exclusivo” de sua comunidade. Nilton
Santos (2004) é uma importante fonte para compreender esse
debate, ao realizar uma longa série de entrevistas com a
carnavalesca Maria Augusta, partícipe fundamental daquele período.
Goldwaisser (1975) e Castro (1999 e 2006) realizaram importante
258

etnografia acerca da elaboração dos desfiles e do dia a dia das


escolas, sendo fonte importantíssima para compreender a época;
d) A dualização de projetos: no início dos anos de 1970 começam a
ocorrer, sejam dentro ou fora das escolas de samba, discursos de
crítica ao crescimento excessivo das Escolas, nesse tempo figuras
como Cartola, Paulinho da Viola, Candeia e tantos outros começam
a expressar o seu descontentamento com o rumo dos desfiles.
Intelectuais de diversos segmentos também começam criticar. É o
tempo da “Super Escola de Samba S/A”, nome de samba de Aluízio
Machado, onde a última palavra é dada pela tríade, bicheiro-
carnavalesco-patrocinador. Foi em 1975 que ocorreu o analisado
racha na Portela de Candeia e outros sambistas, que saíram para
fundar a GRANES Quilombo. Daí em diante começa a se fortalecer
um projeto alternativo as escolas tradicionais, alguns anos depois
são criados o Clube do Samba de João Nogueira e o Cacique de
Ramos, espaços que além de alternativos denunciam as dificuldades
do sambista nas escolas tradicionais.

Candeia é uma personagem que surge na terceira fase, no fortalecimento do


mecenato do bicho e da "invasão" da escola de belas artes. Em um primeiro
momento, como mostramos no capítulo anterior, Candeia está absolutamente com a
trupe mais tradicional do samba, em outro momento seu engajamento constrói um
rompimento com a marcha de espetacularização da festa carnavalesca. O Candeia
da primeira fase elaborou sambas nacionalistas, afinados com o clima dos anos
40/50, Candeia só começa a questionar quando os alicerces centrais do poder na
escola de samba mudam de mão, quando aparece o mecenato do jogo do bicho
aliado a presença de profissionais das belas artes nos desfiles.
Pelo seu acidente, pela forma como retornou ao samba, pelo respeito que já
tinha, Candeia se tornou o líder de um "Quilombo" insatisfeito, sua produção
artística engajou, e acabaria por seguir o caminho de tantos outros sambistas na
recente MPB, se afastando definitivamente das escolas de samba. Em entrevista ao
Jornal do Brasil, no dia 17/12/1997, o sambista Martinho da Vila explica um pouco
esse ambiente: “não tinha jeito, as escolas maiores foram sendo quase assaltadas,
sério. […] A maior parte dos sambistas foi para outra seara, eu mesmo fui fazer as
259

minhas andanças, até que a Russa virou presidente da Vila Isabel e eu voltei com
tudo”.
Aqui está a diferenciação fundamental de Paulo da Portela e Candeia. Paulo
articulou a unidade de dois mundos aparentemente separados, digo aparentemente,
pois nunca estiveram completamente descolados. Tornou-se um articulador
fundamental da integração racial pela cultura, já Candeia um crítico da
subordinação desta integração, que tomaria proporções muito maiores em seu
tempo. Candeia de alguma forma vai romper com o movimento original das escolas
de samba, de entusiasmo com a integração com o restante da sociedade. Em
Candeia a reparação ultrapassa a integração. Afinado com o novo discurso racial,
nosso personagem quer denunciar a exploração a qual o negro foi (e é) submetido,
e exige reparação, a forma escolhida: a conscientização.
São outros tempos, os estudos raciais avançam e se aproximam das
pesquisas acadêmicas estadunidenses sobre o tema, a influência da luta por
direitos civis e as lutas pela descolonização africana agitam o planeta. Candeia se
filia ao Movimento Negro Unificado. Prestigia Paulo da Portela em seu discurso,
mas salienta que falta algo, e o que falta é conhecer o passado, a necessidade de
ser um negro engajado. O Candeia da primeira fase usava os mesmos ternos que
consagraram a estratégia de Paulo da Portela, “de pés e pescoço coberto”, o
sambista elegante, “civilizado”, ordeiro. O Candeia da Quilombo usava roupas
coloridas que remetiam a trajes africanos, estava abandonando a estratégia
anterior.
Abaixo reproduzo uma entrevista de Candeia no encarte de seu disco,
Candeia 20 anos. Aqui fica clara a visão “africana” de Candeia, isto é, embora o
país esteja dentro do clima de agitação black (me refiro a influencia estética e
comportamental da música negra americana nos anos 70), ele mira para a África
como matriz da cultura que o negro deve buscar. As fontes em caixa alta estão
como no próprio encarte, veja:

“- Candeia, você está engajado no movimento negro?


Candeia:
- Houve a libertação dos escravos, mas não prepararam o negro pra
assumir uma posição na sociedade. Não adianta libertar o negro para deixá-
lo marginalizado no meio da rua, perambulando, assaltando, porque não
tem o que fazer; ficando na ociosidade. Ele ficou escravizado por outro
meio, sem o chicote, mas ficou alijado do processo de desenvolvimento
social. Então se refletiu. Eu não procuro espelhar nada que se RELACIONE
260

COM O NEGRO AMERICANO, QUE NÃO ME INTERESSA. Eu recorro à


CULTURAAFRICANA, À CULTURA MÃE, BÁSICA. Assim mesmo, essa
sofreu um processo de violentação. Eu considero o negro brasileiro O
MAIOR HERDEIRO CULTURAL AFRICANO. O NEGRO AMERICANO JÁ
ESTÁ POR FORA DE TUDO, JÁ SOFREU UMA LAVAGEM CEREBRAL, já
não está ligado às suas origens.
É necessário que haja uma comunidade negra, de estudos afro-brasileiros.
Tem muito negro que não pode participar de uma comunidade deste tipo.
Eles estão distanciados e se europeirizaram. Oassunto é tão difícil QUE
QUANDO A GENTE TOCA NELE, ELE GANHA UM ASPECTO DE
RADICALIZAÇÃO. MAS SE SER RADICAL É DEFENDER AS NOSSAS
COISAS, ENTÃO EU SOU RADICAL. O negócio é assumir uma posição,
temos um espírito comunitário. O nosso movimento é aberto. Quando eu
assumo que sou negro, as pessoas podem ver nisto um tom de
agressividade”.

Candeia parte para o confronto, em outra época para o samba é claro, que
de alguma forma vai criticar profundamente o espaço que antes serviu para integrar.
Como em um jogo de acúmulo de forças Candeia acredita que não há mais
necessidade de perder tanto na negociação e atiça o conflito. Na fundação do
Movimento Negro Unificado (MNU), a GRANES Quilombo estava representada com
delegados, ninguém menos que Lélia Gonzales, militante bastante conhecida da
questão racial. Em uma conferência sobre direitos das mulheres negras, Lélia
explica sua visão:

“Nós ainda temos um grande trabalho, pela frente no sentido de nos vermos
como um país multi-étnico, com uma diversidade de manifestações culturais
e onde o lugar do negro em termos culturais é a grande fonte na qual toda
uma produção artística oficial vai se inspirar.Por um exemplo, que não é
brasileiro, no caso do rock inglês vemos qual é o solo de onde brotou esse
rock, onde é que os rapazinhos brancos, por exemplo de Liverpool, como no
caso dos Beatles, foram se abeberar numa música negra vinda da Jamaica.
No caso brasileiro é a mesma coisa. O que se constata é que toda uma
produção cultural se faz em cima da apropriação do trabalho de produção
dessa cultura negra que é evidentemente marginalizada. Podemos perceber
inclusive, no nível da linguagem, um tipo de classificação que domina essa
ideologia dominante. Em termos de música popular temos MPB e o samba
que formam dois conjuntos que são classificados separadamente. Música
popular brasileira é uma coisa e samba já é outra, que tem outro espaço do
qual o “crioléu” não pode sair. Portanto, todo um trabalho, nos mais
diferentes níveis dessa realidade brasileira tem que ser efetuado no sentido
de sensibilização, de mobilização para a questão negra. No meu caso, fiz
um tipo de escolha, que foi a militância de rua, participando de organizações
negras, de seminários, na medida em que nós, os intelectuais negros
orgânicos somos tão poucos, realmente existe um grande leque de
atividades para poder responder às exigências que nos são colocadas. E,
ao mesmo tempo, existe uma militância, no nível do movimento (negro),
que, a meu ver, é de uma grande importância de atuação nos meios não
negros”.
261

O engajamento artístico dos anos 60/70 é também um tensionador da vida de


Candeia e diversos outros sambistas que se articularam com espaços como o CPC
da UNE na elaboração de projetos artísticos engajados entre membros do CPC e
artistas populares. Foi assim o Teatro Opinião de Nara Leão, João do Vale e Zé Keti.
O que importa é que dentro deste ambiente profícuo a Quilombo se tornou espaço
de escape para os sambistas e ativistas da cultura negra. O samba no Rio de
Janeiro nunca mais seria o mesmo dai em diante, não só por culpa da Quilombo,
mas porque as escolas de samba perdiam uma parte dos seus membros para
outros movimentos artísticos. Em entrevista ao Correio Brasiliense, no dia 22/01/78,
Candeia e Paulinho da Viola explicam a necessidade do engajamento dos
sambistas.

“Paulinho da Viola – Eu acho que as pessoas estão pegando aspectos


isolados. O negócio não é esse. Nós temos de pegar aquilo que aconteceu.
Primeiro nós temos de fazer um levantamento da história do samba. O que
ele significou, como ele surgiu, porque/em que condições/quem eram as
pessoas que faziam isso no começo, em que condições elas faziam, o que
eles diziam, o que eles comiam, o que eles pensavam, porque eles
tomavam cacete.
Candeia – Isso que você tá falando aí é o que eu considero cultura própria
do sambista, que é onde se choca com “esses caras” que não têm vivência,
esse conhecimento. Isso exatamente, em termos objetivos: a comida, a
vestimenta, o linguajar, tudo isso faz parte dessa cultura”.

E seguem debatendo:

“Paulinho da Viola – É, os sambas enredos são escolhidos arbitrariamente,


não existe democracia nas escolas, quer dizer, o povo da escola não vota,
isso é que tem que ser denunciado, entende? Não existe um Conselho
Fiscal que seja representativo de escola, essas coisas todas têm que ser
denunciadas.
Candeia – O sambista não tem participação ativa no samba...
PV – Participação ativa no samba. Uma escola hoje é uma coisa abstrata,
quer dizer, quando uma escola deveria apesar de, aquele negócio que a
gente falou na entrevista, apesar de: compromissos com turismo, e coisa e
tal, apesar de ser uma coisa já infiltrada e tudo, deveria, (deve) prevalecer
dentro da escola valores que são fundamentais à manutenção do samba,
quer dizer: uma escola de samba o que é? Implica inclusive no seu
patrimônio, na sua história, no seu patrimônio cultural, quer dizer, o que é o
que é? Todos os seus elementos antigos, toda a história daquilo ali, o
acervo, a maneira como se dançava, os sambas tradicionais, escola de
samba.
[...]
C – Pra tentar mostrar é que a criação da Quilombo tá aí. Pra tentar mostrar
o que era o jongo, a capoeira, o samba de roda, o samba de caboclo, uma
série de manifestações que praticamente estão em extinção, tá igual à
fauna, que o homem chegou lá e depredou. Então, pra manter esse tipo de
coisa, é necessário que haja uma lembrança viva, porque sem as coisas
262

tradicionais, a coisa se perde realmente. Porque nossos filhos vão perguntar


dentro de pouco tempo, nossos netos, talvez, sei lá, o que foi o sambista.
[…]
PV – Sambistas: vocês precisam tomar consciência com relação ao que
está acontecendo, porque o que está acontecendo é o seguinte, todo
sambista tem que tomar conhecimento do que está acontecendo, todo
sambista, quer dizer, todos aqueles caras que têm realmente um vínculo,
ligados à escola, tudo aquilo que tem sido feito até hoje com relação às
escolas é um negócio que precisa ser esclarecido, precisa ser discutido,
como estamos discutindo aqui. É que parece que existe um complô, a
impressão que se tem é que tudo que existe nos ambientes todos de escola
de samba, é sempre no sentido de apagar uma memória, rapaz, apagar no
sentido assim de dizer: “O passado foi uma coisa que morreu”.

Aqui é como se o grupo dos sambistas começassem a ter suas "lideranças",


seus "intelectuais", e esse discurso não iria criar propriamente cisões, mas criaria
reordenamentos, modificaria as escolas de samba por dentro e por fora. Em
entrevista concedida a revista Manchete de 22/03/1985, o sambista João Nogueira
explica a continuidade da crise da Portela, já depois da criação da Quilombo e da
morte de Candeia:

"perdemos tudo, chegou uma hora que o Nézio [filho do bicheiro Natal], já
tinha articulado uma série de reuniões para fazer uma resistência, aos
poucos eles foram nos empurrando para fora e nós criamos a Tradição, que
tem eu e Paulo César Pinheiro como compositores do samba deste ano".

Achei muito importante citar a entrevista anterior de Candeia nas conclusões


da pesquisa. É muito relevante ver Candeia e Paulinho da Viola juntos no mesmo
debate. As fotos dos debates e atividades culturais da Quilombo mostram um grupo
muito grande de sambistas conhecidos frequentando o espaço, mesmo que
parecendo repetitivo cito mais uma passagem da entrevista, onde Candeia
conclama Paulinho e esclarece seu engajamento70:

“Candeia - Certo, Paulinho. Agora, uma coisa que era muito importante, não
parece nada, mas que tem que ser dito alto e bom som, é de que, eu sei
que é teu pensamento também, falo por você, no caso, de que toda a nossa
luta, todo nosso trabalho, pra não ser confundido, nós não temos nenhum
interesse político, não pretendemos ser diretor da Portela, nós falamos
como sambistas, pelo que vivemos, certo? Quer dizer, por trás de nossa
posição, não existe nada a ser escondido. Não tenho pretensão, não quero
ser diretor, não quero ser tesoureiro, não quero honraria, não quero receber

_______________________________________________
70
RABELLO, João Bosco. “Escola de Samba. Cultura Popular”. Correiro Brasiliense. Suplemento
Especial. 22/01/1978.
263

nada assim pra mim. Com toda sinceridade, mal comparando, não vou dar
uma de Pelé, cruzar os braços e dizer que tá tudo bom, uma democracia
bonita, e tal, igualdade, tudo jóia, certo? Dar uma de Pelé e deixar o barco
pegar fogo. Então, nosso trabalho, é claro, não estamos lutando em honra
própria, mas e até por aqueles que não têm condições de falar, eu às vezes
até chamava a atenção do Paulinho e dizia: “Olha, Paulinho, você tem, quer
queira, quer não, uma posição de liderança perante esse pessoal, eles
esperam que você... tem que chegar e falar, porque a gente tem realmente
que falar”.
[…]
PV - […] A gente, você já cansou de ver anúncio, assim, não tô falando que
o turismo fez isso, entende, mas a gente já cansou até de anúncio. Eu já vi
um anúncio do Haiti, para Executivos, que era uma mulher seminua, sabe,
com o seio de fora, sabe, era um convite para negócios pro Haiti e pra ser
lá, pra uma ilha dessas, Havaí, não sei onde é que é. Era uma mulher com
o seio de fora, entendeu? Eu já vi declaração de nego, aqui, de autoridades
aí, dizer que o que nós temos que vender mesmo é mulher pelada, e que
nós temos que vender mulher, futebol, samba, essas coisas todas. Que isso
é que nós temos que vender. Turismo daqui, não pode vender outra coisa.
Quer dizer, existem essas implicações, que precisam ser analisadas,
entende? O que eu sinto é isso. O que tem de ser denunciado, rapaz, é
essa coisa arbitrária, que vem de cima pra baixo, dentro de uma escola de
samba. Quer dizer, um cara se arvorar e dizer: EU mudo o samba-enredo,
EU decido o que é isso, EU faço isso, EU faço aquilo, ou então vira outro e
diz: “quem não estiver satisfeito vá para a arquibancada”. É isso que tem
que ser denunciado, quer dizer, nenhuma escola de samba...
C – Brasil, ame-o ou deixe-o...?
PV – Não... é o cara chegar e dizer: olha aqui, quem não estiver satisfeito
que vá pra arquibancada. Isso aí...
C – É uma coisa altamente fascista.
PV – Então, isso aí é que ... eu acho que... Quer uma sugestão para
matéria? Abre a matéria assim: “QUEM NÃO ESTIVER SATISFEITO VÁ
PRA ARQUIBANCADA”. Ou “O SAMBISTA QUE NÃO ESTIVER
SATISFEITO VÁ RECLAMAR NA ARQUIBANCADA”. “Pronto, é assim que
a gente tem que abrir a matéria”.

Em quatro capítulos tentei remontar essa travessia ao estrelato das escolas


de samba do Rio de Janeiro. Uma tentativa de colaborar na busca dos “mistérios”do
samba carioca. Minha preocupação foi mostrar como um grupo oprimido da cidade
viu na cultura um potencial espaço de integração social e mudança qualitativa do
seu lugar na sociedade; depois uma parte deste grupo se desprendeu da marcha ao
espetáculo e se engajou na denúncia e na luta por equidade racial.
As escolas de samba foram (e talvez ainda sejam) o elemento central do
carnaval carioca, até os anos 80 concentravam toda a atenção dos sambistas. O
rompimento de Candeia acontece em um momento que outros espaços iriam
começar a rivalizar com as escolas tradicionais, não só no Quilombo. Os subúrbios
cariocas presenciaram o nascimento de novos movimentos artísticos como o Fundo
de Quintal e o Cacique de Ramos que aos poucos ganhavam a comunidade para
um carnaval mais espontâneo, de rua. Como revelei também nesta pesquisa, uma
264

parte da juventude negra se encaminhou para o movimento da black music


estadunidense, valorizando mais uma estética comportamental negra. Esse
movimento, que não parece agradar tanto Candeia, de qualquer forma ajuda atiçar
a valorização de uma estética baseada em valores étnicos.
Se antes a ideia era usar o terno e se parecer com os frequentadores do
centro “civilizado” era porque existia um motivo, ou mesmo uma vontade dos grupos
segregados de se integrar, o que levantamos com Candeia é o fortalecimento do
engajamento racial dentro da arena artística. Candeia segue o movimento
questionador de seu tempo e propõe transformar a escola de samba numa máquina
de disputa e memória. Não distanciando tanto Candeia e Paulo, podemos lembrar
que Paulo, no fim da vida, se candidatou a deputado e uma de suas bandeiras mais
fortes era a criação de escolas públicas, dentro das escolas de samba, para os
filhos dos sambistas, com uma disciplina específica: História da África.
Paulo era um entusiasmado com o projeto integrador da Era Vargas, um
homem cívico, sem formação escolar ou política, era lustrador e sambista e se
tornou o maior relações-públicas do universo do samba carioca de seu tempo.
Candeia viveu em um mundo onde ser negro, e o complexo das relações políticas e
artísticas,já era um bocado diferente do "ser negro" no tempo de Paulo da Portela.
No tempo de Candeia, diversos artistas negros se tornaram porta-vozes do seu
grupo e foram buscar no engajamento acerca da questão racial a realização da
atividade política.
Possuem um sentimento de valorização bastante militante do universo da
cultura negra. Recria-se uma África diferente daquela criada na casa de Tia Ciata
nos meados de 1920, naquela, o que valia era a presença viva dos rituais
sincretizados. Nessa “nova África” o que vale é a pesquisa, e o fortalecimento do
ritual original como forma de afirmar e singularizar o papel do negro em nossa
sociedade.
Se eu for falar de vencedores diria que quem venceu fora a escola de samba,
tendo em vista, que a agremiação de Candeia não durou muito tempo (embora
tenha sido "reativada" nos anos 90) e as escolas de samba aí estão até hoje, cada
vez mais monumentais. Mas também respondem cada vez menos pela totalidade
dos festejos carnavalescos, principalmente no mesmo setor que ajudou a criar a
Quilombo. Afastaram-se mais de suas comunidades, mas ainda dizem muito delas,
basta chegar fevereiro na periferia carioca e ver os vários aparelhos de televisão
265

colocados na porta de casa esperando a Portela, a Mangueira, a sua escola de


coração passar.
Em um Brasil de revoluções passivas, nenhum projeto que abarcasse um
consenso tão restrito como o de Candeia, e o do próprio movimento negro de seu
tempo teria facilidades de se fazer hegemônico, mas a história não é e não pode ser
contada a partir só das grandes estratégias “vencedoras”. O projeto de Candeia e
tantos outros representaram uma vontade muito forte de enfrentamento àquilo que
levou as escolas de samba ao apogeu, a sua capacidade de se articular com os
diversos segmentos da sociedade, Estado, Instituições, e etc. Candeia se articulou
a resistência dos movimentos sociais, tempos românticos e sectários, porém cheios
de sentido e carentes de investigação. Candeia e outros sambistas estimularam e
foram partícipes de um rico movimento cultural que até hoje solapa os mais
engajados.
Não se trata de entender os contemporâneos de Paulo da Portela com
complacências, trata-se de entender as estratégias empreendidas pelo grupo negro
de Oswaldo Cruz em busca de afirmação na cidade. Em tempos diversos e com
acúmulos diversos nossos personagens irão se movimentar se tornado referências
fundamentais de seus grupos. Paulo se tornou a referência maior para os sambistas
mais tradicionais, isto é, busca a saída para os descaminhos carnavalescos no
passado.
Mas esse passado, como comentei no capítulo anterior, não estará livre da
racionalização de Candeia. Segundo o compositor, os sambistas "do tempo de
Paulo da Portela", precisavam de diversas estratégias (de negociação) para
sobreviver a rígida vigilância e exclusão social. Nesta tônica, Paulo continua um
herói para Candeia. E, como tenho afirmado no fim desta pesquisa, a principal
dificuldade de Candeia na Portela teria sido sua falta de autonomia, o mesmo
espaço que Paulo aos poucos foi perdendo, embora, sua morte prematura o tenha
privado disso completamente. No estilo de samba, Candeia rumou à liberdade e
reorganizou o ambiente sociocultural do samba carioca. Concluo com mais um de
suas canções:

Está chegando a hora agora


Eu quero ver
Quem vai sair
Quem vai chorar
Quem vai ficar de fora
266

Vou viver na avenida


O que se deixa da vida
Vou sambar até o sol raiar

Nosso enredo já não é segredo de ninguém


Mas temos medo
Pois o samba custe o que custar
Vai Ganhar
E vai levar a melancolia
Desta vida desigual
A razão da alegria
Do povo é samba, é carnaval

A razão da alegria
Do povo é samba, é carnaval
267

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