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A ENTRADA DO INSTRUMENTO MUSICAL RECO-RECO NO BRASIL

Pedro Sá
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Convidado pela Professora Dra. Adriana Olinto Ballesté(1) a traçar um histórico sobre a
chegada do reco-reco ao Brasil, imediatamente me ocorreu uma frase de Luiz
D’Anunciação. Ele sintetiza e ilustra bem o assunto: a tipicidade do reco-reco não
decorre do objeto instrumento musical, e, sim, da participação exercida na formação do
sotaque rítmico do batuque brasileiro (D’Anunciação 2008, p.32).

Os instrumentos introduzidos no Brasil pelo colonizador europeu foram aqui adicionados


ao batuque africano e assimilados por uma combinação racial singular. Surgiram, assim,
a casaca nas bandas de Congo do Espírito Santo, o reco-reco de mola nas escolas de
samba do Rio de Janeiro e o bajo no Cavalo Marinho de Pernambuco, entre outros
exemplos.

Vale lembrar que, apesar de sermos um país mestiço, as pesquisas sobre o impacto da
música indígena sobre a composição musical brasileira ainda permanecem incipientes. A
contribuição ameríndia está praticamente extinta, a despeito de sua influência ser
reconhecidamente imensa. Mário de Andrade e Luciano Gallet, ao mencionarem o
célebre triângulo racial brasileiro em seus trabalhos, concluíram que a música indígena
ocupa um lugar ínfimo – se não praticamente inexistente – na música brasileira,
limitando-se tão somente a negros e brancos (Andrade, 1962 e Gallet, 1934). Não
obstante as raríssimas evidências, veremos a seguir que existem também alguns tipos de
reco-recos em algumas tribos indígenas em nosso país.

O reco-reco é um instrumento musical classificado como um idiofone com som de altura


indeterminada. Esse é o nome genérico que, no Brasil, dá-se aos instrumentos musicais
de percussão cuja principal característica é serem constituídos de um material que tem
em sua superfície – ou em parte dela – uma série de sulcos transversais e paralelos
bastante próximos, ao longo do comprimento da peça, para serem atritados ou
friccionados com um tipo próprio de baqueta. O reco-reco pode ser feito de um ou mais
gomos de bambu (taboca ou taquara), madeira, metal ou chifre bovino. No Brasil, o reco-
reco mais comum é o de bambu e atualmente, também o de metal. O Museu Delgado
de Carvalho possui dois exemplares em seu acervo: um de bambu e dois de madeira.

Historicamente, a existência desse tipo de instrumento na Europa Central data da


Idade da Pedra, quando foi encontrado um raspador paleolítico de osso (palaeolithic
bone scraper) na caverna da Pekarna, na Morávia, cujo exemplar se encontra no Museu
Morávia em Brno, na República Tcheca, sem dúvida um dos exemplares mais antigos
do mundo (Blades, 1992, p. 40-41).

O reco-reco integra no Brasil a nossa rítmica, com forte atuação em nosso folclore, nos
conjuntos musicais de diversos folguedos, tais como: Dança de São Gonçalo (Laranjeiras,
Sergipe), Bandas de Congo da região capixaba (Espírito Santo), Maracatu Rural e Cavalo
Marinho em Pernambuco, o Cururu de Mato Grosso, os Catopés de Milho Verde em
Minas Gerais, Dança de Santa Cruz em Carapicuíba (São Paulo), Grupos de Moçambique
e Marinheiro em Goiás, entre outros. O regionalismo brasileiro lhe atribui nomes como
casaca, caraxá, cracaxá, canzá, ganzá, ganzal, querequexé, pulê, macumbo, reque, bajo e
outros.

Sobre indícios da entrada do reco-reco no Brasil, o pesquisador brasileiro José Ramos


Tinhorão nos informa que idiofones raspadores sempre estiveram ligados ao tipo de
música dos negros não apenas na África, mas em todos os povos da Península Ibérica e
das Américas, para onde os interesses do tráfico negreiro levaram, juntamente com sua
força de trabalho, o som de seus atabaques, cabaças e reco-recos (Tinhorão, 2006, p.
31). Esse movimento migratório forçado trouxe para o Brasil populações de etnias
diversas. Eram grupos que não formavam um conjunto em particular; havia línguas,
costumes e crenças distintas.

Para o intuito deste artigo, entretanto, interessa-nos tratar de uma etnia


especificamente: o grande grupo etnolinguístico banto, que, segundo os pesquisadores
Kazadi wa Mukuna e José Redinha, foi certamente aquele que nos forneceu as bases do
samba e a grande variedade de manifestações que lhe são afins, além da introdução,
no Brasil e em alguns países da América do Sul e Caribe, de vários instrumentos
musicais, entre os quais se inclui o reco-reco (wa Mukuna, 2006 e Redinha, 1988). O
brasileiro Nei Lopes defende essa afirmação e acrescenta que é banta a origem dos
vocábulos “umbanda”, “macumba” e “mandinga”, pertencentes ao universo dos cultos
no nosso país. Em seu Novo Dicionário Banto do Brasil, esclarece inclusive que a palavra
macumba significa também uma espécie de reco-reco, de origem quimbundo mukumbo
(Lopes, 2003, p. 132).

Julio Cesar Farias diz que a introdução do reco-reco nas escolas de samba do Rio de
Janeiro é creditada ao sambista Caburé (Farias, 2010, p. 87). Há registros do uso do
instrumento pelos ritmistas do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela datados de
1953 (ibidem, p. 88). Desde meados dos anos 1970, com o intuito de obter maior
potência sonora, as baterias de escola de samba costumam utilizar somente o de metal,
chamado reco-reco de mola. Este se constitui, na verdade, de uma mola de aço esticada
sobre uma calha de latão e friccionada com uma vareta de metal. Tal procedimento
provavelmente foi influenciado por reco-recos de mola espiral que já eram utilizados no
município de Perdões, no estado de Minas Gerais, feitos de lata e de calotas de carro.

Buscando evidências da procedência do instrumento via colonizador europeu, James


Blades nos informa acerca de um tipo de raspador encontrado em Portugal, em que dois
pedaços de pinho são friccionados um contra o outro a fim de marcar o ritmo para a
dança (Blades, 1992, p. 41). Tinhorão, já citado anteriormente, é ainda mais específico
em seu livro O Rasga. Uma dança negro-portuguesa, no qual apresenta a pesquisa sobre
um gênero de canto e dança surgido entre os negros e mulatos de Lisboa por volta do
início do século XIX. Trata-se de uma dança cujo som era caracterizado principalmente
por uma espécie de canzá, ganzá ou reco-reco que, passando pelas primeiras
apresentações nos teatros em Lisboa, chegou ao Rio de Janeiro. O autor afirma ser
aquele o som peculiar da raspagem de uma vareta fina de cana sobre a superfície de um
cilindro dentado de madeira, o que resultava em um som “raspado”. Daí derivou o nome
rasga (de ritmo rasgado, no sentido de abrir cortes ou rasgões, raspar). (Tinhorão, 2006,
p. 39-41).

O musicólogo Luiz Heitor Correa de Azevedo diz que foi o brasileiro Alberto Nepomuceno
quem primeiro introduziu o reco-reco em uma partitura sinfônica, ao orquestrar, em
1891, a sua Dança de Negros, intitulando-a de Batuque. O instrumento é encontrado
também em partituras de Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro, César
Guerra-Peixe, Nelson de Macêdo e Radamés Gnattali, entre outros nomes do repertório
sinfônico e camerístico brasileiro (D’Anunciação, 2004, p. 7). Villa-Lobos foi o compositor
que teve o mérito de introduzir o staccato percutido em suas obras Uirapuru e
Momoprecoce, bem como o portato, no Uirapuru (Sá, 2009, p.32-34).

Em relação à música indígena, conforme já foi dito, os indícios do uso do reco-reco são
praticamente inexistentes. Câmara Cascudo nos informa acerca do caracalho, utilizado
pelos indígenas tambés, também conhecido como catacá amazônico. Com dois pedaços
de tábua – ou mais comumente de taboca – um dentado e outro não, o executante
extrai o som raspando um tipo de vareta sobre a parte dentada (Cascudo, 2002, p. 112 e
122).

Concluindo, o que moveu também a elaboração deste trabalho foi o anseio de contribuir
academicamente para o conhecimento sobre o reco-reco. Há tempos observam-se
inúmeras publicações de renomados percussionistas – muitas delas tidas como
referência no meio acadêmico – contendo dados imprecisos sobre o instrumento. Um
dos exemplos mais comuns é a tendência, principalmente norte-americana, de
denominar todos os instrumentos da família do reco-reco como guiros, fruto da
padronização que a mídia costuma fazer, ao considerar tudo abaixo dos EUA como
“salsa”. Sabe-se que o guiro é um raspador feito de cabaça, historicamente utilizado pela
música latina, ocupando um lugar especial na música cubana e porto-riquenha. Pode-se
dizer que é um “primo” do nosso reco-reco, mas confundi-los é um equívoco.

O pesquisador inglês James Blades, citado anteriormente, ao escrever o conceituado


livro Percussion Instruments and their History, comenta a existência de um idiofone
raspador no Brasil chamado reso-reso. Esse instrumento seria construído de um “talo de
bambu ou uma cabaça (guiro) serrada para formar uma série de sulcos” (Blades, p. 454-
55). Encontramos aí a generalização que comentei no último parágrafo, com relação ao
guiro. E sabe-se também que nunca existiu nenhum instrumento no Brasil com o nome
de reso-reso. Essa mesma designação (reso-reso) aparece também na publicação de
Brindle (1978, p. 105). Esse, aliás, é um dos dois únicos livros sobre percussão que até o
momento da conclusão deste artigo (2) fazem parte do acervo da Biblioteca Alberto
Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ, que sedia o Museu Virtual de Instrumentos
Musicais Delgado de Carvalho, à qual o presente texto está vinculado. Os referidos
autores provavelmente basearam-se na mesma fonte equivocada para escreverem seus
trabalhos.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962.

BLADES, James. Percussion instruments and their history. Revised Edition.


Connecticut: The Bold Strummer, Ltd, 1992.

BRINDLE, R. S. Contemporary Percussion. New York: Oxford University Press, 1978.

CASCUDO, Luís Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Revisto, atualizado e ilustrado.


11 ed. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda, 2002.
D’ANUNCIAÇÃO, Luiz. Reco-reco 2. ed. Rio de Janeiro: Ebm/D’aziula. Melódica
Percussiva, 2004. (Manual de Percussão v. IV., Caderno 4. Percussão Complementar).

. Melódica percussiva. Norma de concepção para a escrita dos instrumentos


populares brasileiros da percussão com som de altura indeterminada. Rio de Janeiro:
Melódica Percussiva, 2008. (Manual de Percussão, v.V., Caderno 1).

FARIAS, Julio Cesar. Bateria: O Coração da Escola de Samba. Rio de Janeiro: Litteris
Editora,
2010.

GALLET, Luciano. Estudos de folclore. Rio de Janeiro: Carlos Wehrs & Cia, 1934. LOPES,
Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

REDINHA, José. Instrumentos Musicais de Angola. Sua Construção e Descrição. 2 ed.


Portugal: Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra, 1988.

SÁ, Pedro Paiva Garcia. A Sistematização da Escrita para os Instrumentos Populares


Brasileiros com Som de Altura Indeterminada de Luiz D’Anunciação. Conceitos e Análise
de Quatro Obras . 2009. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO.

TINHORÃO, José Ramos. O Rasga. Uma dança negro-portuguesa. São Paulo: Editora 34
Ltda, 2006.

WA MUKUNA, Kazadi. Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira: perspectivas e


etnomusicológicas. 3.ed. São Paulo: Terceira Margem, 2006.

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NOTAS

1. A Professora Adriana Olinto Ballesté é coordenadora do Museu Virtual de


Instrumentos Musicais Delgado de Carvalho e pesquisadora do Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia.
2. Vale ressaltar que o presente texto foi escrito e finalizado em fevereiro de 2013. No
mês seguinte, com o intuito de atualizar o acervo de percussão da Biblioteca Alberto
Nepomuceno da EM/UFRJ, o Professor Pedro Sá doou dez diferentes títulos do autor
Luiz D’Anunciação para a referida instituição, sendo que algumas dessas publicações são
destinadas exclusivamente ao estudo dos instrumentos típicos da rítmica brasileira. Na
ocasião, também foi doada à sua Dissertação de Mestrado (SÁ, 2009), pesquisa que
investiga o assunto.
Museu Virtual de Instrumentos Musicais

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SOBRE O AUTOR

Pedro Sá é Mestre em Música pela Unirio, como bolsista do CNPq. Completam sua
formação cursos de percussão com Luiz D’Anunciação e Miquel Bernat, de vibrafone
com Arthur Lipner e de Hamonia, Instrumentação/Orquestração e Análise Musical
com Nelson de Macedo, além de participação na maior convenção de percussão do
mundo, a PASIC, em Indianapolis, EUA, em 2011, onde assistiu a dezenas de master
classes de renomados percussionistas da atualidade, tais como Steven Schick,
Anthony Cirone, Vic Firth, Percussion Group Cincinnati, Gordon Stout e Stanley
Leonard, entre outros. Docente na Escola de Música da UFRJ desde 2007, atua nas
áreas de Percussão, Música de Câmara, Pesquisa, Licenciatura e Extensão. Leciona em
festivais de férias pelo Brasil, tais como os cursos de Londrina (PR) e Painéis Funarte
de Bandas de Música (RJ e Aracaju, SE). Paralelamente, exerce, desde 2002, o cargo
de 1º timpanista solista e chefe do naipe de percussão na Orquestra Petrobras
Sinfônica (Opes), um dos mais conceituados conjuntos musicais do país, sob a direção
artística de Isaac Karabtchevsky. Antes de se juntar a Opes, exerceu a posição de 1º
timpanista na OSB por 12 anos, tendo ingressado no corpo orquestral aos 16 anos de
idade, fato raro em uma orquestra profissional. Participou de diversas gravações e
tournées por todo o Brasil, Mexico e EUA (concertos no Lincoln Center for the
Performing Arts, New York). Como camerista, tem estreado junto ao Abstrai
Ensemble inúmeras obras em recitais educativos sobre música contemporânea,
além de apresentações em várias edições da Bienal de Música Brasileira
Contemporânea.

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