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Pequenos Prazeres

Edições ASA

Digitalização e Arranjo:

Agostinho Costa

Luís Sepúlveda nasceu em 1949 no Norte do Chile e tem percorrido quase todos os
territórios possíveis da geografia e das utopias. De Punta Arenas a Oslo, de Barcelona a
Quito, da selva amazónica ao deserto da República Árabe Sarabuí, das celas de Pinochet
aos barcos do movimento "Greenpeace". Desde 1980 vive na Alemanha e vê os seus livros
serem traduzidos com um êxito imparável e crescente. Depois de “O velho que lia
romances de amor”, e deste “Mundo do fim do mundo”, as Edições ASA publicaram já
nesta mesma colecção os seus livros “Nome de Toureiro” e “Patagónia Express”.

Mundo do fim do mundo

Luis Sepúlveda

Traduzido do espanhol (Chile) por:

Pedro Tamen

Edições ASA

Título original:

Mundo del fin del mundo

1989, Luis Sepúlveda by artangement with

Dr. Raygüde Mertin, Literdrische Agentur, Bad Hamburg, Fr


1ª edição: Dezembro de 1994

2ª edição: Janeiro de 1995

3ª edição: Março de 1996

4ª edição: Fevereiro de 1997

5ª edição: Setembro de 1997

Edições ASA:

Sede:

Rua Mártires da Liberdade, 77

Apartado 4263

4004 Porto

Portugal

Delegação de Lisboa:

Av. Dr. Augusto de Castro lote 110

1900 Lisboa

Portugal
Aos meus amigos Chilenos e argentinos que defendem a preservação da Patagónia e da
Terra do Fogo.

À sua generosa hospitalidade.

Aos tripulantes do novo ““Rainbow Warrior””, navio-insígnia da Greenpeace.

À rádio “Ventisquero de Coyaique”, a voz do mundo do fim do mundo.

Índice

Primeira parte .......................... 9/0

Segunda parte .......................... 39/1

Terceira parte ......................... 73/2

Epílogo ............................... 121/3


Primeira parte

"Chamem-me Ismael..., chamem-me Ismael...", repeti eu várias vezes enquanto esperava no


aeroporto de Hamburgo e sentia que uma força estranha conferia um peso cada vez maior
ao delgado caderninho da passagem, peso que aumentava à medida que se aproximava a
hora da partida. Já tinha passado o primeiro controlo e andava a passear pela sala de
embarque agarrado ao saco de mão. Não levava dentro dele muitas coisas: uma máquina
fotográfica, um bloco de apontamentos e um livro de Bruce Chatwin chamado “Na
Patagónia”. Apesar de detestar os que sublinham e escrevem anotações nos livros, aquele
estava cheio de sublinhados e de pontos de exclamação, que foram aumentando com três
leituras. E pensava lê-lo durante o voo até Santiago do Chile. Sempre quis regressar ao
Chile. Quis, mas, na hora de decidir, o medo pesou mais, e os desejos de me reencontrar
com os meus irmãos e com os amigos que lá tenho transformaram-se numa promessa em
que, de tão repetida, fui acreditando cada vez menos.

Vagueava sem rumo fixo há anos de mais, e os desejos de parar aconselhavam-me às vezes
uma aldeiazinha de pescadores, em Creta, Ierápetras, ou uma aprazível cidade asturiana,
Villaviciosa. Mas um dia houve em que me caiu nas mãos o livro de Chatwin, que me
devolveu a um mundo que julguei esquecido e que estava à minha espera: o mundo do fim
do mundo. Depois de ler pela primeira vez o livro de Chatwin entrou em mim a fúria de
regressar, mas a Patagónia está para além das simples intenções do viajante, e a distância
apresenta-se-nos na sua real dimensão quando as recordações emergem como bóias no mar
agitado dos anos mais intensos.

Aeroporto de Hamburgo. Os outros passageiros entravam e saíam da loja Duty Free,


ocupavam o bar, alguns mostravam-se nervosos, consultavam os relógios como que
duvidando da pontualidade repetida em dúzias de aparelhos electrónicos. Estava a chegar o
momento em que abririam as portas de saída e em que, depois de inspeccionado o cartão
de embarque, seríamos conduzidos num autocarro até ao avião. E eu pensava que ia
regressar ao mundo do fim do mundo depois de vinte e quatro anos de ausência.

Era então muito novo, quase um garoto, e sonhava com as aventuras que me haveriam de
oferecer as bases de uma vida distante do tédio e do enfado. Não estava sozinho nos meus
sonhos. Tinha um tio: assim mesmo, com maiúsculas. Era o meu tio Pepe, que herdara
mais o carácter indómito da minha avó basca que o pessimismo do meu avô andaluz. O
meu tio Pepe. Voluntário das brigadas internacionais durante a guerra civil espanhola. Uma
fotografia ao lado de Ernest Hemingway era o único património de que se orgulhava, e
repetia-me constantemente a necessidade de cada um descobrir o seu caminho e pôr-se a
andar. Nem vale a pena dizer que o tio Pepe era a ovelha negríssima da família e que,
quanto mais eu crescia, mais clandestinos se tornavam os nossos encontros. Foi dele que
recebi os primeiros livros, os que me aproximavam de escritores que nunca mais
esquecerei: Júlio Verne, Emílio Salgari, Jack London. Foi dele também que recebi uma
história que me marcou a vida: Moby Dick, de Herman Melville.

Tinha catorze anos quando li esse livro, e dezasseis quando já não consegui resistir mais ao
apelo do sul. No Chile as férias de Verão vão de meados de Dezembro a meados de Março.
Soube por outras leituras que nos confins continentais pré-antárcticos fundeavam várias
pequenas frotas de barcos baleeiros, e ansiava por conhecer esses homens que imaginava
herdeiros do capitão Achab.

Só graças à ajuda do meu tio Pepe foi possível convencer os meus pais da necessidade
dessa viagem, e foi ele, além disso, que me financiou a passagem até Puerto Montt.

Os primeiros mil e tal quilómetros do encontro com o mundo do fim do mundo, fi-los de
comboio, até Puerto Montt. Ali, diante do mar, acabavam de repente as linhas do caminho-
de-ferro. Depois, o país divide-se em milhares de ilhas, ilhotas, canais, braços de mar, até às
proximidades do pólo sul e, na parte continental, as cordilheiras, os montes de neve
acumulada (ventisqueros), os bosques impenetráveis, os gelos eternos, as lagoas, os fiordes
e os rios caprichosos impedem o traçado de caminhos ou de linhas férreas.

Em Puerto Montt, graças aos bons ofícios do meu tio benfeitor, aceitaram-me como
tripulante de um barco que ligava essa cidade com Punta Arenas, no extremo sul da
Patagónia, e com Ushuaia, a mais austral do mundo na Terra do Fogo, trazendo e levando
mercadorias e passageiros.

O capitão do “Estrella del Sur” chamava-se Miroslav Brandovic, e era um descendente de


emigrantes jugoslavos que conheceu o meu tio durante as suas incursões em Espanha e
depois com os maquis franceses. Aceitou-me a bordo como ajudante de cozinha, e logo
depois da largada recebi uma faca afiada e ordem para descascar um saco de batatas.

A viagem durava uma semana. Tínhamos que navegar umas mil milhas até chegar a Punta
Arenas, e o barco parava em várias enseadas ou portos de pouca profundidade na ilha
grande de Chiloé, carregava sacos de batatas ou de cebolas, réstias de alhos, fardos de
ponchos grosseiros de lã virgem, para continuar a sua navegação pelas sempre animadas
águas do corcovado, antes de enfiar pela entrada norte do canal de Moraleda e avançar por
trás do grande fiorde de Aysén, único caminho para a aprazível quietação de Puerto
Chacabuco. Nesse local protegido por cordilheiras atracava por umas horas, apenas as
necessárias para aproveitar a fundura concedida pela maré-cheia, e, terminadas as fainas de
carregamento, quase sempre de carne, iniciava a navegação de regresso ao mar aberto.

Rumo oeste-noroeste até sair do grande fiorde e chegar ao canal de Moraleda. Então, com
rumo norte, afastava-se das gélidas águas de São Rafael, do ventisquero flutuante, das
infortunadas embarcações apanhadas entre os seus tentáculos de gelo, muitas vezes com
toda a tripulação.

Várias milhas mais a norte, o “Estrella del Sur” torcia rumo a oeste e, atravessando o
arquipélago das Guaitecas, chegava ao mar aberto para continuar de proa apontada ao sul
quase em linha recta.
Acho que descasquei toneladas de batatas. Acordava às cinco da manhã para ajudar o
padeiro. Servia as mesas da tripulação. Descascava batatas. Lavava pratos, panelas e
penicos. Mais batatas. Tirava a gordura à carne dos bifes. Mais batatas. Picava cebolas para
as empadas. Regresso às batatas. E as pausas que os marinheiros aproveitavam para roncar
tranquilamente, destinava-as eu a aprender tudo o que podia da vida de bordo.

Ao sexto dia de navegação tinha as mãos cheias de calos e sentia-me orgulhoso. Nesse dia,
depois de servir o pequeno-almoço, fui chamado pelo capitão Brandovic à ponte de
comando.

- Que idade dizes tu que tens, grumete?

- Dezasseis. Bem, não tardo a fazer dezassete, capitão.

- Está bem, grumete. Sabes o que é aquilo a brilhar a bombordo?

- Um farol, capitão.

- Não é um farol qualquer. É o farol Pacheco. Estamos a navegar em frente do grupo


“Evangelista” e preparamo-nos para entrar no estreito de Magalhães. Já tens qualquer coisa
para contar aos teus netos, grumete. Um quarto a bombordo e a meia força! - ordenou o
capitão Brandovic, esquecendo-se da minha presença.

Tinha dezasseis anos e sentia-me feliz. Desci à cozinha para continuar a descascar batatas,
mas deparei com uma agradável surpresa: o cozinheiro alterara a ementa e portanto não
precisava de mim.

Passei o dia inteiro na coberta. Apesar de estarmos em pleno Verão, o vento do pacífico
penetrava até aos ossos, e, bem enroupado com um poncho de índio chilote, vi passar os
grupos de ilhas na nossa navegação rumo este-sudeste.

Conhecia minuciosamente aqueles nomes que sugeriam aventuras: ilha Condor, ilha
Parker, maldição de Drake, porto Misericordia, ilha Desolação, ilha Providência, Penhasco
do Enforcado...

Ao meio-dia, o comandante e os oficiais mandaram que lhes servissem o almoço na ponte


de comando. Comeram de pé, sem deixar de olhar sequer por um momento para a carta
marítima, para os instrumentos, e dialogando com a casa das máquinas numa linguagem
cifrada que só eles compreendiam.

Estava a servir o café quando o capitão me fitou outra vez:

- Que diabo estavas tu a fazer, a gelar na coberta, grumete? Queres apanhar uma
pneumonia?

- Estava a olhar para o estreito, capitão.

- Fica aqui que o vês melhor. Começa agora a parte lixada da viagem, grumete. Vamos
seguir pelo estreito no melhor sentido da palavra. Olha. A bombordo temos a costa da
península de Córdoba. É bordada de recifes aguçados como dentes de tubarão. E a
estibordo o panorama não é muito melhor. Temos ali a costa sudeste da ilha Desolação.
Recifes mortais e, como se isso não bastasse, daqui a poucas milhas topamos as correntes
do canal Abra, que traz toda a força do mar aberto. Esse maldito canal

Esteve quase a terminar com a sorte de Fernão de Magalhães. Podes ficar aqui, grumete,
mas em boca fechada não entram moscas. Não a abras enquanto não vires o farol de Ulloa.

O “Estrella del Sur” navegava à mínima força das suas máquinas, e eram umas sete da
tarde quando vimos os feixes prateados do farol de Ulloa a cintilar no horizonte a
bombordo. Ali alarga-se o estreito de Magalhães. A navegação tornou-se mais rápida e os
homens menos tensos.

Às onze da noite, os jorros de luz do farol do cabo Froward inundaram o barco com uma
carícia de boas-vindas, o capitão Brandovic deu ordem para se aproar a norte e o
cozinheiro chamou-me para servir a tripulação faminta.

Depois de esfregar pratos e panelas, subi à coberta. O céu diáfano via-se tão baixo que
apetecia estender um braço para tocar nas estrelas. E as luzes da cidade adivinhavam-se
também muito próximas.

Punta Arenas ergue-se na costa oeste da península de Brunswick. Nesse local, o estreito
de Magalhães tem umas vinte milhas de largura. Do outro lado começa a Terra do Fogo e,
um pouco mais a sul, as águas da baía inútil formam no estreito uma laguna com umas
setenta milhas de largura.

A viagem de ida terminou no dia seguinte. Servi o último pequeno-almoço, e o capitão


Brandovic despediu-se de mim recordando-me a data do regresso, daí a seis semanas.
Ofereceu-me a sua mão forte de marinheiro e um sobrescrito com que eu não contava.
Tinha lá dentro várias notas. Era uma fortuna para um rapaz de dezasseis anos.

- Muito obrigado, capitão.

- Não tens nada que agradecer, grumete. o cozinheiro garante que nunca teve melhor
ajudante a bordo.

Estava em Punta Arenas, tinha as mãos calejadas e, no bolso, o primeiro dinheiro ganho a
trabalhar. Depois de vaguear umas horas pela cidade procurei a casa dos Brito, também
conhecidos do meu tio Pepe, que me receberam de braços abertos.

Os Brito eram um casal sem filhos e conheciam a zona como a palma das mãos. A mulher,
Elena, dava aulas de inglês num liceu, e o marido, Don Félix, combinava as suas actividades
de locutor da rádio com investigações de biologia marítima. Ao saber do meu interesse
pelos baleeiros, Don Félix sentiu que isso lhe dizia respeito, e convidou-me imediatamente
a ver fotografias e alguns quadros pintados pelo avô, um marinheiro bretão que chegou
muito novo à Terra do Fogo e nunca mais a quis deixar.

A casa dos Brito, como a maioria das construções austrais, era de madeira. a sala espaçosa
estava apetrechada com uma chaminé de pedra que acendíamos à tarde, e o ambiente
acolhedor convidava ao silêncio, à escuta do murmúrio do ma ali perto. Assim passei os
primeiros quatro dias em frente da terra do fogo. De manhã, pegávamos no land rover e
seguíamos pela estrada que liga Punta Arenas a Fuerte Bulnes pelo sul, e ao entardecer
sentávamo-nos diante da chaminé. Então, Don Félix falava-me das baleias e dos baleeiros.

Contava histórias interessantes e sabia contar muito bem. Mas eu não queria ouvir; queria
viver.

Chegou o momento em que Don Félix percebeu que a minha cabeça estava muito longe
daquele agradável lugar. Então, fechando o álbum de fotografias, disse-me:

- Parece que estás mesmo mordido pelo bicho de embarcar num baleeiro. Contra isso não
se pode fazer nada. Pronto. A primeira coisa que tens a fazer é passar para o outro lado do
estreito, para Porvenir. Nesta época, os poucos barcos baleeiros que restam estão no mar,
mas sei que em Puerto Nuevo está fundeado um amigo meu com o seu barco em
reparações. É um homem difícil, mas se te aceitar, rapaz, terás então a tua sonhada
aventura.

Na manhã seguinte atravessei o estreito a bordo de um lanchão atafulhado de botijas de


gás. Puerto Nuevo fica a uns cem quilómetros a sudeste de Porvenir, e pespeguei-me à
espera de um veículo na estrada que liga Porvenir a San Sebastián, povoado fronteiriço
com a parte argentina da Terra do Fogo. Tive sorte, porque meia hora depois parou um
jeep do ministério da agricultura. Viajavam nele uns veterinários que se mostraram
encantados por conhecer um rapaz que andava a vagabundear tão longe de Santiago. A
estrada de cascalho seguia paralela à costa norte da baía inútil, e por volta das três da tarde
deixaram-me em Puerto Nuevo. O lugarejo era formado por umas vinte casas alinhadas na
rua que terminava no mar. Tinha de procurar um barco, e o respectivo patrão, Antonio
Garaicochea, mais conhecido por o basco. No molhe de atracação fui encontrar várias
embarcações de pequeno calado, mas o ““Evangelista”” não se via em lado nenhum. Com
receio de que tivesse partido, aproximei-me de um grupo de homens que calafetavam um
barco.

- Quem diz você que procura, garoto?

- Don Antonio Garaicochea. O patrão do “Evangelista”. Disseram-me que estava com o


barco em reparações.

- Ah, o basco. Saíram a dar uma volta de experiência. Não tarda e estão de volta - disse
um dos homens. E todos recomeçaram a calafetar.

Não quis ficar no molhe porque me incomodavam os olhares divertidos dos homens, e
também porque sentia fome. Fui caminhando por entre a dupla fila de casas de madeira à
procura de uma tenda. Não tardou que, ao passar diante de uma porta aberta, me detivesse
um irresistível aroma de cebolas fritas. Ergui a cabeça e vi o letreiro pintado numa tábua:
“Pension Fueguina”. O aroma acabou por me empurrar, e era a primeira vez que entrava
sozinho num restaurante.

O local estava vazio. Não havia nenhum freguês nas mesas que, arrumadas em duas filas,
terminavam num escaparate enfeitado com lamparinas de azeite e flores artificiais. Sentei-
me a uma das mesas e esperei que me atendessem.

Surgiu do fundo do estabelecimento uma mulher que se aproximou de mim com uma
expressão de espanto.

- Que deseja, rapazinho?

- Qualquer coisa que se coma. Estou só com o pequeno-almoço.

- Se quiser faço-lhe um pãozinho com queijinho.

- Não podia ser qualquer coisa quente? Vem um cheirinho tão bom da cozinha... eu posso
pagar, senhora. Com isso não se preocupe.

- É que não posso atender menores. Se chegam os carabineiros aplicam-me uma multa
enorme.

Pus-me de pé de má vontade. Ser menor, às vezes, era uma espécie de maldição. Devo ter
mostrado uma cara tal que comovi a mulher, que me chamou antes de eu chegar à porta.

- Espere aí, rapazinho. Vou servir-lhe um bocadito de borreguinho com cebolinhas e


batatinhas.

Aconteceu que o bocadito foi meia perna de borrego assada, e eu comi vorazmente,
gozando a aventura. Pensava nos meus amigos de Santiago e nas suas aborrecidas férias de
Verão, sempre iguais, sempre a mesma coisa: um mês nas praias de Cartagena ou
Valparaíso, passeios à tarde e muito creme para aliviar as queimaduras. Ao passo que eu,
quando regressasse, teria muito que contar. Ainda não completara duas semanas de viagem
e já tinha experiência de marinheiro, calos nas mãos, atravessara o estreito de Magalhães,
ganhara dinheiro e estava perto do fim do mundo a devorar meia perna de borrego. Uma
voz grave arrancou-me aos meus felizes pensamentos. Pertencia a um dos dois carabineiros
que se aproximavam com passos

Bamboleantes, característicos dos que acabam de descer de um cavalo.

- Que está você a fazer aqui, rapaz? - perguntou o mais graduado.

Engoli rapidamente, antes de responder.

- Estou à espera de Don Antonio Garaicochea. Venho de Punta Arenas com um recado
para ele. Disseram-me no molhe que saiu para experimentar o barco, e como senti fome
entrei aqui para comer...

- Você não é cá destes sítios, amiguinho. Fala de mais. Por acaso não terá fugido de casa?
Donde é você?
- De Santiago.

A minha resposta sobressaltou o carabineiro que fazia as perguntas.

- Vamos a ver, tem bilhete de identidade?

Tinha, e novinho. Entreguei-o juntamente com a plastificada autorização notarial assinada


pelos meus pais. O carabineiro leu a mexer os lábios.

Depois das formalidades de nomes e domicílios, a autorização dizia: "e na nossa qualidade
de pais legítimos e responsáveis legais do portador, declaramos que viaja pelo sul do
território nacional com nossa autorização e consentimento. Esta autorização caduca a 10 de
Março de..."

- Que tipo vagabundo. Que lhe parece, nosso cabo? Aqui o amigo é santiaguense. Lindo.
Fico contente de saber que ainda há Chilenos que querem conhecer o seu país. Que tal está
o borreguinho? - perguntou o carabineiro amistosamente, ao mesmo tempo que me
devolvia os documentos.

- Óptimo - consegui eu responder, e nesse preciso momento entraram dois homens no


estabelecimento. Eram dois indivíduos altíssimos, e ainda por cima espadaúdos. Dois
autênticos roupeiros de três corpos, como dizem os santiaguenses.

- Falai no mau - cumprimentou um carabineiro.

- Basco, aqui o amiguinho diz que anda à sua procura.

O interpelado tirou a boina, grande como uma sertã, e olhou para mim lentamente, de
alto a baixo. Depois olhou para o que o acompanhava e encolheu os ombros.

- Aqui estamos - murmurou o basco, e com um dedo indicador chamou-me para ao pé de


si.

Não gostei nada do primeiro contacto e pensei que ia ser difícil falar-lhe do que queria
com os carabineiros ali em cima de nós. Por sorte, os homens da farda deram por
terminada a sua missão e saíram do estabelecimento em direcção às montadas.

- Sente-se. Ora diga lá, amigo.

- Esti... eu venho de Santiago... mas passei antes por Punta Arenas. Don Félix Brito
manda-lhe muitas recomendações.

- Ora pois. Agradecido. Não quer tomar nada?

- Obrigado. Uma limo... - não consegui acabar a palavra porque o companheiro do basco
gritou para a cozinha:

- Senhora Emília! Um litro de chicha da fortalhaça cá pra nós e um copinho da docinha


aqui pró amiguinho!
Os diminutivos tão usados no sul do Chile soavam verdadeiramente diminutos na boca
daquele homem enorme.

A mulher chegou com o pedido e tive outra inolvidável estreia nesta viagem. Provei o
sumo dulcíssimo das maçãs do fogo, frutos pequenos, de pele dura para proteger a branca
polpa das mordidelas cruéis dos ventos polares. Macieiras plantadas por emigrantes sabe-se
lá donde, com frutos feios, com a sua coloração de café deslavado, mas de sabor
inigualável.

- Saudinha - disse o companheiro erguendo o seu copo.

Chamava-se Don Pancho Armendia e era sócio, compadre, imediato de bordo, arpoeiro e
o melhor amigo do basco.

Os homens começaram a dar conta de duas meias pernas de borrego, e eu sentia-me


pouco à vontade com o copo na mão, bebendo a pequenos goles o sumo de maçã.

- Com que então é Don Félix que mo manda. Ora pois. E que deseja, amiguinho?

Esta é que era a pergunta. Já antes de sair de Santiago tinha preparado o discurso que
pensava largar ao primeiro baleeiro que encontrasse, mas, ali sentado, diante dos dois
homens que comiam em silêncio, não atinava com as palavras.

- Que me levem convosco. Por um tempo curto. Só numa viagem.

O basco e Don Pancho olharam um para o outro.

- O que nós fazemos não é uma brincadeira, amiguinho. É trabalho duro. E às vezes mais
que duro.

- Eu sei. Tenho experiência do mar. Bem. Muita, não.

- E quantos anos tem, se se pode saber?

- Dezasseis. Mas vou para os dezassete.

- Ora pois. E não anda na escola?

- Ando. Estou aqui a aproveitar as férias de Verão.

- Ora pois. E donde é que tem experiência?

- Naveguei no “Estrella del Sur”. Bem. Fiz a viagem como ajudante de cozinha entre
Puerto Montt e Punta Arenas.

- Ora pois. Então conhece o polaco.

- O capitão Brandovic? Acho que o apelido é jugoslavo.


- Por cá dizemos que são polacos todos os que têm nomes terminados em «ki» ou em
«ich» - informou-me Don Pancho.

A conversa, se é que se lhe pode chamar assim, continuou num tom que me pareceu
enfastiado e sem futuro. Via esfumarem-se as minhas aspirações, enquanto os dois homens
comiam e formulavam uma nova pergunta de vez em quando. Comecei a odiar os «ora
pois» que Don Antonio Garaicochea soltava como ineludível bordão. Nisto entrou um
grupo de homens no estabelecimento. Eram os mesmos que antes vira entregues à tarefa
de calafetagem, e com as suas vozes amistosas começaram a disputar-me a atenção do
basco e de Don Pancho.

- E que sabe você fazer, amiguinho?

Essa era outra senhora pergunta. a verdade é que eu não sabia fazer grande coisa.

- Sei cozinhar. Bem. Um pouco.

- Ora pois. Então sabe cozinhar.

O basco não acreditava em mim, e eu implorava que não me pedisse os pormenores da


preparação de um prato qualquer. Don Pancho limpou o osso de borrego com a ponta da
faca e fez-me a pergunta salvadora, à qual, porém, me custou a responder.

- E por que é que quer embarcar num barco baleeiro, amiguinho?

- Porque... porque... a verdade é que li um romance. Moby Dick. Conhecem?

- Eu não. E parece-me que o basco também não. Nós por cá não somos muito lidos. E de
que é que trata esse romance?

Em Santiago, entre os meus amigos, eu tinha fama de ser um bom contador de filmes.
Eram cinco da tarde quando comecei a contar, a princípio timidamente, a epopeia do
capitão Achab.

Os dois homens escutavam-me em silêncio, e não só eles: nas outras mesas


interromperam-se as conversas e a pouco e pouco os fregueses aproximaram-se da nossa.
Contava e lutava com a minha memória. Não podia desmerecer. Os homens perceberam
que estava a concentrar-me no que lhes dizia respeito e, sem ruído, renovaram-me várias
vezes o copo de chicha de maçã. Falei durante duas horas. Herman Melville terá perdoado
se aquela versão do seu romance teve algo da minha própria lavra, mas, quando terminei,
todos os homens mostravam semblantes pensativos e, depois de me darem umas palmadas
nos ombros, regressaram às suas mesas.

- Moby Dick. Ora pois - suspirou o basco.

Pediram a conta. Pagaram. Tive a amarga certeza de que a minha aventura parava ali.

- Bem. Vamos - disse Don Pancho.

- Eu também? Levam-me?
- Claro, amiguinho. É preciso aproveitar a luz para passar revista aos aparelhos. Largamos
amanhã cedo.

O “Evangelista” pareceu-me um barco pequeno e não entendi como é que arranjavam


maneira de puxar as baleias para bordo. Enquanto o basco e Don Pancho tratavam dos
arpões, de olear a base do pequeno canhão da proa, de verificar o carregamento de batatas,
carne seca, combustível e sal, de passar revista às roldanas e aos cabos que seguravam dois
botes pelo lado de estibordo e mais um na popa, aproveitei para percorrer os seus quinze
metros de comprido, aprendendo como a ordem é importante entre a gente do mar.
Debaixo da coberta guardavam-se barris e muitos utensílios desconhecidos para mim. na
parte da proa havia cinco beliches e um tubo para comunicação com a ponte de comando.
Naquela noite dormi na cabana que o basco e Don Pancho partilhavam. Antes de irmos
para a cama explicaram-me que viviam a maior parte do ano em Porvenir, com as famílias,
e que era o domicílio do porto.

- Don Pancho, conte aqui ao amiguinho para onde é que vamos.

Don Pancho estendeu uma carta marítima em cima da mesa e o seu dedo começou a
navegar.

- Agora estamos aqui, em Puerto Nuevo, e largaremos com rumo oeste até chegarmos a
Paso Boquerón. Entraremos por lá no estreito de Magalhães e navegaremos proa ao sul até
às proximidades do cabo Froward. Até aí são umas cento e trinta milhas tranquilas.
Quando avistarmos o cabo Froward saímos do estreito, que continua na direcção oeste-
noroeste. Seguiremos rumo ao sul, e ao chegarmos em frente às costas das ilhas Dawson e
Aracena, tomamos a entrada norte do canal Cockburn. Trinta milhas mais para sul, diante
da península de Rolando, faremos uma curva de quarenta milhas com rumo oeste-noroeste,
para alcançar o mar aberto em frente da ilha Fúria. Depois faremos outra curva rodeando
as ilhas Camden com rumo sudeste, até chegarmos à baía Stewart, de frente para as ilhas
Gilbert. São outras trinta milhas e, segundo a rádio, espera-nos mar encrespado. Vinte
milhas mais para leste começa o canal baleeiro. Aí, na costa norte da ilha Londonderry,
temos a fábrica. Algumas milhas mais para leste abre-se o canal Beagle, e na baía Cook
estarão as baleias à nossa espera. Agora, toca a descansar, amiguinho. Boas-noites.

Zarpámos com as primeiras luzes da alvorada. A tripulação do “Evangelista” era


composta, para além do basco e de Don Pancho, por dois marinheiros índios chilotes de
muito poucas palavras e por um argentino que desempenhava as funções de electricista e
de cozinheiro. O argentino negou-se rotundamente a admitir-me entre os seus tachos, o
que foi para mim um alívio, pois não queria passar todo o tempo debaixo da coberta, mas
também me sentia incomodado por não ter nada que fazer. Por sorte, Don Pancho
nomeou-me «rádio-escuta», e a minha missão consistia em permanecer na ponte de ouvido
colado ao rádio, atento à informação meteorológica.
Os dois chilotes eram baixinhos mas muito fortes de compleição e, como o basco me
explicara, não havia melhores remadores em todos os mares antárcticos. Navegámos de
acordo com o que Don Pancho descrevera. Ao anoitecer entrámos no canal Cockburn com
as máquinas a um quarto de força. O basco permaneceu toda a noite ao leme e só o
abandonou quando, ao amanhecer, saímos para o mar aberto. Tive então outra estreia
inolvidável. Em frente das ilhas Camden aproximou-se um grupo de golfinhos dando saltos
prodigiosos. Quase roçavam pelo barco, e os marinheiros chilotes riam como meninos
felizes. A brincadeira prolongou-se durante horas. Os golfinhos respondiam aos gritos e
assobios com saltos maiores e escoltaram o “Evangelista” até à entrada da baía Stewart.

Navegámos algumas horas pelas quietas águas do canal baleeiro, e o basco decidiu parar
as máquinas em frente de uma das enseadas da ilha Londonderry. Os chilotes deitaram dois
botes à água, carregaram-nos com os barris que eu já vira debaixo da coberta e prepararam-
se para os transportar para a construção de madeira que dominava a enseada. Era a fábrica,
e avistámo-la rodeada de figuras que à primeira vista pareciam troncos petrificados.

O basco convidou-me a ir a terra, e descobri que aqueles troncos eram as ossadas de


centenas de baleias esquartejadas na praia de pedras e conchinhas.

- Está impressionado, amiguinho? De certeza que esta parte não aparece nos romances. É
este o destino final das baleias.

Primeiro arpoamo-las com o canhão para as termos seguras, acabamos de as matar com os
arpões de mão, e depois trazemo-las para a fábrica, onde entram em acção as facas. Tudo o
que é aproveitável é salgado e vai para os barris. O resto é alimento para as gaivotas e para
os corvos marinhos.

Quer percorrer a ilha vá, mas não para muito longe. Um pouco mais para sul encontrará
colónias de focas e de elefantes-do-mar.

Não tive que andar muito para chegar até junto dos animais. Várias centenas de focas,
elefantes-do-mar, pinguins e corvos marinhos ocupavam a fortaleza de rochedos que
bordejava o mar. Mal me farejaram ergueram as cabeças, e os bigodes das focas agitavam-
se, tentando porventura decifrar as minhas intenções.

Senti que me observavam atentamente com os seus olhos pequenos e escuros, mas depois
decidiram que eu era inofensivo e tornaram à sua eterna actividade de vigias do horizonte.

Passada uma hora, deixámos a fábrica e o “Evangelista” aproou a oeste, rumo à entrada
do canal Beagle. A estibordo tínhamos a ilha O'brian e a bombordo Londonderry,. Feitas
as primeiras duas milhas, a passagem fechou-se como um funil, e o basco manobrava o
leme com toques delicados, esticando o corpo para não perder nem um milímetro daquele
horizonte mínimo. Foi uma navegação tensa, até que um suspiro de alívio lhe escapou dos
lábios ao avistar a costa da ilha Darwin. Quatro horas demorou o “Evangelista” a fazer sete
milhas de pesadelo. Don Pancho tomou o leme e aproou a sul. Aproximávamo-nos da baía
Cook e das baleias.
Don Pancho explicou-me que, a escassas trinta milhas mais a sul, em frente das ilhas
Christmas, costumavam acasalar baleias, mas que essas águas eram perigosíssimas por causa
das correntes e dos traiçoeiros blocos de gelo. Contou-me casos de alguns barcos infelizes
que foram apanhados pelas correntes e que esgotaram o combustível ao tentar sair delas.
Acabaram por ficar à deriva e por ser arrastados para sudeste, para as ilhas Henderson e
para o falso cabo de Hornos, onde se finaram destruídos pelos recifes.

- E nem mesmo no Verão se pode nadar nessas águas. O corpo humano não suporta
cinco minutos sem sucumbir ao choque por resfriamento - concluiu Don Pancho.

As águas da baía Cook mostravam-se calmas. Erguia-se da superfície uma ténue bruma
que confundia os contornos das ilhas. A embarcação quase não baloiçava ao avançar e, a
uma ordem do basco, um dos chilotes trepou ao mastro. a sete metros de altura, atou-se a
ele pela cinta e não passou muito tempo até que ouvimos o seu alerta: - soprando a
estibordo, a um quarto de milha!

Don Pancho correu para o pequeno canhão da proa e meteu-lhe o arpão pela boca.
Depois cortou as amarras que seguravam o rolo de corda, que tinha uma das pontas atada a
uma argola do arpão e a outra à base do canhão, e firmou-se de pernas bem separadas à
espera do momento de disparar.

Aproximei-me do basco, que esquadrinhava o mar com movimentos felinos.

- Cá está, amiguinho! É uma calderón!

A primeira coisa que vi foi a nuvem de água pulverizada da respiração dela, e depois a
monumental cauda do animal a esconder-se.

- Don Pancho! Tem-na entre os olhos?

Don Pancho levantou uma das mãos em sinal de assentimento.

Passaram uns minutos e a baleia emergiu muito perto de nós. Mostrou o corpo todo.
Media uns bons oito metros e, quando a viu, o basco deu uma palmada no leme.

- Pouca sorte. É uma fêmea. E, ainda para mais, prenha.

À proa, Don Pancho retirava o detonador do canhão e, depois de segurar o rolo de corda,
juntou-se a nós no castelo. Eu não percebia como é que eles tinham conseguido ver o sexo
do cetáceo e a sua prenhez.

- Vê-se pela forma de emergir: lenta e com o corpo quase horizontal ao tocar a superfície
- indicou o basco.

- E não se caçam as fêmeas?

- Não. Isso é proibido. Ninguém mata a galinha dos ovos de ouro - disse Don Pancho.
Naquele dia não vimos mais baleias na baía Cook.
Ao anoitecer, o “Evangelista” lançou âncora num golfo da península de Cloue, e o
argentino assou um borrego no grelhador instalado na popa. Os corvos marinhos e as
gaivotas amararam junto do barco para recolherem as sobras mais que generosas.

Também não vimos baleias nos três dias seguintes. O basco dava sinais de mau humor
quando media o combustível, mas tinha de manter sempre as máquinas a trabalhar. Ao
quarto dia, um dos chilotes anunciou baleia do alto do mastro.

Desta vez o basco apanhou uma presa: um cachalote.

Don Pancho arpoou o animal, que levou rapidamente consigo os cem metros de corda.
Quando o rolo acabou, a travagem do animal em fuga provocou um esticão que fez
baloiçar o barco. Isto repetiu-se várias vezes. O cachalote aproximava-se da embarcação
para logo se afastar a grande velocidade. Talvez já tivesse sido arpoado outras vezes,
porque sabia que da rapidez dependia a possibilidade de se libertar do arpão, mas o basco
seguia-o pondo o barco à mesma velocidade do animal, mantendo uma distância regular
entre o caçador e a presa, impedindo o bicho de esticar a corda que os unia, até que notou
que as suas manobras evasivas se tornavam cada vez mais fracas. Então, extenuado, veio à
superfície e os chilotes lançaram um dos botes à água. Não me deixaram ir com eles, mas,
debruçado na amurada, pude ver a parte mais dura da caça.

Os chilotes pegaram nos remos curtos mas de pá larga e o basco amarrou os tornozelos a
uma argola fixa na proa do bote. Vi-os remar velozmente na direcção do animal. O basco,
de pé, segurando nas mãos o arpão de matar. Remaram até se colocarem de um dos lados
do cachalote, e foi então que o basco lhe enfiou o arpão na pele escura.

O cachalote começou a dar violentos sacões. Açoitava a água com furiosas e rasas
pancadas com a cauda, que, se lhe acertassem, destruiriam o bote, enquanto os chilotes
demonstravam a sua habilidade de remadores esquivando os golpes, mas sem se afastarem,
e o basco brandia um segundo arpão que não precisou de utilizar. Dir-me-ia mais tarde que
o atingira justamente nos pulmões.

Com o cachalote atado ao estrado, uma plataforma estendida a bombordo e paralela à


linha de flutuação, empreendemos o regresso à fábrica. Don Pancho comentou que não lhe
estavam a agradar os ruídos das máquinas, e além disso a previsão meteorológica não era
muito optimista. De novo fizemos a perigosa travessia entre as ilhas O'brian e
Londonderry e ao entardecer ancorámos diante da fábrica.

Na manhã seguinte, dois botes rebocaram o animal até à praia, e aí os chilotes abriram-no
com facas semelhantes a bastões de jockey. O sangue banhou as pedras e conchinhas,
formando escuros rios que avermelharam a água. Os cinco homens vestiam roupagens de
oleado preto e estavam ensanguentados dos pés à cabeça. As gaivotas, os corvos marinhos
e outras aves marinhas sobrevoavam enlouquecidas pelo cheiro a sangue, e várias pagaram
o atrevimento de se aproximar de mais recebendo uma facada que as cortou em duas em
pleno voo.
Foi uma tarefa rápida. Uma parte do cachalote acabou salgada e metida nos barris, mas o
grosso do animal ficou estendido na praia, com restos de carne agarrada aos ossos que não
tardariam a juntar-se ao panorama fantasmático da ilha Londonderry.

As máquinas do “Evangelista” estavam realmente danificadas. A viagem de regresso a


Puerto Nuevo levou-nos três dias, e fizemo-los no meio de uma chuvada que não parou até
entrarmos nas águas da baía inútil.

Fundeámos. Descarregámos os barris e alguns aparelhos. E depois de nos despedirmos


do argentino e dos chilotes fomos comer à Pensão Fueguina.

Borrego assado e chicha de maçãs.

- Pouca sorte, amiguinho - disse o basco.

- Um cachalote. Mal tirámos para os gastos - foi a queixa de Don Pancho.

- E você, amiguinho, que diz?

- Não sei, Don Antonio.

- Ora pois. Gostou da viagem?

- Sim, sim. Gostei da viagem, do barco. Gosto dos senhores, dos chilotes, do argentino.
Gosto do mar, mas acho que não serei baleeiro. Desculpem-me se os desiludo, mas é esta a
verdade.

- Ora pois. Não é como no romance?

Quis acrescentar qualquer coisa, mas o basco pegou-me no braço e olhou para mim cheio
de ternura.

- Sabe, amiguinho, ainda bem que não gostou da caça. Cada vez há menos baleias. Talvez
sejamos os últimos baleeiros destas águas, e está bem assim. É altura de as deixarmos em
paz. O meu bisavô, o meu avô, o meu pai, todos foram baleeiros. Se eu tivesse um filho
como você, aconselhava-o a seguir outro rumo.

Na manhã seguinte acompanharam-me até à estrada e meteram-me no camião de um


conhecido que ia para Porvenir.

Abracei-os com a ternura desesperada de saber que talvez nunca mais tornasse a vê-los.

O mundo do fim do mundo.

Toca-me uma mão ao de leve e descubro que estou ainda em Hamburgo: é uma
empregada da companhia aérea a pedir-me com toda a amabilidade o cartão de embarque.
Segunda parte

A única escala europeia, Londres, durou cerca de três quartos de hora, e depois o avião
alcançou a altitude de cruzeiro sobre o atlântico. Eram seis e trinta da manhã de 20 de
Junho de 1988. O céu apresentava-se sem nuvens, e aquele sol que iríamos acompanhar na
sua deslocação obrigava a baixar as persianas.

Já assinalei que esta viagem foi muitas vezes anunciada e sempre esbarrou em motivos que
a adiaram. E, contudo, naquele momento estava a bordo de um avião que me levava para o
Chile, depois de uma decisão tomada bastante rapidamente. De pernas estendidas e com as
costas da cadeira reclinadas, dispus-me a reconstituir os motivos que me haviam levado a
dizer sim, vou apenas quatro dias antes.

Tudo começara a 16 de Junho, pouco antes do meio-dia. Estava com os meus três sócios
no escritório, mas antes de continuar vou dizer quem são os meus sócios e que escritório é
este.

Eles são uma holandesa e dois alemães, jornalistas independentes, como eu, que um dia se
cansaram de escrever para a imprensa séria, apenas interessada nos temas respeitantes ao
meio ambiente quando estes adquirem visos de escândalo. Conhecemo-nos num encontro
feliz, conversámos e descobrimos que partilhávamos o mesmo cansaço e tínhamos muitos
pontos de vista comuns. Dessa conversa nasceu a ideia de criar uma agência de notícias
alternativa, fundamentalmente preocupada com os problemas que afligem o ambiente
ecológico e em responder às mentiras utilizadas pelas nações ricas para justificar o saque
dos países pobres. Saque não apenas das suas matérias-primas, mas do seu futuro. Talvez
seja difícil entender este último saque, mas vejamos: quando uma nação rica instala uma
lixeira de resíduos químicos ou nucleares num país pobre, está a saquear o futuro dessa
comunidade humana, pois, se os resíduos são, como dizem, inofensivos, porque não
instalam as lixeiras nos seus próprios territórios?

O escritório é uma sala de setenta metros quadrados que alugámos num local que outrora
foi uma fábrica de parafusos. Temos lá quatro secretárias, um computador em segunda
mão ligado a um banco de dados com informação relativa ao meio ambiente e um fax que
nos põe em contacto com outras agências alternativas da Holanda, Espanha e França, e
com várias organizações ecologistas como Greenpeace, Comunidad ou Robin Wood.

O computador é às vezes um quinto sócio, e costumamos chamar-lhe “brometo”, em


homenagem ao informador do detective Pepe Carvalho (1).

Naquela manhã estávamos a analisar a informação referente a um plano do ministério da


indústria britânico, destinado a justificar e continuar a queima de resíduos tóxicos em frente
do golfo da biscaia.
Nisto, o fax começou a soltar uma mensagem oriunda do Chile, e assim começou a minha
viagem.

*1 Personagem dos romances de Manuel Vázquez Montalbán. (n.do t.)

Puerto Montt. Junho 15/1988. 17.45.

Auxiliado por rebocadores da armada chilena, arribou a este porto austral o barco-fábrica
“Nishin Maru” com bandeira japonesa. O capitão Toshiro Tanifuji relatou a perda de
dezoito tripulantes em águas magalhânicas.

Um número indeterminado de tripulantes feridos estão a ser tratados no hospital da


armada.

As autoridades Chilenas decretaram censura à informação a respeito do assunto. É urgente


comunicar com organizações ecologistas.

Fim.

A mensagem era assinada por Sarita Díaz, uma rapariga chilena que passara por Hamburgo,
soubera do nosso trabalho e se oferecera como correspondente na zona. E diga-se que é a
nossa única correspondente no mundo inteiro.

A primeira coisa que fizemos foi confiar ao computador os nomes do barco e do capitão
japonês. O “brometo” pestanejou o seu olho de ciclope e desculpou-se indicando que tais
informações lhe eram desconhecidas.

O passo seguinte consistiu em pôr o “brometo” em contacto com o banco de dados da


Greenpeace. Poucos minutos depois chegou-nos uma resposta misteriosa: “Nishin Maru”:
baleeiro-fábrica construído nos estaleiros de Bremen em 1974. Patente: Yokohama.
Arqueação: 23.000 toneladas. Comprimento: 86 metros. Boca: 28 metros. Cobertas: 4.
Tripulação: 117 pessoas, entre oficiais, médico, marinheiros, arpoeiros e pessoal de fábrica.
Capitão: Toshiro Tanifuji (autodenomina-se "o «depredador do pacífico sul»). Informação
de rumo: segundo dados da Greenpeace - Tóquio, navega desde princípios de Maio nas
proximidades da ilha Maurícia.

Fim da informação.

O “brometo” engolia e digeria os dados com rapidez. Um de nós disse qualquer coisa
acerca de navios-fantasmas, mas não pôde continuar porque o telefone o interrompeu.

Era a Arianne, a porta-voz para a imprensa da Greenpeace.


- Viva. Acabo de chegar ao escritório e soube daquilo do Chile. Temos de falar já. Meu
deus, acho que estamos perante um assunto dos gordos, gordíssimo. Vens?

A sede da Greenpeace não é longe do escritório. Anda-se um par de quarteirões ao longo


da margem do Elba e chega-se lá. A Arianne recebeu-me com um jarro de café e num feixe
de nervos.

- Meu deus, ele conseguiu. Não sei como, mas conseguiu. É terrível, terrível.

- Calma, Arianne, calma. Quem conseguiu o quê? E que diabo é que é tão terrível? Não te
importas de ir por partes?

- Desculpa. É que se trata de uma coisa incrível. Vou tentar contar-te com calma, passo a
passo, como quem conta um filme. Primeiro leio-te uma informação que temos mantido
em segredo enquanto planeamos acções de denúncia. Ouve: "Santiago, 2 de Maio de 1988.
O governo Chileno concedeu uma licença anual para caça de cinquenta baleias-azuis, com
fins científicos. O beneficiário da licença é conservado em segredo pelas autoridades
Chilenas». Que achas?

- Os japoneses, já se sabia, cumularam de presentes os generais chilenos. É óbvio que


hão-de estar à espera de uma retribuição.

- Claro, - continuou ela - logo que soubemos da licença para matar baleias-azuis, que viola
a moratória imposta em 1986 pela comissão baleeira internacional CBI, começámos a
processar dados com vista às acções de denúncia. A autorização concedida pelos chilenos
ainda não é conhecida nos seus pormenores; ignora-se a quem a deram e quando entra em
vigor. Enquanto reuníamos toda a informação possível, recebemos uma notícia que nos
garantiu que havia tempo. Preparei-te uma pasta com um relatório do biólogo marítimo
canadiano Farley Mowat, um dos que mais sabem de baleias. No dito relatório diz que
nesta altura é quase impossível uma deslocação de baleias-azuis para noroeste do círculo
polar antárctico. As previsões meteorológicas prognosticam uma chegada precoce do
inverno na Antárctida. Em meados de Junho o mar de Weddel estará impenetrável até para
os quebra-gelos, e só um ou outro animal atrasado ou doente se atreveria a avançar para as
ilhas Shetlands. Da informação de Mowat depreende-se que até Outubro próximo não
haverá baleias-azuis em águas sob jurisdição chilena. Quando soubemos isto ficámos
tranquilos, porque podíamos preparar melhor as acções, mas agora vem o que me põe
nervosa: no dia 28 de Maio passado recebemos uma misteriosa chamada telefónica do
Chile.

Um homem que se exprimiu em inglês de marinheiro, sabes o que eu quero dizer, curto e
preciso, surpreendeu-nos dizendo que no golfo de Corcovado, cento e cinquenta milhas
para sul de Puerto Montt, estava o “Nishin Maru” com tripulação completa. Também já
sabes que o “Nishin Maru” é um velho conhecido nosso...
3

O “Greenpeace” e o “Nishin Maru” conheceram-se em Dezembro de 1987, e entre eles


não se travou precisamente uma relação de amor. Nesse ano, os japoneses valeram-se de
curiosas ausências na hora da votação, num plenário da comissão baleeira internacional
CBI, e conseguiram de maneira surpreendente uma autorização para matar em águas
antárcticas trezentas baleias-anãs com fins científicos. a legislação internacional autoriza que
se matem apenas duas baleias desta espécie por ano, e com fins provadamente científicos.
Mas desde a moratória de 1986 nenhum consórcio baleeiro conseguiu demonstrar o
interesse científico da matança, nem sequer os resultados que se esperam dela. Logo que
obtiveram a autorização fraudulenta, os tripulantes do “Nishin Maru” aproaram à
Antárctida, e tudo parecia indicar que nada nem ninguém conseguiria impedir o extermínio
de animais em franco perigo de extinção. Para sorte de toda a gente, isto não era exacto,
visto que, mal o capitão Toshiro Tanifuji deu ordem para levantar ferro, as formigas do
movimento ecologista começaram a mobilizar-se, e assim, na manhã de 21 de Dezembro
de 1987, quatro velozes zodiacs sob a bandeira do Arco-Íris bloquearam a saída do cais
Mitsubishi, em Yokohama, com uma baleia insuflável em tamanho natural.

O capitão Tanifuji pensou que lhe seria fácil arremeter contra o cetáceo de oleado e seguir
o seu rumo, mas as zodiacs navegavam envolvendo o barco com os seus rápidos
movimentos de vespas aquáticas, tolhendo-lhe as manobras de largada e qualquer tentativa
de movimento, a não ser que o marinheiro nipónico se atrevesse a passar por cima das
embarcações.

Tratava-se de ganhar tempo. As zodiacs molestavam o colosso nipónico em Yokohama,


enquanto nas capitais europeias os activistas da Greenpeace conseguiam ser recebidos
pelos governantes e obtinham a revisão da autorização concedida.

A acção durou quase trinta horas. As zodiacs revezavam-se para se reabastecerem de


combustível e os tripulantes bebiam grogue à pressa. Às três da tarde de 22 de Dezembro
estava ganha a batalha pacificamente: a comissão baleeira internacional CBI anulava a
autorização e recomendava ao Japão que respeitasse a moratória de 1986.

Um bom amigo neozelandês, Bruce Adams, esteve lá e contou-me como, de mãos


inteiriçadas de frio, enfiou a zodiac até à amurada de estibordo do “Nishin Maru” e pediu
para falar com o capitão.

Toshiro Tanifuji debruçou-se.

- Perdeu a batalha, capitão. Queremos dizer-lhe que denunciaremos qualquer tentativa de


largar para a Antárctida como uma violação das leis internacionais de protecção marítima.
4

Tanifuji respondeu de megafone na mão.

- Cometeram um acto ilegal. Impedir uma manobra naval autorizada é quase um acto de
pirataria. Podia passar por cima dos vossos botes. Tinha esse direito. Essa bandeira que
arvoram não os protege. Para mim, o Arco-Íris é bom de ver no céu. Ficam avisados: da
próxima vez não terei contemplações.

- Confiamos em que não haja próxima vez. E, se houver, lá nos terá de novo. A caça de
baleias é ilegal.

- Podem ter a certeza de que haverá. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para
demonstrar que a caça de baleias é possível e lícita. Vocês e eu temos uma coisa que nos
une: somos sonhadores, e o meu sonho é começar outra vez com a caça comercial de
baleias em grande escala.

- Temos sonhos diferentes. O nosso sonho é o de mares abertos em que todas as espécies
possam viver e multiplicar-se em paz e harmonia com as necessidades humanas. Tanifuji
fez um sinal, e da coberta do “Nishin Maru” caiu uma catarata de lixo sobre a zodiac.

Sim, a Greenpeace e o “Nishin Maru” eram velhos conhecidos.

... e nota-se que é um indivíduo enérgico - continuou a Arianne -, quando lhe disse que,
segundo as nossas informações, o “Nishin Maru” estava muito longe das costas Chilenas,
respondeu que isso não passava de fumarada para despistar. Por fim tentei tranquilizá-lo
citando-lhe o relatório de Mowat, mas ele interrompeu-me: "também conheço as baleias".
Tanifuji não pensa em baleias-azuis e não se dispõe a zarpar rumo ao círculo polar
antárctico. Anda atrás de baleias-piloto, calderón, ou como diabo lhes chamam na Europa."

A Arianne deu-me mais para o brometo.

"Baleia-piloto, também conhecida como calderón, schwarzwal, pothead, blackfish,


chaudron. Mede entre quatro e sete metros. Tem dentes, entre sete e doze pares em cada
maxilar. Os machos são maiores que as fêmeas. Animais de corpo robusto, de cabeça
pequena e arredondada. O tempo de gestação dura entre quinze e dezasseis meses. Ao
nascer, as crias ultrapassam metro e meio. São alimentadas durante vinte meses.
Alimentam-se fundamentalmente de lulas. Nas águas do atlântico norte estão em vias de
extinção em consequência da caça indiscriminada praticada por russos, noruegueses e
islandeses. Entre 1975 e 1977 observou-se um êxodo de exemplares para o hemisfério sul.
Algumas centenas refugiam-se em águas do pacífico sul, a norte do estreito de Magalhães.
São animais amistosos e confiantes. Foi detectado entre eles um código de comunicação de
mais de setenta sinais. Os hábitos de sobrevivência dos exemplares emigrados contagiaram
os do sul e, assim, observa-se que abandonaram o habitat tradicional do mar aberto para se
concentrarem em enseadas, canais e entradas de fiordes. A comissão baleeira internacional
CBI proíbe terminantemente a sua caça, e declarou a globicephala melaena em perigo
evidente de extinção."
A Arianne serviu mais café e continuou:

- Perguntei-lhe se dispunha de antecedentes para demonstrar o que estava a garantir.


Respondeu-me: "sou um homem do mar e sinto o cheiro a podre a muitas milhas de
distância. Vão ou não ajudar-me?" não soube o que havia de dizer. Apenas me lembrei de
lhe pedir que se mantivesse em comunicação connosco. Estava a pedir-nos algo impossível.
Não estamos em condições de operar nessas regiões. Como sabes muito bem, a nossa frota
é muito pequena.

A Arianne tinha mais uma vez razão.

Por essa altura a organização ecologista preparava o “Gondwana”, um barco


expedicionário que iria largar rumo à Antárctida para visitar as bases instaladas por diversas
nações no continente branco e dialogar com os seus membros acerca da necessidade de
preservar a Antárctida como um grande parque natural do património universal, e não a
transformar na lixeira nuclear ou química que algumas nações já vão propondo, saturadas
que estão de veneno. Mas o “Gondwana” não estaria em condições de zarpar antes de fins
de Agosto.

Também o “Moby Dick” se encontrava em reparações e, logo que saísse da doca seca de
Bremen, rumaria ao atlântico norte para impedir a caça de baleias praticada por
noruegueses, suecos, dinamarqueses, islandeses, norte-americanos e russos em
embarcações camufladas sob bandeiras de países pobres para violarem as leis internacionais
com maior impunidade.

O “Sirius” navegava pelo mediterrâneo refreando os despejos tóxicos nas suas mais que
castigadas águas, evitando que esse mar - pai de todas as culturas - acabe transformado
numa grande cloaca do planeta.

O “Greenpeace” operava em frente das costas atlânticas dos estados unidos promovendo
uma zona livre de armas e transportes nucleares, e o “Beluga”, o incansável anão fluvial,
percorria as veias do velho continente impedindo novos despejos químicos nos seus rios,
acabando por defender a vida dos mares.

Sim, era uma frota pequena diante da magnitude da barbárie moderna. E, além disso,
faltava um barco, o mais querido.

Faltava o velho “Rainbow Warrior”, o navio-insígnia da frota do Arco-Íris.

Quinze minutos antes da meia-noite de 10 de Julho de 1985, duas poderosas bombas


colocadas no seu casco por homens-rãs dos serviços secretos franceses tinham-lhe aberto
brechas mortais no porto de Auckland, na Nova Zelândia. E as mesmas bombas
assassinaram o ecologista português Fernando Pereira, que se encontrava a bordo.

O velho “Rainbow Warrior” travou muitas batalhas pacíficas em águas do sul, pondo a nu
a irracionalidade das experiências nucleares francesas no atol de Muroroa, e sucumbiu
vitimado por um odioso acto terrorista aprovado pelo governo gaulês.
Não há nada mais belo do que um veleiro sulcando os mares em silêncio, e nesse mesmo
silêncio, em Dezembro de 1985, amigos vindos de todo o mundo rebocaram o adormecido
“Rainbow Warrior” até à enseada de Matauri, em frente das costas neozelandesas e, numa
cerimónia maori, deixaram-no viajar até às profundidades marinhas, até à fundura abismal e
necessária para que se unisse à vida por que lutou.

- "Se não me podem ajudar, então terei que actuar sozinho." Foram estas as suas últimas
palavras - concluiu a Arianne.

- Uma espécie de vingador dos mares. Que sabes tu mais dele?

- Já me esquecia. Chama-se Jorge Nilssen e falou também de um barco, o “Finisterre”.


Mencionou-o, pondo-o ao nosso serviço. Que podemos nós fazer?

- Esperar, Arianne. Não me ocorre mais nada.

- Alguma coisa me diz que tudo isto é verdade. Meu deus, dezoito tripulantes
desaparecidos. Há qualquer coisa horrenda por detrás desta história.

A Arianne estava no caminho certo. O pouco que sabíamos fedia à distância, mas é o que
sempre acontece com os factos interessantes.

Saí da sede da Greenpeace inquieto por razões que não conseguia explicar a mim mesmo e
decidi caminhar um pouco pelo porto antes de regressar ao escritório.

Jorge Nilssen. “Finisterre”. Um belo nome para uma embarcação aventureira. Os meus pés
caminhavam em Hamburgo, mas os pensamentos levavam-me para as frias águas austrais.
Vi-me no meio do marulhar embravecido, sacudido pelo mar num dos seus dias de
péssimo humor, e no horizonte, interrompido pelas corcovas das ondas, vi um homem
chamado Jorge Nilssen enfrentando sozinho o enorme barco japonês. Quis gritar-lhe,
avisá-lo de que o barco o iria enrolar, mas o homem deu uma volta e falou-me com as
palavras de Lautréamont que eu sempre quis ler ou pôr nos lábios de um corsário: "diz-me
portanto se és tu a morada do príncipe das trevas.

Diz-mo... diz-mo, oceano (e a mim só, para não causar tristeza aos que ainda só
conheceram ilusões), e se o sopro de Satã criou as tempestades que erguem as tuas águas
salgadas até às nuvens. Tens de mo dizer, porque me encheria de júbilo saber o inferno tão
perto do homem."

Regressei ao escritório e, depois de uma breve troca de impressões, decidimos que o caso
seria orientado por mim.

Estava aborrecido por ter tão pouca informação, e o telegrama que recebemos às oito da
tarde fez-me crescer o mal-estar.

Tóquio. Junho 16, 1988. Barco-fábrica “Nishin Maru” navega rumo porto de Tamatave
em Madagáscar. Informação obtida na capitania do porto de Yokohama.
Greenpeace, Tóquio. Fim.

Maldito navio-fantasma, que podia estar em dois sítios ao mesmo tempo. O brometo
engoliu a informação recém-chegada, para depois mostrar o branco do olho, como que a
dizer: "e que queres tu que eu faça com isto?"

À meia-noite o café começou a repugnar-me e abri uma janela do escritório. O ar estava


fresco e à minha frente passavam as águas sujas do Elba. De repente, do outro lado do rio,
no dique da sucata, acenderam-se uns reflectores e aproximou-se um rebocador puxando
um decrépito navio que iria começar imediatamente a ser desmantelado. Peguei no
binóculo e foquei o barco na sua viagem final. À popa, podia ainda ler-se a palavra lázaro.
Um pouco mais abaixo, umas letras meio apagadas pela corrosão indicavam o último
porto-pátria: santos.

Os barcos a caminho do desmantelamento são sempre uma visão dolorosa. Têm qualquer
coisa de animais gigantescos e feridos que vão para o cemitério. Ainda pendiam uns fiapos
de bandeira brasileira na popa do lázaro, e imaginei que a história daquele navio em ruínas
era semelhante a muitas outras que escutara em Hamburgo.

Quando os anos e o mar transformam os navios em pura escória flutuante, os armadores


retiram-nos das linhas de navegação e vendem-nos geralmente a capitães velhos que se
negam a viver em terra. Deixam então de ser o cargueiro tal, ou o graneleiro tal, e
transformam-se em tramp steamers, vagabundos dos portos que navegam sob as bandeiras
mais pobres, com tripulação reduzida, e conseguem contratos a baixo preço para
transportarem carga sem fazer perguntas acerca da sua natureza e sem lhes importar o
destino.

O lázaro era sem dúvida um tramp steamer que não resistiu à última inspecção técnica em
Hamburgo, e que por isso não foi autorizado a subir o Elba para chegar até ao delta de
Cuxhaven, considerado que foi um risco para a navegação. O capitão deve ter-se visto
confrontado com o dilema de pagar os altos custos de uma reparação impossível ou
mandá-lo para a sucata.

O destino do lázaro sobressaltou-me. Senti que se me acendia uma luzinha nos miolos e
corri para a agenda dos telefones. Procurei rapidamente o número do Charly Cuevas, um
porto-riquenho igualmente desencantado com a imprensa séria.

- Charly? Desculpa ligar a estas horas, mas tenho uma consulta para te fazer.

- Adiante. Começo agora a atender consultas.

- Li há muito pouco tempo um artigo teu sobre os sucateiros de Timor. «Os abutres de
Ocussi», acho que é o título, e falas lá dos sucateiros mais mal pagos do planeta. Tens mais
apontamentos, dados, seja o que for?

- Alegra-me saber que tenho leitores fiéis. Que diabo queres tu saber?

- Não sei. Mas tenho um pressentimento que me tira o sono.


Tens por acaso alguma informação sobre os barcos que foram desmantelados nos últimos
anos?

- Uma lista enorme. Dá-me o nome e a bandeira.

- “Nishin Maru”, Japão.

Charly pediu-me paciência. Senti-o a bater as teclas do computador e voltou rapidamente


ao telefone.

- Efectivamente. Tenho-o aqui. “Nishin Maru”, navio-fábrica dedicado à caça e


processamento industrial de baleias. Construído em Bremen em 1974. Patente de
Yokohama. Por esta altura os seus restos devem ser cafeteiras ou torradeiras de pão,
porque o desmantelaram em Janeiro passado.

- Tens a certeza?

- Ninguém neste mundo pode ter a certeza de nada. Os dados que possuo, roubei-os dos
escritórios da companhia sucateira Timor Metal Corporation. A coisa funciona assim: as
companhias armadoras dizem que têm banheiras que já não podem continuar a flutuar,
marcam vez em Ocussi, levam o barco e os, como se chamam os habitantes de Timor?,
timoratos?, não interessa, desmantelam-no em tempo recorde e a armadora recebe uma
certidão de óbito, além de cinquenta por cento do valor dos metais.

- Espera um momento. Existe algum mecanismo para atestar que um barco desmantelado
é efectivamente o que navegava com um determinado nome e uma determinada bandeira?

- Doutoraste-te em ingenuidade, ou quê? Se uma armadora manda a Timor uma banheira


e lhes diz que se trata do “Titanic”, receberá em troca um documento que pormenoriza
quantas toneladas de metal aproveitável havia no “Titanic”. É um país tão pobre que nem
sequer se pode dar ao luxo de ter dúvidas.

- Charly, essa Timor Metal, a quem pertence?

- Um momento, deixa-me ver. Cá está. O accionista maioritário é um consórcio japonês


dedicado a produtos do mar.

Tudo aquilo cheirava mal.

Os japoneses tinham descoberto um método para caçar baleias ilegalmente. Com toda a
segurança, o “Nishin Maru” navegava rumo a Madagáscar, mas esse era o “Nishin Maru”
II. O outro navio, camuflado sob o certificado de desmantelamento entregue pelas
autoridades de Timor, podia navegar pelos mares austrais com a impunidade de um navio-
fantasma.

Quis ligar logo para a Arianne, mas parece que a telepatia funcionou, porque o telefone
tocou naquele momento.
- Ainda bem que ainda estás aí. o vingador dos mares acaba de ligar e vai ligar outra vez.
Vem até cá.

A Arianne recebeu-me com um jarro de café, que retirou discretamente depois de me olhar
para a cara, e um gravador.

- Liguei o telefone à máquina. Assim, podes ouvir tudo fielmente e tirar as tuas próprias
conclusões - disse ela, enquanto abria uma garrafa de água mineral. Pus a fita a correr. O
diálogo era em inglês e, sem me dar conta disso, por uma teimosa mania de ofício, tomei
nota da conversa.

"Nilssen: está? Greenpeace? Daqui fala Jorge Nilssen, do Chile.

Arianne: estou a ouvi-lo. Que se passou? Sabemos de dezoito marinheiros desaparecidos.

Nilssen: vejo que as notícias voam. Como é que souberam? Não interessa. Foi.
Desapareceram dezoito tripulantes e o “Nishin Maru” esteve quase a ir ao fundo.

Arianne: É terrível. Seja como for que o tenha feito, saiba que esses não são os nossos
métodos de actuação. Condenamos qualquer forma de violência. Não pensa nas
consequências que nos pode provocar se nos relacionarem com o que aconteceu?

Nilssen: creia que sou o primeiro a lamentar a sorte dos tripulantes. Também sou homem
do mar, mas não pude fazer nada para o impedir. Se existe um responsável pela tragédia é o
comandante Tanifuji. Não se preocupe. o que aconteceu nunca se virá a saber. Os
japoneses hão-de tapar a boca dos sobreviventes com alguns milhares de dólares e se, de
repente, no futuro, alguém se decidir a falar daquilo, irão tomá-lo por demente.

Arianne: diga-me, que se passou com o “Nishin Maru”?

Nilssen: não ia acreditar em mim. Também me tomaria por louco. O que aconteceu só se
pode ver, e por pouco tempo, enquanto durarem os vestígios da tragédia. As palavras não
chegam para o contar. Venha a senhora ou algum dos seus colegas. Com muito gosto lhes
mostrarei os meus mares.

Arianne: senhor Nilssen, temos interesse em saber o que se passou. Tem outra maneira de
se pôr em comunicação connosco? Prefere fazê-lo com um jornalista de língua espanhola
que está ao corrente dos factos?

Nilssen: não lhe poderei acrescentar nada de novo. Mas está bem. Tornarei a telefonar
daqui a três horas. Até lá.

Terminou a gravação. A voz de Nilssen não permitia definir a sua idade, mas tinha um
tom tão seguro como contristado.

- Que achas? - perguntou a Arianne.


- Quero falar com ele. Tenho confiança em que tornará a ligar.

- Não sei que hei-de pensar de tudo isto. Segundo a filial de Tóquio, o “Nishin Maru” está
a aproximar-se de Madagáscar.

- Sim. Mas não se trata do nosso “Nishin Maru”.

Transmiti-lhe toda a minha informação e chegámos às mesmas conclusões.

- E assim, lançam um novo barco-fábrica, baptizam-no com o mesmo nome do antigo,


anunciam e provam, de documentos na mão, que este já não existe, pois foi desmantelado
em Timor, e os mecanismos de controlo baleeiro julgam que só contam com um “Nishin
Maru”, enquanto o barco inexistente saqueia os mares como lhe apetece. Que subornos
eles devem pagar nos portos onde atracam para não serem vistos nem registados nos livros
das capitanias! Se conseguirmos reunir provas, revelaremos o escândalo do século. É pena
que tenhamos apenas uma testemunha.

- Duas, Arianne. Temos duas testemunhas.

- Nilssen não falou de mais ninguém.

- Mas eu, sim: Sarita Díaz, a correspondente que nos enviou o telex. Ela viu o “Nishin
Maru”.

É muito vago aquilo de que me lembro de Puerto Montt. Era sempre o lugar onde descia
do comboio para começar realmente as viagens para o sul. Mas recordações fragmentárias
bastaram-me para ver a Sarita a caminhar pelo cais açoitado pelas ondas e pelo vento. Na
minha profissão vamos desenvolvendo umas invisíveis antenas de lagosta. De repente
funcionaram, e senti que a Sarita estava em perigo. Peguei no telefone e marquei a longa
série de números que me pôs em comunicação com o Chile. Enquanto esperava calculei a
diferença de horas. Em Hamburgo eram quase duas da madrugada de 17 de Junho. No
Chile não tardariam a ser nove da noite do dia anterior e, como em Puerto Montt as
pessoas costumavam recolher-se cedo, talvez encontrasse a Sarita em casa. Atendeu uma
voz de mulher que foi imediatamente substituída por outra de homem.

- Quem fala?

- Sou um amigo da Sarita e estou a falar da Alemanha. Posso falar com ela?

- Deixem em paz a minha filha! - respondeu o homem, e cortou a comunicação.

Fiquei de telefone na mão, a pensar que os acontecimentos estavam a tomar um aspecto


que me agradava cada vez menos.
Recordei-me da Sarita na sua passagem por Hamburgo.

"Então, aceitam-me como correspondente?"

"Não te podemos pagar. Por enquanto não."

"Não importa. A única coisa que peço é que não me deixem sozinha no fim do mundo..."

A Sarita estava em dificuldades. Não podia precisar em quais, mas os que se atrevem a
andar com um barco cuja matrícula é uma certidão de abate não usam panos quentes.

Faltava mais ou menos uma hora para a chamada de Nilssen. Liguei para os meus sócios e
ficámos de nos reunir no escritório às cinco da madrugada. O resto do tempo, ocupei-o a
pensar nos japoneses.

Os japoneses. Às vezes é muito difícil não cair no poço da intolerância, e quando isto
acontece começamos a generalizar, a meter no mesmo saco todos os habitantes de um país.
No Japão existe uma forte presença ecologista, e os amigos nipónicos realizam o seu
trabalho arriscando muitas vezes a vida, porque os depredadores do mundo não são
partidários do diálogo nem dos raciocínios jurídicos e, quando os aceitam, é para os
utilizarem como atenuantes nas demandas judiciais.

É preciso que se diga que não são apenas os depredadores japoneses que praticam o jogo
da moral dupla que caracteriza um mundo regido pela ética do mercado. O Japão é um dos
sete países mais ricos do planeta e um interlocutor fundamental; por vezes, dá até a
impressão de ser uma nação com patente de corso. Por exemplo: todos os países da
Europa, os Estados Unidos, a União Soviética e a maioria dos estados africanos condenam
a caça do elefante e reconhecem o perigo de extinção em que se encontram os gigantes
cinzentos da África. Mas nenhum país condena o Japão, o grande impulsionador da caça e
o maior comprador de marfim do planeta.

Nem é preciso assinalar que controla o mercado e que é o principal fornecedor de marfim
da Europa, dos Estados unidos e da União Soviética. E para que serve o marfim? Toda a
sua utilidade se limita à fabricação de uns poucos artigos de luxo; podemos afirmar com
toda a segurança que o talento de uma Paloma O'shea ou de um Claudio Arrau não se
sentirá diminuído por se sentarem diante de pianos cujo teclado não seja de marfim, e que
continuarão a realizar as suas formidáveis interpretações de Mozart ou de Scarlatti, sem que
para isso haja que exterminar animais de seis ou oito toneladas de que se obtêm quarenta
miseráveis quilos de marfim.

Mas a deterioração ecológica, o assassínio diário do planeta, não se restringe apenas às


matanças de baleias ou de elefantes. Uma visão irracional da ciência e do progresso
encarrega-se de legitimar os crimes, e dir-se-ia que a única herança do género humano é a
loucura. Regressemos às baleias. Com que fim se matam? Para saciar o tédio gastronómico
de um punhado de ricos pirosos? A importância das baleias na indústria cosmética pertence
ao passado. O que se investe para obter um litro de gordura de baleia é o mesmo que,
investido no fomento da produção de gordura vegetal num país pobre, obteria vinte litros
de óleo semelhante. E pensar que ainda existem porta-vozes de um pretenso modernismo
que acham tribuna nos periódicos europeus para desqualificarem as medidas de protecção
da natureza, tachando-as de ecolatrias, e que tentam erguer à categoria de uma nova ética o
discurso do néscio que deita fogo à casa para se aquecer. Desprezo o que ignoro é o lema
de uns curiosos filósofos da destruição.

Jorge Nilssen foi pontual na sua chamada.

- Não. Não posso dizer-lhe pelo telefone o que se passou. Se tem mesmo interesse em
conhecer os factos, venha cá. Convido-o a navegar pelos meus mares. O meu barco, o
“Finisterre”, está à sua disposição.

- É uma viagem muito comprida. o senhor está do outro lado do mundo. Diga-me o seu
número e eu torno a ligar. Assim não terá que se preocupar com o custo da chamada e
poderemos falar sem limite de tempo.

- Estou a ligar-lhe de uma pequena central e é uma sorte podermos comunicar. Se não me
engano, o senhor é Chileno.

- Sou. Nasci aí.

- Não se preocupe. Há coisas piores na vida. Vem ou não vem?

- Oiça, senhor Nilssen. Vou dar-lhe o número do telefone de uma jornalista em Puerto
Montt...

- Sara Díaz?

- Conhece-a?

- Não. E receio ter de ser eu a dar-lhe uma má notícia. Soube de manhã do assalto a uma
jornalista.

Atiraram-lhe com um carro para cima quando ia a sair de um laboratório fotográfico.


Roubaram-lhe qualquer coisa. Não sei quê, mas suponho que deve ser a mesma rapariga
que vi anteontem à noite a tirar fotografias do “Nishin Maru” no estaleiro da armada.
Pobre rapariga. Está hospitalizada com fracturas múltiplas. Vem?

Senti que a panela se destapava e que o fedor inundava tudo sem se deter com as
distâncias. A Sarita estava a pagar o preço de informar, e não podíamos deixá-la
abandonada.

- Vou. Parto logo que puder. Como é que me ponho em contacto consigo?

- Calma. Não se preocupe com a rapariga. Eu me encarregarei de a levar para lugar


seguro. Espero-o entre 19 e 23 de Junho. Venha até Santiago e aí encontrará um bilhete em
seu nome que o levará a Puerto Montt; depois vá até Caleta San Rafael, em frente da ilha
Calbuco, e procure o “Pájaro Loco”, um lanchão de canal. Lá estarei à sua espera.

O resto passou-se rapidamente. Os meus sócios aprovaram imediatamente a viagem. A


Greenpeace interessou-se oficialmente por investigar o que acontecera, e no dia seguinte
estava de posse de uma passagem.

No aeroporto, o meu filho mais velho encomendou-me um búzio grande. "É para ouvir o
teu mar", e a Arianne entregou-me uma flâmula da organização. Representava uma baleia a
entrar na água.

- Bem-vindo ao Arco-Íris, e boa sorte.

Uma mão sacode-me gentilmente o ombro. É a hospedeira e pergunta-me se também


desejo auscultadores.

- Auscultadores?

- Para o filme.

- Que filme? Desculpe, estou meio a dormir.

- Piratas, de Roman Polanski - informa-me ela com o melhor dos sorrisos.

Sim. Lá vou eu. Ao teu encontro, mundo do fim do mundo. E não sei o que me espera.

Terceira parte

Ao anoitecer de terça-feira, 21 de Junho, um avião da linha aérea nacional deixou-me em


Puerto Montt. Eu levava no corpo o cansaço de mais de trinta horas de voo. Hamburgo-
Londres-Nova Iorque-Bogotá-Quito-Lima-Santiago. Durante o voo pensei longamente
naquela viagem de regresso ao Chile, que sempre fora adiando, refreado pelo receio de
encontrar um país que atraiçoara o que eu tinha na memória, o pequeno país nobre e bom
do primeiro amor, o território inolvidável da infância. Sou um dos tantos que conheceram a
prisão e fugiram do horror para reunir forças na terra de ninguém - do exílio, mas o mundo
saudou-nos com a bofetada de uma realidade desconhecida. a barbárie militar crioula não
era diferente de outras barbáries uniformizadas, e descobrimos lentamente que os nossos
pequenos sonhos eram egoístas. Tínhamo-nos autoconvencido da nossa capacidade de
derrotar os inimigos da justiça, chamando-os à luta num terreno que supúnhamos dominar,
mas no fundo, e por comodidade, deixávamos que eles continuassem a fixar as regras do
jogo.

Ao fim de um longo, incómodo e doloroso tempo, o exílio, transformado numa espécie de


bolsa de estudos, permitiu-nos entender que a luta contra os inimigos da humanidade se
trava em todo o planeta, que não requer heróis nem messias, e que começa por defender o
mais fundamental dos direitos: o direito à vida.
Santiago do Chile. Era feliz em Hamburgo, mas pensava constantemente no reencontro
com Santiago. Recordava essa cidade como uma noiva, e receava encontrá-la transformada
numa velhinha senil, renegando a passagem dos anos.

Não tive tempo para averiguar em que estado se encontrava, pois o bilhete encomendado
por Jorge Nilssen mal me deixou uma pausa de meia hora antes de continuar o voo para o
sul. Apenas avistei a sua cordilheira cansada, esses símbolos de inverno cantados por Sílvio
Rodríguez, e o véu de smog que a cobre como a uma viúva.

Cheguei a Puerto Montt com o inverno. Quando desci do avião pude sentir a gélida
saudação do pacífico. A temperatura erguia-se uns míseros graus acima de zero e a brisa
mordia a cara. Com o corpo a ameaçar declarar-se totalmente transformado em gelatina, e
evitando a tentação de procurar saber da Sarita, subi para o táxi land rover que me levou a
San Rafael.

Na calheta viam-se uns doze lanchões, de tal modo que não precisei de procurar muito
para dar com o "Pájaro loco". Estava um homem a fumar na coberta que, quando me viu,
saltou para terra, e soube imediatamente que era Jorge Nilssen.

Um cabelo crescido e esbranquiçado estorvava o cálculo da sua idade. Vi-o caminhar os


poucos metros que nos separavam com aquele andar de pelicano característico dos
marinheiros com muitas milhas às costas, marinheiros que ainda é possível ver em alguns
portos da Europa tripulando barcos de bandeiras pobres, panamá ou libéria. Não descem à
terra com frequência e parecem transportar nos corpos o vaivém dos barcos. Já restam
poucos exemplares desta romanesca marinhagem. As tripulações actuais são compostas por
oficiais especialistas em informática e por marinheiros jovens que no mar vêem apenas uma
situação transitória. O salário não é dos melhores e a modernização dos portos acabou com
a esperança de ver um pouco do mundo. Os homens viraram as costas ao encanto dos
oceanos.

Quando ficámos frente a frente, deteve-se de pernas abertas e estendeu-me a mão.

- Capitão Jorge Nilssen. Que tal a viagem?

- Disso podemos falar depois. Que sabe da Sarita?

- Tranquilo. Não foi tão grave como pensei. Tem uma perna e duas costelas partidas, mas
vai ficar boa. De momento, está a recuperar em lugar seguro. Sabe da sua viagem e não
tardará a poder vê-la, mas não já. Esperaremos que as águas se acalmem um bocado. Venha
comigo. Reservei-lhe um quarto numa pensão de confiança.

Caminhámos em silêncio. No meio de um desses silêncios que são a melhor forma de


comunicação.

Que fazem dois cães quando se conhecem? Não dizem uma só palavra, nem ladram, nem
ganem. Apenas se cheiram os cus e depois decidem se confiam ou não um no outro. Foi o
que fizemos, e quando chegámos à pensão sabíamos que a confiança estendia uma ponte
entre nós.
Estava esgotado, mas não quis perder um jantar com os melhores mariscos do mundo. A
fresca chicha de maçãs e o vinho da pipa, áspero e rude como aquelas paragens,
conseguiram reconciliar-me com o meu corpo. Depois de jantar, o aroma da lenha a arder
na salamandra convidava à conversa.

- Há muito tempo que anda pelo mundo? - perguntou Nilssen.

- Desde 75. Devo chamar-lhe capitão? Pergunto-lhe isto porque foi assim que o senhor se
apresentou.

- Força do hábito. Os ilhéus chamam-me capitão, e olhe que não me desagrada. Mas se
me chamassem meu capitão, outro galo cantaria. Pode chamar-me como quiser.

- Que se passou com o “Nishin Maru”?

- Tenha paciência. Vai saber tudo. Vai ver tudo. Há certas coisas que não se podem
contar. Não basta a linguagem para falar do mar.

- Então, ao menos, diga-me quem é o senhor.

- Um bastardo do mar.

- Não me chega, capitão. A minha viagem é uma prova de absoluta confiança no senhor,
estou nas suas mãos, e tanto os da Greenpeace como eu gostamos de conhecer os nossos
interlocutores.

- Está a pedir-me algo bastante difícil. Sou um indivíduo de poucas palavras e nunca
pensei em preparar a minha biografia. Não sabe que nós, os velhos, estamos cheios de
esquecimentos?

- E eu estou cheio de curiosidade, capitão. Não viajei vinte mil quilómetros para jantar
com um desconhecido.

- Pronto. Já que insiste. Aviso-o de que é a primeira vez

Que falo de mim mesmo. Aproxime-se mais do fogo. Tomou alguma vez bagaço do mais
nobre, da garapa de curtição? Fermentam-no com uma pele de vaca no barril. Vou buscar
um par de copos.

O seu nome original foi Jórg Nilssen. O mesmo do avô e do pai, um aventureiro
dinamarquês que em 1910 se aventurou pelas águas magalhânicas sem outra companhia
além de um gato e da esperança de descobrir uma passagem marítima a noroeste da ilha
desolação. Uma passagem que permitisse sair para o pacífico aberto depois de atravessar o
estreito, e que evitasse aos navegantes a perigosa travessia que leva até Puerto Misericordia.
O velho Nilssen não encontrou a ansiada passagem, mas muitas outras mais a norte,
enriquecendo as cartas de navegação austrais. A pouca sorte do velho Nilssen foi não
pertencer a nenhuma armada ou corpo expedicionário acreditado, de tal maneira que os
seus descobrimentos foram sempre escamoteados e o seu nome não aparece relacionado
com nenhum deles.

«A paga do Chile» é como os Chilenos chamam a esta forma de gratidão e reconhecimento.


Mas o velho Nilssen não só encontrou o anonimato, mas também o amor de uma ilhoa que
foi sua companheira durante muitos verões breves e longos invernos patagónicos, até que o
ineludível abraço da morte lhe levou a mulher, e ele não ficou com outra companhia além
da do filho. Nascido no mar e embalado pela ondulação. Para prolongar uma senda de
navegações que começara um século antes nas frias águas de Kattegat, chamou à cria Jórg,
mas um burocrata chileno com problemas de dicção castelhanizou-o em Jorge.

- E perguntará por que é que não menciono o nome da minha mãe. É muito simples: não o
tinha. A minha mãe era Ona, uma das últimas sobreviventes daquela raça de gigantes que,
muito antes da chegada de Magalhães, atravessaram milhares de vezes o estreito em
embarcações construídas com peles de lobo marinho e velames de cascas vegetais. O meu
pai chamou-lhe "mulher", e eu não consegui dar-lhe outro nome, pois morreu poucos
meses depois do meu nascimento, em 1920. ele durou outros vinte anos e, fiel à memória
da sua companheira, não procurou outra mulher nem abandonou a navegação pelos canais.

"O pouco que sei dela, contou-mo ele nas longas noites invernosas, protegidos nos fiordes
que entram pelo continente adentro. a minha mãe receava desembarcar. Quando se
aproximavam de qualquer porto ou enseada fechava-se debaixo da coberta do cúter, a
tremer e choramingar como um animal ferido. E tinha para isto as suas boas razões: era
Ona e, tal como os Iagãs, os Patagónios e os Alacalufes, sofreu a perseguição dos criadores
de gado ingleses, escoceses, russos, alemães e crioulos que se estabeleceram na Patagónia e
na terra do fogo. A minha mãe foi vítima e testemunha de um dos grandes genocídios da
história moderna. Homens abastados, hoje venerados como paladinos do progresso em
Santiago e em Buenos Aires, praticaram a caça ao índio, pagando primeiro onças de prata
por cada par de orelhas e depois por testículos, seios e, finalmente, por cada cabeça de Iagã,
Ona, Patagónio ou Alacalufe que lhes apresentassem nas suas fazendas.

"Curiosa raça a dos Onas. O pouco que deles se sabe é que até à chegada dos europeus
viviam da caça ao guanaco e da colheita de moluscos nas praias. Com ossos de lobos-
marinhos e de baleias fabricavam anzóis, pontas de flechas e outras ferramentas que depois
trocavam com os Iagãs ou Alacalufes por pequenas embarcações que lhes permitiam
atravessar o estreito. Assim viveram séculos e séculos, até que os europeus começaram a
expulsá-los das suas terras de caçadas e, juntamente com eles, aos seus deuses, que
habitavam no negrume das florestas. Dizem que os deuses dos Onas eram gordos,
preguiçosos e pacíficos. Conta uma lenda que, quando os europeus lhes arrebataram os
bosques, eles construíram uma grande barca, uma espécie de arca para salvarem os seus
deuses, mas, como não tinham experiência de construtores navais e as suas divindades
eram gordas, a barca naufragou a meio do estreito. Por isso, quando começou o extermínio
dos índios, os Onas não tinham deuses protectores, e os europeus e os crioulos viram-nos
construir péssimas embarcações com peles e cascas de árvores, para tentarem recuperar os
seus deuses do fundo do mar, se é que não queriam viver com eles na sua nova morada.
Não se sabe nem se saberá nunca, mas há muitas lendas a tal respeito. Para escaparem ao
massacre, muitos deles tornaram-se nómadas do mar, mas nem nas suas embarcações
ficaram a salvo. A caça ao índio transformou-se num desporto para os criadores de gado, e
assim apareceram as primeiras lanchas a vapor pelos canais. Não lhes bastou expulsá-los da
terra firme. Com a queima de milhões de hectares de floresta tinham-nos já condenado a
desaparecerem, mas isso não lhes bastou.

Tinham que exterminá-los a todos, um por um. Já alguma vez ouviu falar do tiro ao
pombinho gelado? Era esse o desporto dos criadores de gado, dos Mac Iver, dos Olavarría,
dos Beauchef, dos Brautigam, dos Von Flack, dos Spencer, e consistia em pôr uma família
inteira de índios sobre um pedaço de gelo flutuante, em cima de um icebergue. Então
vinham os disparos, primeiro para as pernas, depois para os braços, e trocavam-se apostas
acerca de qual deles seria o último a afogar-se ou a morrer por congelação. Quando o meu
pai morreu, eu era um homem acostumado à solidão e desconfiava do mundo.

"Foi um bom homem, o meu pai. Comunicávamos um com o outro num dialecto
dinamarquês do Kattegat. Aprendi a lê-lo e a escrevê-lo com o primeiro livro que tive nas
mãos: o caderno de Bitácula do “Fiona”, o veleiro que o trouxe da Escandinávia. Mais
tarde, as autoridades marítimas chilenas obrigaram-nos a navegar sob o pavilhão nacional, e
para lidar com a Bitácula do Paso del Ona tive de aprender castelhano.

"O Paso del Ona era um cúter de quilha baixa que o meu pai comprou depois de uma
tempestade ter destruído o “Fiona” contra os recifes de Punta Diego. No Paso del Ona
nasci, e ainda agora é o que sinto mais próximo de uma pátria. Mas esse barco já não existe.
Quando o meu pai morreu, fiz o que tinha a fazer: respeitando os seus costumes e os seus
mitos, atei o corpo ao leme e mergulhei-o nas águas profundas do golfo de penas. Talvez
no fundo do mar se encontre com a sua «mulher». Quem sabe.

"Fiquei sem outra companhia além de uma velha que visitava na costa oeste da ilha Van
der Meule, à entrada do canal de Messier. Ela não sabia castelhano, nem dinamarquês, não
sabia língua nenhuma. Apenas cantarolava em ona quando se esquecia da minha presença
e, ao dar por mim, calava-se logo. Assim passávamos dias inteiros. Também não tinha
nome.

Por aquele tempo, estou a falar de 1942, vivia eu numa cabana construída pelo meu pai e
que ainda resiste aos ventos da costa noroeste da ilha serrano, separada da Van der Meule
pela milha e meia do canal de Messier. Não era um náufrago, mas estava só. Era o único
habitante da ilha serrano, e não minto se disser que preferia falar com os golfinhos que
com a velha Ona ali defronte. Pelo menos os golfinhos respondiam-me, ao passo que a
pobre avozinha afogava as suas palavras num medo mais denso que a bruma da terra do
fogo. Mas sempre que o tempo o permitia atravessava o canal num pequeno bote à vela, só
bote com uma vela triangular, e nada mais, para a ver e estar com ela.

"Um dia não a encontrei. As cinzas da fogueira ainda estavam leves e descobri nas
proximidades pegadas de caçadores de morsas. Tinha-se ido embora arrastando os seus
anos e os seus medos. Soube que nunca mais a veria e que nada me ligava àqueles
caminhos.
Muitos anos mais tarde vim a saber da sua morte e que fora ela a última ona. O fim de
uma raça de fugitivos pelos mares mais hostis do mundo. Lembro-me de ter lido a notícia
da sua morte num jornal de Punta Arenas. Uns expedicionários franceses deram com ela a
navegar à deriva em frente da ilha desolação, à saída para o pacífico do estreito de
Magalhães. Tinham-se partido os remos da sua pequena embarcação, que resistia
milagrosamente à ondulação sem se voltar. Os franceses içaram-na para bordo do seu
barco, examinaram-na, calcularam-lhe uns noventa anos de idade e declararam-na doida,
pois ao menor descuido tentava saltar pela borda fora e trepar de novo para a sua
embarcação. Para a acalmarem, injectaram-lhe um sedativo, e esse foi o seu fim. Não estava
louca. Os deuses Ona vivem no mar, e ela procurou-os até à chegada dos intrusos.

"Enfim. Cheguei a Punta Arenas e fiz-me ao mar como tripulante do “Magallanes”, e


depois passei para o “Tomé” e para o “San Esteban”, tudo barcos que carregavam
madeiras, carne e sementes para a Europa em guerra. Alguns anos mais tarde, em
Santander, mudei de rumo e gostei de navegar pelas Caraíbas, até que me deixei tentar pelo
Índico e pelo pacífico sul. Muroroa, Nova Zelândia, Austrália, Japão. Deambulei de barco
em barco até que em 1980 me minguou o horizonte. Nenhum navio, nem sequer liberiano,
me quis contratar como tripulante. Tinha sessenta anos. Um corpo excessivamente curvado
para o alto mar. Que havia de fazer? Nunca me senti chileno, mas os maoris, outra raça de
navegadores, dizem que todo o animal marinho regressa à sua enseada de origem. É
possível que assim seja, porque antes de completar sessenta anos comecei a ter um sonho
repetido: via-me a navegar pelos canais do sul do mundo, e olhe que não estou a falar do
Chile. O senhor pode ir até ao Beagle e perguntar às focas, aos corvos marinhos e aos
pinguins das ilhas Picton, Lenox e Nova se se sentem chilenos ou argentinos. A soberania é
um lenço inventado para os tropas secarem a baba.

"Percebi que aqueles sonhos eram uma espécie de chamada, e regressei. Com as
poupanças de quarenta anos a bordo depositados num banco panamiano tinha que
chegasse para uma velhice mais que aceitável em qualquer asilo de marítimos, mas o sul
puxava-me, e regressei.

Em fins de 1981, em Puerto Ibañez, encontrei um cúter de linhas antigas, feito para a
grande navegação, e comprei o “Finisterre” até com arrais a bordo. A sério. Um calmeirão
bom como o pão, sem outro lar que não seja o barco e a quem chamam Pedro pequeno,
para o diferenciar do pai, outro Pedro que ultrapassa os dois metros.

Entendi-me com o Pedro pequeno desde a primeira hora, pusemos o navio em condições
e fizemo-nos ao mar rumo ao sul.

Na ilha serrano encontrámos a cabana quase exactamente como a deixara quarenta anos
atrás. Ninguém mora na ilha. O clima extremamente hostil e rigoroso afugenta, e às vezes
penso que o que está mais próximo do momento da criação do mundo são esses milhares
de ilhas, ilhotas e penhascos. Afigurou-se-me o melhor lugar para percorrer durante o
tempo que me resta. O porto adequado. E assim, com o Pedro pequeno, temos navegado
anos e anos sem encontrar ninguém, com a vida determinada pelo humor sábio do mar.
Mas nada dura para sempre. "Começámos a notar que os golfinhos se ausentavam em
épocas anormais. Depois as baleias deixaram de saltar em frente das escarpas da ilha Van
der Meule. O golfo de penas, que em cada primavera assistiu ao acasalamento das baleias-
piloto, mostrava-se quieto como uma castanha seca. O desastre ecológico provocado pelos
japoneses e pelos seus servidores do regime militar Chileno ao norte do Reloncaví não nos
era alheio. Sabíamos que a desflorestação maciça das cordilheiras costeiras tinha afastado,
talvez para sempre, o espectáculo dos salmões subindo os rios para desovar. O corte do
bosque original, de árvores tão antigas como o homem americano e de simples arbustos
que ainda não davam sombra, transformou aquelas regiões que sempre foram verdes, em
lamentáveis paisagens em progressiva desertificação, e com o corte exterminaram-se os
milhares de variedades de insectos e de animais menores que possibilitavam a vida dos rios;
mas, tudo isso, julgávamo-lo nós muito mais para norte: mais de mil milhas nos separavam
daquela catástrofe. "Que diabo se passa no nosso mar?", perguntávamos a nós mesmos. E
numa manhã de Verão, em 1984, tivemos a resposta.

O que vimos deixou-nos gelados. Sabe o que é o “Caleuche”? O barco fantasma. O


holandês errante com outro nome. Nem sequer o “Caleuche” nos teria impressionado
tanto como o que vimos em frente do golfo de Trinidad, a sul da ilha Mornington.

Vimos um barco-fábrica de mais de cem metros de comprido, várias cobertas, parado mas
com as máquinas a toda a força. Aproximámo-nos até que reconhecemos a bandeira
japonesa pendente à popa. A um quarto de milha recebemos um tiro de aviso e ordem para
nos afastarmos. E vimos também o que aquele barco andava a fazer.

Com uma tubagem de uns dois metros de diâmetro sugavam o mar. Puxavam-no todo,
provocando uma corrente que sentimos debaixo da quilha e, depois de passado o
aspirador, o mar ficou transformado num escuro caldo de águas mortas. Sugavam-no todo
sem sequer pensarem em espécies proibidas ou protegidas. Com a respiração quase
paralisada de horror vimos como várias crias de golfinhos eram sugadas e desapareciam.

E o mais horrível de tudo foi verificar que, através de uma saída de água à popa,
devolviam ao mar os restos não desejados da carnificina.

Trabalhavam depressa. Aqueles barcos-fábricas são uma das maiores monstruosidades


inventadas pelo homem. Não navegam atrás dos cardumes. A pesca não é o seu ofício.
Andam à cata de gordura ou de óleo animal para a indústria dos países ricos, e para
atingirem os seus propósitos não hesitam em assassinar os oceanos.

"No decurso desse mesmo ano, ao navegarmos em mar aberto nas imediações do falso
cabo de Hornos, vimos outros barcos semelhantes. Com bandeiras norte-americana,
japonesa, russa, espanhola. E todos faziam exactamente o mesmo.

"Naquele ano passámos um mau inverno. Eu estava tão desolado como enfurecido, e
cheguei a pensar em carregar o “Finisterre” de explosivos e em me lançar a todo o pano
contra o barco aspirador seguinte. Passámos um inverno péssimo.

Perante o olhar espantado do Pedro pequeno, manejava o rádio de ondas curtas à procura
de um conselho. Não imagina como nós, marinheiros, gostamos do rádio. É como que a
voz de deus que às vezes se lembra de nós. Assim, com a esperança quase a ir a pique, dei
por fim com um noticiário animador: a rádio Nederland dava informações acerca de uma
acção da Greenpeace no mediterrâneo. Estavam a impedir o uso da barra filipina, outra
descarada forma de assassinar o fundo do mar utilizada pelos apanhadores de corais.
Lembro-me de que dei um pulo aos abraços ao Pedro pequeno. Não estamos sós, Pedro!
Não somos os únicos que queremos salvar o mar! E tive então uma das maiores surpresas
da minha vida: o Pedro pequeno, que é homem de muito poucas palavras, falou-me com
uma seriedade desconhecida.

- Patrão, vou confiar-lhe um segredo. Vou quebrar um juramento. O senhor sabe que eu
sou Alacalufe e que, para nós, jurar sobre as pedras da fogueira é sagrado. Patrão, eu sei
onde se escondem as baleias calderón.

"E tornou-me cúmplice do segredo.

"Por isso, quando vimos o “Nishin Maru” em frente do golfo de corcovado fomos até à
ilha grande de Chiloé para contactarmos com a gente da Greenpeace. É uma pena estarem
tão longe. Mas ganhámos a batalha aos japoneses sem outra ajuda além do mar. Amor e
ódio. Vida e morte. Segredo e revelação. Tudo ao mesmo tempo e sem idades. É isso o
mar..."

Seguiu-se um grande silêncio às palavras do marinheiro. O crepitar do fogo parecia


prolongá-lo e convidava-nos a ficar assim.

- Não sei que dizer. Não sei por onde começar.

- Vamos dar as boas-noites um ao outro. Eu também estou cansado.

- Está bem. Boa-noite, capitão Nilssen.

No dia seguinte o capitão Nilssen arrancou-me da cama aos primeiros alvores da manhã.
Na casa de jantar estava à nossa espera uma generosa cafeteira e pão acabado de sair do
forno. Adivinhando os meus pensamentos, apressou-se a dar-me informações sobre a
Sarita.

- Vai progredindo. É claro que sofre as dores de todas as fracturas, mas é uma mocinha
forte. Como sabe muito bem, estamos em terra de bruxos, e estes avisaram-na da sua
chegada. Manda-lhe cumprimentos lá do lugar onde está a descansar, e este bilhete. Tome.
Numa folha escrita com letra trémula, a Sarita dizia que, logo que viu o “Nishin Maru” no
estaleiro da armada, decidiu fotografá-lo, e parece que não tomou as devidas precauções
para o fazer. Levou os rolos de película ao laboratório fotográfico de um amigo e, quando
ia a sair com as fotografias, dois desconhecidos atiraram-lhe com um automóvel para cima.
Mal lhes pôde ver as caras, mas tinha a certeza de que se tratava de Chilenos. Arrancaram-
lhe o material e deixaram-na estendida no meio da rua. A Sarita agradecia-me o facto de eu
ter arranjado maneira de a levarem para um lugar seguro, pois no hospital ameaçaram-na de
morte se abrisse a boca. Ela não sabia que era tudo obra de Nilssen, e preferi não fazer
perguntas a tal respeito. Confiava em Nilssen, e confiar em alguém é um dos melhores
sentimentos que podemos acalentar.

- E agora que vamos fazer, capitão?

- Saímos para o norte com o “Pájaro Loco”, para que possa ver o “Nishin Maru”, e
depois para o sul, ao encontro do “Finisterre”.

O “Pájaro Loco” era um lanchão de quilha chata, capaz de voar à superfície da água
propulsionado por dois poderosos motores diesel. O que se chama um barco de matuteros,
de contrabandistas dos mares austrais. Era tripulado por Don Checho, homem parco de
palavras, e um arrais alcunhado de «o sócio», que mais tarde me deu lições de alta cozinha
enquanto navegávamos a quarenta nós e com ondas de um metro.

Zarpámos com rumo noroeste ladeando a ilha de Calbuco, e passada meia hora de
navegação entrámos na enseada do Reloncaví. Puerto Montt perfilou-se no horizonte a
norte, e um leve golpe de leme antes de passarmos em frente do cais militar permitiu-nos
chegar às imediações do estaleiro da armada.

Sim. Era o “Nishin Maru”. Comparei-o com uma fotografia que trazia. Era o mesmo
“Nishin Maru” que a Greenpeace bloqueara no porto de Yokohama. Apresentava o lado
de bombordo muito deteriorado, como se tivesse sofrido numerosas colisões, e havia um
enxame de operários todo entregue aos trabalhos de reparação.

- Contra que diabo é que ele chocou?

- Contra o mar. Como pode ver, encontra-se muito longe da ilha Maurícia.

- Este barco, sim. Mas o “Nishin Maru” II navega efectivamente por essas paragens. - E
contei ao capitão Nilssen tudo o que averiguáramos acerca dos falsos desmantelamentos
que permitem a navegação ilegal.

- Pois, quem disse que a pirataria já tinha acabado? Bem. Já o viu e sabe que é verdade.
Agora falta-lhe ver o melhor. Don Checho, rumo sul a toda a força.

O “Pájaro Loco” fez uma viragem de cento e oitenta graus e tomou o rumo sul, abrindo
uma larga ferida de espuma na ondulação.

- É melhor descermos para fazermos companhia ao sócio. Este vento abre cortes na cara,
mas antes quero que veja uma coisa interessante. Sabe o que é aquilo?

O capitão Nilssen apontou para um monte de cor alaranjada que se erguia junto do porto.
Subindo pelas encostas moviam-se vários camiões e bulldozers. Lá em cima viam-se
algumas gruas.

- Um monte. Sei que parece esquisito, mas não me lembro de monte nenhum ao pé do
porto.
- Não é esquisito. É um monte novo, e não nasceu de nenhuma irrupção subterrânea. É
um monte de estilhas. Um dos muitos montes de estilhas que ornamentam de há cinco
anos para cá o litoral do sul chileno. Assim findam os bosques, madeiras nobres, arbustos,
tudo acaba feito em estilhas e embarca para o Japão. Matéria-prima para a indústria do
papel. Há quem diga que é o preço que temos de pagar pelo prazer de ler, mas não tenho a
certeza. Saquear o bosque original é muito mais rendoso que investir em projectos
florestais.

A visão daquele monte de estilhas provocava feridas muito mais dilacerantes do que as que
o vento ameaçava abrir na cara.

Acomodámo-nos debaixo da coberta numa espécie de cabina que não nos permitia estar de
pé e, enquanto Nilssen abria uma carta marítima, o sócio contou-nos todos os pormenores
do estufado de borrego que nos ia servir ao almoço. A intervalos regulares subia à ponte,
combinava qualquer coisa com Don Checho e regressava para pisar condimentos no
almofariz.

- Entrámos no golfo de Ancud. Como vê, águas tranquilas. Se estiver de acordo, vou-lhe
adiantando alguma coisa da história.

- Agradeço-lhe.

- Bem. Como sabe, eu também tive conhecimento da autorização para matar baleias-azuis
mas não lhe liguei importância. Não naquela altura. Não à entrada do inverno. Por isso,
quando vi o “Nishin Maru” diante de corcovado, pensei na revelação do Pedro pequeno e
não tive dúvidas acerca das suas intenções; andava atrás das baleias calderón. Mas havia
qualquer coisa que não encaixava.

Se os japoneses também estavam ao corrente do esconderijo dos cetáceos, então deviam


ter-se abastecido num porto bem fornecido e nunca tão a norte. Deviam ter fundeado em
Punta Arenas, o último porto de abrigo antes da Antárctida, e, depois de reabastecidos,
zarpar com rumo norte para a baía salvação, para depois navegarem com rumo leste, para
os fiordes. Havia qualquer coisa que não encaixava. Puerto Montt é um miserável armazém
de provisões e o “Nishin Maru” nem sequer se aproximou dos molhes. Fundeou diante de
corcovado à espera de algo importante, e o Pedro pequeno e eu esprememos os miolos a
pensar no que seria.

"Soubemo-lo logo na manhã de 4 de Junho. Um pequeno helicóptero de dois lugares


sobrevoou o barco várias vezes tentando poisar numa plataforma de metal leve instalada na
coberta da popa. Não conseguiu porque começou a soprar o puelche. Sabe de que é que
estou a falar?

O puelche. Lá para o fim do Outono começam a sentir-se as primeiras rajadas dos ventos
provenientes do atlântico, ventos que varrem a pampa, que avançam sem encontrar
barreiras nas cordilheiras tosquiadas da Patagónia argentina e, pouco antes de chegarem ao
litoral chileno, roçam as cordilheiras baixas de Quatro Pirâmides e de Melimoyu,
contagiando-se com o bafo gelado dos gelos eternos. Quando alcançam o mar de frente
para o extremo norte do arquipélago das Guaitecas, chocam com os poderosos ventos
vindos do pacífico, e trocam o percurso leste-oeste por outro norte, e assim continuam até
atingirem os golfos de Ancud e Reloncaví com rajadas geladas de fazer estremecer as
pedras. Quando sopra o puelche o melhor é ficar em casa, dizem os marinheiros chilotes.

- Via-se o puelche chegar agreste. O “Nishin Maru” levantou ferro e navegou até Puerto
Montt. Só aí é que o helicóptero conseguiu poisar e, depois de o amarrarem com cabos e
lonas, o barco fez-se ao mar aberto rumo a sudoeste, procurando a saída do canal de
Chacao pelo sul do golfo de Los Coronados, em frente do cabo Huechucuicui. Não
atinávamos com a razão do helicóptero, mas não havia dúvidas de que o capitão Tanifuji
tinha pressa. Enfrentava um temporal de duração indefinida saindo para o alto mar, e ao
mesmo tempo avançava a toda a força rumo ao sul. Está a seguir-me na carta?

Acompanhava-o com toda a atenção. Enquanto ia falando, a mão direita do capitão


Nilssen fazia navegar com rapidez o dedo indicador pela carta marítima, e custava-me a
memorizar os nomes das ilhas, cabos, golfos e outros acidentes.

Pedi-lhe uns momentos de descanso para me familiarizar com a carta, aceitou, e deixou-me
diante da folha desdobrada salpicada de milhares de manchas verdes.

Antes de subir para a coberta, o capitão Nilssen olhou para mim divertido.

- Não é necessário aprender a carta. É impossível. Ninguém é capaz de reter tantos nomes
nos miolos. Antes de o deixar, conto-lhe uma anedota: um bom amigo meu, um marítimo
chilote que merece o título de lobo do mar, trabalhou durante muitos anos como patrão de
alto mar no estreito de Magalhães. O homem pegava no leme de qualquer barco e
conduzia-o sem problemas para o pacífico ou para o atlântico. Mas o meu amigo tinha o
pecado de nunca ter estudado numa escola naval e, para cúmulo dos seus males, era
socialista. Quando veio o golpe militar de 73 e os tropas se apoderaram de tudo, a
governação marítima de Punta Arenas notificou-o para fazer um exame antes de lhe
renovar a licença de patrão de alto mar. Pois muito bem, o meu amigo César Acosta e os
seus quarenta anos de experiência sentaram-se diante de um imbecil com o posto de
tenente da marinha. O oficialzito estendeu uma carta marítima do estreito e disse-lhe:
"indique-me onde estão os bancos de areia mais perigosos." O meu amigo coçou a barba e
respondeu-lhe: "se o senhor sabe onde estão, felicito-o. A mim, para navegar, basta-me
saber onde não estão".

Pouco antes do meio-dia subi também à coberta e fui dar com os três homens a tomar
chá-mate, sem se preocuparem com o horizonte nebuloso que mal deixava ver os
contornos das ilhas.

Deixámos para trás as ilhas Chauquenes, Tac, Apio, Chulín, e às duas da tarde entrámos
na enseada de Puerto Chaitén para carregar combustível e saborear um estupendo estufado
de borrego perfumado com louro e cravo-de-cabecinha.

- Vamos descansar uma hora. Procure estender as pernas e esvaziar o corpo. Agora segue-
se um bocado de caminho difícil e não é agradável fazê-lo nesta lata de sardinhas. Umas
quantas milhas mais para sul e entramos em corcovado. Sabe que tem sorte? Quando
seguimos o “Nishin Maru” por esta mesma rota tivemos um tempo parecido - indicou-me
o capitão Nilssen enquanto o sócio consultava Don Checho sobre os seus desejos
gastronómicos da tarde.

A baía de corcovado abre-se umas vinte milhas a sul de Puerto Chaitén. No Verão, e sem
ventos, apresenta uma superfície lisa que permite apreciar o fundo marinho com uma
insuperável transparência, mas no inverno e com águas agitadas do pacífico aberto é um
caminho demoniacamente perigoso.

Umas quarenta milhas separam a baía da costa oriental de Chiloé. O ponto mais austral de
Chiloé é separado da ponta norte do arquipélago das Guaitecas por um canal de outras
trinta e tantas milhas de largura. As fortes correntes do pacífico entram por esse canal, mas
no meio dele chocam contra a ilha Guafo e dividem-se para se reencontrarem com maiores
brios no centro do canal, e assim avançam formando assombrosos remoinhos até
esbarrarem contra a baía de corcovado, alargando-a com os séculos, tirando volume aos
escarpados farilhões do ventisquero corcovado, que desce a sua mole de granito a pique até
ao mar.

Foi uma travessia dura. Don Checho e o capitão Nilssen revezaram-se ao leme e eu lutei
por manter o estômago num lugar qualquer do corpo que não fosse os pés nem a cabeça,
enquanto o sócio, com os seus utensílios de cozinha bem amarrados ao fornilho com tiras
de oleado, se entregava aos preparativos para o jantar.

Acho que o “Pájaro Loco” fez no ar a maior parte da viagem. Tocava na água para tornar
a levantar-se no meio de furiosos estampidos e queixumes da alarmada mastreação. Às
cinco e meia da tarde já estava escuro e, de repente, milagrosamente, entrámos numa
enseada de calma. Depois de dar uma pequena volta a sudeste de uma ilhota, Don Checho
parou os motores e o sócio saltou para terra.

Don Checho falou-me pela primeira vez em toda a viagem.

- Divertiu-se, compadre? Agora estamos a sul da ilha refúgio. Chama-se assim porque as
alturas da cordilheira de Melimoyu a protegem do vento. Lá por cima está a soprar o
puelche, mas vai cair umas doze milhas para oeste. Sócio, que é que se come?

O arrais saudou a repentina loquacidade do patrão com um eufórico: "chupe de cholgas!".

Sentados na coberta, jantámos um formidável pudim de cholgas, que são uns mexilhões
do tamanho de uma mão e de uma irresistível cor rosada. Veio a sobremesa enquanto
comentávamos os pormenores da viagem, e interessei-me por saber mais qualquer coisa
acerca daqueles homens. Fiz umas perguntas, a que responderam com desanimadores
monossílabos, e a conversa parecia não ter futuro, até que me interessei pelas características
dos motores e por onde os tinham adquirido.

Soltaram os dois uma gargalhada.

- Conto, chefe? - perguntou o sócio.

- Claro. Se anda com o Nilssen, é de confiança. Mas sem exagerar, sócio. Não lhe ponha
muita porcaria.
- Ai, ai, ai, que chefe eu tenho! Olhe. Dantes tínhamos um motorzinho tísico que andava
quando queria, e não tínhamos meios para comprar outro. Um dia, ou melhor, uma noite,
deus que é grande e gosta da sua canzoada mandou-nos a aliança para o progresso. A
palavra Unitas diz-lhe alguma coisa? São umas manobras navais que os americanos e os
chilenos fazem. Bem, deu-se o caso que os gringos foram pilhados por uma tempestade
enquanto andavam a brincar às invasões na baía de Cucao, na costa oeste de Chiloé, e
deixaram abandonados dois lanchões de desembarque, daqueles grandes com ponte
levadiça e tudo. O chefe e eu vimo-los e dissemos: "puxa, que os gringos são generosos.
Deixam-nos estes motorzinhos de presente". Desmontámo-los e aqui os tem. E pensar que
há gente mal agradecida que se queixa dos gringos.

- Mas esses motores devem ser muito pesados, e o que vocês tinham...

- Já lhe disse que deus gosta da sua canzoada. Andávamos casualmente no “Finisterre” e
naquele barco entra tudo.

O sócio terminou o seu relato e entregou-se à lavagem dos pratos e dos tachos. Sentado
na coberta, acendi um cigarro e senti que começava a querer bem ao “Finisterre”.

Com os primeiros alvores de 23 de Junho deixámos para trás o embarcadouro natural da


ilha refúgio e continuámos a nossa navegação para o sul.

As águas apresentavam-se calmas e cristalinas, apesar de a rádio dar informação de fortes


ventos no mar aberto. A temperatura não passava dos dois graus à entrada norte do canal
de Moraleda. Passámos pelo leste em frente das ilhas Tilo e Madalena. Pelo oeste, vimos as
Guaitecas, as Leucayec, as Chaffers, Carrao, Filomena, Huenahuec, Trânsito, Cuptana,
Melchor e centenas de ilhotas anónimas, povoadas de focas e aves marinhas que
contemplavam impassíveis a passagem do “Pájaro Loco”.

- No dia 7 de Junho vínhamos a navegar precisamente por aqui - começou a dizer o


capitão Nilssen -. Tínhamos localizado a frequência do rádio do “Nishin Maru” e
podíamos calcular que o tínhamos muito por perto. Só as ilhas nos separavam. O japonês
navegava a umas cem milhas da costa, e esse dado disse-nos que o tempo jogava a nosso
favor. Para entrar no golfo de penas e procurar os esconderijos das baleias, teria que dar
primeiro uma volta por oeste e depois pelo sul, esquivando-se aos bancos de areia que
rodeiam a península de Taitao.

Nós conhecemos um atalho, como vai ver, e dispúnhamo-nos a esperar por ele na entrada
norte do canal de Messier, bloqueando-a com o “Finisterre”. Mas Tanifugi estava mais bem
informado do que nós pensávamos e é astuto como um raposo esfomeado. Vai ver por que
é que digo isto, mas, antes, já que aqui estamos, quero mostrar-lhe uma coisa interessante,
embora nada tenha a ver com a nossa viagem. Olhe, aquela mancha verde que temos a
bombordo é a costa norte da ilha Melchor, separada da ilha vitória por um canal de
escassos metros de largura e pouco fundo. Esse canal sem nome vai dar a uma enseada em
frente das ilhas Kent e Dring, por oeste, e era um bom refúgio para os piratas do passado.
O meu pai navegou por aquele canal, e a ele se devem as medições de profundidade que
aparecem nas cartas. É muito possível que naquela enseada tenha começado a lenda do
navio fantasma, do “Caleuche”, embora o barco tivesse originalmente outro nome:
“Cacafuego”.

- “Cacafuego”? É a primeira vez que oiço tal nome.

- Não me admira. O primeiro capitão dele chamou-se Alonso de Méndez e durou três
semanas no cargo. Morreu pendurado da verga maior por ordem do seu segundo capitão,
Francis Drake.

- O corsário?

- Ele mesmo. Sir Francis Drake. Em 1577, Francis Drake atravessou o estreito de
Magalhães com uma frota de sete bergantins. Apenas um, o “Golden Hind”, sobreviveu à
travessia, e com ele atravessou Drake para o norte, saqueando algumas cidades chilenas e,
mais tarde, do Perú. No Callao teve a sorte de topar com o “Cacafuego”, navio construído
em estaleiros do novo mundo, mal defendido, mas excelente para carga. O “Cacafuego”
transportava um grande carregamento de ouro e prata, tão grande que Drake não o pôde
transbordar para o “Golden Hind” e afundar logo o navio de bandeira espanhola.

"O corsário viu-se perante um dilema: ou arrastava o pesado “Cacafuego” como um lastro
para o norte, em busca de novas presas e, sobretudo, de um par de bons navios que lhe
permitissem transbordar os metais preciosos, ou deixava o barco apresado sob o comando
de um homem de absoluta confiança. Optou pela segunda alternativa e nomeou capitão do
“Cacafuego” Williams O'barrey, um sanguinário irlandês com a cabeça a prémio pela Liga
Hanseática.

"Era o inverno de 1577. Drake sabia que nenhum navio espanhol viria do sul, e por isso
lançou-se a todo o pano rumo ao norte, esperando surpreender novas embarcações
espanholas na foz do rio Guayas. O’barrey ficou com o comando de uma tripulação de
trinta homens e com instruções para esperar pelo regresso de Drake.

"Naquele tempo só havia dois motivos que levavam os corsários a amotinar-se: excesso
de fome ou excesso de ouro. O segundo levou o irlandês à desobediência e, em Julho desse
ano, soltou as velas rumo ao sul e com o barco carregado até mais não poder ser. Em três
meses, O'barrey conseguiu fazer duas mil e quinhentas milhas, e em Outubro daquele ano
foi surpreendido por um forte temporal muito perto daqui, quase em frente da ilha Lemu.

"O navio, excessivamente carregado, não o deixou fazer-se ao mar aberto para fugir ao
temporal e procurou refúgio na enseada formada pelas ilhas Melchor, Vitória e Dring.
Melhor fora que não o tivesse feito, pois quando o temporal amainou descobriu três navios
da armada espanhola a bloquear-lhe a saída. Tardara de mais na sua tentativa de alcançar o
estreito de Magalhães. O “Cacafuego” contava apenas com dois canhões e com os
mosquetes da tripulação para se defender. Os navios espanhóis, pelo contrário, estavam
bem artilhados, e os corsários sabiam que o que os esperava era a forca. O’barrey, num
impulso de optimismo, julgou que encontraria indulgência nos sitiantes em troca de lhes
entregar a presa, mas os seus homens não lhe perdoaram a cobardia e penduraram-no na
mesma verga em que antes haviam pendurado o infeliz capitão Méndez.

"Ao anoitecer, caiu sobre a enseada uma espessa neblina, e os sitiantes não perceberam a
manobra evasiva do “Cacafuego”.

"Os corsários navegaram cinco milhas para sul da enseada e, por uma passagem
estreitíssima que separa as ilhas Vitória e Dring, saíram para as águas do canal agora
conhecido pelo nome de Darwin. Eram excelentes marinheiros aqueles corsários, e o seu
timoneiro devia ser um tipo que pensava com as mãos. A neblina deve ter coberto todo o
litoral por vários dias, pois de outro modo não se explica que os sitiantes tenham demorado
quatro dias inteiros a descobrir o navio fugitivo noventa milhas mais a sul, à entrada do
golfo de penas, que assim se chamou até que os cartógrafos eliminaram a letra ñ.

"Os espanhóis poderiam ter atacado os corsários no golfo, mas não o fizeram talvez para
evitar que os sitiados afundassem o navio. Quando penduraram o capitão O'barrey tinham-
se mostrado dispostos a tudo menos a entregar-se, e deixaram-nos entrar no canal de
Messier. Os espanhóis desconheciam os canais. Nunca lhes interessaram, como também
lhes não interessaram as terras do sul do mundo, quem sabe se atemorizados pelas
descrições de monstros e de seres de pesadelo que supostamente habitavam as ilhas. A
única vez em que os espanhóis mostraram interesse por estas bandas foi quando Francisco
de Toledo ordenou a conquista de Trapananda, palavra que é ainda um mistério, e apenas
movido pela hipotética riqueza da fabulosa cidade perdida dos Césares. Deixaram-nos
entrar no canal de Messier e esperaram que a fome e o desespero os fizessem sair para o
mar aberto.

"Para se assegurarem de que não os perderiam outra vez, dividiram entre si o


patrulhamento do litoral. Um navio ficou no golfo de penas, à entrada norte do canal.
Outro avançou cem milhas para sul até à saída do canal Dinley, e o último postou-se entre
a ilha Madre de Dios e a baía Salvação.

"Foi uma manobra bem pensada: os corsários alguma vez teriam que sair, e se pretendiam
fazer pelos canais as quinhentas milhas que os separavam do estreito de Magalhães, o navio
postado em frente da baía salvação havia de vê-los e poderia bloquear-lhes a passagem.

"A espera prolongou-se por catorze meses, e o “Cacafuego” não deu sinais de vida, até
que os sitiantes, reforçados por outros quatro navios, se lançaram à procura pelos canais.
Nunca os encontraram. Ninguém sabe se o “Cacafuego” chegou alguma vez ao mar aberto,
mas existem centenas de lendas de Onas, Iagãs e Alacalufes que falam de indivíduos loiros
desembarcando ouro nas ilhas para aligeirar o barco. E dizem as lendas que os tripulantes
esvaziavam os porões, mas ao regressarem a bordo os encontravam outra vez cheios.
Também são muitos os ilhéus que juram ter visto um barco que, de velas em farrapos,
navegava pesadamente, e entre as brumas escutavam-se os lamentos dos seus tripulantes
que imploravam a liberdade do mar aberto.
"Eu conheci alguns marinheiros como o velho Eznaola, um basco de Puerto Chaitén, que
ainda sai com o seu cúter engalanado com galhardetes de perdão concedido, para pôr fim à
maldição do pirata O'barrey e tirar aqueles pobres diabos da clausura.

"Talvez o “Cacafuego” seja o “Caleuche”. E, se não for, que importa? Nestas águas há
espaço para muitos navios-fantasmas...

Ao anoitecer torcemos para leste da ilha Vitória para entrar pelo Paso del Medio, ao norte
da ilha Queimada, e entrámos no grande fiorde de Aysén.

Navegando quarenta milhas pelo fiorde, pelo continente adentro, chega-se a Puerto
Chacabuco, e às cidades criadoras de gado de Aysén e Coyaique, capital da Patagónia. Mas
o “Pájaro Loco” atracou em Caleta Oscura, à entrada do fiorde.

O sócio fez-nos recuperar da viagem com um suculento guisado de mariscos e algas, e


depois do jantar o capitão Nilssen informou-me que ainda nos faltavam umas horas de
navegação para chegarmos ao “Finisterre”.

- Umas horas e mais um bocado. Palavra que me esqueci de lhe perguntar: sabe montar?

- Sei. Embora nunca me tenha notabilizado como cavaleiro.

- Não interessa. São uns setenta quilómetros por terreno escarpado. Mas não se assuste. O
cu é a parte do corpo que mais depressa esquece os maus tratos.

Às cinco da manhã de 2 de Junho deixámos Caleta Oscura e enfiámos pelo canal Costa,
rumo ao sul. Navegámos quase em linha recta, quase sem tocar no leme, por uma via com
uma milha de largura. Tínhamos a oeste a ilha Traiguén e a leste os gelos da cordilheira de
Hudson. Trinta milhas mais a sul, e tendo como ponto de referência a leste a ilha Simpson,
entrámos no fiorde Elefantes, costeando a sua margem oriental junto das neves eternas da
cordilheira de São Valentim, que empina os seus quatro mil metros de solidão aguçada
pelos ventos. No centro do fiorde, e movendo-se delicadamente pelas suas águas mansas,
vimos dezenas de golfinhos cruzados, belos animais de pele escuríssima, listrados com
pinceladas de prata nos lombos. Aproximaram-se do “Pájaro Loco” com a naturalidade de
quem saúda um velho conhecido e agradeceram os peixes que o sócio lhes atirou com
graciosos saltos. Setas de noite e de prata suspendendo os seus dois metros no ar,
mergulhando e emergindo junto do barco, dizendo-nos algo indecifrável com as suas bocas
miúdas de dentes ambarinos. Don Checho deu um toque de leme para aproximar o “Pájaro
Loco” da escarpada e verde costa ocidental. Navegávamos diante da península de
Sisquelán, e poucas milhas mais a sul iríamos encontrar a intransponível barreira gelada dos
ventisqueros da laguna de São Rafael.

O ar anunciava-nos a presença dos gelos eternos, dos seiscentos mil hectares de glaciares
que começam no extremo sul do fiorde Elefantes, e onde ainda apenas há um século se
reuniam os Chonos, os Alacalufes, os Onas e os Chilotes para esquartejar alguma baleia
dada à costa, para trocarem peles, caçar focas ou elefantes-do-mar, saldar velhas contas
com a vida e com a morte, e para que os deuses marinhos prenhassem as virgens e
enchessem as cabeças dos mocetões com promessas de felicidades e prazeres.

Passou por estas bandas um inglês e olhou para eles sem entender nada. Escreveu: "tristes
solidões onde a morte parece reinar soberanamente mais que a vida". Não entendeu nada, e
por isso mentiu, como bom inglês. Chamava-se Charles Darwin.

- O que estamos a ver não é normal - esclareceu o capitão Nilssen.

- Os cruzados são golfinhos de mar aberto. Estes escondem-se no fiorde e não deixam de
ser amistosos. Talvez captem que não somos inimigos. Quem sabe. Às vezes os golfinhos
parecem-me muito mais sensíveis que os seres humanos, e mais inteligentes. São a única
espécie animal que não aceita hierarquias. São os anarquistas do mar.

Os golfinhos continuaram a saltar até que tocámos em terra. É possível que o seu feitio
amistoso seja mais forte que o instinto de conservação.

Atracámos num molhe natural formado por rochas planas. O espectáculo dos golfinhos
impediu-me de ver o homem que nos esperava embrulhado num grosso poncho de
Castela, e era difícil ignorá-lo, porque o Pedro pequeno era enorme.

Pude apreciar-lhe a estatura quando se aproximou para cumprimentar o capitão Nilssen.

- É o homem que escreve? - perguntou ele.

Nilssen fez as apresentações e o gigante estendeu-me a sua mão aberta.

Depois de comermos um reparador guisado de algas, luche e cochayuyo, despedimo-nos


de Don Checho e do sócio. Acho que sempre me espantarão os pratos que este preparava,
indiferente à ondulação e ao vento, ou talvez usando uma coisa e outra como outros tantos
condimentos.

O “Pájaro Loco” zarpou rumo ao norte, e o Pedro pequeno levou-nos até aos cavalos,
três matungos peludos a deitarem vapor pelos focinhos e que não se deixavam montar de
muito boa vontade. Entregou-nos também esporas de roseta larga e ponchos de Castela, e
iniciámos a cavalgada.

O céu desanuviou-se e, assim, desfrutámos de um panorama de cordilheiras baixas, lagoas


de água doce, riachos, bosques e grutas onde se encontram talvez os tesouros do
“Cacafuego”. A noite caiu muito depressa e continuámos a cavalgar debaixo de uma nuvem
de estrelas que se repetiam e se multiplicavam reflectidas nos glaciares e nas paredes do
tentisquero de São Valentim, uma barreira intransponível que corta a península de Taitao.

Taitao entra umas oitenta milhas pelo pacífico adentro. No seu extremo mais a sudoeste
estreita-se numa delgada franja que, vista no mapa, parece uma boca afunilada soprando
para o continente para formar a bolha verde da península dos Três Montes e as bolhinhas
menores das ilhas Crosslet.
Embora fizessem apenas dois graus abaixo de zero, a noite diáfana e a próxima presença do
ventisquero de São Quintino com as suas agulhas de gelo polidas pelos ventos, diziam-nos
que do outro lado da península começavam os territórios do fim do mundo, aqueles onde o
homem não é mais que uma teimosa vontade enfrentando os caprichos e humores dos
elementos. Cavalgámos sempre a trote ou a passo, e íamos tão agasalhados debaixo dos
ponchos de Castela que ninguém pensava numa paragem para não perder calor até que, ao
despontar da madrugada, o Pedro pequeno impôs o direito dos matungos a uma pausa.

Enquanto os cavalos disputavam com a escarcha filamentos de pasto, o Pedro pequeno


preparou um pequeno-almoço de almocreves, pão, charque e chá-mate, que soube às mil
maravilhas naquelas paragens.

Às onze da manhã de 25 de Junho avistámos as águas tranquilas como um espelho da baía


de São Quintino, fechada a sul pelo abraço de outra península, apêndice da de Taitao: a de
Forelius.

Aí nos esperavam dois cavaleiros imóveis nas suas montadas. Eram os irmãos Eznaola,
amigos de Nilssen, filhos do marinheiro basco que ainda hoje tenta libertar da maldição os
tripulantes do navio-fantasma e donos dos matungos que nós montávamos.

Iam levá-los de regresso para a sua fazenda, La Bien Querida, cavalgando uns duzentos e
cinquenta quilómetros para leste, atravessando ventisqueros e cordilheiras até chegarem às
ribeiras do lago Cochrane, na fronteira com a argentina.

Juntamente com os Eznaola, homens dados ao silêncio, fizemos os quilómetros seguintes,


até ao golfo de Santo Estêvão. Lá estava o cúter, baloiçando, nervoso, desejoso de largar.

“Finisterre” era um barco de linhas delicadas. Imaginara um cúter à inglesa, com várias
velas grandes e um conveniente número de velas de proa, mas tinha à minha frente uma
embarcação de uma só vela grande, aninhada numa verga içável, e uma pequena vela de
proa envergada no estai.

Era pintado de verde, e as juntas do madeiramento mostravam a calafetagem feita por


mãos diligentes, sem fiapos. A água transparente do golfo deixava ver parte da quilha livre
de resíduos, e o capitão Nilssen convidou-me a subir a bordo.

Os doze metros de comprido por quatro de boca eram um monumento à sobriedade. O


leme estava a metro e meio da popa, e não tinha ponte. De um dos lados, como uma
sentinela, erguia-se a base de bronze bem polido da bússola, e dois anéis de juta firmemente
ligados à coberta indicavam os lugares onde o timoneiro punha os pés durante as travessias
agitadas.

À popa estava pendurado o escaler, que podia levar quatro pessoas, com os remos curtos
descansando sobre o ventre. A dois metros da proa estava a escotilha de correr, que me
mostrou a intimidade do “Finisterre”.
6

A poderosa mastreação estava polida com esmero. Perto da proa arrumavam-se os


aparelhos e as ferramentas. Ao centro, dois beliches e uma mesa. De um dos lados via-se o
rádio, e para as bandas da popa estavam o motor, a bomba de escoamento, dois tambores
de combustível e a corrente do leme descendo para a quilha por duas entradas de metal
cobertas de borracha. Despedimo-nos dos Eznaola, e o Pedro pequeno valeu-se da cana de
um remo para afastar o navio da margem. Depois soltou a pequena vela de proa, e o barco
deslocou-se com delicada rapidez. Assim fizemos as primeiras milhas rumo ao sul, sempre
sul, e quando o capitão Nilssen içou a vela grande estávamos a entrar no golfo de penas.

- Tome o leme. Sem medo. Está a aproximar-se o fim do mistério, e eu preciso de indicar
certos pontos na carta para que perceba melhor tudo o que vai ver. O Pedro pequeno não é
tão bom cozinheiro como o sócio, mas a estender linguados na grelha é insuperável.
Alguma vez comeu linguado embrulhado em sal? Prepare-se para uma coisa boa e dê
atenção ao que vou dizer-lhe.

"Vê aquela mancha a bombordo? É a ilha Xavier. Atrás é o canal Chear e uma série de
fiordes que chegam a entrar vinte milhas pelo continente adentro. Na manhã de 8 de Junho
começámos a ser atingidos por um vento de sudoeste que parecia um furacão, com mais de
quarenta nós, que nos impediu de fazer a manobra planeada, quer dizer, chegar ao centro
do golfo de penas e entrar a todo o pano pela entrada norte do canal de Messier.
Pensávamos fundear às ocultas no Paso del Suroeste, que liga o canal com o mar aberto,
separando as ilhas Byron e Juan Stuven. Dessa posição ter-nos-ia sido fácil bloquear a
passagem ao japonês, mas o maldito vento soprava cada vez com mais força e obrigou-nos
a procurar segurança no canal Chear. Por volta do meio-dia o golfo tinha ondas de três
metros, e parece que o capitão Tanifuji não ligou ao nome do lugar por onde navegava. A
ventaneira e a ondulação obrigaram-no também a procurar refúgio e vimos o “Nishin
Maru” aparecer pela entrada sul do canal Chear.

"Estávamos separados por pouco menos de meia milha. Podíamos distinguir inteiramente
o perfil do “Nishin Maru”, mas eles viam-nos só parcialmente. Ao escurecer perderam-nos
de vista por completo e então procuraram-nos com a rádio, pela frequência da capitania de
Punta Arenas. O rádio-operador, num castelhano achavascado, perguntou-nos se
estávamos em apuros. Respondemos que não, acrescentando que éramos marisqueiros
surpreendidos pelo temporal. Depois de uma longa pausa procuraram outra vez contacto,
agora para nos dizerem que estávamos a falar com um navio da armada, que estávamos
numa zona de manobras, e ordenaram-nos que largássemos para norte. Respondemos que
sim, senhor, e passámos a noite a observar as luzes do “Nishin Maru” no horizonte sul.

Ao amanhecer a ventaneira declinara um pouco, mas a sua orientação não variou:


continuava a soprar de sul. O canal de Messier disparava-a como um jorro de ódio por
cima de nós. Para sair dali, fomos ao longo da costa norte da ilha Xavier e, cortando as
ondas quase de lado, chegámos à parte oeste do golfo. Depois de passada Punta Anita,
recebemos os bons ventos do pacífico, ventos que sopram de oeste para noroeste, e
pusemos o barco a todo o pano para atravessarmos o golfo em diagonal. Conseguimo-lo
com o risco de quase partirmos o leme.
Sabíamos que levávamos várias milhas de vantagem ao “Nishin Maru”, mas, ao passarmos
em frente do canal de Messier, a umas trinta milhas da abertura norte, o maldito vento
atirou-nos contra a boca de canais, que dá entrada para um labirinto de fiordes que chegam
a entrar cem milhas pelo continente adentro, fiordes em comunicação através de passagens
muito estreitas e que muito poucos homens conhecem. O meu pai foi um deles, e o Pedro
pequeno é capaz de as encontrar de olhos fechados. Ali ficámos. Não podíamos fazer outra
coisa senão esperar que o vento amainasse. Estávamos a vinte milhas da entrada norte do
canal de Messier.

"Dessa posição vimos aparecer o “Nishin Maru” pelo centro do golfo. Ia a toda a força de
máquinas na direcção do canal. Não podíamos competir nessa corrida e vimo-lo chegar lá
costeando a península de Larenas.

Tanifuji conhecia muito bem o seu destino e a sua rota: faria as primeiras quinze milhas
pelo canal de Messier com rumo sul, e depois trinta e cinco para sudoeste pelo canal de
Swett, entraria no estreito Baker, por onde seguiria vinte milhas em linha recta com rumo
leste, para desembocar finalmente na grande enseada sem nome, fechada pelo continente e
pelas ilhas Videnau, Alberto e Merino Jarpa. Nessa enseada há mais de cinquenta fiordes, e
neles se refugiavam vários grupos de baleias calderón.

"Nós colhemos as velas e entrámos a motor pela boca de canais.

"O primeiro troço não é difícil. Durante as primeiras quarenta milhas o “Finisterre” safa-
se bem nos meandros e nos recifes, mas depois vêm os bancos de algas, e as pás ameaçam
parar a todo o momento. Com tudo isto, ao entardecer chegámos à entrada do canal Tróia,
que separa as ilhas Alberto e Merino Jarpa, e reencontrámos o “Nishin Maru” na grande
enseada sem nome.

"Havia muito pouca luz, mas chegou-nos para conhecer o estilo de caça do capitão
Tanifuji. Alguma vez ouviu falar da caça de cavalos à australiana? É muito simples:
procuram em helicópteros as manadas de cavalos selvagens e esperam a chegada da noite.
Então, usam uns poderosos reflectores que os enlouquecem de medo, e os cavalos desatam
a correr em círculos, sem se afastarem, enquanto os caçadores os metralham do ar.

"Por isso é que Tanifuji esperou pelo helicóptero em Corcovado. E ali, na grande enseada,
metralhava baleias, que acorriam curiosas ao chamamento dos reflectores.

Ao amanhecer, os japoneses continuavam a puxar para bordo baleias mortas. Vimo-los


içar umas vinte, uma após outra, e tinham trabalhado toda a noite sem descanso, pelo que é
impossível saber quantas mataram. A água da enseada fedia a sangue e flutuavam por toda
a parte restos de pele.

"Senti que estava a chegar ao fim de uma longa viagem. Já não me restavam mais infâmias
para ver. Pensei em desembarcar o Pedro pequeno e depois atirar-me com o “Finisterre” a
toda a força contra a casa das máquinas do “Nishin Maru”. Trago quinhentos litros de
combustível a bordo, o que faz um bom molotov. O Pedro leu-me os pensamentos e pela
segunda vez me falou como um estranho: "Não, patrão. Eu sou mais destas águas que o
senhor." E lançou o escaler.
"Vi-o remar em direcção ao “Nishin Maru” e, quando chegou lá, os tripulantes
começaram a atirar-lhe lixo para cima, latas e desperdícios, que o Pedro lhes devolvia sem
conseguir atingi-los. Depois começaram a fustigá-lo com um jorro de água.

"Os japoneses riam enquanto o inundavam, e o Pedro concentrava-se em manter o


escaler a flutuar.

Eu não sabia, não era capaz de imaginar o que é que ele pretendia ao manter-se colado ao
“Nishin Maru”, enquanto os tripulantes até lhe urinavam para cima, e o que depois
aconteceu vai o senhor ver amanhã, mas seria estúpido não lho contar agora.

"A um dado momento, quando mais duas mangueiras se tinham juntado à brincadeira e o
Pedro já quase não conseguia manter-se a flutuar, emergiu junto do escaler o dorso de uma
baleia calderón, que, com todo o cuidado, empurrou o Pedro e a sua embarcação até os
afastar do navio. Então, obedecendo a uma chamada que nenhum outro humano ouviu no
mar, um chamamento tão agudo que estremecia os tímpanos, trinta, cinquenta, cem, uma
multidão de baleias e golfinhos nadaram velozmente até quase tocarem a costa, para
regressarem com maior velocidade ainda e chocarem as cabeças contra o barco.

"Sem lhes importar o facto de que em cada ataque muitos morriam de cabeças rebentadas,
os cetáceos repetiram os ataques até que o “Nishin Maru”, empurrado contra a costa,
correu o risco de encalhar. Levaram-no para muito perto dos recifes e havia pânico a
bordo. Alguns tripulantes insensatos lançaram barcos salva-vidas que mal tocavam na água
eram destruídos com pancadas das caudas. A outros vi-os eu cair à água durante as
investidas. Logo se declarou um incêndio a bordo, o helicóptero ardeu na coberta da popa,
e tanifuji deu ordem para se afastarem a toda a força das máquinas, sem se preocupar com
a sorte dos tripulantes que ainda se agitavam dentro de água e que foram implacavelmente
despedaçados pelas baleias e pelos golfinhos.

"Custa-lhe a acreditar em tudo isto? claro que é incrível, mas amanhã verá com os seus
próprios olhos o lugar e os restos da batalha. Avisei-o de que a história era incrível, como o
é também o facto de terem deixado largar o “Nishin Maru” quando o tinham prestes a
encalhar, e o de terem empurrado o escaler com o Pedro a bordo até ao “Finisterre” sem
sequer lhe tocarem.

"E agora passe-me o leme. Sabe que não o maneja nada mal? O senhor não o segura com
as mãos: sente-o nelas, e é esse o segredo dos bons timoneiros. Prepare-se para uma coisa
boa. O Pedro pequeno tem os linguados prontos.

Naquela noite, ancorados à entrada do estreito Baker, não consegui conciliar o sono.
Acudiam-me à memória todas as histórias marítimas que lera na vida e que se confundiam
com o relato do capitão Nilssen. Bem agasalhado, subi até à coberta. O caprichoso inverno
austral oferecia-me uma noite incomparável. Milhares de estrelas pareciam estar ao alcance
da mão, e a visão do cruzeiro do sul apontando para os confins polares encheu-me de
emoção, de uma força e de uma convicção desconhecidas. Sentia, enfim, que também eu
era de algum lugar. Sentia, enfim, o apelo mais poderoso que o convite da tribo, esse que se
escuta ou julga escutar, ou que se inventa, como um paliativo para a solidão. Ali, naquele
mar sereno mas nunca em calma, sobre aquela silenciosa besta que retesava os músculos
preparando-se para o abraço polar, sob os milhares de estrelas que testemunhavam a frágil
e efémera existência humana, soube por fim que eu era dali, que, mesmo que faltasse ao
encontro, andariam sempre comigo os elementos daquela paz terrível e violenta, precursora
de todos os milagres e de todas as catástrofes.

Naquela noite, sentado na coberta do “Finisterre”, chorei sem dar por isso. E não era pelas
baleias. Chorei porque estava de novo em casa. O dia 26 de Junho amanheceu sem nuvens
e a temperatura baixou violentamente: oito abaixo de zero.

As águas da grande enseada sem nome ofereciam uma quietude plana, e o “Finisterre”
navegando com a pequena vela de proa abria nelas uma delicada cicatriz.

De repente, o Pedro pequeno abanou-me um ombro apontando-me um volumoso corpo


que emergia a estibordo, e pela primeira vez na minha vida presenciei os vigorosos saltos
de uma baleia calderón.

O cetáceo suspendia os seus seis metros no ar, mergulhava pelo lado de estibordo e,
poucos minutos depois, reaparecia a bombordo repetindo a sua prodigiosa ginástica. A
baleia escoltou-nos durante duas horas, até que arribámos ao lugar da batalha, como dizia o
capitão Nilssen.

Flutuavam ainda restos de pele negra, farrapos cor de azeviche de vários metros de
comprimento, como restos de naufrágios devorados pelos peixes que assomavam as
cabeças à superfície.

Na costa da ilha Alberto estavam juntas milhares de aves marinhas e de rapina, vindas das
pampas patagónicas. Davam conta dos restos da carnificina. Podiam distinguir-se com
nitidez as ossadas de muitas baleias e outras menores, talvez de golfinhos ou dos
infortunados tripulantes do “Nishin Maru”.

Lembrei-me de que tinha comigo uma máquina fotográfica. Consultei o capitão Nilssen
sobre se podia ou não fazer umas fotografias, e respondeu-me com voz cansada:

- Isso deve ser você a decidir.

O Pedro pequeno olhava para mim. Descobri então que o gigante tinha uns olhos azuis
intensos e que, ao voltar os olhos para o mar coberto de despojos, uma expressão de
infinita dor se apropriava do seu semblante. Guardei a máquina.

- Pedro, você consegue explicar por que é que as baleias o ajudaram e por que é que antes
não se defenderam?

O Pedro pequeno respondeu sem tirar os olhos do mar.


- Deve saber pelo meu patrão que eu sou Alacalufe. Nasci no mar e sei que há coisas que
não se podem explicar. São, e pronto. A minha gente, os poucos que restam, garante que as
baleias não se sabem defender e que são os únicos animais compassivos. Quando lancei o
escaler ao mar e remei para o barco baleeiro sabia que os tripulantes iriam atacar-me e que
as baleias, vendo-me indefeso, atacado por um animal maior, não hesitariam em acudir em
minha defesa. E assim aconteceu. Tiveram compaixão de mim.

- E que acontecerá com as baleias que restam?

- Vão-se embora. A calderón que nos escoltou é um macho expedicionário. Vão procurar
outras enseadas, outros fiordes lá para o sul, cada vez mais a sul, até se lhes acabar o
mundo - concluiu o Pedro pequeno movendo suavemente o leme.

- Bem. Agora já viu. Pode escrever o que quiser - disse o capitão Nilssen. E acrescentou:

- Não se esqueça de mencionar o “Finisterre”. Os barcos que conheceram o sabor da


aventura apaixonam-se pelos mares de tinta e navegam de gosto no papel.

Epílogo

A 6 de Julho regressámos a Hamburgo. Digo regressámos, porque a Sarita veio comigo.

Com uma perna engessada e uma ligadura ortopédica em redor da barriga, acomodava-se
no avião sem parar de me fazer perguntas sobre o que eu vira nos canais.

Depois de um rápido cruzeiro de regresso, o “Finisterre” deixou-nos em Puerto


Chacabuco, no final do grande fiorde de Aysén, onde os amigos do capitão Nilssen tinham
a sarita a salvo de qualquer ameaça.

De Puerto Chacabuco levaram-nos a Coyaique, e de lá a Balmaceda, na fronteira com a


argentina, para tomar um avião que nos levou a Santiago.

Haviam passado escassos dias desde que me despedira do capitão Nilssen, do Pedro
pequeno, do “Finisterre” e, contudo, eles surgiam-me muito ao longe na memória
enquanto voávamos atravessando o cone sul da América.

- Que vai fazer, capitão?

- Enquanto o “Finisterre” se mantiver a flutuar, navegarei. Diga lá aos da Greenpeace que


contem com ele. É um bom barco.

- E tem a melhor tripulação que é possível imaginar.

- Faz-se o que se pode, não é, Pedro?


- Capitão, não sei se nos tornaremos a ver. Também não sei se escreverei qualquer coisa
acerca do que vi. Antes de sair de Hamburgo, os da Greenpeace deram-me esta flâmula. É
o emblema da organização. Penso que se verá bem no mastro do “Finisterre”.

- Obrigado. Nós também temos um presente para si, bem, para o seu filho. Ele pediu-lhe
uma concha para ouvir o seu mar, não foi?

- capitão... Pedro...

- Boa viagem...

Santiago, Buenos Aires, Rio de Janeiro. O atlântico debaixo de capas de espuma branca.

- Anda, hamburguês postiço, diz-me lá em que é que estás a pensar.

- Na clínica a que te vamos levar. Vais ver como dentro de pouco tempo podes jogar
ténis. E nos litros de cerveja que te vamos obrigar a beber.

- Não vais escrever nada, pois não? Tudo ficará em ti como um grande segredo. Seja o
que for que tenhas visto, disse-te que também és de lá, e esse «ser de lá» é um voto de
silêncio.

- Não sei se vou escrever alguma coisa. Mas a ti, aos da Greenpeace e aos meus sócios
vou contar-lhes uma história, uma só vez, e vocês decidirão se acreditam nela ou não. E
quanto a ser de lá, sim, nunca tive tanto a certeza disso. Penso em certas palavras do
capitão Nilssen. Quando me falou da sua vida referiu-se a um barco que já não existe como
o mais próximo da ideia de uma pátria...

Vinte horas mais tarde, a Europa.

A Sarita dormia placidamente, a salvo de qualquer ameaça, e eu pensava no reencontro


com os meus filhos. Imaginava o gesto com que o mais velho receberia a belíssima concha
que Nilssen e o Pedro pequeno me tinham oferecido.

Era uma concha de loco. É um molusco gigantesco que só existe nos mares austrais.
Tirei-a do saco e acomodei-me com ela colada ao ouvido. Sim, não havia dúvida, aquele era
o violento eco do meu mar. O vozarrão áspero e seco do meu mar. O tom eternamente
trágico do meu mar.

Talvez o facto de pensar nos meus filhos me tenha levado a fixar-me no rapazinho
sentado na mesma fila, separado de mim pelo corredor. Teria uns treze anos e lia
concentradíssimo, de cenho franzido pelo fragor da aventura.

Inclinei-me como um intruso despudorado para ver a capa do livro.

O rapaz estava a ler Moby Dick.

Fim
Colecção Pequenos Prazeres

Henry Miller - O Sorriso aos pés da escada

Anónimo - Confissões sexuais de um anónimo russo

Daniel Penac - Como um romance

Joyce Carol Oades - Águas negras

Luis Sepúlveda - O velho que lia romances de amor

Truman Capote - Um natal e outras histórias

Roger Nimier - Contos de natal

Camilo José Cela - Onze contos de futebol

Hugo Claus - A caça aos patos

Alain Lightman - Os sonhos de Einstein

Hervé Guiver - O meu criado e eu

Paul Auster - O Caderno Vermelho

Luis Sepúlveda - Mundo do fim do mundo

Sinopse:

Um adolescente entusiasmado pela leitura de Moby Dick aproveita as férias de Verão para
embarcar num baleeiro e conhecer os confins austrais do continente americano, as terras
do fim do continente americano. Muitos anos depois, já adulto, jornalista e membro activo
dos movimentos ecologistas, o acaso fá-lo regressar a essas paragens distantes por uma
razão completamente distinta, mas talvez igualmente romântica. A fauna marítima, que
habita as águas gélidas e impolutas desse fim do mundo do fim do mundo, está a ser
destruída pela acção criminosa dos navios piratas.

Depois de “O velho que lia romances de amor”, publicado nesta mesma colecção, Luis
Sepúlveda volta a oferecer-nos uma obra surpreendente que o confirma como um dos mais
destacados autores da literatura latino-americana de hoje.

Data da digitalização:

Amadora, Janeiro de 1999

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