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MÁRIO VILELA
Universidade do Porto

O ENSINO DA LÍNGUA NA
ENCRUZILHADA DAS NORMAS1

Vou construir as minhas reflexões à volta de necessário encontrar a palavra certa para as diversas
três afirmações produzidas recentemente (Julho- situações comunicativas. Isto é, o homem apenas se
Agosto de 1998) na imprensa escrita brasileira. A realiza por meio da língua, por meio da palavra, e essa
primeira (a), colocada na boca do Presidente da Aca- língua, essa palavra deverão inscrever-se patriotica-
demia Brasileira de Letras («Isto é», nº 1504, mente naquilo que é correcto. A última abordagem
29.7.98), Gustavo Niskier, a outra («Isto é», 1506, vai muito para além do correcto ou incorrecto, situa-
12.8.98), (b), colocada na boca de quem apresenta a se no “adequado”, assinalando que o Ensino da lín-
palavra como algo que transcende a própria comuni- gua é um instrumento de integração do aluno na língua
cação, a terceira, (c), formulada por um professor e no meio social através da interacção.
(Luiz Antônio Ferreira, in: «Educação», 62, Julho Há neste conjunto de posições dois aspectos
1998) de língua portuguesa e bem mais abrangente e essenciais: o primeiro aspecto é o que podemos de-
questionadora. As afirmações são as seguintes: signar como a mapeação da realidade através da lín-
a) «Falar nossa língua corretamente é hoje um gua, seja através do mapa lexical e do roteiro mental
exercício patriótico» da nossa categorização da realidade, seja através da
b) «é com a palavra que a pessoa se coloca no carteação dos figurinos configuradores dos nossos
mundo». mitos colectivos. O segundo aspecto é já mais pro-
c) «O objectivo da escola é criar condições para blemático e exige uma integração de dados bem mais
a aprendizagem do português padrão, e como complexos.
este – normalmente – não é aquele trazido pelos Não vou entrar em grandes discussões a respei-
alunos, começam os conflitos. Na base do mo- to das distinções que Eugenio Coseriu introduziu na
derno raciocínio pedagógico ... é preciso ser dicotomia “langue”-“parole” saussureana, com as dis-
poliglota em nossa própria língua. Assim o usuá- tinções de tipo, sistema, norma e uso, nem nas distin-
rio precisa ser capaz de usar a língua com pro- ções que a sociolinguística tem trazido ultimamente
priedade nas diversas situações de comunicação. para o interior da linguística: apresentarei, sempre
À Escola, portanto, caberia a missão de propiciar apoiado em dados autênticos, algumas reflexões à
o contacto do aluno com a maior variedade pos- volta do tema da “norma e o ensino da língua”.
sível de situações de interação comunicativa,
caberia ampliar a capacidade de análise e produ- 1 Mapeação da realidade
ção de textos ligados aos vários tipos de situa- por meio da língua
ção de enunciação… O perigo [do ensino da
gramática] é ampliar um preconceito antigo de que 1.1 Mapeação lexical
tudo o que foge ao padrão culto é “errado”»
A nossa experiência “corporizada” do mundo
Assim, temos, por um lado, a afirmação “patrió- torna significativa a estrutura conceptual, interferin-
tica” de que a “pátria da língua” se exercita e se prati- do quer nas categorias básicas quer nos esquemas
ca no “falar correctamente” e, por outro lado, a imagéticos de comprensão do mundo2. Em primei-
afirmação “humana” de que é apenas com a palavra ro lugar, o homem ao colocar-se no mundo por meio
que o homem se posiciona no mundo e se afirma como da palavra, coloca o mundo “no seu canto” (PB)3, no
pessoa, finalmente, a afirmação pragmática de que é seu lugar, reduzindo-o a categorias por força da sua

Revista
1
Muitas das informações aqui inseridas foram testadas, na parte brasileira, junto dos Mestrandos de “Linguística Portu- do GELNE
guesa”, na UFC, durante os Seminários que aí dirigi nos meses de Julho e Agosto de 1998. Aos meus Colegas da mesma
Universidade agradeço a disponibilidade para contextualizar e explicitar muitas das expressões e construções tidas como
Ano 1
próprias da “norma” brasileira. No. 2
2
Cfr. Lakoff 1887: 267 1999

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3
Usarei a sigla ‘PB’ para indicar “Português do Brasil” e ‘PE’ para indicar Português na variante europeia.
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experiência perceptiva e motora, da sua experiência jegue será o exemplo típico de uma parte da popula-
vivida corporalmente4. Com isto quero dizer que, ao ção do Ceará, mas não terá esse estatuto, nem em
ensinar-se a língua, deve prestar-se atenção em pri- relação ao Brasil, nem mesmo em relação a uma boa
meiro lugar aos roteiros mentais dos aprendentes. E parte da população do Ceará.
esses roteiros mentais estão inscritos no interior das De qualquer modo, a primeira norma a seguir
mesmas palavras. Estas têm vinculadas a si a sua pró- é ter-se a noção de que os roteiros mentais dos apren-
pria explicação. Assim, não constitui um bom exemplo dentes estão já moldados e modelados pela língua,
a ilustração de um verbo transitivo directo e indirecto língua num espaço e num tempo concretos. As pala-
feita, com base no verbo dar, no seguinte enunciado vras instanciam conceitos já inscritos na língua e os
que a apresentadora do programa para a 7ª Série (Bra- que mais facilmente se descodificam são os que se
sil) forneceu num canal da TV (no dia 13.8.98): aproximam dos exemplares típicos. Mas as taxonomias
não se situam apenas nos objectos da natureza. Tam-
O Ricardo dava trabalho aos professores.
bém nas coisas fabricadas pelo homem se verificam
em que o verbo “dar” não ocorre no seu valor escolhas:
típico (ou, se preferirmos, no seu uso “prototípico”5),
PE PB
que é, evidentemente, o de “transferência de posse”,
vai-e-vem (espacial): ônibus espaciais
nem “trabalho” é o exemplo prototípico de objecto
tubo de escape: escapamento
directo, o “objectum affectum / effectum” implicado
troço de estrada: trecho
no significado do verbo. Como não será um bom exem-
plo do predicativo de objecto directo o que surge no sumo: suco
enunciado, apresentado no mesmo programa: passeio: calçada, calçadão
passadeira: passagem pedestre
O Ricardo deixou a mãe triste. tasca: botequim
em que “triste” tanto pode ter uma leitura de prego: churrasquinho (de carne de vaca)
“atributo” como a leitura de predicativo em sentido leitor de cassetes: toca-fitas
estrito. Não bastará alinhar a exemplificação pela nor- fato: terno
ma, como ainda ter em consideração os usos proto- atendedor automático: secretária eletrónica,
típicos das palavras que tipificam os nossos bilhete: ingresso (ter dois bilhetes: ter dois in-
exemplos. Os verbos dar, deixar, etc., têm usos que gressos)
são mais exemplares do que outros. bilhete de identidade: carteira de identidade
Todos temos a noção de que o mundo se en- atacador: cadarço, etc.
contra reduzido na língua a categorias e, se alguém
quiser apresentar a categorização taxonómica do A mapeação da realidade feita pela língua sele-
mundo6, não vai exemplificar a categoria PÁSSARO, cciona um ou outro aspecto: oculta determinados tra-
com pardal, rola, melro, no Brasil, em Moçambique, ços e salienta outros. Ao que em Portugal chamamos
ou em Macau, ou com sabiá, beija-flor, em Portu- carro descapotável, chamam no Brasil carro conversí-
gal; ou apresentar a lexicalização da categoria HER- vel, a direccção assistida chamam direcção hidráuli-
DADE com xácara, sítio, granja em Portugal, ou ca, a laço chamam gravata borboleta, etc. Os
quinta, quintinha, casa de campo no Brasil; ou ain- aspectos categorizados pela língua têm alguma jus-
da a categoria ÁRVORE com pau-brasil, coqueiro, tificação: “descapotável” e “conversível” são carac-
mangueira, em Portugal, ou carvalho, castanheiro terísticas visíveis e são postas em saliência pela
no Brasil. E os exemplos poderiam estender-se in- respectiva categorização, embora se silenciem ou-
definidamente. tros traços na respectiva lexicalização.
E há mesmo coisas curiosas neste domínio: pode Mas a mapeação feita pela língua não se situa
acontecer que a categoria representativa se situe no apenas nas taxonomias. Vejamos alguns casos pa-
mesmo “denotatum”, como é o caso de “cão”, mas a radigmáticos:
palavra que instancia em primeiro lugar esse conceito PB PE
é, em Portugal, cão, e no Brasil é cachorro, ou pavi- lotado vs. esgotado / cheio (avião lotado / es-
mento (de um edifício) no Brasil e andar em Portugal, gotado, cheio)
o mesmo se dá em parada, ponto (PB) e paragem borrachudo / voador vs careca (relativamente
(PE). E os problemas não acabam aqui: possivelmente a “cheque”)

4
«simple structures that constantly recur in our everyday experience: CONTAINERS, PATHS, LINKS, FORCES, BALANCE,
and in various orientations and relations: UP-DOWN, FRONT-BACK, PART-WHOLE, CENTER-PERIPHERY, etc.» (Lakoff
Revista 5
1987: 267)
Para a noção de protótipo cf. T. Givón 1986, G. Kleiber 1990, E. Rosch 1973 e 1977, J. Taylor 1989.
do GELNE 6
Devemos chamar a atenção para o facto de a categorização do mundo não ser propriamente uma simples categorização de
Ano 1 coisas («.. the large proportion of our categories are not categories of things, they are categories of abstract entities. We
No. 2 categorize events, actions, emotions, spatial relationships and abstract entities of an enormous range: governments,
1999 illness and entities in both scientific and folk theories, like electrons and colds. Any adequate account of human thought
must provide an accurate theory for all our categories, both concrete and abstract» (Lakoff 1987: 6).

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varejo vs. por atacado, por grosso vs. à peça estore: persiana
escanteio-canto (futebol) ementa: cardápio
checagem-verificação / confirmação ecrã: tela
um cara-um gajo esaparregado: creme de legumes
(processo de) barganha («a busca do consen- cachopa: moça
so [no Japão] a corruptas barganhas entre políticos e cancro: câncer
conglomerados» («Veja», 2.9.98) -discussão, gelado: sorvete
galera-malta joaquinzinho: carapau pequeno
transar-fazer amor malta: turma
emergentes-novos ricos maquetagem: paginação (de jornal)
pedágio-portagem (lâmpada) fundida: queimada
maracutaia-falcatrua jantarada: festança
mulher-a-dias: diarista
e há uma soma de palavras próprias de cada uma das cimeira: reunião de cúpula
variantes. Da parte brasileira: peão: pedestre
manjadíssimo (notícia manjadíssima), racha, talho: açougue
comunicólogos, viúvas da seca, paquera, receita (de um jogo): renda
rés-do-chão: andar térreo
da variante europeia: pronto-a-vestir: roupa feita
palmarés [curriculum], marisco, pelouro (cada reformado: aposentado
um dos ramos da administração pública), etc. pensão de reforma: aposentadoria
carregar no/ o botão: apertar (o botão)
As preferências nunca são desmotivadas: optar capachinho: peruca
por demanda em vez de procura, revide («muitos água fresca: água gelada
enxergaram nos comentários do presidente um revide às frescos: afrescos
posições do seu antigo aliado [Chico Buarque]»(«Veja», utente: usuário
5.8.98) em vez de remoque, nenén em vez de bebé, tareia: surra (PE, PB)
racha («uma aglomeração de jovens enlouquecidos, tacão: salto (PE, PB)
que faziam uma racha na Avenida x…» («Veja», 5.8.98) serviço à lista: serviço à la carte
em vez de corrida, fumaça em vez de fumarada, fu- salsicha: lingüiça
mante em vez de fumador, maconha em vez de dro- sapateira: caranguejo (PB e PE)
ga, comunicólogos em vez de discutidores de retrete: privada, banheiro, toalete
banalidades (na TV), turma em vez de grupo/equipa pequeno almoço: café da manhã
(«a turma do presidente»), manjadíssimo em vez
badaladíssimo («a causa do fim do namoro … é E há depois as palavras que já fazem parte das
manjadíssimo: a agenda carregada» («Veja», 5.8.98), armadilhas da língua:
seriado em vez de série («Outro seriado que segue a rapariga: moça
mesma linha, Melrose Place, também vai ser exibido bicha: fila
no TeleUno, de seguna à sexta-feira» («O Povo», pega: prostituta
Agosto de 1998), bula (explicação acerca da com- camisa: camiseta
posição e aplicação que acompanha qualquer cuecas: calcinhas
remédeio) e literatura, têm a sua razão de ser, seja calções: bermudas
ela de natureza histórica ou cultural. penca: nariz grande, narigudo
Há por vezes palavras e expressões conhecidas
nas duas línguas, mas a preferência vai por uma dada ou os vulgaríssimos:
variante: tomates: colhões
PE PB cu: bunda
(em grandes) parangonas: manchete (de jornal) rabiosque: nádega
morada, direcção: endereço rabo: bunda
montra: vitrine pila: pinto
recado: mensagem (deixar recado/mensagem) tesão: ponta
matrícula (do carro): placa
marcha atrás: marcha-a-ré É evidente que há criações em que as normas se
marçano: aprendiz encontram, tais como, mãe de aluguel (mãe de alu-
grelha da TV: programação guer: PE), cópias de genes (clonagem), ou emprés-
frincha: fresta timos semânticos comuns, embora com frequências Revista
tomada: ficha diferentes: do GELNE
fiambre: presunto evidência: «A primeira evidência dessa mudan- Ano 1
feijão verde: vagem ça é o aumento das instituições independentes No. 2
fato macaco: macacão para o bem alheio.» («Veja», 5.8.98) «Infelizmente, 1999
factura: nota fiscal surgem evidências de que esse modelo virtuoso
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está longe de obter resultados tão promissores português do Brasil, ou do Português Europeu, há
…» («Folha de São Paulo», 23.8.98) opções formativas muito próprias, tais como:
Os brasileirismos ou portuguesismos semân- - canadense, israelense (PB) - canadiano e
ticos estão igualmente a infiltrar-se na língua portu- israelita (PE);
guesa, nos vários espaços da lusofonia. O -olhada («dar uma olhada», PB) - olhadela
brasileirismo do verbo arrumar: «Você não bebe, («dar uma olhadela», PE),
não joga e não fuma? Já é tempo de você arrumar um - virada («na virada do século, PB), viragem
vício» (Anúncio, in: «Veja», 2.9.98) brasileirsimo no («viragem do século», PE),
sentido de ‘procurar’, ou os portuguesismos nos ver- - camioneiro / caminhoneiro, sanfoneiro, fichá-
bos arrancar no sentido de ‘começar’, grilar («o rio, orçamentário («Sem equilíbrio orçamentário, fim
carro grilou»: bater pinos no PB), magoar no sen- de gastos ‘eleitoreiros’, …, eleições sem voto de cabres-
tido de ’contundir’. to, não chegaremos àquele estágio alcançado pelos
Não esqueçamos os brasileirismos fofoca (‘in- países mais avançados …» («Jornal de Comércio»,
triga’) e fofocar (coscuvilhar) – que já fazem parte da 21.8.98) (PB) - camionista, ficheiro, orçamental (PE)
língua portuguesa seja qual for a variante -, viadagem - litorâneo («faixa / zona litorânea», PB) - lito-
(‘maricas), frescos (maricas), legal, cafona (piroso), ral (PE), mas neutral (PB): neutro (PE)
ou os lusismos, cheché (‘gagá’), chalado (‘maluco’), - natalino («festas natalinas», PB) – natalício
chavalo, aldrabão (‘vigarista’), giro (‘legal’), bestial («festas natalícias», PE).
(‘excelente’), porreiro (‘genial’), pastora (‘estúpido’),
E termos como agropecuaristas, supermercadista,
taralhoco (‘doido’), baril (‘legal’), bué/ buereré (‘mui-
manobrista (vs. arrumadores) são ainda exemplo de
to bom’: africanismo), piropo (‘galanteio’), sarilho
preferências do PB por certos afixos e que, portanto,
(‘confusão’), paneleiro (‘bicha’), puto (‘menino’, ‘ado-
constituem a sua norma.
lescente’), pildra / choldra (‘prisão’), pega (‘prosti-
tuta’), quadro (‘executivo’), piada (‘anedota’), batota As possibilidades que a língua disponibiliza são
(‘trapaça’), engatar (‘tentar conquistar uma moça’) e aproveitadas de modo diferenciado, contribuindo as-
engatatão. sim para uma norma com marcas próprias: ocorrem, no
Criações muito próprias do PB são também aque- PB, os afixos -agem (vendagem, checagem «uma vez
las em que há a justaposição de elementos vernáculos por ano os pilotos brasileiros fazem um vôo de checa-
com elementos estranhos ou adopção nua e crua da gem acompanhados de um supervisor ..» («Veja»,
palavra importada, como acontece em socialite («A 5.8.98) e, nas duas normas ocorre clonagem (clones,
aprovação é da socialite carioca …», «Veja», 5.9.98), clonar). Por exemplo; o afixo –mento surge em casos
hora de rush: hora de ponta, durex: fita-cola, office onde são outras as opções no PE:
boy: paquete, dublar: dobrar (um personagem), milk- devotamento, xingamento (xingar), experimen-
shake: batido, camelódromo, etc. tos (os – realizados) (PB), mas indústria do entreteni-
A língua está lexicalmente “mapeada” de deter- mento (PB e PE); faturamento (PB) vs facturação(PE),
minado modo e é esse “jeito” que o professor e a gerenciamento (escolar) (PB) vs. gestão (PE), etc.
gramática deve propor como norma. A palavra expli-
Temos, por outro lado, no PB, opções bem níti-
ca-se a ela mesma, desde que a circunstância e o modo
das na selecção de um afixo como processo de nega-
que circundam a palavra se correspondam.
ção do conteúdo sémico do lexema primário – DES
(aliás, também presente no Português Africano):
1.2 Mapeação da realidade por
meio de processos formativos despreparo: «o despreparo da polícia» («Isto
é», 1506, 12.8.98)
A formação de palavras7, além de revelar as pre- despreparar: «a Escola está despreparada para
ferências dos actuais falantes, mostra ainda como a trabalhar a leitura em sala de aula» («Educasção», nº
língua instancia os conceitos ligados aos nossos ti- 207, Julho de 1998)
ques, aos nossos estereótipos, aos “tópoi” que, como
desinstitucionalizar: «A linguagem da impren-
lugares comuns da nossa categorização do mundo,
sa escrita acompanha a lógica da televisão, que é dra-
denunciam os mitos, os medos e as esperanças que
matúrgica, conflitante, desinstitucionalizadora»
nos envolvem. As designações nas normas dentro de
(«Isto é» / 1506, 12.8.98)
uma mesma língua desviam-se frequentemente. Por
exemplo, os pensos (adesivos) do PE surgem no PB destratar alguém: ‘tratar mal’
como band-aids, ou os “momentos livres, de lazer”, descasar, descasados, descasamento («os
ao fim do dia de trabalho, são designados no PB como descasamentos da classe média ..»), despretensão,
happy-hours, e o PE não tem qualquer expressão para descreditar (uma Universidade), despoupança, etc.
Revista os designar.
do GELNE Ao lado dos processos lexicais já tidos como mas existe decolagem (decolar PB) ao lado de
Ano 1 tradicionais e ligados a preferências de normas do descolagem (PE). O PB mostra ainda uma alta
No. 2
1999

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7
Para uma visão geral da “formação de palavras” cfr. M. Vilela 1994.
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frequência de criações denominais ou deadjectivais modo e modismo. É como naquele velho dito popu-
em – AR e, consequentemente, de todos os possí- lar: ouve-se tocar o sino, mas não se sabe onde fica a
veis derivados: torre» («Jornal do Comércio», 21.8.98)
«maneirar nos cremes e frituras» (‘usar com estrelismo: termo da “mídia” / dos “media”
parcimónia’) (Jornais do Brasil) _ ÍCIO: empregatício: vínculo empregatício
revidar: «ela xingou-me e eu revidei» («Isto é», _ EIRO: «Sem equilíbrio orçamentário, fim de
1506, 12.8.98)
gastos ‘eleitoreiros’, …, eleições sem voto de ca-
checar: «Sabemos que esta [«Isto é»] é uma
bresto, não chegaremos àquele estágio alcançado
revista séria, justamente por isso causou-nos estra-
pelos países mais avançados …» («Jornal de Comér-
nheza o fato de não se procurar sequer checar uma
cio», 21.8.98)
informação antes de publicá-la» («Isto é», 1506,
12.8.98) – ÃO: O charmosão, o mineirão, o estadão,
clonar (PB e PE) o calçadão, o garotão («Garotão nota 10. Medalha
plugar: casa plugada (‘casa inteligente’, liga- de ouro na Olimpíada Interncacional de Memática»),
da à Internet) bolão (Os argentinos estão batendo um bolão no ci-
favelização das metrópoles nema), calçadão, mercadão, brasileirão (futebol da
reprisar: «ele não gosta de reprisar a generosi- 1.ª divisão), o provão (‘prova pública abrangendo todo
dade» («Veja», 5.8.98) o ensino médio’), etc.
conflitar / conflitantes («O poder do tempo e do
homem, embora conflitantes, se equivalem» («Veja», É evidente que a tecnologia, as nossas esperan-
5.8.98). «A linguagem da imprensa escrita acompanha ças e os nossos medos nos obrigam à recuperação de
a lógica da televisão, que é dramatúrgica, conflitante, processos já bem antigos: nanotecnologia (‘técnica da
desinstitucionalizadora» («Isto é», 1506, 12.8.98); miniaturização’), bedeteca, brinquedoteca («Veja»,
coletar: «coletadores de plantas / de dados» 2.9.98), gamemaníacos («As novidades sobre o lança-
mapear: «mapear a filantropia no mundo» mento estão na revista SuperGamePower de agosto, que
(«Veja», 5.8.98) vem com um adesivo que é cara aos gamemaníacos»
inocentar: inocentar uma pessoa («O Povo», Agosto de 1998), aidsteria, aidético (PE:
acessar: «acessar dados financeiros de empre- seropositivo), codinome (a defesa da privacidade, com
sas» («Veja», 2.9.98) um nome de código: «O nova-iorquino Mark Abene é
clicar: «clicar O. K. no computador» («Veja», um nome praticamente desconhecido na Internet. Phiber
2.9.98) Optik, seu codinome, contudo, tornou-se uma legenda
embasar: «busca-se hoje fazer uma revisão dos na rede mundial de computadores» («Veja», 2.9.98) e
conceitos da velha filosofia liberal dos séculos 17-18 «Uma múmia infantil, com boneca construída em mar-
e das práticas decorrentes desses princípios que em- fim, já ganhou o codinome de “Barbie” da antigüidade»
basaram a Revolução Industrial» («Jornal do Comér- («Veja», 5.9.98), etc.
cio», 21.8.98) O processo formativo representa um dos mei-
alavancar a economia os privilegiados de “formatar” na língua a realidade,
os conceitos que vamos construindo acerca do mun-
terceirização: «resultou na terceirização de mui-
do. E a gramática não pode ignorar esses processos,
tos funcionários» («Isto é», 1506, 12.8.98)
não deve ignorar as escolhas que determinada vari-
A escolha de certos afxos como marcadores da ante do português faz ou deixa de fazer.
pejoração ou majoração mostra também determinadas
afirmações da norma, como: 1. 3 Mapeação por meio de
_ ISMO: colocações e fraseologias
governismo das Tvês (‘favorecimento descara-
do’) Como todos sabemos, as línguas estão sobre-
empreguismo: «Horácio Macedo … praticou carregadas do que designamos, genericamente, por
o mais desbragado empreguismo na instituição. Con- fraseologias. O nome mais comummente usado para
tratou 5.000 novos funcionários, que engordaram seu enfocar estes produtos lexicalizados é o de expres-
colégio eleitoral e atravancaram para sempre o orça- sões idiomáticas. As palavras individuais, ao integra-
mento dea UFRJ.» («Veja», 5.8.98) rem estas expressões, perdem a transparência e
assembleísmo: «É claro que você não pode im- tornam-se opacas. O significado global não é o re-
plantar no país um assembleísmo, não há como pro- sultado composicional das palavras individuais que
mover reuniões para 5 milhões de milhões»(«Veja», integram o conjunto. Incluo também aqui, além das au-
12.8.98) tênticas expressões idiomáticas, as chamadas “colo- Revista
achismo: «É preciso adquirir autonomia [na lei- cações”. Trata-se de um conjunto de factos que não do GELNE
tura], sem cair no achismo» («Educação», 207, Julho pode ser ignorado pela gramática no ensino da lín- Ano 1
de 1998) gua, pois a norma reflecte-se de modo bem patente No. 2
modismo: «Opções e debates políticos no Bra- nesse género de factos de língua. Reporto-me a ex- 1999
sil ainda costumam revestir-se de características de pressões da norma brasileira como:
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pedir as contas a alguém: “despedir-se” (em- «dar uma folheada» («Educação», 207, Julho
prego)(«ela pediu as conta..»(Aragão / Soares, E. 3) de 1998) (PB)
dar as contas a alguém: despedir alguém (no dar uma apitadela (PE): fazer um tefonema
emprego) dar o badagaio a alguém (PE): ter um troço
estou voando: ‘não perceber nada do que se (PB)
está a falar’ dar sangue (PE): doar sangue (PB)
(é um) point: ‘(é o) máximo’
levar:
Certas expressões mostram percursos mentais levar o fora (PE) / levar um fora (PB)
evidentes e que, por vezes, são diferenciados de lín- «levei um corte na praia» (Aragão / Soares, E. 10)
gua para língua: «levei uma queda» (Aragão / Soares, E. 9)
PE PB
estar ao corrente de: estar sabendo bancar:
em directo: ao vivo (transmissão na TV) «Não ter condições de bancar a prova, bancar
em diferido: videoteipe (TV) a faculdade» (=’pagar’) (PB)
do pé para a mão: de um momento para outro «ele bancou o otário..» (Aragão / Soares, Entre-
estar à brocha, estar à rasca: estar aflito vista 10)(= ‘fazer-se passar por’)
fazer o manguito: dar uma banana
fazer farinha com alguém: abusar de alguém e há depois uma série de verbos que apontam para
fazer óó: fazer nanã complementos muito específicos, tais como:
estou-me nas tintas para: estou-me cagando e surtir: surtir efeito (colocação específica) (PB e PE)
andando curtir: «já a querer curtir a vida» (Aragão / Soa-
terminar em águas de bacalhau: dar em nada res, E. 3) (PB)
ele teve a lata de ..: ter a cara de pau ganhar nenén: «quando eu ia ganhar nenén»
a páginas tantas / às tantas: a dada altura (Aragão / Soares, E. 3) (PB)
vir abaixo, avariar: quebrar (motor, rádio, etc.) tomar: «Leila Guimarães tomou um susto ao ser
chamada aos bastidores pelo sistema de alto-falante»
Não vou insistir em que o fundo imagético de
(«Veja», 12.8.98) (PB)
expressões como “estar ao corrente de”, “fazer o man-
fazer: «vamos fazer uma vaquinha» (Aragão /
guito”, “dar uma banana”, “ter lata”, são reveladores
Soares, Entrevista 10) (também PE)
de caminhos mentais claramente diferenciados e por-
tanto autónomos.
Também muitos nomes são ponto de atracção
Também nas expressões feitas há um uso (ou
de colocações muito próprias, como:
abuso) diferenciado. Por exemplo, a expressão por mi-
nha conta e risco está a ser utilizada no Brasil em bola:
contextos distantes do uso normal no da variante pisar na bola (‘dar barraca, armar barraco’) (PB)
europeia: ocorre a sequência «este sentido está por o bate-bola entre duas pessoas (‘discussão’) (PB)
conta do texto»(Ingedore Vilaça Koch, no Congresso «não bater bem da bola» (PB e PE)
do GELNE, Fortaleza, 1998), com o valor de ‘esta inter- «estar com a bola toda» («Isto é», 22.7.98)
pretação do texto é autêntica / permitida’. carne:
Na impossibilidade de percorrermos toda a estar por cima da carne seca: “estar bem na
fraseologia do português europeu e do português do vida” (PB)
Brasil, vamos apenas ver, a título de amostragem, algu-
mas expressões construídas à volta de certas palavras: barraco:
armar /fazer o barraco: ‘fazer uma confusão’
dar:
(PE: dar barraca)
«Os jovens davam cavalo-de-pau e passavam
raspando pessoas…» («Veja», 5.8.98): ‘fazer derrapa- sítio / canto:
gens com o carro, fazer um pião’ colocar no sítio certo (PE.) vs.colocar no canto
dar o golpe do baú: ‘casar por interesse’(PB) certo (PB)
dar-lhe na veneta / na telha (PB e PE)
quadro / quadra:
dar-lhe duro (PE e PB)
«Na véspera do leilão, contudo, o quadro co-
não dá para inventar («como está o negócio,
meçou a mudar» («Veja», 12.8.98)
não dá para inventar») (PB)
«Ele pertence ao quadro da empresa»
dar plantão em: «as empregadas dão plantão
«Ele entrou no quadro muito cedo»
na casa de madame» («Veja», 12.8.98)
«Ele entrou na quadra no segundo tempo» (PB)
Revista «mas aí nem deu» (Aragão / Soares, E. 3) (= ‘dar
(equipa, PE)
do GELNE certo’)
«Na segunda quadra, volte à direita» (PB) (quar-
Ano 1 «deram uma facada nele» (Aragão/Soares, E.
teirão, PE)
No. 2 11) ou «aí meteram facada nele» (Aragão / Soares, E. 11)
1999 «sem dar uma palavra com ninguém»(Aragão/ papo:
Soares, E. 3) ele tem um papo legal

96
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
«os bons do papo» (=’capacidade de criar bor- «Opções e debates políticos no Brasil ainda cos-
dões / slogans’: «Veja», 12.8.98) tumam revestir-se de características de modo e
bater um papo (Aragão / Soares, E. 3) modismo. É como naquele velho dito popular:
ouve-se tocar o sino, mas não se sabe onde fica
Uma série de termos como maracutaia (ocor-
a torre» («Jornal do Comércio», 21.8.98)
reram maracutaias: negócios “enrolados”, feitos às
«fora maior o dia e maior seria a romaria» (PE).
escondidas), caixinha (‘gorgeta’), manobrista (‘arru-
madores’), paquera, paquerar / azarar (‘flirt’, É evidente que não vamos incluir aqui o mundo
‘flirtar’), que indicam alguns dos nossos “topoi” actuais das anedotas que os brasileiros arrolam à volta do
esão diferentes nas respectivas normas. Há outros ter- “portuga” ou das que os portugueses criam em redor
mos que pôem em relevo determinadas marcas do nos- dos seus “brasucas”: estes pormenores estarão para
so tempo em relação a outros tempos, com os mesmos além de qualquer norma.
ou diferentes termos, como é a discusão à volta das
designações babá / criada/ empregada /trabalha- 1.4 Mapeação da realidade
dores domésticos / clones de escravas /secretárias por meio de metáforas
do lar / diarista:
Nos manuais de gramática não se tem dado o
«Muita gente ainda está acostumada a ver as empre- lugar devido a um dos fenómenos marcantes nas lín-
gadas como clones de escravas», «Tudo está mudan- guas naturais: a presença do que é designado generi-
do, deixam de ser criadas para se transformar em camente como a linguagem figurada8. Vamos apenas
trabalhadoras» («Veja», 12.8.98)
registar algumas das ocorrências nos produtos lin-
«Empregada doméstica desde os 11 anos, Tere- guísticos detectados em textos actuais de grande cir-
sinha ganhou fama recente, quando seu patrão culação, ou no “corpus” oral do Ceará, ou de algumas
desde 1978, o presidente Fernando Henrique revistas brasileiras do mês de Julho / Agosto de 98.
Cardoso, usou o exemplo de “secretária As metáforas tomam com veículo um determinado ro-
doméstica”, como muitas preferem ser chama- teiro imagético, em que a (nova) configuração linguís-
das» («Veja», 12.8.98) tica acolhe e recolhe iluminações novas, salientando
«Gastar dinheiro com a diarista» determinados pontos e ocultando outros9. Assim, os
Nota-se na norma brasileira, por um lado, a con- abstractos tornam-se concretos, entidades manipulá-
servação de certos segmentos de língua que já não veis e visíveis – as chamadas metáforas ontológicas -,
ocorrem no PE, como, por exemplo, a expressão sujeitas a guerras e a violências, entidades inseridas
«trecho em obras» usada no PB para indicar um es- dentro de um “contentor”, com um “dentro” e um
paço de uma rua em reparação. Por outro lado, há o “fora”, colocadas no espaço, com um lado superior e
recuo no uso de certas expressões com verbo “su- um lado inferior, etc.
porte” em favor do verbo simples, como, por exem- Neste tratamento, faremos o seguinte per-
plo, ajoelhar substitui por completo pôr-se de curso: áreas em que se situam as metáforas, como o
joelhos, a expressão mais frequente no PE. “corpo / organismo humano”, a “casa”, a “guerra / vio-
No domínio das expressões idiomáticas, fraseo- lência”, o “desporto”, ou as chamadas metáforas do
logias, colocações, há ainda que referir a importância “contentor”, as metáforas “ontológicas” propriamen-
dos “topoi”, os provérbios, os lugares do poiso ar- te ditas e as “espaciais”10. Trata-se de metáforas11
gumentativo. Passar por alto este domínio da língua é detectáveis na leitura de revistas e jornais, na obser-
ignorar algo de muito importante na nosso linguajar vação de “noticiários” de telvisão e que, como falan-
quotidiano. Se na fala quotidiana encontramos usos des- te vindo de uma outra norma, me chamaram de
se fundo cultural e linguístico, também nos “midia” / “me- imediato a atenção.
dia” encontramos exemplos de uso de ditos populares Metáforas em que o veículo é o corpo / orga-
como apoio e ilustração das afrimações mais diversas: nismo humano /animal12:

8
É volumosa, actualmente, a bibliografia sobre a “linguagem figurada”. Apenas indico alguns autores que me têm servido
de apoio nos últimos tratramentos deste tema: C. Cacciari / Glucksberg 1994, R. Gibbs 1994, T. Givón 1986, J. Hintikka
1994, G. Lakoff / M. Johnson 1980, E. Pontes 1990, M. Vilela 1996.
9
É a dinâmica da sociedade que força a língua expandir-se, a “figurar-se” («Extensions of prototype occur for the same
reasons that they do with lexical items: because of our proclivity for interpreting the new or less familiar with reference
to what is already well estabished; and from the pressure of adapting a limited inventory of conventional units to the
unending ever-varyin parade of situations requiring linguistic expressions» (R. Langacker 1991: 295)
10
Para a definição de metáfora do “contentor”, metáfora “ontológica”, “espacial”, cfr. Lakoff / Johnson 1980.
11
Embora tenhamos presente que metáfora e metonímia são fenómenos diferentes – a transferência [mapping] metafórica
envolve dois domínios, o domínio origem e o domínio alvo, apoiando-se o processo de substituição numa relação de
similaridade parcial, a transferência metonímica labora dentro do mesmo domínio através da relação de contiguidade (a
relação de “estar por”) – procedemos aqui como se a “figuração” se processasse por força da metáfora em sentido
Revista
amplo, abrangendo portanto as duas estratégias (cfr. Lakoff 1987: 288 e s.). do GELNE
Ano 1
12
Chamamos a atenção para o facto de o corpo humano e as ezperiências que nele se situam ou dele derivam determinarem
os sistemas conceptuais, o pensamento e, portanto, a categorização linguística («Thought is embodied, that is, the No. 2
structures used to put together our conceptual systems grow out of bodily experience and make sense in terms of it;
1999
moreover, the core of our conceptual systems is directly grounded in perception, body movement and experience of a

97
physical and social character» (Lakoff 1987: xiv).
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
cara: «ele quer alterar a cara do seu governo pesos pesados da economia, tomou-lhes o pulso»
fazendo uma mudança ministerial» («Isto é», 1506, («Veja», 12.8.98)
12.8.98) garfar: «garfar o futebol cearense» (Aragão /
cotovelo: «Tem alguma coisa para a dor de co- Soares, E. 10) (‘prejudicar’, ‘roubar’)
tovelo?» («Isto é», 1506, 12. 8. 98) viver na contramão: «No mundo muçulmano,
mão: «Não abrir mão de suas revindicações ..» onde a regra é impor às mulheres severos códigos
(«Veja», 12.8.98) de conduta, a Turquia vive na contramão.» («Veja»,
boca: «ela mastiga muito a matéria prá gente 5.8.98)
entender» (Aragão / Soares, Entrevista 12) de vento em popa: «As exportações de carros
sofrer: «Esse dinheiro nunca … sofre aumen- vão de vento em popa..» («Veja», 12.8.98)
tos»(Aragão / Soares, E. 3) barqueiro/pastor: «De pastores passaremos a
engordar: «Horácio Macedo … praticou o mais barqueiros. … O professor barqueiro ajuda na traves-
desbragado empreguismo na instituição. Contratou sia, orienta nesse dilúvio de informações, no mar do
5.000 novos funcionários, que engordaram seu colé- conhecimento. Na companhia de seus alunos, vai
gio eleitoral e atravancaram para sempre o orçamento questionar com quantos gigabytes se faz uma jangada,
dea UFRJ.» («Veja», 5.8.98): um barco que veleje nesse informar”, como canta Gil-
pular: «o número de incêndios pulou para um berto Gil, na música Pela Internet» («Educação», nº
número muito elevado» 207, Julho de 1998)
clone: «Anthony Garotinho é clone do Brizola»
(«Isto é»/ 1506, 12.8.97) São muito frequentes as metáforas conhecidas
vacas magras: os tempos são de vacas magras como a metáfora do “contentor”, as metáforas onto-
meter pé: «aí ele [ladrão] metia pé na carreira…» lógicas, as espaciais, etc. Assim, e apenas apresenta-
(Aragão /Soares, E. 9) mos alguns exemplos da metáfora do contentor13 e
vivo: dinheiro vivo («Além de dinheiro vivo, há em que essa metáfora é levada a expansões recupe-
outras maneiras de levar valores para o exterior» rando constantemente o “veículo”:
(«Veja», 2.9.98) pacote /embrulho / embrulhada: «O ministro
aquecer: «A estratégia do turismo de eventos Pedro Marlan .... disse... que ... virá um novo pacote
para aquecer o ano inteiro» («Inside», Junho 98) fiscal. Não deu detalhes - se seria um simples embru-
salto: «o país acabou de dar um salto para trás» lho, um pacotinho, ou um pacotaço» («Tribuna da
Bahia», 25.8.98)
a casa: «Quando vi a embrulhada em que se meteu o
porta dos fundos: resta-lhe entrar porta dos fun- Presidente dos Estados Unidos, …» («Jornal do Co-
dos (= ‘por vias travessas’, ‘porta do cavalo’) mércio», 21.8.98)
lavagem de roupa suja: «nesta lavagem de rou- sair dos seus cuidados/sair pela tangente: «Não
pa suja entre comerciantes …» foi à toa, portanto, que o presidente Fernando Henrique
espinafrar: «ela foi espinafrada pela crítica» Cardoso saiu dos seus cuidados para desmentir o seu
(«Veja», 5.8.98) auxiliar» («Tribuna da Bahia», 25.8.98). «Assedia-
varrer para baixo do tapete: «as decisões var- díssimo especialmente pela clientela feminina, ele sai
ridas para baixo do tapete pode custar caro…» («Isto pela tangente: “Digo que tenho namorada e tenho mais
é», 1506, 12.8.98) uma amiga» («Isto é», 1506, 12.8.98)
sair de: «Afinal de contas, saímos de uma in-
a guerra / violência:
flação …» («Veja», 12.8.98)
minar a confiança desengavetar: «desengavetar um velho pro-
guerra contra a balança (para emagrecer) jeto» («Isto é», 1506, 12.8.98)
detonar: «isso detonou a crise» («Veja», 5.8.98). emergente: os países emergentes, os emer-
«Moscou detona uma nova crise mundial com calote gentes, a classe emergente
de 32 biliões de dólares» («Veja», 2.9.98) caixa aberta / caixa fechada: «O computador é
conflito: conflitantes («O poder do tempo e uma caixa aberta, enquanto a TV é uma caixa fechada»
do homem, embora conflitantes, se equivalem» («Inside», Junho 1998)
(«Veja», 5.8.98) dentro do figurino: «a campanha [eleitoral no
o desporto / código de condução Brasil]vai começar como sempre; quer tudo como
manda o figurino»
pisar na bola: «ele admite que pisou na bola»
(fez besteira) («Tribuna da Bahia», 25.8.98) metáforas “ontológicas”14:
pesos pesados: «Fernando Henrique ouviu os passo: «segurar o passo» (Aragão / Soares, E. 10)
Revista
do GELNE
Ano 1 13
A base experiencial para a metáfora do “contentor” é o próprio corpo humano em se baseia a fronteira para estabelcer um
No. 2 “dentro” e um “fora” (cfr. M. Johnson 1987 e M. Vilela 1996: 317-356).
1999 14
A função da metáfora ontológica é a de se fazer compreender as experiências abstractas em termos de objectos e

98
substâncias, tornando-as deste modo tangíveis e manipuláveis.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
barra: «ela tá enfrentando essa barra» (Aragão mergulhar: «ele vai mergulhar nas raízes bra-
/ Soares, E. 9) sileiras» («Isto é», 1506, 12.8.98
ouvir todos os lados da questão / do problema flagrar: «o satélite flagrou num só dia um gran-
fila: «aquele povo querendo cortar a fila»(‘furar’: de número de incêndios» («Veja», 5.8.98)
Aragão / Soares, E. 3) sem fundo: cheques sem fundo (PB e PE), borra-
salário: «… se congelar salário…» (Aragão / chudo, voador, careca
Soares, Entrevista 12) plugada: casa plugada (casa inteligente, ligada)
projecto: «desengavetar um velho projeto» longe de mim pensar que …,«Brasil muito além
(«Isto é», 1506, 12.8.98): da notícia» («Inside», Junho 1998)
máquina: «ele quer modernizar a máquina go- rezoneamento: «metade dos eleitores ignora o
vernamental» («Isto é», 1506, 12.8.98) rezoneamento» («A Tarde», 24.8.98)
script: «Ele seguia um script pré-determinado, enxuto / gordo: «As abordagens sobre a re-
repetitivo e obssessivo. Via uma morena, de cabelo forma do Estado, estado enxuto ou saturado de gor-
encaracolado, matava» («Isto é», 1506, 12.8.98) (A dura, …» («Jornal do Comércio», 21.8.98)
propósito do maníaco do parque) embasar: «busca-se hoje fazer uma revisão dos
matéria: «Ele [jornalista}, …, partiu para fazer conceitos da velha filosofia liberal dos séculos 17-18
uma matéria para o Globo Repórter» («Veja», 12.8.98) e das práticas decorrentes desses princípios que
líquido: «a sua reeleição é tida como líquida» embasaram a Revolução Industrial» («Jornal do Co-
(«Isto é?», 1506, 12.8.98) mércio», 21.8.98)
preta: «a coisa tá preta» [situação política] (voto de) cabresto: «Sem equilíbrio orçamentá-
(Jornais) rio, fim de gastos ‘eleitoreiros’, …, eleições sem voto
desfrutar: «Pode-se desfrutar desde os quadros de cabresto, não chegaremos àquele estágio alcança-
até ..» («Isto é», 1506, 12.8.98) do pelos países mais avançados …» («Jornal de Co-
enxuto: empresa enxuta, pessoa enxuta («As mércio», 21.8.98)
abordagens sobre a reforma do Estado, estado enxuto «viúvas da seca»: as mulheres que ficavam com
ou saturado de gordura, …» («Jornal do Comércio», os filhos “os maridos partiam para as metrópoles
21.8.98)
fundo: «os fundos de pensão» Uma vez que uma boa parte da literatura (escrita
esborrachar-se: «a notícia esborrachou-se con- e oral) consumida no nosso dia a dia é constituída por
tra a inverdade» [Jornais] esta “linguagem figurada”, não será de pedir à gramáti-
manjadíssima: «a causa do fim do namoro …é ca que deixe de remeter para as “literaturas” o ensino
manjadíssimo: a agenda carregada» («Veja», 5.8.98) e a explicação deste género de linguagem? E a “nor-
varejo: «compras por atacado ou por varejo» ma” situa-se também neste domínio: cada variante
passado: «Não tenho medo do futuro: o que eu selecciona os seus veículos, tem as suas “figuras”,
quero é cancelar o passado» (TV) os seus roteiros, os seus figurinos para a construção
filantropia: «mapear a filantropia no mundo» dos seus percurso imagéticos.
(«Veja», 5.8.98)
«doença-arrastão»: ‘indústria do entretenimen- 2 Elementos de fonética,
to’ («Veja», 5.8.98)
economia: «alavancar a economia»
morfologia e sintaxe
pastorar: «estar pastorando o carro» (‘vigiar’)
mercado verde: «Por enquanto o Ibope está Vamos tentar encontrar alguns traços da norma
avaliando o mercado – que ainda está verde, diz brasileira – ou ausência de norma - relativamente à
Montenegro» («Inside», Junho 1998) forma de adopção de estrangeirismos e a adaptação
record: «quebrar o record» / «estar quebrado» fonético-gráfica e morfológica à língua portuguesa.
(‘estar liso’) Referiremos ainda alguns elementos divergentes na
sair da inflação: «Afinal de contas, saímos de flexão e mesmo na sintaxe.
uma inflação …» («Veja», 12.8.98)
2.1 Estrangeirismos
metáforas “espaciais”:
azeitar estratégia: «a bem azeitada estratégia A adopção pura e simples de termos estrangei-
de marketing» [campanha eleitoral de FHC] («Veja», ros, sobretudo americanismos, é um dos traços mar-
5.8.95) cantes da norma brasileira, aliás também presente no
trilhas sonoras PE, mas menos saliente. Eis alguns exemplos do PB:
cobrir: «um valor que deveria cobrir os custos delivery: «Negócios com delivery [entrega]
da publicação» crescem em SP», Revista
margem: «superar por larga margem os núme- sofware [programa], upgrade [expansão], e-mail do GELNE
ros previstos» [correio electrónico], delete /deletar, plug-plugar [li- Ano 1
baixaria: «A baixaria coloca em xeque um em- gar], call center, meeting, sales manager [gerente de No. 2
presário ..» («Isto é», 1506, 12.8.98) vendas], workshop [seminário], briefing [resumo], 1999
colateral: efeitos colaterais board [conselho empresarial], budget [orçamento],

99
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
chairman [presidente de uma empresa], cash flow sentei exemplos da norma gráfica e fonética do PB,
[fluxo de caixa], check-out [conferêrncia final], será que existe alguma norma visível? Como será
personal trainers, showroom, car wash (espaço para possível ensinar a grafia, numa gramática, com esta
lavar carro), baby house (berçário), double safe (en- disparidade de critérios?
trada com dois portões), grill area (churrasqueira),
kids place (parque infantil), playground (área de 2. 3 Outras divergências entre as normas
recreio), studio (quarto reversível), utility space
(espaço multiuso), casual Friday (moda da sexta- A divergência das diversas normas pode situ-
feira desengavatada: informal), happy-hours, «bug ar-se em vários domínios. Por exemplo, na escolha das
do milénio» («Veja», 2.9.98). Expressões mais am- variantes lexicais possíveis16:
plas que atingem já sintaxe: ser in, farei o meu me- triglicérides- triglicerídeos, planejar-planear, ater-
lhor (=I’ll do my best), fiz o meu melhor (=I’ve done rissar-aterrar, decolar-descolar, conexão-ligação,
my best)15. ônibus-autocarro, gol-golo, gramado-relva, za-
gueiro-defesa, guarda-redes - goleiro, escantei-
Há assim grande disponibilidade para aceitar ro-canto, parada/ponto-paragem, etc.
palavras estranhas, como (uma) homepage, (as) web-
cams (câmaras de vídeo digital que transmitem ima- Essas divergências podem ainda situar-se em
gens pela Internet), ou combinações novas, segundo certos pontos muito específicos, como a pluralização:
modelos também novos, ou segundo modelos já con- - «entrar pela porta dos fundos», «resta-lhe en-
sagrados, como gamemaníaco, camelódromo, sam- trar pela porta dos fundos» (PB)
bódromo, etc. - «ao fim das contas» (PB)
-«ser chamado às pressas», «O Telemar, …,
2. 2 Grafia de estrangeirismos foi formado às pressas, a partir de um grupo de
empresas ..» («Veja», 12.8.98).
Se por um lado há, no PB, a adopção do termo
estrangeiro e a sua adaptação à grafia da língua portu- No género / número:
guesa, como: mídia: «César Maia ganhou destaque na mídia
esnobe, estandes, estoque, estressante, boate, como prefeito do Rio por causa de atitudes extrava-
toalete, suvenir, comitê, turnê, maiô (e maio- gantes» (Isto é / 1506, 12.8.98), com valor singular e
zinho), drinque, contêineres («o porto de Bremer- plural, ao contrário do que acontece no PE («os mass-
haven, na Alemanha, movimenta uma quantidade media / os media»
de contêneres superior a todos os portos brasi- videocassete: «o videocassete» (Veja, 2.9.98)
leiros juntos» («Folha de São Paulo», 28.8.98), disquete: «o disquete»
caubói, Vietnã, Amsterdã, sutiã, flerte, flertar,
Verificam-se ainda algumas divergências na es-
blefe, blefar («Você acha que é blefe, num é?»,
colha do modelo flexional: as preferências do PE, nos
«querer blefar» (Aragão / Soares, E.10), avionês
verbos em –IAR, vão pela realização em –eio, no PB,
(“aviation lingo”), plugar (casa plugada) , bre-
pela realização em –io:
car e breque (travar e travão).
-negoceio, negoceiam, premeio, premeiam (PE)
-negocio, negociam, premio, premiam (PB)
por outro lado, há a conservação da grafia e da foné-
tica original: Nos verbos em –UAR as divergências são mais
trade («A aposta unânime do trade parece ser fundas:
mesmo no turismo de ventos» («Inside», Junho -adéquo, adéquam, averíguo, averíguam (PB) e
98), marketing, shows, megashow, garçon, gar- -adequo, adequam, averiguo, averiguam (PE).
çonette, country, (físico de) skatista, happy-
hours, gamemaníaco, band-aid. Uma nota saliente no PB é a supressão e aligeira-
mento de muitas expressões:
Há ainda uma mestiçagem: mantêm-se certos tra- - supressão de preposição: «você torce Ceará»:
ços do estrangeirismo e marcas do português, como (Aragão / Soares, Entrevista 10), puxar a mãe / o pai
acontece em marketeiro («o marketeiro da campanha («ela puxou a minha mãe» (Socorro, E. 3), «assistir
eleitoral»), etc. aula» (Aragão / Soares, 27), agradar / desagradar al-
Tanto a norma europeia como a brasileira têm guém / os fregueses
critérios díspares na grafia e na fonética, quer aten- - supressão do artigo: «toda hora você vai in-
do-nos aos termos nas duas variantes, quer compa- ventar uma razão para …», «toda hora você vai inven-
rando os termos dentro de cada variante, qualquer tar razões para… » puxar a mãe / o pai («ela puxou a
Revista escrevente ou aprendente da língua terá muita difi- minha mãe» (Aragão / Soares, E. 3)
do GELNE culdade em saber qual é a norma. Uma vez que apre- - supressão de outros elementos:
Ano 1
No. 2
1999 15
Alguns destes exemplos foram extraídos de: «Educação», 207, Julho de 1998.

100
16
A ordem é: PB-PE.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
«Até [há] pouco tempo atrás os homens deixa- pegar no carro (PB e PE)
vam a encomenda de cosméticos a cargo da compa- o carro não pegou (PB e PE)
nheira ..» («Veja», 12.8.98), pegar passageiros: «Taxistas autônomos são
«a notícia repercutiu no mundo inteiro» [re- impedidos de pegar passageiros que desembar-
percutiu-se], quem [em Brasília] dos aviões» («Veja», 12.8.98)
galera [galeria], negada (Ceará [negrada])
- supressão sistemática de elementos (ao tele- botar:
fone)17: «Quem deseja?» (= Quem deseja falar com botar remédio na comida (‘pôr, colocar’)
ela/ele?), «Quem gostaria?» (= Quem gostaria de falar botar dentadura
com ele / com ela?») (Cfr. «Veja», 2.9.98, pg. 154) bota aqui a tua mão
«botar defeito» (Aragão / Soares, E. 10)18
- supressão de sílabas: «Curso de quadrinhos.
Se você é da turma que curte quadrinhos, se ligue virar:
nessa: O Graphite, estúdio de quadrinhos genuina- «vira-te!», «ele que se vire!» (‘arranje’, ‘resolva
mente cearense, inicia amanhã, dia 17, curso sobre o o probnlema’) (PB)
assunto», («O Povo», 16.8.98), «filme pornô», xérox «ele virou artista», «isso virou realidade» (‘tor-
(=xerocópia). nar-se’) (PB)
2. 4 Concentração dos verbos genéricos no PB virada: «Com menos de dois meses para provo-
car uma virada na campanha presidencial, o can-
Os verbos genéricos como ter, haver, fazer, pôr, didato do PT fala do governo FHC e do país»
e os verbos genéricos de cariz popular, como botar, («Veja», 12.8.98) (‘mudança total’)
pegar, no seu uso quotidiano, aproximam-se semica- vencer de virada: «Vitória vence de virada o
mente entre si, podendo substituir-se sem mais aque- América e pega Juventude» («Correio da Bahia»,
las. O verbo ter e fazer ocupam assim o espaço de 24.8.98)
haver. Vejamos apenas o caso de ter:
«tem gente que quer ter um carro importado» 2. 5 Mudanças de “regências”
«Tem esportes, tem cinema, tem jornalismo, tem
documentários, tem per-view, tem mais na outra pá- Estão a definir-se algumas divergências na re-
gina, tem diversão, tem variedade, tem inteligência, gência verbal, adjectival e nominal. Não vou alargar-
tem o que ninguém mais tem: tem a qualidade Glo- me nas exemplificações, mas apenas ilustrar essa
bosat. Só os canais Globosat têm o que os Canais divergência:
Globosat têm. E quem não tem tem que ter» (Publici- - contribuir com / contribuir para («directores
dade a Globosat) de estatais costumavam pedir aos fornecedores que con-
«aqui no colégio tem a merenda do governo? … tribuíssem com os candidatos oficiais» («Veja», 5.8.98)
tem não, de primeiro tinha» ( Aragão / Soares, 17)
- assistir / assistir a: «Tu não assiste nada na
«Sempre não tem festa não, lá na sua igreja? –
televisão» (Aragão / Soares, 33)
Tem festa quando é dia de aniversário ..» (Aragão /
agradar / agradar a: agradar / desagradar al-
Soares 96, 19)
guém; agradar os fregueses
«A Iraci tem uma mão para máquina» (Aragão /
namorar / namorar com: «ela namorou com ele
Soares, 1996, 3)
«ter grana» mais ou menos ..»(Aragão / Soares, 3)
etc. brincar a / brincar de:
O verbo fazer recobre muitos dos usos de ‘haver’: «Em o Brasil encantado de Monteiro Lobato,
«faz menos de um século que as pessoas come- as crianças vão poder brincar de jogos de fundo de
çaram a tirar o pé do chão para voar em aviões... quintal, no Sítio do Pica-Pau Amarelo.» («Correio da
(«Veja», 5.8.98) Bahia», 24.8.98), «brincar de bola» (Aragão / Soares, 19)
solidário (para) com / solidários a: «os religio-
Os verbos pegar, botar, virar alargam o âmbito sos … são solidários aos sem-terra e sem-teto ..» («Fo-
de seu uso, ocupando o espaço de outros verbos mes- lha de São Paulo», 23.8.989)
mo na norma culta: a / em: televisão em preto-e-branco (PB), televi-
pegar: são a preto e branco (PE)
pegar dois meses de suspensão (PB, ‘apanhar’)
«eu peguei os quatro anos» (Aragão / Soares, de: precisar de («Tem aniversário, tem bodas,
Entrevista 12) tem formatura, tem promoção na empresa. Se você pre-
«(o pé) pegou cinco ponto» (Aragão / Soares, cisa presentear alguém, o melhor é um Tissot» (Anún-
Entrevista 10) cio, in: «Veja», 2.9.98) Revista
do GELNE
17
No PE também se verificam fenómenos semelhantes. Contudo, a redução obedece a um critério diferente: como, ao telefone:
Ano 1
- «tálá?», No. 2
- «toussim» / «tôssim» 1999
18
Em Trás-os-Montes usa-se de modo habitual, na linguagem popular, botar no sentido de ‘pôr’, ‘colocar’.

101
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
2. 6 Nova forma de passiva «eu nunca vi ela não» (Aragão / Soares, 28),
«eu chamo ela de tia» (Aragão / Soares, 31)
Começa desenhar-se no PB a ocorrência de pas-
Trata-se de exemplos do corpus oral de Forta-
sivas feitas à imagem do inglês. Este facto encontra-
leza, mas não deixa de ser também um sintoma: mes-
se também no PA: neste último caso, as explicações
mo a nível de “media”, há exemplos frequentes, pelo
apontam tanto para a influência do inglês como para
menos nos jornais publicados em Fortaleza.
influências bantu. Apenas um exemplo:
No pronome pessoal, usado como complemen-
«Os bancos jogam duro com os clientes. Seis to indirecto, temos de fazer algumas distinções:
meses após cancelar cheque roubado durante -«há uma tendência da fala de Fortaleza para
assalto no Rio, um cliente foi comunicado que, utilização de pronomes tónicos em detrimento dos áto-
para renovar o cancelamento, teria que pagar nos. É raro encontrarmos formas como trouxe-me, dou-
R#5.» («Correio da Bahia», 24.8.98) lhes, etc. Comummente as formas empregadas são
trouxe para mim, dou para (pra) vocês.» (Pereira Lima /
Creio que está a surgir també no uso do PE o Gadelha 1998)
mesmo fenómeno, se bem que com menor incidência. -«Em dei-lhe um presente a forma recorrente é
É frequente ouvir em pessoas cultas – ou que têm dei um presente para / p’ra ela, mas quando a refe-
obrigação de o ser – frases como: rência pronominal é a primeira ou segunda pessoas
«este problema foi respondido prontamente» do singular, há uma tendência para a utilização do pro-
nome me em posição proclítica. Assim teríamos Ele
em que tanto pode haver uma influência estranha à
me deu um presente com maior recorrência do que Ele
língua, como pode existir uma analogia com interrogar:
deu um presente para mim. Como já apontamos, o
«ele foi interrogado (naquele preciso momento)». mesmo fenômeno ocorre com a segunda pessoa tu,
sendo o pronome tu intercambiável com a forma você.
2. 7 Pronomes Na realidade, dificilmente um falante em situação in-
formal de interação e até mesmo formal utilizaria a for-
2. 7. 1 Colocação dos pronomes átonos ma para ti. Na maioria das vezes é a forma para você
que permuta com te.» (Pereira Lima / Gadelha 1996)
São conhecidas as divergências nas duas nor-
-«Outra realização importante é a da forma para
mas no que concerne a colocação dos pronomes áto-
gente. Em:
nos. Apesar de fenómeno repetido, não deixa de ser
Ele deu-nos um presente
um facto. Apenas alguns exemplos:
Ele nos deu um presente
«- Me fala do jogo de ontem» (Aragão / Soares Ele deu um presente pra nós
1996) Ele deu um presente para / pra gente
«Consta que vai-se instalar em …» (Aragão / É a última realização a mais recorrente em nossa
Soares 1996) fala» (Pereira Lima / Gadelha 1996). Perguntamo-nos
«o petista não consegue se mostrar ao eleitor se se trata de fenómeno localizado ou generalizado?
como alternativa confiável de poder» («Época», Não será a norma do PB?
3.8.98)
«nós vamos conversar um pouquinho sobre tudo 2. 8 Enfatização
que você … tudo que você quiser me contar»
(Aragão / Soares, 15) Quer o PE, quer o PB, usam, sem grande parcimó-
nia, dos processos disponíveis da língua para enfatizar,
Não deixa de ser curioso o facto de, possivel- reforçar determinados conteúdos. Também nesse do-
mente, haver outras divergências na colocação. En- mínio suponho ter encontrado processos próprios do
contramos a designação cristalizada «Oriente Médio». PB. Eis alguns desses processos:
Será apenas um facto ocasional, ou um indício? - diminutivo que é comum às duas vairantes,
mas mais insistente no PB:
2. 7. 2 Pronomes usados como complementos «Pode contar como é que foi a festa todinha»
(Aragão / Soares, 17)
O pronome pessoal na função de objecto directo «Aí merendava …. O mês todinho» (Aragão /
tem tendência para ser realizado na forma sujeito: Soares, 17)
«ele quer ver eu em casa» (Aragão /Soares, 21) «passava o dia todinho no ônibus» (Aragão /
«a mãe botava eu na cama» (Aragão / Soares, Soares, 27)
21) - negação dupla19:
Revista «aí eu fui lá no meu pai chamar ele ….chamei «eu num tenho nem que contar, porque … lá
do GELNE ele..» (Aragão / Soares, 21), é muito bom» (Aragão / Soares, 27)
Ano 1
No. 2 19
No falar de Trás-os-Montes ouve-se ainda uma dupla negação, mas esta de carácter nitidamente arcaico:
1999
- Queres ir comigo?

102
- Não num quero
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
«eu num vou não» (Aragão / Soares, 30), -né?, «n’era?», «viu?», «isso!», «sabe?»,
«Nessa hora, o público não quer nem saber -«olha só!», «tadinho!»,
das subtilezas do estilo ou das fligranas do - «sei não», «é não», «não enche o saco sua
regulamento»(«Viaje bem», revista de bordo da VASP, nega» («Isto é», 1506, 12.8.98),
nº 16, 1998) -bom!, bem! repare! ora bem! veja bem! repare
«Não é preciso nem dizer que a maior parte -«faz favor!», «pois não?»,
dos acidentes acontece nesta modalidade» («Viaje -«percebes?», «pronto!», «e pronto»,
bem», revista de bordo da VASp, nº 16, 1998) -«se calhar», «pode ser» (=’talvez’)
-«ena!», «puxa!», «do caraças!», «chiça!»
- reflexivização: -etc.
«engraçar-se com alguém / alguma coisa»
- expressões lexicalizadas: e expressões que aparecem colocadas na gramática,
«a coisa tá preta» ou no lugar errado, como «daí», «então», ou no lugar
na hora: «Um morreu na hora, o outro, no hos- devido mas em agrupamentos que nada explicam, como
pital» («Veja», 12.8.98) «pois!», «depois», «em seguida», «absolutaqmente»,
estar jeca: «o mundo está muito jeca» («Isto é», etc. Finalmente, elementos que categorialmente se si-
1506, 12.8.98) tuam num dado lugar da grelha, mas que exercem fun-
pisar na bola: «ele admite que pisou na bola» ções muito diferentes, como:
(fez besteira) Ele vem sempre atrasado
etc. Ele sempre me saiu um marau!
Onde situar na gramática tais expressões? Igno-
3 Expressões coloquiais rá-las? Ao dizermos - Bom!, - Ora bem!, os lexemas
do discurso quotidiano não se reportam a ‘bondade’ ou ao “bem” presentes
nos respectivos lexemas. etc. Colocá-las como inter-
As gramáticas da língua têm-se retardado a in- jeições?
cluir nas suas páginas factos que estão já a ser estu- A «gramática da palavra» tem de encontrar um
das há algum tempo20. Reporto-me a elementos como lugar para estas expressões. Apresentei expressões,
partículas modais, partículas conversacionais, marcas umas pertencentes à norma do PE, outras à norma do
discursivas, conectores discursivos, etc. É bem ver- PB, mas todas essas expressões são correntes. E se há
dade que estes elementos pressupõem um enquadra- factos da língua que estejam dependurados na norma,
mento teórico que envolve pragmática, análise do estas expressões estão bem dependentes da norma.
discurso, linguística de texto. E este enquadramento
necessita de um espaço que não é redutível a um ma- 4 Conclusão: o que ensinar?
nual de gramática. Mas a própria “gramática da pala-
vra” não deverá incluir já estes elementos? É que estes 4. 1. Ensinar a língua é ensinar o modo como a
elementos são muito frequentes em todos os textos, língua categoriza o mundo extralinguístico, é reduzir a
escritos ou orais, extensos ou de pequeno porte. Veja- realidade a categorias de conceitos. E o princípio mais
mos alguns desses elementos e o seu alcance para o elementar manda que nos sirvamos dos figurinos, dos
conhecimento / aprendizagem da norma. “scripts” que os falantes têm ao seu dispor: coisas e
As gramáticas tradicionais incluíram muitas das relações entre as coisas. As palavras têm atrás delas
expressões em questão, ou nas interjeições, ou nas cha- os instrumentos que as explicam: elas guiam-nos no
madas partículas de realce. Mas ao lado de expressões percurso através das errâncias do seu significado.
mais ou menos transparentes, que serão perfeitamente Coisas e conteúdos interagem, desde que as coisas
enquadráveis numa conversação normal, como: sejam usadas através das palavras adequadas.
- não faz mal, não tem mal, não faz nada Cada palavra tem um uso típico, mais saliente e
há outras expressões – que são exemplo de partículas outros usos mais genéricos ou mais específicos. Inte-
conversacionais – encontráveis na despedida numa grar a palavra no seu uso mais saliente é assim o pri-
conversa, como: meiro caminho.
-«vou chegar», «estou chegando», «fui», equi- 4. 2. A língua dispõe de modelos de formação
valente (no PB) a «ciao», «tchau» verbal: a preferência por afixos, por neologismos lexi-
cais, por empréstimos semânticos, por palavras im-
ou expressões equivalentes ás interjeições tradicio- portadas de outras línguas. Ensinar a língua é colocar
nais, para mostrar admiração, espanto, distan- o aluno perante esses roteiros mentais e materiais.
ciamento, etc., como: Os modelos mentais de representação tanto se situ-
Viche!, Viche Maria!, Afe / Afe Maria! (PB) am na imitação como na criação. Enfrentar a realida-
Revista
expressões de interpelação, mostrando concordân- de através da língua é o primeiro passo para ter acesso
do GELNE
cia, discordância, admiração, dúvida, etc., como: à língua e à realidade.
Ano 1
No. 2
20
Luiz Antônio Marcuschi – aliás, o primeiro linguista da área lusófona a interessar-se por estes fenómenos – fez um 1999
levantamento crítico do que está subjacente ao conceito de “língua oral” ns manuais escolares de 1º e 2º níveis (1997)

103
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
4. 3. A linguagem é fruto de convenções e uma KLEIBER, Georges 1990 – La sémantique du
das convenções mais salientes é o que designamos prototype: catégories et sens lexical, Paris: PUF.
como “figuração” ou linguagem figurada. Esta verten- LAKOFF, Georges 1987 – Women, fire, and
te da língua não é apenas uma criação de poetas: faz dangerous things. What categories reveal about
parte da própria língua. No ensino, nos manuais, não the mind, Chicago: The Univ. f Chicago Press.
se reconhece esse papel da “metáfora” na instauração
LAKOFF, Georges / Thompson, H. 1977 - «Lin-
da língua. Não ensinamos esse modo novo e original
guistic Gestalts», in: Chicago Linguistic Society,
de categorizar o mundo, que aliás atravessa todo o dis-
13, 236-287.
curso quotidiano, seja ele oral ou escrito.
4. 4. O universo do que designávamos como LAKOFF, Georges / Johnson, Mark 1980 – Metaphors
“partículas”, hoje desdobrado em partículas modais, we live by, Chocago: The Univ. of Chicago Press.
partículas conversacionais, conectores discursivos e LAKOFF, Georges / Norwig, Peter 1987 - «Taking:
textuais, anáforas associativas, etc., é outro dos tópi- a study in lexical network theory», in: Pro-
cos impostos pela língua. Logo na gramática da pala- ceedings of the thirthenth aqnnual meeting of
vra há que dar lugar a esses elementos mínimos, mas the Berkeley Lingistic Society, 196-206.
que dão sabor ao nosso discurso quotidiano. NOGUEIRA DUARTE, Sérgio 1998 – Língua viva.
4. 5. Finalmente, língua escrita, língua oral, não Uma análise simples e bem-humorada da lin-
estão tão distantes como pensávamos há alguns anos guagem do brasileiro, Rio de Janeiro: Rocco.
antes: há apenas recorrências mais frequentes de um
LANGACKER, Ronald W. 1991 – Foundations of
ou outro elemento na língua oral, mas a estrutura es-
cognitive grammar: descriptive application,
sencial mantém-se. Haverá razões de fundo para a gra-
vol. II, Stanford: Stanford Univ. Press.
mática, os manuais se aterem apenas ao padrão
“standard” ignorando completamente os outros pa- MARCUSCHI, Luiz Antônio 1997 - «Concepção de
drões? Nos exemplos que apresentei servi-me tanto língua falada nos manuais de português de 1º e
de um corpus oral como de corpus escrito: a diferença 2º. graus: uma visão crítica», in: Trab.Ling.Aplic.,
não é assim tão grande. A noção de “correcto” e “in- Campinas, 30, 39-79.
correcto” tem de ser novamente aferida: o “uso” tam- PEREIRA LIMA, Ana Maria / Gadelha, Cibele 1998
bém tem o seu peso na definição da norma. – Análise das categorias de complemento
indirecto em uma amostra da linguagem fala-
da em Fortaleza, Trabalho apresentado no
Bibliografia Mestrado “Linguística Portuguesa”, Fortaleza.
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