Você está na página 1de 10

http://dx.doi.org/10.5007/1984-8412.2023.

e93199

O PRETUGUÊS DE CAROLINA
MARIA DE JESUS E O PORTUGUÊS
DE REGINA DALCASTAGNE
CARTA ABERTA À ESCRITORA
CONCEIÇÃO EVARISTO
EL PRETUGUÊS DE CAROLINA MARIA DE JESUS Y EL PORTUGUÉS DE REGINA
DALCASTAGNE CARTA ABIERTA AL ESCRITOR CONCEIÇÃO EVARISTO

THE PRETUGUÊS OF CAROLINA MARIA DE JESUS AND THE PORTUGUESE OF REGINA


DALCASTAGNEOPEN LETTER TO THE WRITER CONCEIÇÃO EVARISTO

Gabriel Nascimento ∗
Universidade Federal do Sul da Bahia

RESUMO: Em 2021 a Companhia das Letras anunciou a primeira de muitas republicações da obra da escritora negra Carolina
Maria de Jesus. Tratava-se da obra Casa de Alvenaria, organizada pela escritora Conceição Evaristo e por Vera Eunice, com apoio
de muitíssimas especialistas convidadas. Em resposta a essa notícia, a professora e crítica de literatura Regina Dalcastagne fez uma
série de críticas à manutenção do que ela chamou de “inadequações” gramaticais na obra da escritora. Nesta carta, lida quando da
mesa inaugural da chegada da catedrática Conceição Evaristo na Cátedra Olavo Setúbal do Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo, eu rebato alguns desses argumentos a partir de algumas teorizações que tenho desenvolvido em meu
trabalho. Como conclusão, eu afirmo haver uma guerra entre duas práticas linguísticas, o Pretuguês de Carolina Maria de Jesus e o
Português de Regina Dalcastagne.

PALAVRAS-CHAVE: Pretuguês. Inadequações gramaticais. Carolina Maria de Jesus.


RESUMEN: En 2021, la Companhia das Letras anunció la primera de muchas reediciones de la obra de la escritora negra Carolina
Maria de Jesus. Se trataba de la obra Casa de Alvenaria, organizada por las escritoras Conceição Evaristo y Vera Eunice, con la
colaboración de varias especialistas invitadas. En respuesta a esta noticia, la profesora y crítica literaria Regina Dalcastagne hizo una
serie de críticas a la presencia de lo que llamó "inadecuaciones" gramaticales en la obra de la escritora. En esta carta, que fue leída en
la mesa inaugural de la llegada de la profesora Conceição Evaristo a la Cátedra Olavo Setúbal del Instituto de Estudios Avanzados
de la Universidad de São Paulo, rebato algunos de esos argumentos a partir de algunas teorizaciones que vengo desarrollando en mi
trabajo. En conclusión, afirmo que existe una guerra entre dos prácticas lingüísticas, el Pretugués de Carolina Maria de Jesus y el
Portugués de Regina Dalcastagne.
PALABRAS CLAVE: Pretugués. Inadecuaciones gramaticales. Carolina Maria de Jesus.


Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), tendo recebido o título de mestre em Linguística Aplicada
pela Universidade de Brasília (UnB). É professor de Língua Inglesa/Ensino de Línguas/Campo da Educação na
Universidade Federal do Sul da Bahia, tendo sido Visiting Scholar na University of Pennsylvania, Estados Unidos. É
professor permanente do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Estadual de Santa Cruz. É líder do
Grupo de Pesquisa em Linguagem e Racismo (UFSB). E-mail: gabriel.santos@csc.ufsb.edu.br.
9333

ABSTRACT: In 2021 the Companhia das Letras Publishing republished the first of many books of black writer Carolina Maria de
Jesus’ masterpieces. The first one was Casa de Alvenaria, edited by acknowledged black writer Conceição Evaristo and Carolina
Maria de Jesus’ daughter, Vera Eunice, which was supported by many female black scholars. In responding this news, the literary
critic Regina Dalcastagne, who is white, publicly opposed what she termed “inappropriate” in the Portuguese language printed in
the book. In this letter, delivered at the inaugural act of Conceição Evaristo as the Olavo Setubal Endowed Professor at the Institute
of Advanced Studies of the University of São Paulo, I contrast many of these arguments concerning with “improper Portuguese by
theorizing in contact with previous discussions I have developed. As a conclusion, I argue to be existing a war on two linguistic
practices, the Pretuguês of Carolina Maria de Jesus and the Portuguese language of Regina Dalcastagne.
KEYWORDS: Pretuguês. Grammatical inappropriateness. Carolina Maria de Jesus.

Prezada professora Conceição Evaristo,

a minha mãe, mulher negra que faleceu ainda jovem com menos de 70 anos em 2016, era uma boa contadora de histórias. Uma das
melhores que já vi. Desde que comecei a ler, imparável, aos quatro ou cinco anos de cidade, eu me interessei por histórias duras que
pareciam bem contadas. Todas elas na língua que foi construída por meus ancestrais africanos.

A língua, não por acaso, é desses mistérios que nos permitem falar do horror através da metalinguagem, que é quando a língua existe
ao se procriar nela mesma. Muitas vezes minha mãe, doente, no meio da fome que passávamos no chamado paradeiro do cacau,
lembrava, não histórias de horror, mas de fartura. É como se ela sempre lembrasse de onde viemos para nunca nos esquecermos de
que a fome, nossa professora, não era nossa identidade eterna.

Mas a ideia de língua tem sido perversa por séculos para nossos povos negros, prezada professora Conceição. Primeiro porque
língua é uma denominação mais ou menos recente e vem da Europa, ao contrário do seu uso. Makoni e Mashiri (2007) lembram
que, antes da chegada dos invasores brancos, a língua para os africanos era mais discurso do que estrutura. Foi o europeu que, na
ansiedade de justificar a invasão racista, mortífera e linguicida, passou a nomear seus falares como língua enquanto ignorava outros
falares ou rasgar, como temos relato, tudo aquilo que parecesse linguagem no território de nossos ancestrais.

Foi assim que a língua se tornou um conceito abstrato, uma bandeira do racismo como formação histórica. As próprias línguas
modernas europeias são, nada mais, do que falares dispersos e diversos que, desde a Idade Média, não era vistos de forma
homogênea. Isso me relembra a grande voz de Aimé Cesaire, poeta da negritude, que sempre lembrou que, ao invadir e começar a
nomear, o europeu modificava, não apenas o outro, mas principalmente a si mesmo (CESAIRE, 1971).

Das línguas que conhecemos, e que foram aqui disciplinadas, mas não completamente vitoriosas em seu predomínio, o português
é uma boa metáfora. Como toda abstração, essa língua colonial foi durante séculos uma prática linguística minoritária entre nós.
Dessa forma, o português se dava como uma abstração europeia que buscava inculcar nos indivíduos uma desidentificação sobre
sua ancestralidade linguística. Ou seja, a língua sempre foi uma forma de dominar ao desidentificar ancestralmente os povos
dominados. Mas há um outro português, que passa a surgir da resistência a esse processo, e que me remete a esta carta. Trata-se de
do português dos nossos ancestrais invadidos e escravizados, sequestrados e roubados, que temos chamado de pretuguês.

Como minoria dominante, os portugueses foram incapazes impor o predomínio do uso do português por séculos, a não ser em sua
fonte escrita, sobre a qual vamos nos deter hoje em boa medida. Mas isso é negado na linguística geral de forma veemente, pela
resistência que essa gente tem em admitir que as pessoas negras não foram apenas animais de ganho, mas o grande cérebro político
de como confundir a linguagem para poder fazer prevalecer ancestralmente saberes longevos. Chamo, temporariamente, de
pretuguês, esses saberes longevos que acabaram se transformando em frutos predominantes no português falado no Brasil.
Tudo isso tem a ver com a forma como línguas, essas que damos nome hoje por meio de uma repetição colonial, eram usadas na
África pré-colonial. Com práticas absolutamente multilíngues, ao contrário do monolinguismo racista europeu, os nossos

Nascimento | O pretuguês de Carolina Maria de Jesus e o Português de Regina Dalcastagne...


9334

ancestrais não se deixavam aprisionar por uma língua só. Por isso mesmo, não é de se abismar que a língua portuguesa não tenha
sido o bicho papão real de milhões de escravizados que fingiam falar essa língua, uma abstração, enquanto a modificavam como
uma metáfora. O bicho papão era justamente o regime escravocrata que naturalizou sentidos de horror na língua de acordo com a
perversão escravagista. Nomes como negro, expressões como ovelha negra ou o lado negro da vida descendem dessa formação
histórica que tenho chamado de racismo linguístico.

Estudiosos como Amadou Hampatê Ba (2010) e Henry Louis Gates Jr. (1988), revisando tradições orais, nos permitem
compreender como nossos ancestrais usavam a língua. Enquanto Hampatê Ba (2010) define a língua como o centro de tudo que o
africano fazia como tradição viva, Gates Jr. (1988) elege Exu Elegbara como metáfora do modo como escravizados fingiam ser o que
os colonizadores diziam que eles eram, sendo que eles eram completamente diferentes ao ser.

Vem daí o meu poema, que abre meu livro Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo (Letramento Editorial,
2019):

A língua é o que
Meu avô me contou
Mainha falou
E a que eu sei usar.

A língua
Não é da escola
Estrangeira, estranha
De lá.

A língua que falo


E que me explica
E sei explicar
Não carece
De explicação nenhuma
Para se falar.

Eu não falo aqui a minha língua


Eu falo a língua que me deram
Mas essa língua é minha agora
Da forma que eu sei falar.

Língua para mim, portanto, é uma metáfora do quanto nossos ancestrais viveram e se reproduziram nos nossos saberes. Em termos
técnicos, toda língua descende de povos, mas nenhuma língua pertence exatamente a essa origem primeira. É por isso que vários
falares africanos, como o Kikongo, Kimbundu ou Umbundu, modificaram uma língua que ainda hoje é chamada de português,
mas, que a cada dia, reconhecemos legitimamente como o português dos nossos ancestrais.

Milhões de escravizados mudaram o português por meio dos negócios do dia a dia, das tradições ancestrais básicas, da solidariedade
e da luta política. O português preto, ou pretuguês como temos chamado a partir de Lélia González (1984), tornou-se uma espécie
de língua franca para vários povos que, desde África, tinham línguas distintas e, já que multilíngues, enxergavam o português como
mais uma língua a se comunicar, sendo denominada franca para essa comunicação. Chamo aqui de língua franca uma língua que
serve para objetivo de conexão comunicativa a sujeitos falantes de diversas outras línguas diferentes.

Forum lingüístic., Florianópolis, v.20, n.3, p.9332-9341, jul./set. 2023


9335

A língua de dona Sônia, minha mãe, por exemplo, era cheia de toda sorte de recursividades. Sempre lembro de um culto evangélico
de onde retornamos e meu pai, um homem claro, tinha achado ter recebido um elogio de uma dondoca dessas preconceituosas da
zona rural. Minha mãe, sábia conhecedora dos artifícios da língua, não só o corrigiu no engano, como passou a explicar o que era
uma ironia. Como se possuída do corpo-ego-político dos seus ancestrais, ela atribuía, não à linguagem verbal, essa de onde partem
os brancos europeus em sua escolaridade monolíngue, mas aos gestos (olhar, modo de articulação das palavras etc.) as palavras
direcionadas a todos nós como um elogio, o que, na verdade, era uma bela ironia.

Eu vejo assim as pessoas pretas que contam histórias todos os dias, prezada Conceição. Quando eu escrevi meus primeiros contos e
um primeiro romance eu lembrei, quando dos lançamentos, que eu colocava no papel as formas de contar história das minhas irmãs
pretas, Ana e Edleuza. Fascinadas pelo mundo da linguagem, do ápice de sua melanina acentuada, elas me deram de presente alguns
contos e formas de escrever que nenhuma escolarização do mundo me daria. Todas essas histórias se davam com retomadas, traços
anafóricos e dêiticos belíssimos.

É toda essa tradição, professora Conceição, que a indústria cultural branca e branqueada no Brasil vem ignorando propositalmente
em relação às pessoas pretas quando se trata da escrita, como pretendo explicar ao fim desta carta. Ao contrário da fala, que não se
deixa aprisionar, o português europeu foi sim vitorioso num suporte, o suporte impresso. Livros publicados em Portugal e
remetidos ao Brasil no início do século XIX ou já publicados no país a partir da década de 30 do mesmo século, formam o que eu
chamo de diáspora branca ocorrendo no mundo da escrita. Isso gerou um grande distanciamento. Uma vez que a fala já era
Pretuguês, isto é, a metáfora que os africanos e seus descendentes usavam para se comunicar em língua franca em território nacional,
a escrita era quase uma língua estrangeira usada por poucos, um retorno à Europa, uma diáspora branca.

Esse é o grande desafio do Brasil. Um país em que a Europa quase sempre foi minoritária em tamanho e tradição, senão em domínio,
passou a ser branqueado justamente pela escrita logofonocêntrica (DERRIDA, 1973), isto é, baseada no sequestro, pelo europeu, de
um modo de grafar alfabético dos antigos árabes. Isso se deu justamente quando da passagem do regime escravocrata a uma crise
moral, bem como a partir das primeiras obras de escritores nascidos no Brasil passavam a ser publicadas em países europeus.

Nunca podemos dizer que nossos ancestrais africanos não escreviam. Escrever não é somente traduzir um modo de representação
em um único modelo semiótico-linguístico alfabético. Somos povos que escreveram desde sempre. Desde Amadou Hampatê Bà
(2010) e sua picturalidade a Ana Flávia Magalhães Pinto (2018) e os modos de escrita abolicionista: escrita para nosso povo sempre
teve a ver com liberdade. Liberdade de uma autodeterminação roubada lá em África, de tradições ignoradas por séculos, como a dos
antigos malês e a sua cultura de escrita, ou mesmo das revoltas urbanas no Brasil. As escritas das revoltas, por exemplo, representam
para mim uma forma de grafar ainda não compreendida nos bancos da academia, mas perfeitamente possível de ser vista nos bancos
da rua. Os manifestos em árabe e português ao povo bahiense na Revolta dos Búzios de 1798 na Bahia, em uma estratégia que
confundia o colonizador, ainda são lidos em tons escuros em qualquer parede de nossas periferias com letras garrafais: LUTO. Quase
sempre quem merece nosso luto daquela comunidade é um jovem negro de 16 a 24 anos que combinou de não morrer.

Os combinados são muitos. Por exemplo, aquele que consta no seu livro Olhos D’água (EVARISTO, 2016). “A gente combinamos
de não morrer”. Quando li esse combinado, que é de Dorvi, mas também de Ana Davenga, eu me lembrei de minha irmã Ana
Aloisia, mulher preta bem escura que sempre foi uma fonte viva de pretitude lúcida para mim. Todas as vezes que eu vi que minhas
irmãs não guardavam ódio e nem rancor pelo fato de eu passar pela universidade, pude perceber que era pelo orgulho que elas
sentiam pelo fato de eu me abraçar cada vez mais com a tatuagem política, isto é, a raça, que as atravessava também como linguagem,
para lembrar um verso de Lazzo Matumbi (2012). A minha irmã Ana sempre dizia e diz “a gente combinamos”, fazendo uma
combinação estilística perfeita. Tal como Ana Davenga ou Dorvi, a gente sempre combinamos, mas vimos a vida inteira muitos
meninos homens pretos sendo ceifados. Muitas vezes nossos combinados são ceifados pelo odor do racismo, que fede sem parar.
Eu li a história de Ana Davenga desde a primeira vez que minha outra irmã, essa nascida de outra mãe, a professora e pesquisadora
Francy Silva, me levou a ler Olhos D’água. Com ela divido uma mesma tristeza, que é a percepção dos homens pretos que choram
muito nas entrelinhas do mundo privado, um choro inconsolável e ensurdecedor de quem é proibido de expressar qualquer
sensibilidade no mundo que os animaliza.

Nascimento | O pretuguês de Carolina Maria de Jesus e o Português de Regina Dalcastagne...


9336

Mas, falando diretamente de língua, fiquei triste, muitas vezes, ao ouvir esse mesmo combinado sendo reproduzido aqui e acolá
como “Nós combinamos de não morrer”, inclusive em setores mais progressistas, como uma maneira de corrigir uma suposta
inadequação linguística. Parece que a língua, essa abstração que comecei criticando em sua noção europeia, trai-nos a todos,
progressistas ou conservadores no Brasil. Somos incapazes de respeitar as vozes-mundos de Dorvi e Ana Davenga porque as nossas
lentes linguísticas têm uma escrita colonizada que trai todos os heróis da Revolta dos Búzios, as cartas das greves negras, todos os
homens e mulheres que escreveram durante todo o período colonial com letras, símbolos, ícones ou com picturalidades, isto é, com
vozes ecoando formas de grafar com o som, com o zumbido, com as dores contando a história de resistência e a resistência contando
as dores.

Não existe uma só modalidade para a escrita negra porque a escrita negra não parece se conter ou caber no texto fonográfico
colonizado. Posso ler Fanon (2008) ou Carolina Maria de Jesus (2014), Conceição Evaristo (2016), Lívia Natália (SOUZA, 2016),
Thaíse Santana (2021), Eliana Alves Cruz (2018), as cartas das greves ou os manifestos, ou Quobna Ottobah Cugoano (CUGOANO;
CARRETA, 1999). Não há homogeneidade nessas escritas, senão a ausência total de homogeneidade. O texto negro parece fugir do
próprio limite tipográfico do texto, como se a narrativa fosse maior, e o é, do que o formato pré-estabelecido, generificado,
racializado, aprisionado.

De todas as formas de língua, a escrita é a mais aprisionada no Brasil. Isso porque ela é defendida em todos os lugares sob o guarda-
chuva equivocado da norma. Para alguns de nós linguistas, há várias normas que emergem das conversas do dia a dia, de um
botequim, do samba ou de uma interação no terreiro de candomblé. Não existe uma norma só. Devemos compreender que as
normas linguísticas se estabelecem enquanto indivíduos que somos invocando essa metáfora, que é a língua, para nos
comunicarmos. Isso quer dizer que não é a norma que cria os sujeitos, mas é dos sujeitos de onde emergem as normas. Por isso, é
possível que as línguas Bantu nos façam dizer as menina porque, na memória dos nossos ancestrais, a forma prefixal, sempre usada
nas línguas Bantu como o Kimbundu, o Kikongo e o Umbundu (GOMES; OKOUDOWA, 2015) e que influenciaram diretamente
o nosso pretuguês, corresponde ao as, que está marcado no plural.

A língua dos nossos ancestrais também permanece na escrita negra, como a da senhora e a de tantos escritores e escritoras negras
como Carolina Maria de Jesus. Quando li, no ano passado, um relato sobre inadequação da nossa escritora Carolina Maria de Jesus
em uma publicação que a senhora, professora Conceição Evaristo, estava ajudando a organizar em companhia de Vera Eunice, filha
da escritora, eu me vi na sensação de vazio e protesto imediato. Essa crítica tinha sido postada por uma professora branca que, até
pouco tempo, era uma conhecida aliada de muitas pessoas negras, estas quase em posição de solidão na academia. Trata-se da
professora Regina Dalcastagne, professora titular da UnB e pesquisadora de literatura brasileira. Me preocupava que aquela visão
não destoava em nada da visão de linguística que eu critico no meu trabalho, a de uma linguística que, no século XX, tentou construir
uma ideia de língua nacional ignorando as contribuições africanas ao português brasileiro ou as minorando. O pretuguês, como
chamamos, não é apenas uma abstração sem corpo, uma invenção racista, mas uma metáfora anticolonial de como africanos e seus
descendentes usam as formas de linguagem para sobreviver, para confundir o inimigo colonizador e para entregar a grandeza que
este país é. Vejamos, a título de apoio para nossa discussão, as críticas dessa professora à edição da escritora Carolina Maria de Jesus
que, segundo ela, continha inadequações gramaticais:

Forum lingüístic., Florianópolis, v.20, n.3, p.9332-9341, jul./set. 2023


9337

Imagem 1: Post no Facebook com crítica a incorreções gramaticais na nova obra publicada da escritora Carolina Maria de Jesus.
Fonte: Perfil de "Regina Dalcastagnè", em publicação no dia 15 de agosto de 2021.

A imagem 1 foi retirada da rede social da professora em questão, que critica duramente o fato da nova obra de Carolina Maria de
Jesus estar sendo publicada sem correção do que ela chama de inadequações ou desvios gramaticais.

Carolina Maria de Jesus é uma escritora mineira que viveu a maior parte de sua vida numa favela na Zona Norte de São Paulo, a
Favela do Canindé. Foi lá que a maioria dos seus escritos ganharam corpo. Em 1958 ela teve publicado o seu livro Quarto de Despejo:
Diário de uma Favelada, que teve auxílio do jornalista branco Audálio Dantas. Como tantos outros escritores negros, Carolina teve
as suas primeiras escritas negras mediadas pelo corpo brancocêntrico que manda na indústria cultural brasileira desde sempre. É a
primeira vez, permita-me recordar, professora Conceição, que a sua obra passa de mãos de um intérprete branco, paras as suas mãos
negras e as mãos negras de Vera Eunice, filha da escritora Carolina Maria de Jesus.

Para Regina Dalcastagne, na imagem 1 apresentada acima, a “gramática original de Carolina” na nova edição é o calcanhar de
Aquiles que, segundo essa crítica, fará com que a obra não seja publicada à altura de uma obra literária. Itens como os “erros de
português” de Carolina poderiam, portanto, depreciar a obra.

Ocorre que o que a professora está chamando de “erros de português” é perfeitamente discutido pela linguística brasileira há
décadas. É de se estranhar que a visão dela permaneça ainda muito cristalizada numa visão de “desvio” que simplesmente não se
sustenta linguisticamente.

Nascimento | O pretuguês de Carolina Maria de Jesus e o Português de Regina Dalcastagne...


9338

Uma coisa na língua não é errada quando ela é pronunciada ou escrita de maneira diferente daquilo que estamos habituados a ouvir
(como chicrete/ chiclete), em que uma é tida como certa e outra é tida como errada. Essas avaliações geralmente não são linguísticas,
mas ideológicas. Temos que discutir menos apressadamente as ideologias linguísticas que nos formam. O fato da sociedade
brasileira defender um certo padrão sociorracial e cultural de escrita não significa que as pessoas só sabem ler aquele padrão. Essa é
uma visão errônea disseminada pelo conservadorismo na escolarização brasileira, como no caso do apressado e equivocado
posicionamento a que me refiro.

Erros em língua são incompreensões da forma como as pessoas se comunicam. Ou seja, é aquilo que ninguém de fato entende
porque ninguém fala daquele jeito. É por isso que no Brasil ninguém fala “vou praia a”, mas “vou à praia” ou “vou pra praia”.

Reduzir Carolina a “erros de português” não é o produto dos novos editores de sua obra na Companhia das Letras. Ao contrário.
Aqueles que leem a escrita de Carolina como “erros de português” estão fazendo uma leitura linguística equivocada e muito pouco
literária de sua obra. Ao invés de lerem a coesão e coerência de seu texto, a forma como suas personagens conversam e são
construídas, passam a inscrever Carolina num desvio criado pela impressão racista de que apenas uma forma de falar português é
correta.

O que me estranha, mas também me revolta, no texto de Regina Dalcastagne é que ela, como muitos, acredita piamente de que dar
oportunidades às pessoas pretas é as assimilar numa cultura dominante. Essa é uma bandeira histórica do racismo epistêmico que,
ao assimilar pessoas negras, as branqueia e as afasta das culturas de seus ancestrais. Por outro lado, isso cria um vínculo eterno de
mediação branca, que temos visto em tantos projetos editoriais. Não é o grande público que vai deixar de ler Carolina ou tantos
autores negros, mas os críticos de literatura brancos que são monolíngues no Português brasileiro. Não me parece que o grande
público não saberá ler a obra, mas são os críticos que só sabem ler um tipo de norma de referência do português brasileiro. São, pois,
esses críticos precisam reaprender a ler.

A língua de Carolina é o pretuguês, uma tecnologia linguística desenvolvida pela presença africana no Brasil por séculos. O
pretuguês passa a ser discutido no país graças ao trabalho de Lélia González que, ao ver a forma como esse português era combatido,
Conceição, entende-o como um falar afro-brasileiro. Pesquisas têm demonstrado que, após séculos de imersão no Brasil, os
africanos, em especial os povos Bantu, nos fizeram herdar formas de léxico (samba, dengo, bunda, cachimbo, maconha, quiabo etc.),
sintáticas (eu não vou não, com dupla negação marcada), fonético-fonológicas (a.di.vo.gado ao invés de advogado, com d mudo),
entre diversos outros aspectos. Todos esses fatos linguísticos nos levam a diversos fatores estudados por historiadores da linguagem
desde sempre, como é o caso da formação de línguas de resistência no país, entre crioulos e uso de línguas africanas em grupos
específicos, como no culto ancestral aos orixás.

Esse fenômeno nos diz que o português de Carolina vem de uma grande tradição que é de africanizar o português brasileiro por
completo, levando com que falemos hoje formas de Pretuguês.

Quando, a partir de uma certa tradição brancocentrada de escrita, Regina Dalcastagne defende apenas uma variante, a de um mundo
escolarizado branco, ela ignora que, por séculos, a língua de Carolina Maria de Jesus foi a língua da maioria dos brasileiros e não um
“erro de português”. Como eu já disse anteriormente, foi justamente a chegada da imprensa escrita mediada no país que fez surgir o
ideário de que falamos português sendo que, por séculos, a língua portuguesa, tal como falada pelos invasores, era minoritária no
Brasil. Assim, ao se criticar a adequação de Carolina, o que se quer é o branqueamento da escrita dela, como já feito por Audálio
Dantas.

Pior. A crítica de literatura rememora justamente um grande ícone negro, apagado enquanto negro, que é Machado de Assis, como
uma forma de apelação, remetendo-se à atualização da palavra “fósforo” nos textos dele onde constava “Phosphoro”. “Fósforo” e
“Phosphoro” nada têm a ver com gramática (ou dicção, como ela prefere), mas com a atualização ortográfica de geração a geração.
Não se está corrigindo o português de Machado, mas se atualizando a ortografia de uma palavra a partir de uma dada convenção
(sempre política) que busca determinar padrões ortográficos e percepções de como as palavras escritas se remetem à língua como

Forum lingüístic., Florianópolis, v.20, n.3, p.9332-9341, jul./set. 2023


9339

um sistema em constante adaptação de acordo com aquela época. Com isso, não estou aqui concordando com acordos ortográficos,
mas apenas dizendo que eles nada têm a ver correção de desvios gramaticais.

Frantz Fanon (2008), teórico martinicano que nos entregou livros como Pele Negra Máscaras Brancas relembra que língua, para as
pessoas negras, é uma zona do não ser, isto é, uma tentativa de que essas pessoas de origem africana simplesmente não tenham sua
língua validada ou vista como língua. Passamos, no entanto, a sermos reduzidos a “desvios” ou “erros de português” como se a língua
portuguesa tal como supostamente chegou aqui fosse a única norma de referência entre nós. Mais do que isso, se negligencia a
formação de um público leitor negro mais atual a possibilidade de se ler Carolina sem as vestes brancas que, supostamente, impediria
a escritora de ser exotizada.

Regina Dalcastagne se filia a uma corrente que já é velha conhecida no Brasil, que é aquela que que busca democratizar a cultura
letrada (como é o caso de BAGNO; RANGEL, 2005; FARACO, 2016). A língua dela é o português dos brancos colonizadores
enquanto Carolina fala a língua dos seus ancestrais africanos e a escreve em seus diários. Democratizar a cultura letrada é assimilar
autores negros dentro de concepções aterradoras do racismo. Acontece que essa cultura letrada, historicamente minoritária, é uma
tentativa tardia de impor colonialidade por meio da língua falada e da escrita, um inimigo histórico já derrotado por povos africanos
diversos no país.

Carolina Maria de Jesus não vai sair das margens da literatura por causa da adequação de sua linguagem (como até hoje não saiu
por causa disso), mas por causa da naturalização do seu processo de escrita, das formas como coloca as condições de produção de
seu texto a serviço de um corpo-linguística, em que fala a língua do corpo. Autores, críticos, jornalistas precisam naturalizar a escrita
e fala das pessoas negras, sem buscar traduzi-los dentro de seu próprio entendimento monolíngue.

Esta carta, professora Conceição Evaristo, é mais do que uma tentativa apressada de debater este tema. No ano em que isso se passou,
eu busquei publicamente apenas reproduzir algumas críticas que já trago em meu trabalho. Nesta carta procurei aprofundar as
críticas a um modo de ser aliado e crítico num país de maioria negra, em que as pessoas brancas buscam desesperadamente manter
suas posições de intérpretes dos negros. Dito isto, nos honra a presença da escritora Conceição Evaristo na organização de Casa de
Alvenaria (Companhia das Letras, 2021) junto com Vera Eunice, filha de Carolina.

Nascimento | O pretuguês de Carolina Maria de Jesus e o Português de Regina Dalcastagne...


9340

Imagem 3: Capa do livro que foi alvo de críticas


Fonte: Jesus (2021)

Duas mulheres negras nesse projeto têm muito a dizer a esse lugar e sobre esse lugar. Primeiro por se tratar de uma parceria em uma
das maiores editoras brasileiras, a Companhia das Letras (LOUREIRO, 2020). É uma porta aberta a continuar a se abrir para muitos
e muitas de nós. Vocês duas e tantas especialistas consultadas, além de não aceitar serem intérpretes mediadoras da linguagem de
Carolina, vocês rompem com uma tradição na indústria cultural brasileira. Uma lição a ser aprendida de hoje em diante.

É preciso que editores a partir de hoje olhem com atenção para esse fenômeno. Ao editarem autores negros é preciso que a
linguagem não seja aquela monolíngue ensinada nas escolas, mas a linguagem múltipla do povo brasileiro, dentre as quais um
pretuguês falado pelo povo brasileiro, inclusive pelas pessoas brancas. O Brasil merece ouvir e se reconhecer no pretuguês que vem
do corpo, da dor, das milhões de Carolinas e Carolinas e Conceições que enfrentam, dessa vez sem volta, o brancocentrismo na
escrita brasileira utilizada pela indústria cultural no Brasil. O pretuguês de Carolina continuará a guerrear contra o português de
Regina Dalcastagne como nossos ancestrais fizeram durante séculos.

REFERÊNCIAS

BA, H. A tradição viva. In: BRASIL. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. Brasília: UNESCO, 2010.

BAGNO, M. RANGEL, E. O. Tarefas da educação linguística no Brasil. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 5, p. 63-82, 2005.

CESAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Porto: Cadernos para o diálogo, 1971.

CRUZ, E. A. Águas de Barrela. Rio de Janeiro: Malê, 2018.

Forum lingüístic., Florianópolis, v.20, n.3, p.9332-9341, jul./set. 2023


9341

CUGOANO, Q. O.; CARRETTA, V. Thoughts and Sentiments on the Evil of Slavery. Londres: Penguin Group, 1999.

DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo, SP: Perspectiva, 1973.

EVARISTO, C. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.

FANON, F. Pele negra máscaras brancas. Salvador: EdUFBA, 2008.

FARACO, C. A. Variação linguística e ensino. In: CYRANKA, L. F. de M; MAGALHÃES, T. G. (org.). Ensino de linguagem:
perspectivas teóricas e práticas pedagógicas. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2016. p. 41-54.

GATES JR., H. L. The Signifying Monkey: a Theory of African-American Literary Criticism, Oxford University Press, 1988.

GOMES, C. C.; OKOUDOWA, B. Morfologia. In: PETTER, M. M. T. (org.). Introdução à linguística africana. 1ª ed. São Paulo:
Editora Contexto, 2015. p. 127-158.

GONZÁLEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984.

JESUS, C. M. de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014. 200p.

JESUS, C. M. de. Casa de Alvenaria. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 232p. Imagem da capa disponível em:
https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9788535930696/casa-de-alvenaria-volume-1-osasco Acesso: 03 out. 2023.

LOUREIRO, J. Conheça quais são as maiores editoras do Brasil. In: Bingo Conteúdos Literários, 2020. Disponível em:
https://www.livrobingo.com.br/conheca-quais-sao-as-maiores-editoras-do-brasil Acesso: 03 out. 2023.

MATUMBI, Lazzo. Alegria da cidade. Murilo Acácio. 1 Vídeo do Youtube (6 min.), 2012. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=0RM1rlAybAQ. Acesso: 03 out. 2023.

MAKONI, S.; MASHIRI, P. Critical historiography: Does language planning in Africa need a construct of language as part of its
theoretical apparatus? In: MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. (org.). Disinventing and Reconstituting Languages. Clevedon:
Multilingual Matters, 2007. p. 62-89.

PINTO, A. F. M. Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil Oitocentista. 1. ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 2018.

SANTANA, T. S. Mulher-palavra. São Paulo: Patuá, 2021.

SOUZA, L. M. N. Dia Bonito pra chover. Rio de Janeiro: Malê, 2017. 68p .

Recebido em 01/03/2023. Aceito em 10/06/2023.

Nascimento | O pretuguês de Carolina Maria de Jesus e o Português de Regina Dalcastagne...

Você também pode gostar