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"É promíscua e é liberal": afinal de onde vem a Língua

Portuguesa?
Amores e desamores, roubos, inimigos, tempestades e terramotos criaram a
língua que falamos e escrevemos. Entrevistámos Fernando Venâncio, autor de uma
história do português.
As palavras são de tal forma utilitárias, quotidianas e cada vez mais fúteis, que nos
esquecemos que todas elas têm uma história, que cada letra, cada som, foi engendrado num
tempo e numa circunstância política, social específica e a ela está para sempre ligado. Muitas
palavras nasceram de sensações corporais ou psicológicas concretas, outras de necessidades
comezinhas da comunicação que vai desde a esfera familiar à esfera das leis, dos
enamoramentos ou da poesia.
Por isso, a história de uma Língua começa sempre por ser oral e pode demorar
dezenas de anos, séculos até aparecer pela primeira vez na sua forma escrita. Cada fenómeno
linguístico tem origens antiquíssimas e é um pequeno tesouro patrimonial que herdamos das
muitas gerações pretéritas. Um tesouro frágil que todos os dias esmagamos usando sempre
um número restrito de palavras, ou que é esmagado por decisões mais ou menos arbitrárias
do poder que acredita poder torcer as palavras até elas deixarem de ser rebeldes e se
tornarem submissas a um regime artificial como é a ortografia, por exemplo.
Assim, a história de uma Língua está indelevelmente ligada à história de um povo, de
uma nação e vice-versa. E, da mesma forma que Portugal e os portugueses não caíram do céu
ali por volta de 1143, também a Língua começou a sua odisseia particular muito, muito tempo
antes, talvez ali por volta do ano 600, quando nem o Condado Portucalense era sonhado. É,
pois, uma viagem longa, cheia de peripécias, aventuras, amores e desamores, roubos,
inimigos, tempestades e terramotos aquela que tem feito a Língua Portuguesa até chegar a
esta nossa conversa num jornal digital.
Quem a conta é o linguista Fernando Venâncio, num livro fascinante, culto, complexo,
mas, ao mesmo tempo didático, acessível a qualquer falante do português. A obra, cheia de
exemplos e curiosidades, não teme polémicas nem humor, tem a chancela da Guerra & Paz e
chama-se Assim Nasceu Uma Língua/ Assi Naceu ũa Lingua e mostra que aquilo a que hoje
chamamos “minha pátria”, a Língua Portuguesa, é uma derivação do galego, a sua origem
matricial. O Observador falou com Fernando Venâncio sobre as suas aventuras no português.

Neste livro, dá-nos a ver a história da Língua Portuguesa como uma odisseia. Já não é
a heroicidade de um povo, como fez Camões, nem de um homem, como fez Homero.
Podemos comparar o caminho de uma língua a uma odisseia sem fim cheia de aventuras,
perdas e conquistas?
Acho essa imagem, a da história de uma língua como uma odisseia, extremamente
sugestiva. Digamos que, no seu percurso, cada idioma passa por muitas. Ao ponto de, como
é infelizmente caso comum, ele soçobrar. A tal ideia de que sempre que morre o último falante
de uma língua, o Mundo perdeu uma enciclopédia. O nosso idioma não soçobrou, e está hoje
vivíssimo. Mas poderia não ter sido nunca nosso. Bastaria, para isso, que Portugal nunca
tivesse surgido. Hoje existiria um idioma extremamente parecido ao nosso, mas sem nós. É,
concedo, um cenário ousado. Mas historicamente realista. O nosso idioma surgiu, e fez-se
grande e sólido, quando Portugal ainda não existia. Nós herdámo-lo e fizemo-lo ainda maior.
Se a Língua Portuguesa fosse uma personagem, o que seria? Uma cortesã, uma
concubina, uma galdéria?
Uma galdéria, disso não tenho dúvida. Andou por todas as camas: a galega, a
castelhana, a francesa… E saiu delas mais fresca que nunca.
A premissa deste seu livro, que o português deriva do galego, não é uma novidade,
mas é algo que em Portugal os filósofos e os historiadores não encararam seriamente.
Porquê?
Exato. A origem galega do nosso idioma não é a notícia mais sexy. Acostumámo-nos
a conceber-nos únicos, com uma língua exclusiva e original. Esquecemos que ela nasceu em
território galego. É certo que o grande linguista Ivo Castro já no-lo disse com todas as letras.
Mas um passado de marca galega, insisto, não nos lisonjeia. Na melhor das hipóteses, e como
o exprimiu Eduardo Lourenço, trazemos a Galiza diluída em nós, e não a reconhecemos já.
Continuamos a contar-nos lindas histórias no cantinho da lareira e, para mantermos a
autoestima, fugimos com o rabo à seringa.
Nesta obra mostra como insistimos em ver-nos como se caídos do céu, um país, um
estado, uma língua, um povo, tudo pronto desde 1143. Uma mistificação que a história da
Língua Portuguesa nega com veemência. Como foi então que nasceu o Português?
Nasceu há muito tempo e teve uma longa infância. No livro, reúno uma porção de
informações para identificar o momento em que na Galécia deixou de falar-se latim, com a
criação duma língua nova, e cheguei ao ano 600 d.C. É então que se dão no latim do Noroeste
peninsular modificações de monta e únicas na Latinidade. A principal delas foi a queda de L e
N entre vogais. Para dar os exemplos clássicos: “salire” tornou-se “sair” e “luna” tornou-se “lua”.
Parece pouca coisa, mas o fenómeno afectou centenas e centenas de palavras. Várias outras
novidades se deram e, a partir de então, existia uma língua própria nesse território que
ocupava a atual Galiza e um troço noroeste do futuro Portugal. Começava em Melgaço, tocava
Vila Real e vinha acabar em cunha na Ria de Aveiro. Essa é a geografia inicial do idioma, ainda
hoje perfeitamente desenhada na toponímia. Os nomes de terras, lugares e lugarejos. Faltava
ainda muito para surgir o Condado Portucalense e, evidentemente, o Reino de Portugal.
Quando eles surgiram, falavam a língua ali disponível: o galego. O português só bastante mais
tarde se constrói.
[…]
Apesar da formação do país em 1143, a verdade é que só em 1488 vai surgir o
primeiro documento que se pode dizer escrito em português? Passámos então três séculos a
falar galego até termos aquilo que se pode chamar uma língua nossa…
1488 é o ano do primeiro livro impresso em Portugal. O português, como língua
própria, diferente do galego, começa a tomar corpo por volta de 1400. É uma criação de
Lisboa, tornada centro do Reino, com a instalação da dinastia de Avis, ciosa do seu elevado
nível cultural. Inicia-se então um processo acelerado de distanciamento das marcas nortenhas
do idioma, substituídas por novidades do Sul. Esse processo de “desgaleguização” do idioma
está bem descrito em obras da linguista Esperança Cardeira.
[…]
Uma das faces desse processo foi o momento em que Portugal se enamora pela
língua castelhana e introduz no seu léxico centenas de palavras castelhanas. Aqui o Fernando
Venâncio fala em “relatinização”, ou seja muita da herança latina vem desse espanhol que
incorporamos…
A vitória portuguesa em Aljubarrota, em 1385, acionou, embora não pareça, uma
reviravolta cultural. […] Durante esses 300 anos, o português foi-se acomodando à prestigiosa
língua da forte Castela, longo tempo dominante também na Europa. Entraram muitas palavras
novas, em catadupas, feitas na Meseta, e até bastantes dos L e N, que haviam caído séculos
antes, regressaram aos seus lugares. Foi o processo de “castelhanização”, paralelo ao da
“desgaleguização”. Não que os portugueses da altura se dessem conta disso. Os mais atentos
supunham, mesmo, que o português estava a latinizar-se. Estava, decerto, mas muito menos
do que se julgava e ainda se julga. Adotavam-se não só numerosos materiais de feitura
castelhana, como também muitos latinos que, pelo castelhano, se nos alojavam no idioma.
Atenção: tudo isto se fez na convicção duma “modernização” do português. E mais: duma
“internacionalização” dele. Os grandes clássicos Camões e Vieira, também grandes
castelhanizantes, sonhariam (é a uma hipótese atrevida, mas venha outra) poder ser lidos
diretamente na Península e na Europa.

Embora o português não seja uma língua nascida pura e higienizada, temos vários
fenómenos que nos dão uma feição única, quase excêntrica, como o til, os ditongos nasalados
como “ão”. Houve um momento em que a Língua quis diferenciar-se dos modos de falar em
redor ou isso foi apenas mais uma consequência do nosso afastamento do galego?
O português tem nichos de originalidade, alguns deles fortíssimos. O sistemático
afastamento do galego forneceu-nos uma imagem inconfundível. Nela cabe essa proliferação
de ditongos nasais, sobretudo o “ão”. Temos também zonas de criação de vocabulário com
que nem o galego nem nenhum outro idioma jamais sonharam. O panorama é, pois,
imensamente variado. Foram vários os processos em jogo, que ocuparam séculos a
desenvolver-se, e hoje o português é uma língua irredutível a outra qualquer.
[…]
Explique-nos então que história é essa do “galaico-português” com o qual
supostamente se escreveu a lírica trovadoresca. Existiu ou a história está mal contada?
Para começar pelo fim: sim, é uma história mal contada. Uma história à nossa medida,
para nos tranquilizar. A língua em que a lírica chamada «galaico-portuguesa» foi escrita foi,
sem sombra de dúvida, o galego. Por esta razão simples: o português ainda não existia, e só
seria criado, como tenho vindo a lembrar, no século de Quatrocentos. Quando, em 1290, um
ensaísta catalão enumera as grandes línguas poéticas da altura, fala no “galego”. E importaria
recordar que as expressões “língua portuguesa” e “português” só aparecem, entre nós, nos
anos de 1430, quando as correspondentes castelhanas já circulavam dois séculos antes. Só
que, no momento em que essa lírica regressa à luz do dia, ao longo de Oitocentos, ninguém
em Portugal admitiria que se dissesse estar em “galego”. O que não seria nada do outro
mundo, visto quase todos os seus autores serem galegos. É então, isto por 1880, que se
inventa a etiqueta “galaico-português” e, de caminho, se inventa o “galego-português” como
idioma. A grande filóloga Carolina Michaëlis de Vasconcelos ainda tenta chamar ”galego” à
língua das cantigas, mas acaba por render-se às suscetibilidades portuguesas.
Diz-se que somos um país de poetas mas, praticamente até Camões, não podemos
registar nenhuma poesia escrita em português. Havia poetas sim, mas escreviam… em galego.
Bom, isso poderia valer até, digamos, 1400. Mas aí inicia-se um século de pouca
poesia, e alguma dela escrita já em castelhano. Quando chegamos a 1500, o português está
grandemente formado, e um Sá de Miranda é nele que escreve. Contudo, e não deixa de ser
curioso, a escrita desse minhoto acusa marcas galegas indesmentíveis. “E assi che vai?”, diz
alguém na sua écloga Basto.
Temos, portanto, muitos séculos, pelo menos desde o ano 1000, em que o português
se foi lentamente formando, e do qual nada sabemos porque tudo era escrito em latim. São
milhares e milhares de palavras perdidas para sempre. Tem pena de não poder resgatá-las?
Vejamos. Se alguma coisa de maior porte se perdeu foram “formas”, mais
exactamente “formas intermédias”. Como não se escrevia senão em latim, esses materiais
perderam-se para sempre. Mas, assim que, por volta de 1200, surge a escrita, achamo-nos
perante um vocabulário riquíssimo, e as cantigas de escárnio e maldizer são uma mina lexical
impressionante. Mais tarde, quando os portugueses, no século de Quinhentos, começam a
escrever teatro, aparece todo um acervo de linguagem familiar e informal, que nunca tinha
visto o papel, mas que, de certeza, já circulava há séculos. Aliás, mesmo no interior de textos
latinos, aparecem-nos formas em “vulgar”. Poucas, mas perfeitamente reconhecíveis. Em
suma: não se terá perdido muito de valor inestimável.
E afinal, temos ou não temos uma grande influência árabe no Português?
Certamente. Mas atenção: essa influência limita-se praticamente ao léxico, não atinge
nenhuma estrutura gramatical. Além disso, a quantidade de arabismos que compartilhamos
com o castelhano é imensa. Deveria, um dia, fazer-se uma triagem e expor quais os arabismos
que só o português conservou. Sabemos, sim, que existem, e que são interessantíssimos.
Já com o francês temos outro enamoramento por volta do século XVIII em que
importamos dezenas de palavras francesas e, depois de 1950, trocamos esse amor por outro,
a língua inglesa. Como língua somos um pouco promíscuos ou bastante liberais?
Somos as duas coisas: somos promíscuos e somos liberais. Não somos nada
esquisitos, servimo-nos do que nos faz falta e do que não faz. Esse caso que cita, o da
influência do francês sobre o português, tem uma história pelo menos tão fascinante como a
do castelhano. Importámos não dezenas, mas largas centenas de palavras francesas… Já o
inglês é de outro cariz. Enquanto o castelhano e o francês se nos acomodam tanto que
deixámos de reparar neles, o inglês continua a denunciar-se, tanto na fala como na escrita.
Além disso, o inglês apresenta, estruturalmente, um perigo: o de subverter-nos a semântica.
Tome o caso, já banal até na imprensa séria, de “eventually”, que não pode traduzir-se por
“eventualmente”. Uma frase como “He eventually died” significa “Ele acabou por morrer”.
[…]
O que tem a dizer àqueles – portugueses e galegos – que querem unificar a língua?
Tenho a dizer-lhes isto: que é tarde. O léxico pode ter, como tem, um importante
sector comum conservado a norte e a sul do rio Minho. Algumas estruturas fundamentais
continuam as mesmas. Mas o reverso da medalha é, pelo menos, tão patente. Tanto Portugal
como a Galiza criaram, independentemente, estruturas e léxico próprios, e não vejo
possibilidade de serem fundidos, ou mesmo de conviverem num sistema unitário. […]

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