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O texto que se segue corresponde a uma fração do primeiro capítulo do meu trabalho “A

Origem da Língua Portuguesa”, publicado em livro pela “Chiado Editora” em Outubro


de 2013. Tanto este fragmento, como o restante trabalho (que na prática é um dicionário
etimológico das palavras do português que têm origem nas línguas antigas do Próximo
Oriente) ajudam a compreender a verdadeira origem da nossa língua. A leitura deste
texto ajudará assim a perceber quem somos e como nasceu a língua que falamos.

Costuma0se classificar o português como língua latina. Mas o latim era a língua dos
conquistadores da Ibéria, não do seu povo. E o que é feito da língua que o povo falava?
Será que desapareceu sem deixar rasto? Ou pelo contrário ela ainda vive entre nós, e
convivemos com ela sem dar por isso, usando0a cada vez que falamos ou escrevemos?
E, se essa língua ainda existe, qual será a sua origem?

Em 1837 foi publicado um artigo extraído das atas da sessão de 15 de Setembro de 1835
da “ ”. Nesse artigo, da autoria de D. Francisco de S. Luiz
1
Saraiva , conhecido popularmente como “Cardeal Saraiva”, intitulado “
!
”, são referidos muitos termos da língua portuguesa cuja origem se pode encontrar
na “ " # " ”.

Curiosamente, parece que este esforço de encontrar uma origem oriental do português
foi interrompido durante mais de um século, até que nos finais do século XX, Moisés
Espírito Santo retomou o tema, alargando o estudo da nossa relação com o Médio
Oriente à cultura, à religião popular, à toponímia, às expressões idiomáticas da língua
portuguesa, etc. Para além dos conhecimentos e conclusões do seu notável trabalho de
investigador, Moisés Espírito Santo ofereceu um instrumento de trabalho valiosíssimo a
quem queira conhecer a origem primeira da nossa língua, mas também a quem pretenda
compreender a toponímia, a cultura portuguesa e a nossa História. Trata0se do
“Dicionário de Fenício0Português”, em que é posto à disposição do leitor, e em
carateres latinos, o fundamental do léxico de algumas das línguas antigas do Próximo
Oriente, o que torna acessível a sua consulta a qualquer pessoa. O estudo que agora
apresento usa fundamentalmente esse instrumento como base de trabalho, e sendo
assim, todas as afirmações e conclusões que aqui são produzidas poderão ser facilmente
verificadas pelo leitor. Mas, ainda antes de iniciar a apresentação das “palavras
portuguesas de origem fenícia”, justifica0se pensar um pouco sobre a linguagem no
geral, de forma a melhor compreender a relação da nossa língua com as línguas antigas
do Médio Oriente a que chamarei de “fenício”. Por isso, comecemos pelo princípio…

1
0 Que apresenta os títulos de “Bispo Reservatário de Coimbra”, “Conde de Arganil”, etc.
É sabido que no final do Paleolítico a população humana era muito pouco numerosa e,
consequentemente muito pouco densa. Não suscita dúvida que o Neolítico implicou
uma verdadeira “revolução demográfica” que veio fazer crescer exponencialmente a
população humana. Também não oferece surpresa que esse crescimento demográfico
tenha conduzido à progressiva expansão dos povos neolitizados, com ocupação de terras
férteis e agricultáveis sempre mais além, com percursos preferenciais discutíveis mas,
no que se refere ao mundo do Mediterrâneo, genericamente de leste para oeste. Não
parece haver acordo entre os estudiosos que permita a criação de um mapa de isócronas
absolutamente consensual sobre a difusão das sociedades neolíticas na Europa e
Mediterrâneo, contudo parece ser seguro que, por exemplo, a cidade de Jericó, situada
nas margens do rio Jordão, já existia há 11 000 anos, o que permite admitir a existência
de uma sociedade agrícola estabilizada, o que antecede em milhares de anos a chegada
da agricultura à Europa2.

Figura 1 – Proposta de início do Neolítico na Europa e Mediterrâneo (datas BP). Segundo “$#
# % ! ” (adaptado)

Não será portanto difícil de aceitar que essa gente que se expande a partir desse foco
inicial tenha transportado consigo as suas sementes e animais, técnicas e crenças, e,
inevitavelmente, a sua língua.

O episódio bíblico da “Torre de Babel”3 é, neste aspeto, particularmente interessante.


Ele permite perceber que na época em que o mito foi criado ainda havia uma memória
distante de que em tempos idos, todos os homens falavam a mesma língua4. E essa foi
por certo a língua do povo do Neolítico que, com a dispersão geográfica e com a
passagem dos séculos e dos milénios, se foi desdobrando em dialetos cada vez mais

2
0 “Jericho is one of the earliest continuous settlements in the world, dating perhaps from about 9000 bce. Archaeological
excavations have demonstrated Jericho’s lengthy history. The city’s site is of great archaeological importance; it provides evidence
of the first development of permanent settlements and thus of the first steps toward civilization.”
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/302707/Jericho Abril de 2013
3
0 Segundo a narrativa bíblica, foi construída uma torre que pretendia ser tão alta que chegasse ao céu. Isto foi considerado uma
afronta por Deus, que castigou os homens fazendo0os falar várias línguas de modo a que não voltassem a ser capazes de se entender
e a conseguir grandes feitos comparáveis às obras de Deus. A tradução de “babel” a partir das línguas antigas do Próximo Oriente é
precisamente “porta para Deus”.
4
0 Naturalmente que todos os homens daquela região do mundo, que era o mundo conhecido pelos autores do mito.
divergentes entre si, até se chegar ao ponto em que os seus falantes deixaram de ser
capazes de se compreender uns aos outros.

As línguas antigas do Médio Oriente hoje conhecidas, como o acádio, o assírio, o


ugarítico ou o hebraico antigo5, que são praticamente dialetos diferentes dessa antiga
língua descendente do falar Neolítico, constituem a base lexical que permite conhecer o
essencial da antiga língua, e a partir dela, encontrar a origem não latina do português6.

A filiação da língua portuguesa nessa língua antiga, a que por comodidade passarei a
chamar “fenício”, pode demonstrar0se pela análise da toponímia, pela decifração da
escrita do sudoeste, pela compreensão das lendas que por vezes parecem absurdas, e,
evidentemente, pela própria etimologia do português, assunto a que dedicarei o
essencial deste trabalho.

Ainda antes de entrar no tema central destas páginas, ilustrarei com alguns exemplos a
importância que o conhecimento desta língua tem para as várias áreas do saber.
Vejamos o caso da toponímia. Há centenas ou milhares de topónimos que só fazem
sentido se entendidos a partir dessa antiga língua. Por exemplo, um local chamado “Mal
Lavado”, “Malavada”, ou “Malvado”, ao contrário do que pode parecer, nada tem que
ver com “sujidade” ou “malvadez”, mas tão simplesmente com a abundância de água e
a existência de poços artesianos. Repare0se que “malavad” significa literalmente em
fenício “poço de águas subterrâneas que transborda”. Ainda hoje se pode constatar que
os locais com estes nomes têm em comum a extraordinária abundância de água. Veja0se
a propósito que “avad” (ou “abad”, dado que na língua antiga não existia a
diferenciação entre o “b” e o “v”) veio a dar topónimo como “Aivado” (sobretudo no
sul do país) e ”Abade” (mais comum no norte e centro), topónimos esses que foram
criados para referenciar a existência de poços. A grande maioria da toponímia rural
portuguesa tem origem nesta antiga língua, e o seu conhecimento tem um potencial
imenso para disciplinas como a História ou a Arqueologia. Veja0se por exemplo que
“Cabra Figa” significa “necrópole de incineração” e que “Cabra Assada” quer dizer
“encosta das sepulturas”, mas também que “Miséria” corresponde a “fronteira”,
“Charneca” é “terreno livre” (sem dono), etc., etc.. Todo um mundo de referências do
passado passa a estar agora disponível e pronto a ser traduzido e interpretado.

Também os documentos escritos no passado por vezes contêm termos ou expressões


incompreensíveis, que só fazem sentido à luz deste novo saber. Um exemplo disso é a
definição dos limites do concelho de Odemira referidos no “Foral Velho” de 1256, que
por sua vez faz apelo aos limites anteriormente estabelecidos entre as terras do rei e as
da Ordem de Santiago em 12357. Entre outros aspetos que requerem atenção, faz0se
referência a um “azougues de benazeual”, de localização indeterminada. Essa

5
0 Facilmente se pode conhecer o léxico fundamental dessas línguas através do “Dicionário de Fenício0Português” de Moisés
Espírito Santo.
6
0 Não se julgue contudo que as antigas línguas europeias, como o latim ou o grego, ou mesmo as línguas europeias modernas, não
beberam nessa mesma fonte linguística ancestral. Pelo contrário é fácil ver que há radicais comuns a muitas línguas modernas que já
se encontravam nestas línguas antigas, e que só podem ter resultado da sua própria difusão. A seu tempo se verá que a própria ideia
do “indo0europeu”, que tem condicionado o pensamento nestas matérias, contém uma componente ideológica eurocêntrica e anti0
meridional não desprezível.
7
0 Quaresma, A. M., Odemira Histórica – Estudos e Documentos, C. M. Odemira, 2006.
indeterminação resultou precisamente de não ter sabido traduzir a expressão medieval
com base no “fenício”. “Azswg bmhzbl” significa simplesmente “santuário rodeado por
uma cerca no cimo da serra”8, o que corresponde seguramente ao ainda hoje existente
santuário de Nossa Senhora das Neves. De posse desta tradução imediatamente se
desfaz qualquer dúvida sobre a localização da fronteira medieval. Muitos outros
documentos, sobretudo medievais, poderão ser melhor compreendidos à luz do
conhecimento da língua antiga.

Também as lendas, que por vezes parecem tolices sem sentido, devem ser lidas de novo,
pensando que na sua origem está uma lenda contada na antiga língua, e que a lenda
atual conserva vestígios da versão original. Vejamos o exemplo da lenda que conta a
origem do nome da cidade de Estremoz. Diz resumidamente a lenda que um grupo de
pessoas fugia pelo Alentejo em busca de segurança, até que encontrou, no local onde
hoje se localiza Estremoz um “enorme tremoceiro” que lhes proporcionou abrigo e
proteção. Evidentemente que a lenda parece ser um disparate completo, já que o
tremoceiro é uma planta leguminosa de poucos centímetros, e consequentemente não
poderia ter dado “abrigo e proteção” a um grupo de fugitivos. No entanto se pensarmos
que “strmooz” significa em fenício “fortaleza de proteção” ou “fortaleza de ficar
abrigado”, então o assunto muda completamente de figura… Quando a lenda foi criada
continha a palavra “strmooz” e consequentemente a ideia de fortaleza de abrigo ou de
proteção. Com o passar dos séculos e com as mudanças operadas na língua falada,
manteve0se a ideia de encontrar “abrigo ou proteção numa fortaleza” (que é essência da
lenda), mas acrescentou0se uma palavra foneticamente próxima, o tremoceiro, como
forma de a contar na nova língua. O mesmo fenómeno ocorre em outras lendas, como a
da origem do nome da praia de “S. Torpes” em que se fala de uma “jangada de canas”
que transportava um “galo e um cão”, animais cuja presença na lenda resulta apenas de
“gal con” significar em fenício precisamente “jangada de canas”. Quem queira
redescobrir as nossas lendas terá um trabalho vasto e aliciante pela frente.

No que respeita à decifração da escrita do sudoeste9, o assunto é, como se


compreenderá, muito mais complexo, mas pode0se garantir também que ela reproduz
esta mesma língua a que chamo de fenício. Assim ficamos a saber que no período do
Bronze Final e da Idade do Ferro, já se falava por aqui esta língua, mas é muito
provável que ela seja bem mais antiga entre nós.

8
0 Ver a este respeito: Almeida, F. R., & ' , C. M. Odemira, 2009, p. 65 e seguintes.
9
0 Apresento em “O Outro Lado da História” uma explicação sobre o funcionamento da escrita do sudoeste, bem como a tradução
de um conjunto de inscrições. É contudo um assunto complexo ao qual tentarei voltar num outro trabalho realizado apenas com esse
propósito.
Alguns estudos sobre primatas têm vindo a mostrar como estes relacionam ideias com
sons, e essa relação deve estar na origem daquilo a que costumamos chamar de
linguagem10. Um processo semelhante deve ter ocorrido com os humanos e é, como
seria de prever, relativamente simples. Imagine0se que um clã dos primeiros humanos
atribuiu o som “Ô” ao que está em baixo (mais tarde será também o que é escuro, sujo)
e o som “Á” ao que está em cima (por analogia será igualmente o que é luminoso, claro,
puro). Se o som “G” for usado como alerta de perigo, “GÔ” ou “ÔG” será “perigo em
baixo” (por exemplo “cobra”), e “GÁ” ou “ÁG” será “perigo em cima” (por exemplo
“águia”). Na mesma lógica, se o som “M” for usado para designar água ou outro
líquido, “MÔ” ou “ÔM” será por exemplo “água turva, suja”, enquanto “MÁ” ou “ÁM”
será “água limpa, clara, leite”, e daí, no futuro, também “ama” e “mãe”, etc.

Como é de calcular, o número de sons emitidos pelo ser humano deve ter aumentado
progressivamente, ao mesmo tempo que as combinações entre eles se tornaram cada vez
mais complexas e diversificadas, por forma a dar resposta a realidades materiais e
culturais cada vez mais ricas.

Deve ter havido entre os povos do paleolítico várias línguas primordiais nascidas deste
modo, que estarão na origem dos grandes grupos de línguas da atualidade, mas esse é
um processo difícil de reconstituir. O que parece evidente é que, quando no Médio
Oriente o Homem domestica plantas e animais e se torna agricultor e pastor, a sua
população “enxameou” o velho mundo, levando consigo a sua língua, e promovendo a
sua difusão entre outros povos. As línguas do primeiro e segundo milénios antes de
Cristo, como o ugarítico, o hebraico antigo, o acádio ou o assírio, que nos servem para
conhecer essa língua antiga apresentam ainda grandes afinidades entre si, e como se
verá, muitas semelhanças com algumas línguas antigas e atuais da Europa, o que
permite perceber que todas elas tiveram uma origem comum.

Contudo, com o processo de divergência antes referido, criaram0se palavras no ocidente


que têm sentido nessas línguas antigas, mas que se saiba, não foram usadas pelos povos
antigos que as falaram. É um pouco como o nosso “fato” do português, que é o “terno”
brasileiro. Nós não usamos a palavra “terno” para nos referirmos ao conjunto de

10
0 Veja0se a esse respeito, por exemplo, os trabalhos realizados sobre a comunicação entre os “macacos de Campbell”
( ! # ! ) no Parque Nacional de Tai, na Costa do Marfim, nomeadamente os do grupo liderado por Klaus
Zuberbühler, da Universidade de St. Andrews, ou os estudos realizados em Sulawesi sobre os primatas do género “( ”, por
exemplo em “The Social Repertoire of Sulawesi Macaques”.
“calças, casaco e colete”, mas “terno” provém da ideia de serem três peças, e faz sentido
em português. A “geladeira” do Brasil é o nosso “frigorífico”, o “grampeador” é o nosso
“agrafador”, a “aeromoça” é “hospedeira de bordo”, etc Não usamos essas palavras no
português que se fala em Portugal, mas elas fazem sentido em português. Note0se que
no caso do português falado dos dois lados do Atlântico a separação é ainda muito
recente e tem havido esforços dos próprios estados para evitar a divergência. Como se
compreenderá facilmente, num tempo em que não existia televisão, rádio, imprensa
(nem tampouco acordos ortográficos), com a passagem dos séculos e dos milénios essa
divergência acentuou0se dando origem a dialetos distintos ou, ao que poderemos
considerar já, línguas distintas. Mas são línguas ou dialetos que partilham
indiscutivelmente a sua raiz antiga.

Assim, também nós usamos por vezes palavras diferentes das usadas por esses povos
antigos do oriente, mas que fazem sentido nas suas línguas. Vejamos um exemplo. Para
se referirem ao que nós chamamos de “barriga” esses povos tinham o termo “krs”, que
em ugarítico se traduz por “tripa” e em hebraico antigo se escrevia “krx”11 e se traduz
geralmente por “barriga”. Já acádios e assírios diriam qualquer coisa como “karaxu”
que costumamos traduzir por “ventre, estômago”. Em português esta palavra não foi
usada (ou se foi, não chegou até nós), mas em contrapartida temos a palavra “tripa” que
deve provir de “ţrp” que significa em fenício “ser esquartejado”, e a própria palavra
“barriga” que por certo tem origem em “bøh rk” (algo como “bâêreke”), que significa
“formar barriga mole”12.

Uma outra característica que provém certamente das origens mais distantes da língua,
mas que ainda se pode detetar nestas línguas antigas, é que a sons próximos
correspondem geralmente ideias próximas. Assim, entre muitíssimos exemplos
possíveis, tomemos o caso de “lan”, que é “dormir” em ugarítico, e “nal” é igualmente
“dormir” em acádio e assírio. E esse tipo de fenómeno não é uma simples metátese, mas
antes uma característica de uma língua em que a “palavra” conforme nós hoje a
entendemos, ainda não existia.

Para a maioria das pessoas a língua é basicamente um conjunto de palavras ligadas por
uma qualquer lógica a que chamamos gramática. É por isso difícil de aceitar que se
possa falar de uma língua sem “palavras”. Contudo, por muito que custe a aceitar,
houve um tempo em que a ideia residia ainda em sons simples, que combinados e
sequenciados davam origem a ideias mais complexas13. A prova mais decisiva e
indiscutível dessa realidade resulta da tradução das inscrições da chamada escrita do
sudoeste, em que não existem palavras individualizadas e em que as diversas leituras

11
0 A escrita hebraica e ugarítica é consonântica, pelo que as vogais estão ausentes da sua grafia e têm que ser introduzidas pelo
leitor. A escrita acádia e assíria foi transliterada dos textos originais em cuneiforme com vogais.
12
0 A explicação que consta geralmente dos dicionários para a origem da palavra “barriga”, é tortuosa e imaginativa, certamente
encontrada, como em muitos outros casos, à falta de outra mais lógica. Diz0se que provém de “barrica”, e esta palavra, por sua vez,
do termo gascão “barri”, que evoluiu pelo francês “barrique” com o significado de “pipa pequena”. Na verdade a palavra “barriga”
deve antes provir de “bøh rk” (bââreke), em que “bøh” é “formar barriga”, e “rk” é “tenro, delicado, macio; fraco, débil; mimoso;
branco, suave”. Com o tempo “bââreke” (ou um som próximo) passou a “barriga”.
13
0 Veja0se por exemplo a este respeito a “História da Lunguagem” de Julia Kristeva, p. 25 e seguintes.
resultantes de diferentes combinações de fonemas conduzem a ideias semelhantes14.
Moisés Espírito Santo explica no seu Dicionário de Fenício0Português que a relação
primordial som/ideia de que falamos a propósito da origem da linguagem, ainda existia
nessas línguas, dizendo; “) " ! * + ' ,
-+ . # ' -/ ' 0
" 1 ' -/ 0 ! 2! 3*
2 ! 3 * -+
0) 4 " 1 0 05
* 2 + 3 .
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1 2 3. # 6 7* 2 * 3. 9 6 7* 2 -+ 3
6:70 ; < ! 0 ,
1 -+ 2 / 3 + ! *
# + ! < = . !
. ! * ' , .
! ! 0”15

Tomemos a título de exemplo ainda o radical fenício “rk”, que contribuiu para a
formação da nossa palavra “barriga”16. Este “rk” (que em muitas situações evoluiu para
“rg” do português atual) não deve ser entendido como uma palavra no sentido que
damos atualmente à palavra “palavra”, mas antes como um radical genérico que pode
ser usado em diversas situações. Atente0se que o “rk” fenício significa algo tão vago
como “ * * * * 1 * * * * " * *
* * …” Essa ideia geral, que não é exatamente
nenhuma das palavras usadas para a definir, mas antes a ideia expressa por todas elas,
quando por exemplo é associada ao fonema “maru” [mare]17, que significa “filho,
gordo”, deu origem a “marreke” e daí ao nosso “maricas” (filho gordo débil, mimoso,
tímido, receoso, delicado…); associado a “bøir” [bôir], que em fenício significa “gado,
animal”, criou o nosso “borrego” (animal branco, suave, delicado...); quando associado
a “rph”, que significa genericamente “filho”18 deu origem a “rphrk” (rapâreke) o que em
português originou a nossa “rapariga” (filha delicada)19.

14
0 Veja0se a este respeito Almeida, F. R., “O Outro Lado da História”, p. 81 e seguinte. Aí se demonstra que uma sequência de
texto incluída em várias inscrições da “escrita do sudoeste” tem várias leituras em fenício, mas que são sempre coincidentes ou
muito próximas.
15
0 Espírito Santo, Moisés, Dicionário de Fenício0Português, p. 87
16
0 No Baixo Alentejo usa0se a palavra “borrega” para as bolhas que se fazem nas mãos quando de um trabalho a que se não está
habituado. Repare0se que também aqui temos uma origem em “bøh rk”, que significa “formar barriga macia” ou “formar saliência
macia”.
17
0 O “u” no final das palavras do acádio e do assírio deve ter correspondido a um som semelhante ao “u” pronunciado em francês,
ou seja, quase um som próximo do “i”.
18
0 Em rigor a palavra “rbh” significa em hebraico antigo “criar (filho)”, mas os sons “b” e “p” foram certamente indistintos entre
nós e nas origens destas línguas.
19
0 Por oposição a “rapaz”, que provém de “rph øz” (rapâaz), e que significa “filho forte”. Estará certamente já o leitor mais atento a
reparar que esse som “az” está presente no nome da mais forte carta do baralho, é designação de alguém especialmente dotado (o
“az” do volante, por exemplo), e pode encontrar0se também no nome do metal mais forte da antiguidade – o aço, etc.
No processo de difusão do Neolítico pelo mundo, devem ter ocorrido diversos tipos de
relação entre as antigas populações que aí viviam como caçadoras e os novos colonos
agricultores e pastores. É possível que em alguns casos as populações nativas de
caçadores tenham sido quase levadas à extinção, ou que se tenham diluído entre os
novos colonos deixando fracas marcas de si mesmas para o futuro; noutros casos terá
havido por parte dos caçadores autóctones uma aprendizagem do modo de vida das
gentes neolitizadas, e assim se tenham transformado em agricultores e pastores,
mantendo no essencial a sua língua e identidade genética. Por esse processo é natural
que se tenham somado populações geneticamente distintas que poderão ter tido diversos
graus de apropriação da língua e cultura dos primeiros agricultores. É possível que essa
tenha sido a situação ocorrida entre nós. Os estudos genéticos realizados sobre restos
ósseos de populações Mesolíticas e Neolíticas parecem mostrar que existiu algum tipo
de colonização no período Neolítico, mas que a sua proveniência não terá relação com
populações do Próximo Oriente. Helen Chandler, Bryan Sykes e João Zilhão, em
“> ) % # ( # <) #
20
” , referem: “ # ! ! ? " !
, + ! -+ ! '
. 1 ! "
" ! , -+ ! ) "
! -+ 03

Terá havido ao longo dos milénios seguintes outros movimentos migratórios através da
grande via de comunicação que foi o Mediterrâneo, repetindo percursos antigos,
renovando gentes e ligando culturas. Muitos pontos da costa continuaram a ser escala
nas rotas comerciais da era dos metais21. Será seguramente o caso dos portos do mar
interior ligados ao comércio fenício, com evidentes prolongamentos na Península
Ibérica, e que parece ter tido continuidade pelo menos até às ilhas britânicas.22

20
0> ) % # ( # <) # , Actas del III Congresso del
Neolitico em la Peninsula Ibérica, Santander, Monografias del Instituto Internacional de Investigaciones Prehistóricas de Cantabria
1, 2005, p. 7810786.
21
0 Veja0se por exemplo “@ % $ & ! 8 # 4 ! # ( ” em
que se afirma: “& # %* # A * A ! ! * A# # !
A # !# ! ! ! 0 ! # ( #
! ! % # # # * # , ) # < # 4 5
BCDDD E5 * * # # F ! # ? A # ! .”
22
0 Segundo Heródoto uma expedição fenícia mandada realizar pelo faraó Necao II circunavegou África no séc. VII a. C., o que
mostra bem a capacidade dos marinheiros da época. Já Estrabão afirma: “As Cassitérides são dez em número e situam0se próximas
Usando um novo método analítico para a deteção de alterações genéticas subtis, o
“Genographic Project” revelou a herança genética dos fenícios. Desde as terras do
Próximo Oriente, colonos e comerciantes dispersaram0se pelas margens do mar interior,
e as suas marcas são ainda hoje visíveis nas populações da Península Ibérica, Norte de
África e ilhas do Mediterrâneo.

Figura 2 – “The Phoenicians’ genetic footprint”23

A aceitar sem reservas ambos os estudos genéticos referidos, teremos que admitir que
após o Mesolítico terá havido uma entrada de povos agrícolas que não eram fenícios,
mas que em momento posterior chegaram à Península Ibérica povos com ligações
genéticas às gentes do Próximo Oriente.

Haverá contudo que admitir que boa parte dos colonos que ao longo dos milénios se
dispersaram pelas margens do mar interior, correspondesse a populações que partiam do
Próximo Oriente, mas não seriam necessariamente naturais da costa da “fenícia”, pelo
que a população migrante que chegou até nós seria já ela própria geneticamente
diversificada. Existem textos antigos que confirmam esta ideia. Por exemplo, no Antigo
Testamento (Ezequiel, 27. 10), pode ler0se a respeito de Tiro: “ ! * " *
1 :”. A fazer fé nesta afirmação, teremos
que aceitar que nos barcos de Tiro viajavam gentes de milhares de quilómetros em
redor. Também no “Cântico de Débora” (Juízes, 5), se percebe que as tribos de Dan e de
Aser abandonaram o Próximo Oriente e se dispersaram pelo Mediterrâneo, dado que se
afirma que “: ! , G !
" ”. Ainda em relação à diversidade de povos que terão chegado a
este extremo do mundo, Plínio0o0Velho diz que “( ! , *

umas das outras, distantes para norte no Oceano ao largo do porto do Ártabro. (…) Muito antes da nossa época, os fenícios eram os
únicos que negociavam com eles, mantendo secretas as rotas que conduzem àquelas ilhas.” In: Estrabão, Geografia, Livro III,
Capítulo 5, 11 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassit%C3%A9rides#cite_note0strabo.geo.3.5.1106 Abril de 2013)
23
0 Mapa apresentado em: http://www003.ibm.com/ibm/history/ibm100/us/en/icons/mappinghumanity/transform/ (Abril de 2013)
IJ
* 1 !H 0 6:7 ( +
IL 26
, K & != # @ * *4 " *5 H ;” .

A recente utilização de contributos provenientes da genética para o conhecimento do


passado é não só de grande atualidade como de inegável interesse. Contudo, no caso que
aqui tratamos, que é o da origem da língua portuguesa, convém não ceder ao fascínio
inebriante de sobrevalorizar esse novo conhecimento da genética, e em consequência
tirar conclusões precipitadas. Note0se que a evolução genética e linguística nem sempre
se fazem em paralelo. Um povo pode manter a sua identidade genética intocada e adotar
uma nova língua. Tomem0se como exemplo os povos andinos que em muitos casos
mantêm intocada a sua genética pré0colombiana, mas que falam castelhano, ou mesmo
povos africanos que passaram a ter como língua oficial um falar levado pelos colonos
europeus, e que geneticamente têm muito pouca ligação à Europa.

Por outro lado, recomenda o bom senso que prevaleça alguma humildade e consciência
de que no capítulo da genética histórica estamos a dar os primeiros passos, e que é
muito mais aquilo que ignoramos que aquilo que podemos garantir.

24
0 No entender de Amílcar Guerra, o autor do texto estaria a referir0se a “fenícios” e não a “púnicos”. Veja0se, PLÍNIO0O0VELHO
E A LUSITÂNIA, p. 51.
25
0 Em relação à muito discutida origem dos Iberos, note0se que “eibri”, em hebaico antigo, significa precisamente “hebreu”, e pode
admitir0se mesmo que os “judeus sefarditas” tenham origem nos iberos, com reforço de efetivos durante o domínio romano, talvez
como consequência da repressão romana que se seguiu à grande revolta judaica do ano 70 d. C., ou à revolta judaica de Bar Kokhba
de 132 d.C.
26
0 Amílcar Guerra, PLÍNIO0O0VELHO E A LUSITÂNIA, Edições Colibri, 1995, p. 29.
Com base no pressuposto que a língua dos povos conquistados pelos romanos sucumbiu
completamente ao latim, e que dela quase nada ficou27, criou0se uma estrutura de
raciocínio enviesada, o que só poderia conduzir ao acumular de incorreções. Assim, em
grande parte dos casos, as palavras do português passaram a ser consideradas de origem
latina. Mas, como efetivamente muitas delas não eram de modo algum latim, criaram0se
formas de, ainda assim, as classificar de “latinas”.

É assim que nascem as “formas latinas hipotéticas”, que é como quem diz: se existe
uma determinada palavra em português, é porque deve ter existido uma palavra
equivalente em latim. Concretizemos. Diz o pensamento tradicionalmente aceite que,
por exemplo, se existe em português a palavra “abalar”, é porque em latim deve ter
existido o verbo “advallare”. O problema é que efetivamente o verbo “advallare” nunca
existiu em latim (e se tivesse existido significaria “atirar0se de um vale ao fundo”, o que
também seria algo estranho), mas em contrapartida existem em fenício as formas
“abalu”, “ibl” e “wabalu” que significam “trazer, levar, carregar”, que evidentemente
estão em muito melhor posição para constituir a origem do nosso verbo “abalar”. Há
centenas de palavras às quais tem sido atribuída esta origem em “formas hipotéticas
latinas”, que efetivamente nunca foram latim, e cuja origem se pode encontrar com
facilidade nas línguas a que vou chamando de “fenício”.

Para além das “palavras hipotéticas” foi criado todo um outro conjunto de explicações
erróneas, embora bem adaptadas ao objetivo supremo de satisfazer a premissa inicial, de
que o português é “filho do latim”. Inventou0se o “latim popular”, o “latim tardio”, o
“latim eclesiástico”, o “latim medieval”, o “latim ibérico”… Diz0se por exemplo que a
nossa palavra “arame” provém do “latim tardio”, de “aramen”, que significa “bronze,

27
0 P. Avelino de Jesus da Costa em “OS MAIS ANTIGOS DOCUMENTOS ESCRITOS EM PORTUGUÊS 0 Revisão de um
problema histórico0linguístico”, cita o Prof. J. M. Piel quando diz que no século IX « 5
! 1 ! # M , !
-+ ». A necessidade desmedida de valorizar o latim e os romanos tem relação com a sobrevivência da elite romana
ao abrigo da Igreja, após a queda do Império Romano do Ocidente. A elite religiosa do império conserva a sua língua na escrita e
nela se revê a ponto de a tornar língua escrita oficial de muitos reinos onde os povos falavam as línguas pré0romanas e as elites
militares as línguas dos invasores “bárbaros”. Neste processo, a elite religiosa, aos poucos, passa a ser igualmente a elite intelectual
e política e, evidentemente, defende a língua latina como fator diferenciador e de prestígio. É assim que, progressivamente, a língua
latina vai sendo difundida muito depois do desaparecimento do próprio império. De algum modo o império romano sobreviveu ao
abrigo da Igreja, e com ele as elites romanas e a sua língua e cultura.
objeto de bronze”. De facto a palavra “arame” deve provir da ideia de “corda de cobre”
ou “corda de bronze”, ideia que em fenício corresponde a “erumen”, mas simplesmente
nunca foi latim, nem precoce, nem tardio, nem popular, nem erudito. A algumas outras
palavras atribui0se por exemplo uma origem gótica, mas que ainda assim teriam sido
apropriadas pelo latim. É o caso da nossa palavra “agasalho” que teria tido origem numa
forma “latina hipotética” “ad0gasaliare”, proveniente do gótico “gasalja”, que
significa… “companheiro” (!?). O facto é que, em fenício, “h ksl” [âkasal] significa “o
vestido”, e “hkshøl” [âksââl] quer dizer “o que cobre por cima”, e este facto destrói
completamente as construções teóricas tradicionalmente aceites, por mais elaboradas
que pareçam ser.

Há outros casos em que a etimologia latina aceite habitualmente é mais que duvidosa.
Por exemplo, origem proposta para a nossa já referida palavra “borrego” é
simplesmente inaceitável. Diz0se que “borrego” provém do latim, de “burru”… que
significa “encarnado”. No entanto em fenício “bøir” significa “gado, animal”, e “buru”28
é “animal pequeno”; por outro lado, como vimos anteriormente, “rk” é “delicado, débil,
suave, branco, tímido, etc.”. Portanto, “burreke” será “animal pequeno delicado”, ou
algo equivalente, e “bøirreke” será por exemplo “gado delicado”. Parece evidente que a
relação entre o nosso “borrego” e o “burro” (encarnado) latino, não faz o menor sentido.

Pela forte influência que o pensamento com origem em França teve sobre os
académicos portugueses, há frequentes analogias entre a origem proposta para palavras
francesas e as suas equivalentes portuguesas. Contudo, se é aceitável a contaminação de
palavras neerlandesas ou alemãs para o francês, por se tratar de línguas de povos
vizinhos, outro tanto já não fará grande sentido em relação ao português. É dessa
situação exemplo a palavra “dique”, que se diz provir do “dijk” dos holandeses. No
entanto em acádio “diq” significa precisamente “trincheira”, e é natural que essa palavra
esteja entre nós há muitos milhares de anos29.

A um número significativo de palavras atribui0se origem castelhana. É bom de perceber


que na maioria esmagadora dos casos a origem das palavras do português é semelhante
à do castelhano, e de nada adianta remeter a origem de uma língua para a outra. De
facto, o que se tornará necessário é descortinar a origem das palavras semelhantes de
ambas as línguas.

O que se pode concluir facilmente ao estudar as teses tradicionalmente aceites para a


origem das palavras portuguesas, é que foram cometidos atropelos à lógica e a qualquer
método que pretendesse ter rigor científico. Abusos na evolução fonética, abusos na
interpretação semântica, abusos absolutamente inaceitáveis através da verdadeira
invenção de palavras que de facto nunca existiram.

28
0 A palavra “bøir” é hebraica, e a forma “buru” é acádia. No fundo são termos muito próximos, que possivelmente parecem mais
distantes pela diferente grafia e transliteração para carateres latinos, mas que por certo eram pronunciadas de forma muito
semelhante: possivelmente como nós ainda hoje pronunciamos a nossa palavra “burro”.
29
0 Ao longo deste trabalho será possível verificar que muito do francês nasceu do provençal, e que esta língua tem radicais muito
próximos dos das línguas ibéricas, e partilha com elas a origem fenícia.
Como se verá ao longo do presente trabalho, os exemplos de palavras portuguesas com
origem “fenícia” são às centenas, e este é apenas um “estudo sumário”, o que significa
que haverá muitas outras palavras de origem semelhante, mas que ainda não estão aqui
tratadas. Em qualquer dos casos a demonstração da origem “fenícia” da língua popular
portuguesa ficará certamente feita.

Como se viu anteriormente, o Cardeal Saraiva, na primeira metade do século XIX já


tinha defendido a origem hebraica de muitas palavras portuguesas. Na época não foi
mais longe em primeiro lugar por não terem sido ainda decifradas outras línguas antigas
do leste do Mediterrâneo, como o ugarítico, o acádio ou o assírio, e portanto não estar
de posse dos léxicos dessas línguas. Por outro lado, não percebeu que em rigor o
português não tem palavras hebraicas ou de outras línguas antigas do Médio Oriente. O
que se passa é que há muitas palavras do português comuns a palavras de línguas como
o hebraico antigo, provavelmente não por terem sido importadas dessas línguas, mas
antes por partilharem com elas uma língua ancestral comum.

Muito embora se esteja no início do trabalho de reconhecimento das palavras do


português com origem “fenícia”, pode desde já enumerar0se um conjunto de situações
em que se percebem diferenças entre as línguas antigas que servem de referência
(sobretudo o ugarítico, o hebraico antigo, o acádio e o assírio) e o português atual. Serão
provavelmente diferenças entre todo o grupo de línguas do leste e do oeste do
Mediterrâneo resultantes da dispersão dos povos do Neolítico. Vejamos as principais
diferenças já percebidas.

O nosso som “a” provém muitas vezes do alef fenício (representado neste trabalho pelo
símbolo “a”) que corresponde nessa língua a uma leve aspiração30. Entre muitos outros,
é o caso do nosso “ brolho”, que deve provir de “ baru ølh”, com o significado de
“folhagem espinhosa”, ou de “ rchote” palavra que deriva de “ rṣwt” (algo como
“ rsôt”), e que significa “acender luz” (“ar” é “luz, brilhar, iluminar”, e “ṣwt” é
“acender”).

O ayn fenício, representado pelo símbolo “ø”, nas línguas antigas do oriente deve ter
sido um som aspirado nasal próximo de “õe”, “ãe”, ou “êu”. É provável que entre nós
tenha sido menos nasalado (ou evoluiu nesse sentido) e por isso as palavras fenícias que
o contêm correspondem com frequência no início das palavras do português ao nosso
“a” mais ou menos aberto. Por exemplo “ qb” (ãeqaba), que significa “chegar ao fim;
30
0 Em relação ao valor fonético dos símbolos aqui referidos seguiu0se o “Dicionário de Fenício0Português”.
parte final; até ao fim”, deu origem ao nosso verbo regular “ cabar”31; de “ b” (ãeb),
que significa “palio, alpendre”, ou seja “cobertura”, resultou a nossa palavra “ ba”32.
Em outros casos (menos frequentes) o “ayn” evoluiu para o nosso “o” aberto no início
das palavras, como é o caso de “ rvalho” que tem certamente origem em “ rbbll”
(ôrvvale), o que significa precisamente “humidade do anoitecer”.

Pode o nosso “a” provir ainda do “he” fenício, letra que correspondia a sons levemente
aspirados como “âa” ou “êe”, e é representada neste trabalho pelo nosso símbolo “h”. É
o caso dos nossos próprios artigos definidos “o, , os, as” que devem ter origem neste
“!” (âa) fenício que é usado nessa língua precisamente como artigo definido, mas para
os nossos dois géneros e números (o nosso artigo não vem evidentemente do “illa”
latino que poderá ter originado o “la” castelhano e francês, mas não os artigos definidos
do português); é igualmente o caso (entre outros) de palavras como “l bareda” tem
origem em “l!b rød” (lâebarãeda), e significa traduzido à letra “chama trémula”.

Por fim, o “a” do início de muitas das palavras portuguesas resulta de fenómenos como
a prótese como é o caso da evolução de “briḥ” [brig] (o símbolo “ḥ” corresponde ao
“ḥet” e falaremos dele adiante, mas geralmente esse som, que nas línguas do próximo
oriente é gutural e fortemente aspirada, evoluiu para o nosso “g” ou “c”, portanto
teremos “brig”) que significa em fenício “ferrolho, tranca, muralha”, para a nossa
palavra “abrigo” no sentido de proteção segura. Algumas palavras portuguesas que se
iniciam com um “a” nasalado provêm de palavras fenícias iniciadas por “m” ou por “n”.
Esse é o caso da palavra “ dar” que deve ter origem em “ d” corresponde a “mover,
afastar, vaguear”.

O desaparecimento total de sons aspirados do português é uma das características mais


significativas da diferença entre o falar antigo do oriente e o português dos nossos dias,
ou, dito de outro modo e de forma mais exata, é uma das maiores diferenças ocorridas
na evolução da língua do Neolítico entre o extremo Leste e o Oeste do Mediterrâneo.
Para além dos sons aspirados antes referidos (o alef, o hê e o ayn) existia em fenício um
outro som fortemente aspirado, o “ḥet”. As várias representações gráficas usadas ao
longo do tempo e pelos diversos povos que escreveram as línguas deste grupo a que
genericamente estamos a chamar “fenício”, são aqui substituídas pelos símbolos “ḥ” e
“ĥ”. Este som, originalmente gutural e fortemente aspirado, desapareceu totalmente do
português correspondendo muitas vezes aos nossos sons “g” ou “c”. Isso verifica0se em
muitíssimos casos: “pḥ” (fḥ), que significa em fenício “lâmina fina ou delgada” passou
a “fc” (ou para se ler hoje, com mais facilidade, a “faca”); “ḥlf”, que significa “fazer
brotar, deixar surgir”, está certamente relacionada com o nosso termo “golfar”; “qrḥ”
que significa em fenício “rapar o cabelo em sinal de penitência, rapado, feito calvo”,
veio a dar o nosso “careca”, etc.. Em outros casos, o som ancestral da língua do
Neolítico, que no Médio Oriente evoluiu para ḥet, entre nós acabou por originar sons

31
0 A etimologia geralmente aceite assenta numa hipotética palavra latina “accapare”, palavra essa que nunca existiu.
32
0 Evidentemente que a nossa “aba” não nasceu do termo “alapa” latino, que era o nome dado à bofetada leve dada a um escravo
para o libertar (fazia parte do ritual da cerimónia da libertação dos escravos dar o senhor uma pequena bofetada, sinal de liberdade).
É mais uma das inúmeras situações em que houve um claro abuso na busca de étimos latinos para as palavras do português.
como o “f”, o “j”, ou o “s”, e possivelmente em outros casos ainda pura e simplesmente
desapareceu.

Um dos factos que pode parecer mais estranho ao leitor é a total indistinção entre os
sons “b”, “p”, “v”, e “f”. Hoje até nos parece difícil de conceber que em tempos todos
estes sons tenham sido confundidos. Para o compreender mais facilmente é bom pensar
na total indistinção ente o “b” e o “v” que se verifica em boa parte do Norte do país. O
mesmo terá acontecido certamente entre o “b” e o “p”. Note0se que mesmo nas línguas
antigas registadas no Médio Oriente essa confusão era evidente, quer pela ausência de
símbolos distintos para o “b” e “v” e para o “p” e “f”, quer pela semelhança entre os
significados de palavras escritas com “b” e com “p”, ou pela troca destas letras nas
palavras equivalentes de diferentes dialetos (por exemplo, “brṣl” é “ferro” em hebraico
antigo; “przl” em aramaico é igualmente “ferro”). De resto essa indistinção foi
suficiente para que os romanos tenham importado palavras do fenício como “cabana”
escrevendo “capane”. Assim, por estranho que possa parecer, podemos encontrar a
origem de uma palavra que hoje se escreve com “b” numa palavra fenícia que se
escrevia com “p”, como é (entre muitos outros) o caso da nossa palavra “bando”, que
certamente provém do termo ugarítico “pamt”, que significava “grupo”.

Os dialetos “fenícios” que nos servem de base para reconstituir a língua que está na
origem do português apresentam outras diferenças em relação à nossa língua. O
exemplo anterior, da palavra “bando”, que provém certamente da fenícia “pamt”, mostra
como o “d” e o “t”33 permutaram neste processo de divergência ocorrida no espaço e no
tempo. Há muitos outros exemplos desta situação, como por exemplo “dd” [deda] que
significa “seio, seios, peito feminino”, veio a corresponder à nossa “teta”.

A sequência “ll” existente em fenício passou a “rl” ou “lr”. Está nesta situação, entre
outras, a palavra “ a a har” que certamente provém de “ ”, que significa em fenício
“misturar, confundir”.

O nosso som “f” provém geralmente do “p/b” fenício, mas pode vir igualmente de uma
sibilante fenícia como o “z”. É o caso das palavras “pifar”, “bifar” e “abafar”, todas elas
certamente provenientes de “bz”, que significa “pilhar, despojo, presa”. Pode também o
“f” provir do ḥet, como ocorre em palavras como “fita”, “ficar” ou “fechar”. O mais
interessante é que parece que o som que originou o ḥet em outras línguas, entre nós se
“desguturalizou” e evoluiu para sons como o “g” ou o “c”, o que parece facilmente
aceitável, mas também para o “s” ou “j” e o “f”34, o que é mais surpreendente.

A confusão já reinava entre os sons sibilantes usados entre as diferentes línguas antigas
do oriente, e ela ainda existe hoje na própria variação regional da pronúncia do
português. Note0se por exemplo que um “sacho” em Lisboa é o mesmo que um “xaxo”
na Guarda, ou mesmo que um “txatxo” em Mangualde. O Antigo Testamento dá0nos

33
0 Resta saber se no início do Neolítico já existiria uma clara distinção entre “d” e “t”, ou seja, se estamos perante uma evolução
entre “d” e “t”, ou se, o que começa a parecer mais provável, de um som indistinto “d/t” primordial, se fixou em alguns dialetos o
“d” e em outros o “t”.
34
0 O Cardeal Saraiva refere com a maior naturalidade a relação entre o ḥet hebraico e o “f” português. Para nós essa relação foi
mais surpreendente porque a relação que primeiro se detetou foi entre o “ḥet” e os sons “g” e “c”.
um exemplo dessa variação já existente em tempos bíblicos, ao referir a seguinte
passagem: 2 ! , ! * ,
! ? + 0 N ! !
-+ ! ! * # ! 8 2; G3
! 2)+ 3* < 2 # 30 ( 2 3*
! , + ! ! ! * + ! <
OL
< 03 Não se deve por isso estranhar que na relação entre as
palavras antigas do fenício e as atuais do português exista essa variação.

Há outras relações, mais raras e aparentemente improváveis, mas que parece terem
existido. Poderá eventualmente ser o caso da sequência fenícia “gn”, que passa ao nosso
som “nh”. Isso parece ter ocorrido pelo menos na palavra “ranheta”, que provém por
certo de “rgn”, que significa “resmungar, murmurar” e do muito usado em português
“øwt”, que quer dizer “transtornar”. No entanto não se deve estranhar em demasia esta
situação porque o “nh” português corresponde por vezes ao “gn” francês, e este tem
também, via provençal, forte influência desta mesma língua antiga.

Muitas situações em que a atual palavra portuguesa começa por “es” correspondem a
palavras fenícias iniciadas por um “s”. É, entre muitas outros, o caso de “esmerar” que
provém de “smr”, ou de “escalabardo”, que teve origem em “sklbrd”36.

Com o tempo e a continuidade dos estudos que de momento estão pouco mais que
iniciados, se chegará a uma compreensão mais perfeita da relação entre a língua
portuguesa atual e antiga, e as demais línguas da mesma origem.

35
0 Juízes, 12. 5, 6.
36
0 A palavra “smr” significa “proteger, cuidar, conservar, manter”, em hebraico antigo, e o “sklbrd”, significa “insensato animal
malhado”.

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