Você está na página 1de 23

Apresentação

E
ste livro tem por objetivo introduzir o leitor ao vasto e diversifica-
do domínio da história das línguas. Nosso objeto aqui é a língua
portuguesa e sua história. Procuraremos entender um pouco so-
bre as origens do português, sua relação com o latim, sua fixação enquanto
língua de um Estado e, posteriormente, seu translado e fixação na América, História Interna
Aspectos relacionados
na Ásia e na África.
às mudanças estruturais
Talvez a característica que mais chame a atenção do leitor seja o fato de que que uma língua sofreu
ao longo do tempo.
não é possível entender a história de uma língua sem levarmos em conta os
eventos políticos e históricos pelos quais passou o povo que falava essa língua.
Usando os termos da linguística histórica, para entender a história interna de
uma língua, é imprescindível que levemos em conta sua história externa. É por História Externa
isso que em vários momentos apresentamos a situação política de um determi- Eventos de ordem não
nado país, seus interesses econômicos e suas dinâmicas populacionais. linguística, políticos,
econômicos, bélicos
O presente livro está dividido em três unidades. Na primeira delas, traçaremos etc. que influenciaram
uma história da língua latina, de sua origem até o início das línguas români- uma dada língua.
cas, salientando as principais características da língua latina, a expansão do
Império Romano e a formação e dissolução da România. Na segunda unida-
de, olharemos para a história da língua portuguesa desde os seus primeiros
documentos até a chegada do português ao Brasil, pontuando cada uma das
grandes mudanças estruturais detectadas ao longo de sua história. Finalmente,
na terceira unidade, apresentaremos a história do português no Brasil, algu-
mas das hipóteses sobre sua formação e ofereceremos um panorama da língua
portuguesa no Brasil de hoje.

Ao longo deste livro, apresentaremos vários excertos e textos antigos que serão
analisados, além de mapas e imagens, para ajudar o leitor a se situar no longo
percurso histórico que o espera nas próximas páginas. No fim deste livro, o
leitor encontrará uma série de atividades sugeridas para a sala de aula; procu-
raremos mostrar com as atividades que estudar a história de uma língua pode
servir como uma ponte interessante para as disciplinas de História e Geografia,
além de despertar o interesse dos alunos sobre as razões de o português ser
como é hoje, ter a ortografia que tem e suas características distintivas. Ain-
da para auxiliar nessas atividades, o leitor encontrará um Glossário com os
principais termos técnicos utilizados e uma Cronologia com as datas mencio-
nadas no texto e outras que são importantes para a história do português.

Antes de terminar a Apresentação, gostaríamos de deixar registrado nosso agra-


decimento à leitura cuidadosa e às várias sugestões da profa. Izete Lehmkuhl
Coelho, que em muito contribuíram para este livro.

Boa leitura!

Rodrigo Tadeu Gonçalves

Renato Miguel Basso


Unidade A
Do Latim ao Português
Do Indo-Europeu ao Latim... Capítulo 01
1 Do Indo-Europeu ao Latim:
primórdios da história
das línguas
O objetivo deste capítulo é compreender o processo de origem do latim,
a partir de uma análise da história da hipótese do indo-europeu. O capítulo
aborda o processo da história das línguas e da filologia, a fim de
compreender as origens históricas do latim.

Introdução
Ao dizermos que o português é uma língua latina, automaticamen-
te indicamos a filiação do português ao latim e também a outras línguas
românicas, isto é, às outras línguas que têm como origem o latim.

Do ponto de vista de sua estrutura gramatical e de seu léxico, dizer


que o português é uma língua latina significa dizer que encontramos no
latim as palavras que deram origem ao léxico do português, mas também
que encontramos certas características sintático-morfo-fonológicas es-
pecíficas do latim e das línguas românicas no português. Exploraremos
a fundo algumas dessas características ao longo deste livro.

Do ponto de vista de sua história, dizer que o português é uma língua


latina, como vimos, significa dizer que o latim é a língua-mãe do portu-
guês. Essa constatação pode levar o leitor mais curioso a se perguntar
não apenas sobre como se deu a passagem do latim ao português, mas
também sobre a origem do latim. Ora, assim como o português se ori-
ginou do latim, podemos perguntar de qual língua se originou o latim.

A resposta a tal pergunta nos leva a um passado muito remoto, do qual


não temos praticamente nenhum registro escrito (e obviamente ne-
nhum falado!) e, portanto, a um terreno de bastante especulação. Não
obstante, a investigação sobre a origem do latim e de outras línguas de
cultura da antiguidade europeia levou linguistas, historiadores e arque-
ólogos a descobertas no mínimo fascinantes.

11
História da Língua

1.1 O desenvolvimento da linguística


histórico-comparativa
Desde há muito tempo, diversos estudiosos viram semelhanças en-
tre o latim e o grego clássicos que não podiam ser resultado do acaso. No
entanto, os estudos dos períodos anteriores ao século XIX eram muito
esparsos e baseados em suposições muitas vezes infundadas, como a de
que o latim derivava diretamente do grego, e este diretamente do he-
braico, a suposta língua original cujo dialeto mais antigo Adão teria fa-
lado. Aos poucos, as hipóteses que ligavam o latim e o grego ao hebraico
foram sendo descartadas, em grande parte devido ao interesse crescente
pelas línguas do Oriente, que passaram a ser mais bem conhecidas pelo
Ocidente europeu em virtude dos contatos crescentes entre os povos,
derivados de um trânsito comercial e colonialista ­­mais intenso, acirrado
pelos movimentos expansionistas europeus.

Muitos estudiosos, principalmente aqueles que participaram dos


estudos linguístico-comparativos entre o século XIX e começo do sé-
culo XX, descobriram semelhanças também entre diversas línguas da
Europa, organizando essas línguas em famílias linguísticas, que, por sua
Para que você possa vez, também eram aparentadas entre si. Exemplos mais comuns são jus-
relembrar como os pes-
quisadores estabelece- tamente as línguas românicas, como o francês, o espanhol, o italiano, o
ram o parentesco entre romeno, o português etc., cujo percurso do latim até seu estado moder-
as línguas, sugerimos a
releitura do livro-texto no foi documentado através dos mais diversos tipos de texto (políticos,
de História dos Estudos literários, jurídicos etc.), e também as línguas germânicas, como o in-
Linguísticos, de Heronides
Moura e Morgana Cam- glês, o holandês, o alemão, o islandês, o dinamarquês etc., que descen-
brussi, especialmente o dem de uma língua chamada de protogermânico.
Capítulo 4 da Unidade A.
O parentesco entre o grego, as línguas latinas (e o latim), as lín-
guas germânicas e outras da Europa já estava razoavelmente estabele-
cido quando um jurista, filólogo e humanista inglês, Sir William Jones,
demonstrou, em 1786, que o sânscrito, uma língua bastante antiga da
Índia, era inequivocamente próximo ao latim, ao grego, ao protogermâ-
nico e também ao persa, língua falada no Irã. Seu discurso para a Socie-
dade Asiática (fundada por ele mesmo em 1784), publicado em 1788, foi
considerado o pontapé inicial da Linguística Histórico-Comparativa.
Em uma passagem célebre, o filólogo afirmou que:

12
Do Indo-Europeu ao Latim... Capítulo 01
O sânscrito, sem levar em conta a sua antiguidade, possui uma estrutura
maravilhosa: é mais perfeito que o grego, mais rico que o latim e mais ex-
traordinariamente refinado do que ambos. Mantém, todavia, com estas
duas línguas tão grande afinidade, tanto nas raízes verbais quanto nas
formas gramaticais, que não é possível tratar-se do produto do acaso. É
tão forte essa afinidade que qualquer filólogo que examine o sânscrito,
o grego e o latim não pode deixar de acreditar que os três provieram de
uma fonte comum, a qual talvez já não exista. Razão idêntica, embora
menos evidente, há para supor que o gótico e o celta tiveram a mesma
origem que o sânscrito. (ROBINS, 1983, p.107)

Com tal descoberta, estava aberto o caminho para que o termo


“indo-europeu” fosse cunhado, em 1813, pelo polímata inglês Thomas
Young. O século XIX foi o período em que uma série de filólogos de- Irmão de Wilhelm Grimm,
senvolveu gramáticas comparativas entre várias línguas indo-europeias, com quem escreveu os
famosos contos de fadas
entre eles Rasmus Rask, Jakob Grimm, Franz Bopp, August Schlegel, dos Irmãos Grimm.
Wilhelm Von Humboldt e August Schleicher. Trata-se do primeiro ca-
pítulo da história da linguística moderna, que viria a culminar em abor-
dagens cada vez mais cientificizantes, como a dos chamados neogramá-
ticos do final do século, que abriram caminho para o estruturalismo no Hermann Osthoff e Karl
Brugmann são os mais
início do século XX. conhecidos.

1.2 O protoindo-europeu e as línguas indo-


europeias
Entre as realizações mais interessantes dos filólogos/linguistas
comparativistas do século XIX estão alguns estudos sobre mudanças fo-
néticas das línguas indo-europeias, como as Leis de Grimm, e tentativas
de reconstrução do protoindo-europeu, como a de August Schleicher,
que inclusive chegou a tentar escrever textos na língua reconstruída.

13
História da Língua

Box 1: Leis de Grimm

Vejamos alguns exemplos famosos de leis de mudança fonética de-


senvolvidas por Jakob Grimm em 1822, em seu livro Deutsche Gra-
matik (Gramática Alemã):

Consoantes oclusivas surdas do PIE e/ou das línguas mais antigas da


família passam a fricativas surdas nas línguas germânicas, como em
p → f, t → θ.

Consoantes oclusivas sonoras do PIE e/ou das línguas mais antigas


da família passam a oclusivas surdas, como em b → p, d → t.

Consoantes oclusivas aspiradas sonoras do PIE e/ou das línguas


mais antigas da família tornam-se oclusivas sonoras, como em
bh → b e dh → d.

Alguns exemplos de aplicações das Leis de Grimm podem ser vistos


a seguir:

d → t: PIE *dékm(t) “dez”, latim decem, grego antigo déka, sânscrito


daśan → inglês ten, alemão zehn, pronunciado [tze:n]

p → f: PIE *póds “pé”, latim pēs, grego antigo poús, sânscrito pāda →
inglês foot, alemão Fuss

bh → b: PIE *bhréhater- “irmão”, sânscrito bhrātŗ → inglês brother, ale-


mão Bruder

Dos diversos estudos desses filólogos, linguistas, gramáticos com-


paratistas e humanistas, foi possível descobrir que o latim e o sânscri-
to eram aparentados o suficiente para terem uma origem comum, nos
moldes em que dizemos que o francês e o português têm origem no la-
Doravante, neste livro, tim. A suposta língua que deu origem ao latim, ao grego, ao sânscrito, ao
abreviada como PIE. protogermânico etc. foi chamada de “protoindo-europeu”. No entanto,
como dissemos, não há praticamente nenhum resquício escrito da pas-
sagem do PIE para as línguas da família indo-europeia e sua reconstitui-

14
Do Indo-Europeu ao Latim... Capítulo 01
ção é feita com base nas mudanças linguísticas atestadas historicamente
e também na comparação entre as diversas línguas indo-europeias. Os
estudiosos foram capazes de identificar os ramos da família indo-euro-
peia mais antigos, como o anatólico, que se desenvolveu provavelmente
por volta de 2000 a.C.; o indo-iraniano, por volta de 1400 a.C.; e o grego
por volta de 1300 a.C. ou mesmo antes. Assim, o PIE foi falado prova-
As inscrições mais antigas
velmente antes de 2500 a.C., mas as datações são todas muito difíceis encontradas datam do
de estabelecer e muito hipotéticas. Para termos ideia da extensão cro- século VII, embora Roma
tenha sido fundada por
nológica envolvida nas transformações entre as línguas indo-europeias, Rômulo, segundo as len-
pode-se dizer que o latim tem origem em torno do século XI a.C. e o das, em 753 a.C.
sânscrito entre 1500 e 1000 antes de Cristo. Vejamos abaixo exemplos
das semelhanças no vocabulário de algumas das línguas indo-europeias,
lembrando que em linguística histórica, formas marcadas com asterisco
são aquelas que não foram atestadas em documentos, mas reconstruídas
a partir de dados da história da mesma língua ou das que derivaram
dela; usaremos essa notação neste livro.

Português pai mãe irmão lobo


Latim pater mater frater lupus
Grego
pater meter phrater lykos
Antigo
Sânscrito pitar matar bhratar vrkas
Espanhol padre madre hermano lobo
Francês père mère frère loup
Inglês father mother brother wolf
Alemão Vater Mutter Bruder Wolf
PIE *phatér *méhater *bhréhater *wlkwos

Podemos ver como as palavras são semelhantes, e as reconstruções O símbolo “†” indica que
do PIE apresentadas, embora pareçam estranhas por causa da notação se trata de uma língua
que não tem mais falantes
fonética, são muito próximas das línguas antigas apresentadas cujos da- nativos, ou seja, de acor-
dos foram atestados, o sânscrito, o grego antigo e o latim. do com a terminologia
corrente, trata-se de uma
O quadro a seguir ilustra as principais famílias linguísticas que se língua morta.
originaram do protoindo-europeu:

15
História da Língua

Protoindo-europeu

(†) ramo anatólico (†) assírio, (†) hitita


ramo helênico (†) grego antigo grego moderno
ramo indo-iraniano persa, (†) sânscrito
francês, romeno, italiano,
ramo itálico (†) latim
português, espanhol etc.
galês, gaélico irlandês, gaélico
ramo céltico
escocês, bretão
letão, lituano, russo, tcheco,
(†) antigo prussiano, (†) proto-
ramo balto-eslavo polonês, ucraniano, croata
eslavo
etc.
islandês, norueguês, sueco,
ramo germânico (†) protogermânico alemão, inglês, holandês,
faroês etc.
ramo armênio armênio
(†) ramo tocário
ramo albanês albanês

Podemos ver a extensão da cobertura das línguas indo-europeias


em seus espaços de ocupação originais no Mapa 1:

Perceba que outras famí-


lias linguísticas também
aparecem no mapa. Indo-europeia - Românica

Indo-europeia - Germânica

Indo-europeia - Germânica Setentrional

Indo-europeia - Eslava

Indo-europeia - Báltico

Indo-europeia - Helênica

Altaica- Turcomana

Urálica

Afro Asiática - Semítica

Mapa – As línguas indo-europeias em seus espaços originais. (Adaptado do mapa disponível


em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7f/L%C3%ADnguas_da_Europa_por_
Fam%C3%ADlia.jpg>. Acesso em: 05 abr. 2010.)

16
Do Indo-Europeu ao Latim... Capítulo 01
O indo-europeu não é, obviamente, a única família de línguas do
planeta. Línguas como o árabe, o chinês e o turco não são indo-euro-
peias e cada uma pertence a uma família linguística, respectivamente,
o semítico, o sino-tibetano e o altaico. Os métodos de comparação e
reconstituição de línguas que foram empregados para o caso da famí- O estabelecimento do
turco na família altaica é
lia indo-europeia e que resultaram no protoindo-europeu poderiam, incerto, mas esta família
a princípio, ser aplicados às outras famílias linguísticas do mundo, in- inclui também o coreano
e o japonês, entre outras.
cluindo certamente as línguas indígenas brasileiras e do resto do conti-
nente americano. Qual seria o resultado de tal aplicação? Seria possível
reconstituir todas as protolínguas? Se sim, o que isso nos mostraria?
Teriam todas as línguas uma mesma origem? Ou talvez não haja paren-
tesco entre as protolínguas e a linguagem surgiu em momentos, lugares
e com estruturas diferentes nos vários grupos humanos?

Essas são perguntas extremamente interessantes, mas também extre-


mamente complexas e qualquer resposta a elas seria nada mais do que
especulação. Aqueles que defendem a hipótese de que todas as lín-
guas (e protolínguas) descenderam de uma mesma língua ancestral
são chamados de monogenistas; em oposição aos monogenistas estão
os poligenistas, que defendem a ideia de que as línguas não tiveram
um único ancestral. Para complicar ainda mais o quadro, há paleontólo-
gos, linguistas, biólogos e historiadores que defendem que a origem da
língua não está sequer na língua falada como a conhecemos, mas sim
na língua de gestos talvez próxima a que as comunidades de surdos
usam atualmente. Essa hipótese, bastante interessante, abre também
mais um leque de perguntas: seriam as atuais línguas de sinais próxi-
mas a uma ou mais protolínguas? Como proceder a tal investigação?
Supondo que a origem da língua é gestual, como e por que se deu a
passagem para a língua falada?

Como é possível ver, há ainda inúmeras perguntas a serem respondidas


(e feitas) sobre a história e a origem das línguas.

17
História da Língua

Box 2: A fábula de Schleicher

Transcrevemos a fábula que Schleicher escreveu em protoindo-eu-


ropeu, intitulada Avis akvāsas ka (A ovelha e os cavalos):

Avis, jasmin varnā na ā ast, dadarka akvams, tam, vāgham garum


vaghantam, tam, bhāram magham, tam, manum āku bharantam.
Avis akvabhjams ā vavakat: kard aghnutai mai vidanti manum
akvams agantam. Akvāsas ā vavakant: krudhi avai, kard aghnutai
vividvant-svas: manus patis varnām avisāms karnauti svabhjam
gharmam vastram avibhjams ka varnā na asti. Tat kukruvants avis
agram ā bhugat.

Uma tradução aproximada para o português seria:

Uma ovelha que não tinha lã viu cavalos, um puxando uma carro-
ça pesada, um carregando um grande fardo, e um carregando um
homem rapidamente. A ovelha disse aos cavalos: “meu coração me
dói ao ver um homem conduzindo um cavalo”. Os cavalos disseram:
“ouça, ovelha, nossos corações nos doem ao vermos isto: um ho-
mem, o senhor, transforma a lã de uma ovelha em uma vestimenta
quente para si e a ovelha não tem lã”. Tendo ouvido isto, a ovelha
foge para o campo.

Embora vários pesquisadores tenham refinado o tratamento lin-


guístico dado aos termos do protoindo-europeu por Schleicher,
apresentamos esta versão, de 1863, para mostrar que, uma vez que
a reconstituição é feita a partir dos dados das línguas derivadas que
podem ser atestadas através de inscrições (no caso das línguas mor-
tas que deixaram material escrito, como o latim, o grego antigo e o
sânscrito) e daquelas que ainda possuem falantes (como é o caso do
português, inglês, russo, romeno, entre outras), algumas palavras e
morfemas apresentam semelhanças tanto com o latim como com o
português, uma língua já mais afastada. Alguns exemplos são: *avis
do PIE assemelha-se muito com ovis em latim e mesmo com “ovelha”
em português. *Magham,“grande”, deriva o latim magnum, que resul-
ta em formas eruditas portuguesas como “magnitude” e “magnífico”.

18
Do Indo-Europeu ao Latim... Capítulo 01
*Manum assemelha-se com o radical latino homin- “homem”, mas
mais ainda com o inglês man e o alemão Mann. *Agram, “campo”,
deriva a forma latina agrum, que em português também é radical
erudito que podemos encontrar em “agricultura”, “agrícola”, entre
outros. Das formas morfológicas, podemos verificar a terceira pes-
soa do singular do presente do indicativo em *ast, “tem”, que apre-
senta o morfema –t assim como em habet no latim, ou ainda em hat
no alemão. Um estudo sobre o PIE estaria longe do escopo deste
livro, mas maiores informações podem ser encontradas em biblio-
grafia especializada sobre o indo-europeu e línguas derivadas dele
(veja-se, por exemplo, Mallory; Adams, 2006).

1.3 Do protoindo-europeu ao latim


Uma história do protoindo-europeu demandaria muito mais do
que pretendemos com este livro, mas algumas características importan-
tes da passagem dos dados hipotéticos reconstruídos para o que conhe-
cemos do latim serão importantes para entender alguns paralelos entre
esse movimento e os movimentos posteriores da passagem do latim ao
português.

Na morfologia, podemos verificar alguns fenômenos interessantes


de simplificação ocorridos no percurso PIE-latim. Por exemplo, o PIE
declinava seus substantivos em número e gênero, como em português,
mas também em caso, como em latim, grego, sânscrito e algumas lín-
Forma átona que serve,
guas modernas como o russo e o alemão. Trata-se da flexão morfoló- por exemplo, como obje-
gica relacionada com funções sintáticas, como a que vemos ainda nos to; no próximo capítulo
exploraremos mais a
resquícios de morfologia casual em português nos pronomes pessoais fundo o conceito de caso
“eu” (forma de sujeito) e “me”. Dizemos “eu vi o cachorro” e “o cachorro e suas manifestações.
me viu” com formas diferentes para o pronome “eu” por causa do mes-
mo fenômeno. Considera-se que o PIE possuía oito casos gramaticais,
sendo eles o nominativo (caso basicamente de sujeito), acusativo (caso
do objeto direto, como o “me” do português), o vocativo (o caso usado
quando chamamos um interlocutor), o genitivo (caso de posse, como
o genitivo woman’s “da mulher” do inglês), o dativo (caso do objeto

19
História da Língua

indireto), o ablativo (caso usado geralmente para denotar afastamento


espacial, proveniência, entre outras coisas, como em “ele veio da fazen-
da”), o locativo (caso que se usava para dizer algo como “estou em casa”)
e o instrumental (caso usado para especificar o meio ou o instrumento
que se usou para fazer algo, como em “ele quebrou a porta com o ma-
chado”).

No próximo Capítulo, explicaremos melhor o funcionamento dos casos


em latim, mas, por ora, é importante saber que é seguro afirmar que o
PIE possuía esses oito casos, mas na passagem para o latim sobrevive-
ram apenas os seis primeiros, de modo que o locativo e o instrumental
tiveram seus usos acolhidos pelo ablativo, que passou a ser um caso
bastante polivalente. Alguns poucos exemplos esparsos de locativo são
encontrados em latim, mas basicamente o sistema de casos latino apre-
senta: o nominativo, o vocativo, o acusativo, o genitivo, o dativo e o abla-
tivo. Como um exemplo de derivação diferente do PIE para uma língua
clássica, o sânscrito antigo manteve os oito casos listados acima.

Outra característica interessante para este panorama é a da flexão


Isso não significa, de de número dos nomes. O PIE, assim como o grego antigo, flexionava os
modo algum, que essas nomes em singular, plural e dual. Este último número denota dois obje-
sejam as mudanças mais
importantes nem as úni- tos ou elementos. Assim, se “casa” significa basicamente “uma casa” em
cas que ocorreram do PIE oposição a “casas”, que podemos entender como “mais de uma casa”, o
para o latim.
PIE e o grego ainda tinham uma flexão para dizer “duas casas”. O latim
não conservou a categoria do dual como flexão dos nomes, que sobre-
viveu apenas em formas como duo, “dois”, ambo, “ambos”, que também
temos em português e que denotam somente pares de objetos.

Há várias características do PIE que foram transmitidas ao latim


diretamente, como a terminação -m de acusativo singular, que deriva do
*-m PIE. Outro exemplo seria o *-a, terminação de neutro plural do PIE
que aparece exatamente dessa forma em latim. Se você já estudou latim,
seria interessante lembrar ou retomar o que viu.

20
Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
2 Latim e latim vulgar, ou
de onde mesmo vem o
português?
Neste Capítulo, fazemos uma breve história do latim, identificando as
diferenças básicas entre o que chamamos de latim clássico e latim vulgar, bem
como entre seus períodos históricos, como o latim arcaico e o latim tardio.
Além disso, avaliamos algumas diferenças básicas entre as estruturas do latim
clássico e vulgar.

2.1 Brevíssima história do latim


O latim era a língua falada na região central da Itália, chamada de
Lácio, durante o primeiro milênio antes de Cristo e que, juntamente
com o Império Romano, estendeu-se por grande parte da Europa, pelo
norte da África e por diversas regiões da Ásia, até se transformar, através
do curso natural das línguas, em dialetos incompreensíveis entre si, que
acabaram dando origem às línguas românicas. Para entendermos a his-
tória do português, será necessário compreender o percurso que o latim
trilhou até se diferenciar em línguas românicas, especialmente porque
a língua que resultou nos romances e nas línguas românicas modernas

Bretanha

Oceano Atlantico

Gália Mar Cáspio


Italia
Mar Negro
Macedonia
Roma
Espanha
Asia Menor
Grecia

Judeia
Mar Mediterraneo

Africa
Egito

Rio Nilo Mar Vermelho

Mapa – O Império Romano no seu apogeu. (Adaptado do mapa disponível


em: <http://wps.ablongman.com/wps/media/objects/262/268312/art/figures/
KISH106.jpg>. Acesso em: 05 abr. 2010.)

21
História da Língua

não foi o mesmo latim que chamamos de clássico hoje, mas sim o latim
falado pelas pessoas comuns, no dia a dia, nas mais diversas interações:
o chamado latim vulgar.

Para termos uma ideia do ímpeto expansionista do Império Roma-


no e de seu poderio, vejamos no mapa da página anterior as regiões que
pertenceram a ele durante seu apogeu; nunca é demais dizer que o latim
era levado a todas as regiões conquistadas.
Virgílio sentado entre as musas Clio,
da história, e Melpômene, da tragédia.
Sousse, séc. III d.C.
O latim que normalmente aprendemos hoje corresponde à variante
literária e estilizada de um período muito importante para a história
do Ocidente: o período que, de maneira geral, compreende os séculos I
a.C. e I d.C. Nesse período, grandes autores escreveram obras literárias
Publius Vergilius Maro
nasceu no ano 70 a.C. que ajudaram a moldar as bases culturais, políticas, sociais, filosóficas e
perto de Mântua, na Gália religiosas da Europa e, consequentemente, do mundo ocidental. Den-
Cisalpina, e morreu no ano
19 a.C. tre esses autores, podemos destacar o poeta Virgílio, que, entre outras
obras, escreveu a Eneida no final do século I a.C. Nesse poema, Virgílio
narra as origens históricas e mitológicas da grandiosa Roma, governada,
no seu tempo, por Augusto. Após longas décadas de guerras civis, havia
De nome Gaio Júlio César sido declarado imperador em Roma, e criaria um período de paz e pros-
Otaviano, Augusto rece-
beu esse título quando se peridade para a capital de um Império que, se já vinha se expandindo
tornou o primeiro impera- enormemente ao longo dos séculos precedentes, levaria as fronteiras de
dor de Roma. Nasceu em
63 a.C. e morreu no ano 14 seus domínios para lugares tão distantes quanto as Ilhas Britânicas, a
da nossa era. Sob seu im- costa do Norte da África (incluindo o Egito), e vários territórios do atual
pério, cessam quase cem
anos de guerras civis entre Oriente Médio, até as bordas do Mar Negro.
os romanos, em especial a
mais importante, travada
entre seu tio, Júlio César, e
Pompeu. Estudamos o latim por meio de seus registros escritos, que são dos mais
variados tipos, como inscrições em muros, monumentos fúnebres, do-
cumentos transcritos e copiados em várias épocas, citações de textos
mais antigos em textos de autores mais recentes, entre outras fontes.
Assim, há documentos de vários períodos, e há, obviamente, escassez
maior de registros escritos de estágios mais antigos da língua. A história
do latim que faremos aqui é, portanto, bastante resumida e de caráter
didático.

22
Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
2.1.1 Latim arcaico

Os primeiros registros do latim escrito encontrados datam de VII


ou VI a.C. Mais tarde, por volta do século III a.C., começam a ser pro-
duzidos textos literários em latim, em grande parte através de um pro-
cesso de assimilação da cultura e literatura gregas do período.

Roma, já então uma potência, conquistava territórios de vários fun-


dos culturais diferentes, e, em pouco tempo, por volta do século II a.C.,
o Mar Mediterrâneo já era praticamente dominado pelos romanos.

É desse período, por exemplo, o texto literário mais antigo do qual


temos notícia escrito em latim: uma tradução da Odisseia de Home-
ro feita pelo escravo grego Lívio Andronico para propósitos educacio-
nais. Do texto de Lívio sobreviveram apenas alguns fragmentos, e temos
acesso a menos de cem versos da obra completa. Nesse período, ainda, Estátua do imperador Augusto. Museu
do Vaticano
outros autores produziram textos mais ou menos adaptados da tradição
grega, como as comédias de Plauto e Terêncio, de gosto popular, que se-
guem a tradição da Comédia Nova grega, e as tragédias (em grande par-
te perdidas) de Névio e Ênio, por exemplo. Seguindo o caminho aberto A Comédia Nova grega
surge no período da
por Lívio, Névio e Ênio também escrevem os primeiros textos épicos virada do século IV para o
em latim, dos quais, infelizmente, também restaram apenas fragmentos. III antes de Cristo e baseia-
se em tramas familiares,
O latim desse período é ainda considerado menos polido e estilizado convencionais, com perso-
do que o que viria a ser utilizado no período seguinte, quando a língua nagens caricaturais, como
o velho imbecil, seu filho
literária é levada ao seu ápice criativo. sem responsabilidades e,
em geral, apaixonado por
2.1.2 Latim clássico uma moça que não pode
se casar com ele, o escravo
sagaz do velho que ajuda
Convencionou-se chamar de latim clássico o estilo literário culto da o filho em suas desventu-
língua ao longo do primeiro século a.C. até o início do primeiro século ras etc. O principal autor
grego dessa tradição é
da Era Cristã. São desse período a prosa elaborada do político, filósofo e Menandro.
orador Cícero; a poesia lírica e a épica nacional de Virgílio, com as suas
Bucólicas e a sua Eneida; e a lírica amorosa de Catulo, Propércio, Tibu-
lo, Horácio e Ovídio, além de textos de historiadores como Tito Lívio.
Em geral, o latim que ensinamos hoje em dia é a língua literária desse
período, tanto por causa da beleza do estilo cuidadosamente trabalha-
do desses autores quanto pelo fato de que grande parte do corpus mais
substancial dos textos clássicos é literário, o que nos deixou sem muito

23
História da Língua

acesso aos outros registros linguísticos do período. Ao contrário do que


se pensa, não é do latim clássico que as línguas românicas se desenvol-
veram, mas sim das variantes faladas ao longo da história do latim.

2.1.3 Latim culto

O latim culto era a variedade falada pela classe culta de Roma.


Esse dialeto era a base do latim clássico, a variante literária, mas não
se confunde com ela. O latim culto era regido pelas mesmas regras
gramaticais através das quais estudamos latim, mas certamente muito
menos estilizado do que a língua literária. Documentos escritos nessa
variedade linguística são menos comuns, mas é possível encontrar esse
tipo de registro, por exemplo, em cartas de autores antigos, como as
de Cícero para seu irmão ou as de Sêneca para sua mãe, nas quais a
estilização e o trabalho estético consciente com a linguagem são menos
intensos, ainda que presentes. Nas cartas, portanto, temos acesso ao
dialeto que as pessoas cultas escreviam quando não estavam preocupa-
das com a criação estética.

2.1.4 Latim vulgar


Um exemplo de obra
literária que retrata varian- A variedade do latim chamada de latim vulgar é a língua do povo
tes do latim é o romance romano em geral. Os registros dessa língua são mais difíceis de encon-
chamado Satyricon, de
Petrônio, autor do século I trar, pois não se escrevia nessa variante de propósito, mas dão testemu-
d.C., que apresenta longas nhos muito interessantes da evolução do latim. As inscrições encontra-
passagens que tentam
simular a língua do povo das em muros, em banheiros públicos, e até mesmo em obras literárias
de Roma. que tentavam retratar a variedade linguística nos mostram uma língua
viva, muito frequentemente aberta às mudanças que ocorrem natural-
mente nas línguas, especialmente em se tratando da língua de um im-
pério que se espalhou por regiões com substratos linguísticos bastante
Sobre os substratos diferentes.
linguísticos das regiões
romanizadas, veja-se o Um texto extremamente interessante é o chamado Appendix Pro-
Capítulo III.
bi, anônimo, provavelmente datado do século III a.C., que se constitui
simplesmente de uma lista na forma de “X non Y”, que funcionaria para
evitar que os falantes usassem as formas consideradas incorretas, Y, e
usassem as formas cultas, X. Um dos exemplos interessantes do Appen-
dix é a linha: auris non oricla. Essa linha nos diz muita coisa sobre como

24
Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
as pessoas falavam e sobre como a língua seguia seu curso de mudança
natural. A forma auris, em latim culto, que significa “orelha”, na fala po-
pular possivelmente recebia o sufixo diminutivo –cula, resultando em
auricula, “orelhinha”. Daí para a forma oricla, que deveria ser evitada,
temos a mudança do ditongo au para simplesmente o, e a queda da vo- De onde vem, por exem-
plo, “auricular” em portu-
gal u entre c e l. guês. Essa é uma palavra
que, como foi muito
frequente na história do
Ao estudarmos a passagem do latim para o português, veremos que português, foi empresta-
da do latim muito tempo
é sistemática e regular essa mesma mudança de ditongos a vogais depois de a forma “orelha”
plenas. Além disso, veremos que frequentemente formas como –cla já estar em uso pelos
falantes de português.
resultam em “-lha” e que vogais como i podem resultar em e. Assim, Esse tipo de empréstimo
“orelha” em português descende diretamente de auris ou de oricla? é considerado “erudito”,
pois os falantes voltam
Parece claro que, ao menos nesse caso, a instrução do Appendix não ao latim para recuperar
funcionou. Quase vinte séculos depois, sobrevive a forma “errada”! formas que, quando de-
pois acolhidas pela língua,
Curiosamente, como vimos acima, oricla já era uma forma diminuti- vivem lado a lado com
va, então, etimologicamente, quando dizemos “orelha”, remetemo- as formas populares que
já existiam. Os exemplos
nos historicamente ao jeito de dizer “orelhinha” em latim, seguindo são muitos, como a forma
o estilo do dialeto popular latino. O mesmo se dá com a nossa pala- popular “maduro” e a for-
ma erudita “maturidade”,
vra “abelha”, que deriva do latim apicula, diminutivo de apis, o que vindos do latim maturus,
mostra que o diminutivo em latim vulgar era bastante utilizado e e a forma popular “pai”
que sobrevive juntamen-
que várias formas das línguas românicas derivam de substantivos te com a forma erudita
em sua forma diminutiva. “patronímico”, ambos do
latim pater, patris.

Curiosamente, a pronúncia de au como o, que já ocorria em latim,


como quando o próprio Cícero escreveu oricula em suas cartas, em tom
jocoso, portanto já fazendo parte do chamado sermo vulgaris ou plebeius
(língua vulgar ou do povo, denominação do próprio Cícero), acaba se
transformando em um fato fonético na passagem do latim vulgar para
as línguas românicas.

É fundamental, portanto, entender que o conceito de latim vulgar ul-


trapassa fronteiras temporais ou geográficas e que os exemplos de tex-
tos escritos nessa variante do latim são colhidos ao acaso, já que não
se escrevia dessa forma de propósito. Assim, o material do qual tiramos
conclusões é esparso, inconstante e muito variado em sua natureza.

25
História da Língua

2.1.5 Latim tardio

Após o período do latim clássico, o latim continuou sendo usado


como língua do Império Romano, que cresceu cada vez mais, e poste-
riormente tornou-se a língua oficial da Igreja Católica ocidental. Assim,
ao longo de muitos séculos, o latim foi usado como língua universal para
relações internacionais, para a ciência, para administração do Império
e da Igreja, e, durante a Antiguidade e a Idade Média, tudo que fosse
importante era escrito em latim. Aos poucos, as comunidades foram de-
senvolvendo seus dialetos de forma que se afastassem mais e mais do la-
tim, dando origem a línguas diferentes, mas a língua escrita continuava
a seguir, na medida do possível, os padrões do latim culto, de forma que
temos muito material escrito em latim “culto” por falantes nativos de
outras línguas ou de outras variedades do latim. Esses registros escritos
são bastante abundantes. Como exemplo, temos desde a tradução latina
dos textos bíblicos, a Vulgata, vertida por São Jerônimo para o latim nos
fins do século IV, até os documentos portugueses de administração e
legislação, passando pela filosofia medieval e renascentista.

Muito do que se considera latim tardio, com certa frequência, foi es-
crito por falantes de dialetos já bastante afastados do latim culto
ou falantes de outras línguas plenamente desenvolvidas. Assim, é
muito comum encontrarmos traços de latim vulgar nos textos des-
ses períodos, mesmo quando os autores pretendiam escrever em la-
tim culto. As fontes do latim vulgar incluem, portanto, textos tardios
como a Vulgata, as vidas de Santos, os textos de Editos e Concílios
da Igreja, entre outros. Mais uma vez, é importante ressaltar que as
fronteiras entre as variedades linguísticas do latim são muito difu-
sas, por isso muito cuidado é necessário ao tratar dessa questão.

2.2 Características do latim clássico e do


latim vulgar
Uma vez que seria muito complexo e muito distante dos objetivos
desse livro apresentar um panorama vasto da estrutura do latim clás-

26
Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
sico, esta sessão apresentará as características mais importantes do la-
tim vulgar em contraste com o clássico para entendermos a história das
línguas românicas, especialmente a do português. Os fenômenos com
que lidamos aqui são relativamente comuns a quase todos os testemu-
nhos do latim vulgar encontrados, e serão ilustrados na sequência com
algumas passagens do já citado Appendix Probi. Selecionamos apenas
algumas características do latim vulgar para comparar com o latim clás-
sico, e mais detalhes poderão ser obtidos em Castro (2006), Ilari (1992)
e Renzi (1982), por exemplo. As características serão apresentadas nos
domínios da sintaxe, morfologia, fonologia e léxico.

2.2.1 Sintaxe

a) A ordem de palavras do latim clássico era relativamente livre,


uma vez que a estrutura da língua permitia variações comple-
xas, que se aliavam à estilização dos textos literários, resultando
em textos que apresentam bastante variedade de ordem. Isso se
devia ao fato de que a sintaxe não dependia apenas da ordem
das palavras na oração, mas também da característica morfo-
lógica dos casos. No entanto, a ordem básica, ou não marcada,
da oração era sujeito – objeto/complemento – verbo, ou SOV.
Assim, ao dizer uma frase como “Pedro vê Paulo”, um romano
escrevendo em latim clássico utilizaria a ordem Petrus Paulum
videt. A ordem fundamental das palavras no latim vulgar passa
a ser sujeito – verbo – objeto/complemento, ou SVO. Essa ten-
dência será adotada por todas as línguas românicas.

b) A ordem de palavras no sintagma nominal não marcada no


latim clássico era determinante – determinado, como quando
um substantivo é modificado por um adjetivo: felix homo, “ho-
mem feliz”. No latim vulgar e nas línguas românicas derivadas,
a ordem básica passa a determinado – determinante, como em
homo felix. Assim como com relação à ordem fundamental da
frase, o latim clássico apresentava algumas variações nas pos-
sibilidades dessa ordem, dependendo do tipo de determinante.
Contudo, no latim vulgar a ordem passa a ser mais fixa.

c) O latim clássico, como já dissemos, apresentava seis casos gra-


maticais para as palavras das classes nominais (substantivos,

27
História da Língua

adjetivos e pronomes). Os casos se realizavam através de termi-


nações morfológicas específicas que funcionavam para marcar
as funções sintáticas das palavras na oração. Para exemplificar-
mos o funcionamento dos casos, vejamos as seguintes orações:
1) Pedro vê Paulo.
2) Paulo vê Pedro.
Essas duas orações dizem coisas bastante diferentes, pois cada uma
representa um evento diferente: na primeira, não se pode afirmar que
Paulo também vê Pedro; e, na segunda, o contrário se dá. Isso acontece
em português em virtude da ordem das palavras, pois a estrutura do
evento de o sujeito ver o objeto depende em grande parte da posição
do sujeito antes do verbo e do objeto depois do verbo. Em línguas com
sistemas de casos plenamente desenvolvidos, como o latim, o sujeito da
oração terá que ser marcado com o caso nominativo e o objeto com o
caso acusativo. Assim, em latim clássico, as duas orações vão apresentar
terminações diferentes para os nomes, como podemos ver a seguir:
1a) Petrus Paulum videt.
2a) Paulus Petrum videt.
Como se pode observar, temos duas formas para cada nome, Petrus
(sujeito) e Petrum (objeto), nos casos nominativo e acusativo, respecti-
vamente. A consequência básica desse sistema é que a ordem de pala-
vras não determina sozinha a estrutura sintática da oração, de modo
que (1a) pode ser reescrita em várias ordenações diferentes sem alterar
o significado básico da oração:
1a) Petrus Paulum videt = Paulum Petrus videt = Paulum videt
Petrus = videt Paulum Petrus = “Pedro vê Paulo”.
Em português, o único resquício do sistema de casos é encontrado
nos pronomes pessoais, de modo que “eu” é a forma de nominativo e
“me” é a forma de acusativo, seguindo a declinação nominal latina, em
que havia ego (nominativo), me (acusativo), e mihi (dativo, que resultou
em mim no português). Não temos problema para formar frases como
“Pedro me viu” e “Eu vi Pedro”, por exemplo, e perceber que “eu” é o su-
jeito da primeira e “me” é o objeto da segunda. Também não trocamos
as formas, como “Pedro eu viu” e “Me vi Pedro”. A única diferença é que,
em latim clássico, todos os substantivos, adjetivos e pronomes se flexio-

28
Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
navam em seis possíveis casos, no singular e no plural, em um sistema
um pouco mais complexo do que esse descrito.

Os outros casos, já mencionados no capítulo anterior, eram o voca-


tivo, usado para interpelar o interlocutor, como em Petre, huc veni!, “Ó
Pedro, venha cá!”; o genitivo, para indicar basicamente posse, como em
exercitus Petri fortis est, “O exército de Pedro é forte”; o dativo, que deno-
ta normalmente complementos indiretos do tipo Petro donum do, “Dou
um presente para Pedro”; e o ablativo, que pode significar várias coisas,
entre elas afastamento a partir de um local visto como ponto de referên-
cia, como em abi Petro, “sai de perto do Pedro”, instrumento/modo, como
em hoc scivi Petro, “eu soube disso através de Pedro”. Apesar de a forma
de dativo e ablativo serem a mesma para o substantivo Petrus, diferentes
classes de substantivos apresentam formas diferentes para os casos.

A questão relevante aqui é que o latim vulgar foi perdendo os qua-


tro últimos casos, de modo que o sistema básico passou a ser uma
oposição entre nominativo e acusativo. Os casos anteriores foram
sendo substituídos pelo acusativo com preposições, como de + acu-
sativo no lugar do genitivo, a + acusativo no lugar do ablativo, por
exemplo. Esses dois usos preposicionados anteciparam também o
desenvolvimento das línguas românicas, que utilizam preposições
em substituição aos casos tradicionais. O latim clássico também
apresenta preposições, e, normalmente, cada uma delas deveria ser
acompanhada de um caso específico. Nos casos das preposições de
(que significava basicamente “a respeito de”) e a (ou ab, antes de
palavra iniciada por vogal, significando “para longe de”), o caso obri-
gatório seria o ablativo. Assim, uma explicação possível para a perda
dos casos é que, na passagem para o latim vulgar, anteriormente
a essa perda, as preposições tiveram suas regências alteradas, com
uma generalização do uso do acusativo após a maioria das prepo-
sições. Isso gerou confusão nos usos de ablativo, genitivo, dativo
e acusativo, o que causou progressivamente a menor necessidade
da existência dos casos morfologicamente marcados, resultando no
uso cada vez menos frequente de casos que não fossem nominativo
e acusativo.

29

Você também pode gostar