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ste livro tem por objetivo introduzir o leitor ao vasto e diversifica-
do domínio da história das línguas. Nosso objeto aqui é a língua
portuguesa e sua história. Procuraremos entender um pouco so-
bre as origens do português, sua relação com o latim, sua fixação enquanto
língua de um Estado e, posteriormente, seu translado e fixação na América, História Interna
Aspectos relacionados
na Ásia e na África.
às mudanças estruturais
Talvez a característica que mais chame a atenção do leitor seja o fato de que que uma língua sofreu
ao longo do tempo.
não é possível entender a história de uma língua sem levarmos em conta os
eventos políticos e históricos pelos quais passou o povo que falava essa língua.
Usando os termos da linguística histórica, para entender a história interna de
uma língua, é imprescindível que levemos em conta sua história externa. É por História Externa
isso que em vários momentos apresentamos a situação política de um determi- Eventos de ordem não
nado país, seus interesses econômicos e suas dinâmicas populacionais. linguística, políticos,
econômicos, bélicos
O presente livro está dividido em três unidades. Na primeira delas, traçaremos etc. que influenciaram
uma história da língua latina, de sua origem até o início das línguas români- uma dada língua.
cas, salientando as principais características da língua latina, a expansão do
Império Romano e a formação e dissolução da România. Na segunda unida-
de, olharemos para a história da língua portuguesa desde os seus primeiros
documentos até a chegada do português ao Brasil, pontuando cada uma das
grandes mudanças estruturais detectadas ao longo de sua história. Finalmente,
na terceira unidade, apresentaremos a história do português no Brasil, algu-
mas das hipóteses sobre sua formação e ofereceremos um panorama da língua
portuguesa no Brasil de hoje.
Ao longo deste livro, apresentaremos vários excertos e textos antigos que serão
analisados, além de mapas e imagens, para ajudar o leitor a se situar no longo
percurso histórico que o espera nas próximas páginas. No fim deste livro, o
leitor encontrará uma série de atividades sugeridas para a sala de aula; procu-
raremos mostrar com as atividades que estudar a história de uma língua pode
servir como uma ponte interessante para as disciplinas de História e Geografia,
além de despertar o interesse dos alunos sobre as razões de o português ser
como é hoje, ter a ortografia que tem e suas características distintivas. Ain-
da para auxiliar nessas atividades, o leitor encontrará um Glossário com os
principais termos técnicos utilizados e uma Cronologia com as datas mencio-
nadas no texto e outras que são importantes para a história do português.
Boa leitura!
Introdução
Ao dizermos que o português é uma língua latina, automaticamen-
te indicamos a filiação do português ao latim e também a outras línguas
românicas, isto é, às outras línguas que têm como origem o latim.
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História da Língua
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Do Indo-Europeu ao Latim... Capítulo 01
O sânscrito, sem levar em conta a sua antiguidade, possui uma estrutura
maravilhosa: é mais perfeito que o grego, mais rico que o latim e mais ex-
traordinariamente refinado do que ambos. Mantém, todavia, com estas
duas línguas tão grande afinidade, tanto nas raízes verbais quanto nas
formas gramaticais, que não é possível tratar-se do produto do acaso. É
tão forte essa afinidade que qualquer filólogo que examine o sânscrito,
o grego e o latim não pode deixar de acreditar que os três provieram de
uma fonte comum, a qual talvez já não exista. Razão idêntica, embora
menos evidente, há para supor que o gótico e o celta tiveram a mesma
origem que o sânscrito. (ROBINS, 1983, p.107)
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História da Língua
p → f: PIE *póds “pé”, latim pēs, grego antigo poús, sânscrito pāda →
inglês foot, alemão Fuss
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Do Indo-Europeu ao Latim... Capítulo 01
ção é feita com base nas mudanças linguísticas atestadas historicamente
e também na comparação entre as diversas línguas indo-europeias. Os
estudiosos foram capazes de identificar os ramos da família indo-euro-
peia mais antigos, como o anatólico, que se desenvolveu provavelmente
por volta de 2000 a.C.; o indo-iraniano, por volta de 1400 a.C.; e o grego
por volta de 1300 a.C. ou mesmo antes. Assim, o PIE foi falado prova-
As inscrições mais antigas
velmente antes de 2500 a.C., mas as datações são todas muito difíceis encontradas datam do
de estabelecer e muito hipotéticas. Para termos ideia da extensão cro- século VII, embora Roma
tenha sido fundada por
nológica envolvida nas transformações entre as línguas indo-europeias, Rômulo, segundo as len-
pode-se dizer que o latim tem origem em torno do século XI a.C. e o das, em 753 a.C.
sânscrito entre 1500 e 1000 antes de Cristo. Vejamos abaixo exemplos
das semelhanças no vocabulário de algumas das línguas indo-europeias,
lembrando que em linguística histórica, formas marcadas com asterisco
são aquelas que não foram atestadas em documentos, mas reconstruídas
a partir de dados da história da mesma língua ou das que derivaram
dela; usaremos essa notação neste livro.
Podemos ver como as palavras são semelhantes, e as reconstruções O símbolo “†” indica que
do PIE apresentadas, embora pareçam estranhas por causa da notação se trata de uma língua
que não tem mais falantes
fonética, são muito próximas das línguas antigas apresentadas cujos da- nativos, ou seja, de acor-
dos foram atestados, o sânscrito, o grego antigo e o latim. do com a terminologia
corrente, trata-se de uma
O quadro a seguir ilustra as principais famílias linguísticas que se língua morta.
originaram do protoindo-europeu:
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Protoindo-europeu
Indo-europeia - Germânica
Indo-europeia - Eslava
Indo-europeia - Báltico
Indo-europeia - Helênica
Altaica- Turcomana
Urálica
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Do Indo-Europeu ao Latim... Capítulo 01
O indo-europeu não é, obviamente, a única família de línguas do
planeta. Línguas como o árabe, o chinês e o turco não são indo-euro-
peias e cada uma pertence a uma família linguística, respectivamente,
o semítico, o sino-tibetano e o altaico. Os métodos de comparação e
reconstituição de línguas que foram empregados para o caso da famí- O estabelecimento do
turco na família altaica é
lia indo-europeia e que resultaram no protoindo-europeu poderiam, incerto, mas esta família
a princípio, ser aplicados às outras famílias linguísticas do mundo, in- inclui também o coreano
e o japonês, entre outras.
cluindo certamente as línguas indígenas brasileiras e do resto do conti-
nente americano. Qual seria o resultado de tal aplicação? Seria possível
reconstituir todas as protolínguas? Se sim, o que isso nos mostraria?
Teriam todas as línguas uma mesma origem? Ou talvez não haja paren-
tesco entre as protolínguas e a linguagem surgiu em momentos, lugares
e com estruturas diferentes nos vários grupos humanos?
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História da Língua
Uma ovelha que não tinha lã viu cavalos, um puxando uma carro-
ça pesada, um carregando um grande fardo, e um carregando um
homem rapidamente. A ovelha disse aos cavalos: “meu coração me
dói ao ver um homem conduzindo um cavalo”. Os cavalos disseram:
“ouça, ovelha, nossos corações nos doem ao vermos isto: um ho-
mem, o senhor, transforma a lã de uma ovelha em uma vestimenta
quente para si e a ovelha não tem lã”. Tendo ouvido isto, a ovelha
foge para o campo.
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Do Indo-Europeu ao Latim... Capítulo 01
*Manum assemelha-se com o radical latino homin- “homem”, mas
mais ainda com o inglês man e o alemão Mann. *Agram, “campo”,
deriva a forma latina agrum, que em português também é radical
erudito que podemos encontrar em “agricultura”, “agrícola”, entre
outros. Das formas morfológicas, podemos verificar a terceira pes-
soa do singular do presente do indicativo em *ast, “tem”, que apre-
senta o morfema –t assim como em habet no latim, ou ainda em hat
no alemão. Um estudo sobre o PIE estaria longe do escopo deste
livro, mas maiores informações podem ser encontradas em biblio-
grafia especializada sobre o indo-europeu e línguas derivadas dele
(veja-se, por exemplo, Mallory; Adams, 2006).
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História da Língua
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Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
2 Latim e latim vulgar, ou
de onde mesmo vem o
português?
Neste Capítulo, fazemos uma breve história do latim, identificando as
diferenças básicas entre o que chamamos de latim clássico e latim vulgar, bem
como entre seus períodos históricos, como o latim arcaico e o latim tardio.
Além disso, avaliamos algumas diferenças básicas entre as estruturas do latim
clássico e vulgar.
Bretanha
Oceano Atlantico
Judeia
Mar Mediterraneo
Africa
Egito
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História da Língua
não foi o mesmo latim que chamamos de clássico hoje, mas sim o latim
falado pelas pessoas comuns, no dia a dia, nas mais diversas interações:
o chamado latim vulgar.
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Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
2.1.1 Latim arcaico
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História da Língua
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Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
as pessoas falavam e sobre como a língua seguia seu curso de mudança
natural. A forma auris, em latim culto, que significa “orelha”, na fala po-
pular possivelmente recebia o sufixo diminutivo –cula, resultando em
auricula, “orelhinha”. Daí para a forma oricla, que deveria ser evitada,
temos a mudança do ditongo au para simplesmente o, e a queda da vo- De onde vem, por exem-
plo, “auricular” em portu-
gal u entre c e l. guês. Essa é uma palavra
que, como foi muito
frequente na história do
Ao estudarmos a passagem do latim para o português, veremos que português, foi empresta-
da do latim muito tempo
é sistemática e regular essa mesma mudança de ditongos a vogais depois de a forma “orelha”
plenas. Além disso, veremos que frequentemente formas como –cla já estar em uso pelos
falantes de português.
resultam em “-lha” e que vogais como i podem resultar em e. Assim, Esse tipo de empréstimo
“orelha” em português descende diretamente de auris ou de oricla? é considerado “erudito”,
pois os falantes voltam
Parece claro que, ao menos nesse caso, a instrução do Appendix não ao latim para recuperar
funcionou. Quase vinte séculos depois, sobrevive a forma “errada”! formas que, quando de-
pois acolhidas pela língua,
Curiosamente, como vimos acima, oricla já era uma forma diminuti- vivem lado a lado com
va, então, etimologicamente, quando dizemos “orelha”, remetemo- as formas populares que
já existiam. Os exemplos
nos historicamente ao jeito de dizer “orelhinha” em latim, seguindo são muitos, como a forma
o estilo do dialeto popular latino. O mesmo se dá com a nossa pala- popular “maduro” e a for-
ma erudita “maturidade”,
vra “abelha”, que deriva do latim apicula, diminutivo de apis, o que vindos do latim maturus,
mostra que o diminutivo em latim vulgar era bastante utilizado e e a forma popular “pai”
que sobrevive juntamen-
que várias formas das línguas românicas derivam de substantivos te com a forma erudita
em sua forma diminutiva. “patronímico”, ambos do
latim pater, patris.
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História da Língua
Muito do que se considera latim tardio, com certa frequência, foi es-
crito por falantes de dialetos já bastante afastados do latim culto
ou falantes de outras línguas plenamente desenvolvidas. Assim, é
muito comum encontrarmos traços de latim vulgar nos textos des-
ses períodos, mesmo quando os autores pretendiam escrever em la-
tim culto. As fontes do latim vulgar incluem, portanto, textos tardios
como a Vulgata, as vidas de Santos, os textos de Editos e Concílios
da Igreja, entre outros. Mais uma vez, é importante ressaltar que as
fronteiras entre as variedades linguísticas do latim são muito difu-
sas, por isso muito cuidado é necessário ao tratar dessa questão.
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Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
sico, esta sessão apresentará as características mais importantes do la-
tim vulgar em contraste com o clássico para entendermos a história das
línguas românicas, especialmente a do português. Os fenômenos com
que lidamos aqui são relativamente comuns a quase todos os testemu-
nhos do latim vulgar encontrados, e serão ilustrados na sequência com
algumas passagens do já citado Appendix Probi. Selecionamos apenas
algumas características do latim vulgar para comparar com o latim clás-
sico, e mais detalhes poderão ser obtidos em Castro (2006), Ilari (1992)
e Renzi (1982), por exemplo. As características serão apresentadas nos
domínios da sintaxe, morfologia, fonologia e léxico.
2.2.1 Sintaxe
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Latim e latim vulgar, ou de onde mesmo vem o Português? Capítulo 02
navam em seis possíveis casos, no singular e no plural, em um sistema
um pouco mais complexo do que esse descrito.
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