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A TRADUÇÃO NA EUROPA

Tópico 1 – As Línguas na Europa

A Tradução

Para que uma tradução possa ocorrer há elementos essenciais que têm de estar
presentes, sendo eles duas línguas diferentes entre si, dois discursos ou dois textos e pelo
menos um tradutor. Traduzir um texto (na vertente escrita) ou um discurso (na vertente
oral) é efetuado com o intuito de obter um texto ou discurso em outra língua diferente da
inicial. Atualmente, a exigência incide sobre uma tradução fiel do texto ou discurso original,
tanto a nível da forma (prosa, poema, etc.) como a nível do significado do mesmo.

Independentemente de haver hoje em dia muitas tecnologias que auxiliam no ato da


tradução, ainda está nas mãos do ser humano a capacidade de efetuar tradução
fidedignas e, a quem se dedica a esta profissão, é exigido um conhecimento avançado das
línguas que entram na equação da tradução, bem como se privilegia o conhecimento das
culturas associadas às línguas, pois estes conhecimentos podem ser relevantes para a
tradução.

Aqui, apenas nos debruçaremos sobre a tradução escrita, com especial destaque para a
denominada “tradução literária”, sendo que a tradução não literária será abordada no
último tema desta unidade, devido ao grande aumento que a mesma tem vindo a ter
recentemente na Europa, em virtude do alargamento da União Europeia e do
desenvolvimento da globalização.

As línguas da Europa

O latim é a língua mãe de várias línguas europeias e que se falam igualmente por todo o
mundo (denominadas línguas românicas), como o português, o castelhano, o francês, o
italiano e o romeno. Há igualmente línguas que têm origem germânica como o alemão ou o

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inglês e também línguas balto-eslavas que englobam por exemplo o russo, o sérvio, o
polaco.

Por sua vez, todas estas línguas mãe (línguas indo-europeias) derivam de uma outra
língua mãe comum, designada de proto-indo-europeu e que era falada entre 6.000 AC e
3.500 AC, a norte do Mar Cáspio.

No caso da língua portuguesa, é comum encontrarmos palavras muito próximas a palavras


em latim como é o caso da palavra portuguesa “desolado” que deriva da palavra em latim
“desolatus”.

Tópico 2 – As Línguas e a Tradução

Ao analisarmos as línguas da Europa verificamos que várias línguas europeias têm a sua
origem no Latim, língua existente no Império Romano do Ocidente.

Os romanos não impunham a sua língua aos povos por eles conquistados, no entanto a
sua expansão deixou frutos e foi a partir da sua língua, o Latim, que outras se formaram
(romeno, castelhano, francês, italiano e português). No entanto, tal como acontece nos
dias de hoje, dentro de uma língua há palavras e maneiras de falar mais cultas e outras
que pertencem ao calão, sendo estas últimas as mais faladas na zona ibérica e em França,
podendo ser dado como exemplo a palavra do latim “cavallus” que se transformou em
“cavalo” em português, em “caballo” em castelhano, em “cheval” em francês e “cavallo” em
italiano. Esta palavra é o termo calão da palavra “equus”, que é o termo mais formal e culto
da palavra.

No entanto, as línguas latinas que estavam a emergir, como o português, receberam


muitas vezes influências de outras línguas após a queda do Império Romano – no caso do
português e do castelhano, a língua que mais as influenciou depois do latim foi o árabe.

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(Estudo ativo) Perguntas do Roteiro:

- Necessita saber quando ocorreu a queda do Império Romano do Ocidente – 476 d.C.

- Necessita saber quando ocorreu a queda do Império Romano do Oriente – 1453 c/ a


queda de Constantinopla

- Necessita saber quanto tempo permaneceram os árabes na Península Ibérica – aprox.


800 Anos

O Latim foi uma língua que deixou de ser compreendida na sua plenitude desde o século
VIII, mas não deixou de ser a língua utilizada nas áreas do ensino, da administração e
principalmente da Igreja.

Paralelamente a esta queda do Latim, as línguas emergentes (derivadas do latim)


começam a fazer-se notar à medida que a influência do Império Romano vai
desvanecendo e, por exemplo, em Portugal, um dos textos não-literários mais antigos que
possuímos escrito em galaico-português é a Notícia do Torto (1214) que é encarado
como um texto preliminar, que depois seria traduzido para latim (quem escreveu este texto
já não teria domínio do latim ou pelo menos não dominava bem o suficiente para o
escrever nessa língua).

Com o avançar do tempo, já entre os séculos XIII e XIV, marca-se a oficialização do uso da
língua Portuguesa como língua do reino, sob o reinado de D. Dinis (1261 – 1325) e é
nessa altura que começa a tradução para português. A partir do século XIV os principais
mosteiros portugueses passam a incluir traduções para português de algumas obras.

Durante a Idade Média as línguas emergentes europeias confrontam-se com o latim, mas
raramente de confrontam entre elas, graças à prática da tradução. Todavia, na Idade
Média, o latim não se confrontava exclusivamente com as línguas que emergiram, havia
também confronto com a língua árabe (tanto em relação ao conflito com obras escritas em
árabe como em relação à perceção da importância que essa língua tinha e como por vezes
eram usadas as línguas emergentes como ponte para o latim – muitas vezes os que
sabiam árabe utilizavam as línguas emergentes, como o castelhano, para expressar o que
seria necessário traduzir para latim).

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A história da tradução na Europa é uma junção da cultura árabe, judia e cristã como se
pode verificar através do trabalho de tradução efetuado em algumas cidades da Europa,
como o famoso caso da cidade castelhana de Toledo, na qual existiram essas 3 culturas, e
onde surgiu no séc. XII uma “Escola de Tradutores” de grande importância.

(Estudo ativo) Perguntas do Roteiro:

- Procure por “Escola de Tradutores de Toledo (sec. XII)” na Internet para saber mais –

Entre os séculos XII e XIII, desenvolveu-se em Espanha,  na Cidade de 


Toledo, um fenómeno cultural conhecido como Escola de Tradutores. Este
nome não deve levar-nos a pensar num centro educativo com professores e
alunos, mas sim num grupo de pessoas que trabalharam em conjunto ou
seguiram métodos comuns para transferir para a Europa a sabedoria do
Oriente e – especialmente – a dos antigos gregos e árabes.

As universidades europeias tinham sido alimentadas até então pela cultura


latina e, embora a existência dos grandes filósofos gregos fosse conhecida,
não havia traduções e o conteúdo do seu trabalho era ignorado. Os árabes, em
sua expansão pelas terras de Bizâncio – herdeiro da antiguidade grega –
assimilaram, traduziram, estudaram, comentaram e preservaram as obras
desses autores, e finalmente os trouxeram consigo para a Península Ibérica
junto com uma enorme bagagem cultural que eles mesmos haviam gerado.

A cidade de Toledo foi a primeira grande cidade muçulmana conquistada


pelos cristãos em 1085. Como em outras capitais do al-Àndalus, havia
bibliotecas e pessoas sábias que conheciam a cultura que os árabes tinham
trazido do Oriente e da qual eles próprios tinham florescido na Península
Ibérica. Com a presença na cidade de uma importante comunidade de
estudiosos hebreus e a chegada de intelectuais cristãos europeus, criou-se um
clima favorável para que Toledo se tornasse o mediador cultural entre o

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Oriente e o Ocidente da época.

A Escola de Tradutores de Toledo teve dois períodos separados por uma fase
de transição:

- A primeira foi a do Arcebispo Dom Raimundo que, no século XII, promoveu


a tradução de obras de filosofia e religião do árabe para o latim. Graças ao seu
trabalho, o aristotelismo neoplatónico começou a ser conhecido nas
universidades europeias. Livros de Aristóteles comentados por filósofos árabes
como Avicena e Alfarabi, por autores hispano-judaicos como Ibn Gabirol, foram
traduzidos, e o Alcorão e os Salmos do Antigo Testamento também foram
traduzidos. Por outro lado, nesta fase, a ciência oriental começou a ser
recebida na Europa, através das traduções de obras que serviram de manuais
para estudantes universitários até o século XVI: o Cânone de Avicenna e a
Arte de Galen. Astrologia, astronomia e aritmética também são enriquecidos
pela adição do latim às obras de Al-Razi, Ptolomeu ou Al-Juwarizmi.

- Com a chegada de D. Afonso X, já no século XIII, iniciou-se a fase


de traduções de tratados sobre astronomia, física, alquimia e matemática. A
receção de uma enorme riqueza de conhecimento leva à composição, a pedido
do rei, de obras originais como o Livro das Tabelas Afonso. Foram traduzidos
tratados de Azarquiel, Ptolomeu e Abu Ali al-Haitam, mas também obras
recreativas como os Livros de Xadrez, dados e tabelas e compilações de
contos tão frutíferos para literaturas ocidentais como Calila e Dimna e
Sendebar. Nesta segunda fase, as traduções não são mais feitas para o latim,
mas para o espanhol, de modo que o romance será desenvolvido para ser
capaz de lidar com assuntos científicos que até então só tinham sido tratados
em latim.

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Os métodos de tradução evoluíram ao longo do tempo. No início, um judeu ou
cristão que conhecia o árabe traduzia a obra original em romance oralmente
diante de um especialista que sabia latim, que depois escrevia o que ouvia, já
em latim. Mais tarde, no tempo de Afonso X, os livros começaram a ser
traduzidos por um único tradutor com conhecimento de várias línguas (ou pelo
menos da língua de origem do texto e de castelhano), e cuja obra era depois
revista por um (emendador) revisor.

Afonso X, o motor da Escola de Tradutores de Toledo, foi um rei multifacetado


interessado em uma infinidade de disciplinas da época: ciência, história,
direito, literatura… Seu trabalho consistiu em dirigir e selecionar tradutores e
obras, revisar sua obra, incentivar o debate intelectual e promover a
composição de novos tratados. Ele rodeava-se de sábios muçulmanos e
judeus, era um mecenas de estudiosos e trovadores, e foi para ele que a
cultura floresceu naquela época. Uma longa lista de tradutores, como Gerardo
de Cremona, Domingo Gundisalvo, Abraham Alfaquí e muitos outros, que, com
o seu conhecimento linguístico e formação científica, colocaram nas mãos da
Europa as chaves para um maior desenvolvimento científico e intelectual.

O contributo da tradução para o estabelecimento das línguas


emergentes

O advento do Renascimento ao qual se junta a invenção da imprensa pela mão de


Gutenberg (1397 – 1468) dá um novo ímpeto às línguas emergentes e a tradução deixa de
estar confinada a mosteiros e à corte. No início, a imprensa começará a sua função por
documentos já prontos, sendo a Bíblia uma das mais relevantes dessas obras, pois é uma

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obra de referência nessa época, em muitos países europeus, que até então era apenas
manuscrita.

A Bíblia

Gutenberg (1397-1468) – fundador da imprensa

Sec. XV - Bíblia em latim de Gutenberg:

Gutenberg imprimiu a Bíblia em latim, em Maiz, Alemanha, em 1455, usando um


manuscrito que se usava na Universidade de Paris nos séc. XIII e XIV.

Séculos seguintes - Bíblias poliglotas (bíblias escritas em mais do que uma língua, muitas
vezes com mais do que uma coluna, cada coluna numa língua):

- Alcalá de Henares: “Bíblia Poliglota Complutense” – 1514 (Novo Testamento) e


1517 (Velho Testamento) – hebraico, latim, grego, aramaico

- Antuérpia – 1569 e 1572

- Paris – 1629 e 1645

- Londres – 1654 e 1657

A Bíblia oficial de tradução latina foi feita por S. Gerónimo e adotada como Vulgata
(Bíblia de tradução oficial para o latim) pela Igreja, em 1546, no concílio de Trento.

Bíblia de Lutero (alemão) 1534 – está na origem do desenvolvimento da língua alemã


moderna, considerado o “criador do alemão moderno”. Lutero é um autor-tradutor
obrigatório em qualquer História da Tradução.

Bíblia King James (inglês) 1611 – realizada em benefício da Igreja Anglicana, está na
origem do desenvolvimento da língua inglesa moderna

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Portugal - Novo testamento - traduzido para português pela primeira vez por João
Ferreira Almeida (1628-1691), impresso em Amsterdão em 1681. Esta tradução foi
adotada durante algum tempo, devido à ausência de uma edição portuguesa da Bíblia
completa. A tradução da Bíblia completa para português, feita por António Pereira de
Figueiredo, só foi publicada entre 1778 e 1790, assim que o Papa Benedito XIV o permitiu.

Tópico 3 – Momentos da Reflexão sobre a Tradução na


Europa (Parte 1)

Este tema está dividido em dois tópicos (3 e 4), começando por uma abordagem
direcionada para a reflexão sobre a tradução do ponto de vista da sua evolução no tempo,
considerando o período do século XV até ao século XIX (a escolha do sec. XIX é para
coincidir com a divisão utilizada na História da Literatura, embora pudesse ser considerado
que o seu termo situa-se no século XX, altura de viragem em que a prática da tradução
passa a compreender uma maior quantidade de textos e o Tradutor já é visto como um
profissional. Também é nesta altura que a Tradução passa a ser lecionada como uma
disciplina universitária chamada “Estudos da Tradução”).

Belas, mas infiéis

Autores situam no século XVII francês o surgimento dos “Estudos da Tradução”, mas o
debruçar sobre a caracterização da tradução da época só é despoletado muito mais tarde.

É nos anos 90 do século XX que se verifica um movimento sobre coleções de trechos de


textos (em prosa ou verso) sobre a tradução - nas quais se inclui a reedição da obra “Les
«belles infidèle» et la formation do goût classique” (1995) de Roger Zuber (que serve de
base ao que estudámos sobre o assunto) – que melhor apetrecha os estudiosos para
compreender este fenómeno francês de literatura clássica.

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O termo “belles infidèles”, que tão associado está a esta fase francesa, teve origem
numa expressão de Gilles Ménage (1613-1692) que considerou a tradução da obra Lucien
(em 1654) feita do grego para o francês por Nicolas Perrot d’Ablancourt (1606-1664) como
“bela, mas infiel”, ou seja, a tradução era bonita mas não era uma tradução exata da obra
original grega (era notória a existência de mudanças, pois aumentos e/ou abreviações
eram usuais, com o intuito de agradar mais do que com o intuito de instruir ou ser fiel à
obra original). Esta expressão reflete aquilo pelo qual o classicismo francês é criticado:

O classicismo francês é objeto de críticas por não serem traduzidos próximo do original
(“problema da fidelidade”) e as traduções serem embelezadas para tornar os textos
traduzidos mais apetecíveis e adequados à época. O termo utilizado para definir o
acontecido é o afrancesamento das obras clássicas. O termo “belles infidelles” também se
refere a este mesmo processo de embelezamento.

Este afrancesamento das obras clássicas (como no caso de d’Ablancourt – que embora
não seja o único escritor associado à tradução “belles infidèles” é o que mais se destaca e
se associa a ela), além do que frisado acima, demonstra outra questão: não parece haver
muita preocupação com o que de facto é dito pelo autor da obra original.

Isso vai completamente contra o que o que Étienne Dolet (1509-1546), que viveu no
século anterior, diz na sua obra “Manière de bien traduire d’une langue en l’autre” de 1540.

Dolet estipula cinco regras de bem traduzir:

As cinco regras de bem traduzir – segundo Étienne Dolet (1540)

Regras Descrição

1ª Compreender perfeitamente o pensamento do autor que se traduz

2ª Conhecimento perfeito da língua do autor que se traduz

Não traduzir palavra por palavra ou ao pé da letra

3ª Ao traduzir, não devemos ser escravizados ao ponto de traduzir palavra por


palavra (…). Concentremo-nos no significado e em fazer que a intenção do
autor seja expressa.”

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Evitar palavras próximas do latim, pois devem evitar-se palavras

pouco correntes (só se deve usar em caso de extrema necessidade)

5ª Respeitar a harmonia da frase na tradução

Em oposição a “les belles infidèles” estará Pierre Daniel Huet (1630-1721), ao propor que
se voltasse a fazer uma tradução mais realista e não apenas focada em agradar quem lê,
seguindo a regra de traduzir praticamente palavra por palavra – este será o tipo de
tradução que irá ser efetuada por M. Dacier, designadamente nas suas traduções das
obras Íliada e Odisseia, de Homero.

A tradução e o leitor

Ao entrar no século XIX deparamo-nos com um autor alemão - Friedrich Schleiermacher


(1768-1834) – que traduziu Platão, mas é mais famoso por ter elaborado um dos mais
relevantes textos que refletem sobre a questão da tradução, chamado “Sobre os Diferentes
Métodos de Traduzir”, que é o resultado de uma conferência na Real Academia de Berlim,
em 1813.

(Este texto foi depois traduzido para português em 2003, por José M. Miranda Justo).

É a Friedrich Schleiermacher (tradutor e contemporâneo (pessoa da mesma época) do primeiro


período do romantismo alemão – datado do final do século XVIII) que se deve a “atenção
ao leitor” de uma maneira que exige a naturalização do documento que foi traduzido,
devendo ser o mais semelhante possível ao que o autor teria escrito diretamente naquela
língua.

Friedrich Schleiermacher diz (trecho que tem sido incluído ao longo do tempo em quase
todas as antologias sobre tradução):

Mas então que caminhos pode afinal tomar o verdadeiro tradutor que quer
realmente reunir essas duas pessoas completamente separadas, o seu
escritor e o seu leitor, e, sem obrigar este último a sair do círculo da sua

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língua materna, facilitar-lhe maximamente uma compreensão exacta e um
prazer completo do primeiro? A meu ver, existem apenas dois. Ou o
tradutor deixa o mais possível o escritor em repouso e move o leitor em
direcção a ele; ou deixa o leitor o mais possível em repouso e move o
escritor em direcção a ele.
(SCHLEIERMACHER, id.: 61)

A tradução no Romantismo: o caso português

Para ilustrar o caso português, a Professora indicou no roteiro um texto do Professor


Doutor Carlos Castilho Pais, que ajuda a encetar a reflexão que deve levar a uma análise
mais exaustiva da tradução na nossa época romântica (em Portugal) e ao debate em
torno da publicação da obra Fausto de Goethe, feita pelo português António Feliciano de
Castilho.

Fausto (em alemão Faust) é um poema trágico do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe,


dividido em duas partes. Está redigido como uma peça de teatro com diálogos rimados, pensado
mais para ser lido que para ser encenado. É considerado uma das grandes obras-primas da literatura
alemã.

A criação da obra ocupou toda a vida de Goethe, ainda que não de maneira contínua.

A tradução e a literatura romântica portuguesas

O texto do Professor Dr. Carlos Castilho Pais incide sobre a tradução na época romântica
portuguesa (O Romantismo em Portugal surgiu no século XIX) com incidência sobre aqueles

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que ele considera “os nossos três românticos” (Almeida Garrett, Alexandre Herculano e
António Feliciano de Castilho).

LITERATURA
Romantismo em Portugal

Introdução do Romantismo em Portugal

O advento do Romantismo em Portugal, vem apenas confirmar a diluição do Arcadismo


(neoclassicismo).

Almeida Garrett acaba por exilar-se na Inglaterra, onde entra em contato com a Obra de
Lord Byron e Scott. Ao mesmo tempo, por estar presenciando o Romantismo inglês,
envolve-se com o teatro de William Shakespeare.

Em 1825, Garrett publica a narrativa Camões, inspirando-se na epopeia Os Lusíadas. A


narrativa deste autor, é uma biografia sentimental de Luís de Camões.

Este poema é considerado introdutor do Romantismo em Portugal, por apresentar


características que viriam se firmar no espírito romântico: versos decassílabos brancos,
vocabulário, subjetivismo, nostalgia, melancolia, e a grande combinação dos gêneros
literários.

Características

O Romantismo foi encarado como uma nova maneira de se expressar, enfrentar os


problemas da vida e do pensamento.

Esta escola, repudiava os clássicos, opondo-se às regras e modelos, procurando a total


liberdade de criação, além de defender a “impureza” dos gêneros literários. Com o
domínio burguês, ocorre a profissionalização do escritor, que recebe uma remuneração
para produzir a obra, enquanto o público paga para consumi-la.

O primeiro momento do Romantismo

Como toda tendência nova, o Romantismo não veio implantar-se totalmente nos
primeiros momentos em Portugal. Inicialmente, buscava-se gradativamente, apagar os
modelos clássicos que ainda permeavam o meio socioeconómico. Os escritores dessa
época, eram românticos em espírito, ideal e ação política e literária, mas ainda clássicos
em muitos aspetos.

Almeida Garrett

Almeida Garrett, cultivou a oratória parlamentar, o pensamento pedagógico e doutrinário,


o jornalismo, a poesia, a prosa de ficção e o teatro, o qual entrou em contato com o de
Shakespeare quando em exílio na Inglaterra. Teve uma vida sentimental bastante
atribulada em que se sobressai o seu romance adúltero com a viscondessa da Luz, a

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qual inspirou seus melhores poemas.

Na poesia, assimilou os moldes clássicos e morreu sem tornar-se romântico


autêntico, pois carecia do egocentrismo tão almejado pelos românticos, deixando
sua fantasia no teatro e na prosa de ficção. Escreveu Camões (1825), Dona Branca
(1826), Folhas Caídas (1853), Viagens na minha terra (1846), dentre outras.

Alexandre Herculano

Herculano, exilou-se na Inglaterra e na França, criando polêmica com o clero, por


participar da lutas liberais. Junto com Garrett, foi um intelectual que atuou bastante nos
programas de reformas da vida portuguesa.

Na ficção de Alexandre Herculano, prevalece o caráter histórico dos enredos, voltados


para a Idade Média, enfocando as origens de Portugal como nação. Além disso, ocorrem
muitos temas de caráter religioso. Quanto à sua obra não-ficcional, os críticos
consideram que renovou a historiografia, uma vez que se baseia não mais em ações
individuais, mas no conflito de classes sociais para explicar a dinâmica da história.

Sua obras principais são: A harpa do crente (1838), Eurico, o presbítero (1844), dentre


outras.

Castilho

Castilho, tem como principal papel traduzir poetas clássicos. Sua passagem pelo
Romantismo é discreta, mesmo que tenha sido o provocador da Questão Coimbrã.

A história de Castilho é a dum grande mal-entendido: graças à cegueira, que lhe dava
um falso brilho de gênio à Milton, mais do que à sua poesia, alcançou injustamente ser
venerado como mestre pelos românticos menores. Não obstante válida historicamente,
sua poesia caiu em compreensível esquecimento.

Começa por indicar que, na sua opinião, ainda há muito por descobrir, quase a totalidade
diria, sobre tudo o que gira em torno da tradução e igualmente das obras literárias
românticas portuguesas (o enquadramento histórico da literatura romântica) no século XIX,
questões sobre as quais é premente saber mais, embora o seu interesse recaia,
obviamente, sobre as questões ligadas à tradução em particular. Nesse contexto é
necessário referir a opinião que, segundo o Professor Carlos Castilho Pais, “os nossos
três românticos” (Herculano, Garrett e Castilho) tinham sobre as traduções do seu
tempo: de um modo global, consideravam-nas traduções de péssima qualidade e embora

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os elogios recaíssem sobre poucas obras e a maioria não fosse tida como de qualidade, a
verdade é que essas traduções que eles não consideravam dignas de tal, acabaram por ter
a sua influência no romantismo em Portugal.

Todos eles criticavam a tradução da sua época com uma ideia em mente, e é aqui que
eles se dividem: Garrett encontrava-se ainda muito ligado ao neoclassicismo (ou
arcadismo), embora o seu poema “Camões” (1825) fosse considerado o poema
introdutório do estilo romântico em Portugal, enquanto que Herculano e Castilho baseiam a
sua crítica na exigência que devia ser requerida a quem efetua traduções e também sobre
o papel que as obras que são, de facto, bem traduzidas – do seu ponto de vista -, possuem
no cenário da literatura romântica da época e de uma maneira mais alargada, no seio da
literatura nacional.

É importante referir que a análise recai sobre a tradução tal como era feita na época
romântica portuguesa e como os três a viam (século XIX) e também que “os nossos três
românticos” (Castilho, Herculano e Garret) foram igualmente tradutores (sendo
Castilho o que mais traduções efetuou).

No estudo sobre a época em questão, o Professor Carlos Castilho Pais deparou-se


muitas vezes com o termo “nacionalizar”, que é usualmente utilizado para designar uma
metodologia de traduzir e, também muitas vezes, utlizado de modo depreciativo e não
como um termo explicativo da tradução romântica.

Para a maioria dos críticos, “nacionalizar” ou “naturalizar” significa que é uma má


tradução.

O nome de António Feliciano de Castilho tem ligação direta à palavra “nacionalizar”. Foi
ferverosamente criticado por Teófilo Braga - que como se sabe não era romântico - na sua
obra “História do Romantismo em Portugal” (1880), e foi criticado por outros nomes já no
século XX, como Fidelino de Figueiredo e António Salgado Júnior. A partir da década de
70, começam a mudar os pontos de vista, pela mão de Osório Mateus em 1975 e de David
Mourão-Ferreira em 1976.

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Para o tradutor e escritor, que tantas vezes foi criticado pela sua opção de “nacionalizar” as
traduções que efetuava (”naturalizando” os autores), a primeira obrigação de quem
escreve era fazer-se entender perante o leitor da época e que por isso, o tradutor teria o
mesmo dever – fazer-se entender pelos leitores da época em que se encontra, tal como o
autor faria, se escrevesse na mesma língua e estivesse na mesma época do tradutor. Para
Castilho, mais do que a fidelidade ao texto original, o importante era traduzir a essência do
que o autor queria transmitir (fidelidade à língua e tempo de chegada e não de partida).

Castilho traduziu obras de vários autores, como Goethe, Molière, Cervantes, Lamennais,
Delfina Gay entre outros.

Também Almeida Garrett, nas suas incursões na tradução, valoriza a excelência da


língua portuguesa e direciona o seu foco para a “língua de chegada”, e embora, ele próprio
chegue a considerar as suas traduções como sendo más (por exemplo, a tradução, feita
em 1827, de um poema de Delavigne que publicou em O Cronista) elas valorizam os
mesmos padrões que as de Castilho.

De Alexandre Herculano não já tanta referência neste texto especificamente, mas


partilhando da mesma visão, Herculano escreve, no Panorama em 1841, e em referência à
obra Metamorfoses de Castilho, que a ligação entre a época, o autor e o tradutor são a
chave para que se fique na história literária e em boa verdade, apesar de várias vozes
críticas, não são as mesmas que determinam a criação das histórias literárias.

Tópico 4 – Momentos da Reflexão sobre a Tradução na


Europa (Continuação)

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Existem inúmeras obras literárias que foram amplamente traduzidas ao longo do tempo na
Europa, e na impossibilidade de analisar todas elas, esta parte do estudo foca duas dessas
obras e controvérsias ligadas a algumas traduções das mesmas. As obras focadas são “o
Fausto” de Goethe e também “D. Quixote de la Mancha” de Cervantes.

O Faust de Goethe

Começando pela obra de Goethe (1749-1832), o Faust foi uma peça escrita em duas
partes não seguidas, sendo a primeira parte publicada em 1808 (Faust I) e a segunda
parte publicada em 1833 (Faust II), tendo sido terminada pouco antes da sua morte, em
1832.

O êxito desta obra começou quando ainda só havia a primeira parte publicada, tendo
havido traduções feitas em francês nos anos 20 do século XIX, sendo a principal dessas
traduções efetuada e publicada pelo poeta Gérard de Nerval em 1828 e nos anos
seguintes, o que acabou por tornar o alemão Goethe num escritor de renome na
Europa, vendo a sua peça atuar nos palcos franceses e ser inspiração para outras formas
de arte.

O Faust em Português

A primeira tentativa de tradução para português da obra Faust de Goethe aconteceu pelas
mãos de Almeida Garrett, na sua obra Viagens da Minha Terra, onde Garrett traduziu 20
versos desta obra, não “ousando” traduzir mais, como ele próprio indicou. Só mais tarde,
em 1867, surge a primeira tradução integral feita diretamente do original escrito em
alemão, tradução essa efetuada por Agostinho d’Ornellas.

O segundo registo de tradução da obra pertence a António Feliciano de Castilho e data


de 1872, e, como não poderia deixar de ser quando se fala das traduções efetuadas por
Castilho, a mesma foi na altura alvo de acesos comentários – sendo nesse mesmo ano

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duramente criticada por Joaquim de Vasconcellos - começando assim um busílis
denominado “a questão do Fausto”.

A “questão do Fausto”

A “questão do Fausto” girou em torno de um confronto de ideias, posições e palavras


entre os apoiantes da tradução da obra “Faust” de Goethe efetuada por António
Feliciano de Castilho, e os críticos da mesma. Assim que foi anunciada a publicação da
tradução de Castilho, pelo Jornal do Porto, a 28 de junho de 1872 , não tardou muito a que
se surgissem opiniões sobre a tradução. Entre os defensores da tradução encontram-se
Alberto Pimentel, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Pinheiro Chagas e um
pouco mais tarde, Germano de Meirelles e o Conde de Samodães. Além destes, um
fervoroso defensor foi José Gomes Monteiro, que publicou em 1873 o livro “Os Críticos
do Fausto do Sr. Visconde de Castilho” , em resposta ao feroz ataque dos críticos,
principalmente de Joaquim de Vasconcellos, que publicou, em 1872, “O Fausto de Goethe
e a Tradução do Visconde de Castilho” onde expressava a sua crítica e aproveitou para
juntar ao seu trabalho a crítica de outros que tinham o mesmo pensamento, como Adolfo
Coelho e Graça Barreto (que foi de facto o primeiro a criticar a tradução de Castilho).

O que é apresentado na “questão do Fausto” é uma oposição de ideias sobre a escrita e


tradução de Castilho, pois se os defensores enaltecem a sua escrita e a maneira genial
como utiliza a língua portuguesa, os críticos acusam-no de falhar em relação à fidelidade e
à linguagem – que consideram o cerne da tradução – e de representar a decadência
intelectual que eles encontravam no país na altura, indicando que estaria na hora dos
críticos “despertarem” o país dessa decadência.

Ano Tradutor Obs

186
7 Agostinho d’Ornellas Tradução direta do alemão

187 António Feliciano de Tradução direta do alemão com consulta de outras


2 Castilho traduções

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197
6 Pedro Reis Tradução talvez do francês

198
4 Luiza Neto Jorge Tradução a partir da tradução de Gerard de Nerval

199
3 João Barrento Tradução direta do alemão

Já no século XX a “questão do Fausto” seria retomada, mas atualmente, a tradução que


mais é tida em conta é a tradução efetuada por Agostinho d’Ornellas , que foi reeditada
em 1953 e posteriormente em 1987.

Traduções do Fausto de Goethe

Autores que elogiaram a tradução Autores que criticaram a tradução


de Fausto de A. F. Castilho de Fausto de A. F. Castilho

Alberto Pimentel Adolfo Coelho

Camilo Castelo Branco J.A. Graça Barreto

Antero de Quental Joaquim de Vasconcellos

Pinheiro Chagas

José Gomes Monteiro

Germano de Meirelles

O D. Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes

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A obra a ser analisada é a obra de Miguel de Cervantes, “D.Quixote de la Mancha”, cuja
primeira parte foi publicada no século XVII, em 1605, e pouco depois começou a ser
traduzida (foi traduzida em 1612 para inglês, pela mão de Thomas Shelton e
posteriormente em 1614 para francês, por César Oudin). Em Portugal, durante os séculos
XVII e XVIII a obra ainda foi lida na sua língua original, mas atualmente esta obra de
Cervantes encontra-se traduzida em mais de 140 línguas, sendo uma obra muito apreciada
no ocidente europeu.

De destacar dois assuntos relacionados com a atualidade desta obra, um em relação ao


nosso país e outro em relação ao nosso país vizinho e país de origem da obra, Espanha.

Em relação a Portugal, destaca-se que foram efetuadas duas traduções em 2005, alusivas
à comemoração dos 400 anos da publicação primeira parte da obra: uma destas traduções
é da autoria de Miguel Serras Pereira, que a publicou na editora D. Quixote, e a outra é
do tradutor José Bento, através da editora Relógio d’Água. Estas traduções demonstram
a consideração concedida à obra e a relevância que a mesma tem até aos dias de hoje.

A respeito da atualidade da obra em Espanha, deve referir-se que foi publicada em 2015
-aquando da comemoração dos 400 anos da publicação da segunda parte da obra - pelo
escritor Andrés Trapiello, uma tradução da mesma, para um castelhano mais atual e
compreensível, de modo a tornar a obra acessível a todos. Embora seja comum fazer-se
isso com obras clássicas (a título de exemplo, também Vasco Graça Moura o fez em
relação à obra de Camões, “Os Lusíadas” – embora nesse caso o autor tivesse incluído
também versos dele e o público alvo foi o público infantil, ao contrário do que aconteceu
com a tradução de Andrés Trapiello, que respeitou o original e focou em todo o público
em geral), este tipo de traduções é sempre gerador de agitação, pois embora seja um tipo
de tradução mais rara que a tradução entre duas línguas diferentes, não deixa de ser
igualmente uma tradução (sendo que é uma tradução de elevada importância, não só por
dar a conhecer esta obra a um público mais alargado, como pela possibilidade que dá de
se fazerem novas traduções e reavaliar traduções já efetuadas anteriormente).

Andrés Trapiello foi um estudioso da obra, o que é de extrema importância para qualquer
tradutor, pois, embora na realidade um tradutor seja igualmente um leitor e a tradução que
faz é conforme a sua interpretação, um estudo mais aprofundo da obra permite que se crie
uma tradução mais fiel ao original (até algumas tautologias características de Cervantes

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 19


ele optou por manter, mas adaptou a uma construção frásica atual, com conversão de
expressões e palavras por outras de igual significado mas mais compreensíveis, incitando
à leitura da obra pela maior facilidade no entendimento da mesma, mas de maneira a
conservar a essência da obra original).

Tópico 5 – A Tradução na Atualidade e a Construção da


Identidade Europeia (1ª parte)

Atualmente não se pode restringir a tradução aos textos literários, pois ela aplica-se a
todos os textos e discursos. Essa mudança começou a ocorrer especialmente a partir do
século XX, com mais incidência após a 2ª Guerra Mundial. A partir da década de 80, a
tradução chegou às universidades, tendo aí um papel bastante importante. As traduções
técnicas passaram a fazer parte do dia a dia de todos, e focando nesse tipo de tradução,
não se pode deixar de falar de um nome amplamente conhecido em Portugal e que para
alguns autores, como António Mega Ferreira, é um nome tão relevante como Cervantes ou
Goethe, entre outros – esse nome é Fernando Pessoa.

Fernando Pessoa, Tradutor

(meu texto E-FÓLIO B sobre Fernando Pessoa enquanto tradutor)

Fernando Pessoa nasceu em Lisboa em 1888, passou parte da sua infância e juventude
na África do Sul – o que viria a ser determinante para alcançar o nível de inglês que
possuía – e regressou a Portugal em 1905, onde acabou por falecer, em 1935.

É um dos nomes mais conhecidos e importantes da literatura portuguesa,


principalmente devido às obras que escreveu. No entanto, e apesar das suas obras (tanto
as publicadas em vida como as que foram descobertas após a sua morte) ofuscarem todas

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 20


as suas outras atividades, grande parte da sua vida foi consagrada à tradução de
documentos e obras – umas apenas profissionalmente, outras também por gosto pessoal.

Conforme indica Arnaldo Saraiva, que é responsável pela mais extensa missão de editar
as traduções de Fernando Pessoa, muitas das traduções de Pessoa refletem os seus
gostos e os seus projetos.

É a Pessoa que se atribui a reputação de ter iniciado a tradução técnica no nosso


país e de ter feito uma reflexão importante sobre a problemática da tradução, sendo
importante salientar que ele representava as traduções técnicas de forma distinta das
literárias: nas traduções técnicas, Pessoa era muito exigente e meticuloso, sendo que a
tradução deveria ser o mais fiel possível ao original e as revisões eram algo de extrema
importância e indispensáveis antes da entrega ao cliente; nas traduções literárias - as que
são mais importantes assinalar – Pessoa considerava que o crucial era trazer o espírito, a
emoção da obra original, bem como o ritmo verbal e visual da mesma. A nível de
traduções literárias, Pessoa expressava as suas preferências, havendo registo de uma
carta enviada à Editora Lusitânia, em 1923, em que Pessoa se propunha a traduzir
algumas peças de Shakespeare.

Neste contexto, é aplicável referir que, em 1921, Fernando Pessoa e dois sócios fundaram
a empresa “Olisipo”, para a qual Pessoa tinha projetos ambiciosos, como a de grandes
trabalhos de tradução e a expansão para outros países. Uma das três vertentes da
empresa era, de facto, as traduções, e Fernando Pessoa tinha o objetivo de realizar
traduções para português de obras de Shakespeare, de Coleridge e de Edgar Poe,
executar traduções para inglês de Antero de Quental e Camões, mas desejava igualmente
utilizar os seus heterónimos para efetuar traduções, em alguns casos visando as suas
próprias obras, como é o caso das traduções para português do heterónimo Ricardo Reis
de epigramas gregos como a Antologia Grega ou das traduções para inglês efetuadas pelo
seu heterónimo Thomas Crosse, das obras do também seu heterónimo Alberto Caeiro.

Fernando Pessoa esperava que a “Olisipo” desse frutos, de modo a que pudesse dispor de
mais conforto financeiro e tempo para escrever as suas obras, mas a empresa não durou
mais de dois anos, e encerrou em 1923.

Embora nem todos os projetos tenham avançado, Pessoa efetuou muitas traduções
literárias, sendo uma das mais conceituadas a de O Corvo de Edgar Poe; também de

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 21


Edgar Poe, Pessoa traduziu Annabel Lee e Ulalume, mas estas mais como um exercício
poético.

Os laços que relacionam as suas influências, preferências, as traduções que efetuou e os


seus heterónimos não seriam possíveis de desamarrar, pois a sua dimensão de autor
funde-se em parte com a de tradutor - tal como aconteceu com vários outros poetas e
escritores, que também se dedicaram à tradução.

Fernando Pessoa chegou a incorporar na sua escrita formas que não eram usuais na
cultura literária nacional, e que advieram das traduções; também a escrita de alguns
heterónimos, mudou ao longo do tempo, conforme Pessoa se ia embrenhando em mais
traduções (como é o caso da escrita de Ricardo Reis, que a partir de meados da década
de 1920 passou a ter associação solene com os epigramas gregos). O facto de ter vários
heterónimos e de ter igualmente obras em nome próprio, permitiu que Fernando Pessoa
fosse revelando as suas influências: tanto era inegável a influência e o gosto que possuía
por Shakespeare, como que o seu heterónimo Alberto Caeiro tinha grandes ligações com a
obra de Walt Whitman e que o seu heterónimo Ricardo Reis espelhava um dos grandes
poetas da Roma Antiga, Horácio.

A Tradução na Universidade: o caso Português

Com a chegada às universidades europeias, a partir da década de 80 do século passado,


da tradução como disciplina de ensino e objeto de investigação, é importante saber como é
que se formam os tradutores e qual é a realidade portuguesa em relação a essas
questões.

O Professor Dr. Carlos Castilho Pais apresentou um discurso sobre o assunto, no IV


Congresso da EIETI. Neste discurso, Carlos Castilho Pais foca na disciplina dos Estudos
da Tradução e em tudo o que a engloba, seja a nível de oferta académica, do futuro
percurso profissional dos estudantes, das unidades curriculares disponibilizadas, do ensino
efetuado, da investigação que se faz na área e igualmente das publicações sobre o

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 22


assunto – tudo relativamente à realidade em Portugal, sendo que acaba por comparar a
nossa realidade com a espanhola.

Os Estudos da Tradução fizeram a sua entrada em Portugal, enquanto formação


específica, em 2001 – tardiamente, em comparação com outros países – e o Professor Dr.
Carlos Castilho Pais é perentório ao afirmar que o nosso país está muito atrasado em
relação a Espanha e ao desenvolvimento que os Estudos da Tradução têm naquele país, a
todos os níveis: ao ensino, à investigação, e à edição e publicação de obras sobre a
matéria. A formação na área iniciou-se mais tarde, não existe investigação nem
publicações efetuadas pelos docentes da área (sendo que, muitos deles, conforme Carlos
Castilho Pais afirma, são de outras áreas como a Literatura ou a Linguística, e deparam-
se com a falta de Departamentos de Tradução nas Universidades, levando a que existam
lacunas graves no ensino da Tradução - por exemplo, existe falta de unidades curriculares
que incluam a história da tradução e falta uma preparação eficaz para a profissão de
Tradutor, que poderia ser colmatada se houvesse uma maior participação de Tradutores
nesta área de ensino) e a preparação dos alunos não é adequada à saída profissional de
Tradutor.

Ao contrário, Espanha apresenta um dinamismo elevado na área em apreço, tendo na


maioria das suas Universidades, Departamentos e Faculdades de Tradução, e sendo um
dos países com mais produção científica publicada.

Para explanar a nossa realidade sobre o ensino da tradução, o Professor analisa a oferta
académica existente nas universidades públicas portuguesas no ano letivo de 2009/2010,
já numa fase em que o processo de Bolonha se encontra em vigor, e é facilmente
percetível, através de quadros ilustrativos, que a oferta académica relacionada com os
Estudos da Tradução é menor no 1º ciclo (Licenciaturas) do que no 2º ciclo (Mestrados), o
que contraria a máxima de que o 2º ciclo deve ser uma continuidade do que é lecionado no
1º ciclo. Também facilmente se percebe a anexação de outras vertentes ao curso de
Tradução (não deixando que o mesmo se torne tão aprofundado na área dos Estudos da
Tradução, ficando em falta unidades curriculares que o Professor Carlos Castilho Pais
considera imprescindíveis), provavelmente com o intuito de serem mais aliciantes de um
ponto de vista de empregabilidade. Todas estas questões colocam em causa tanto a
Declaração de Nairobi, onde a UNESCO recomendava que a tradução fosse uma
disciplina independente, como as diretrizes do Processo de Bolonha, em que está

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 23


estipulada a necessidade de haver, entre outros parâmetros, produção de material de
aprendizagem por parte dos docentes e um papel orientador por parte dos mesmos.

Apontando diversas falhas no Estudo da Tradução que é feito em Portugal, o Professor


Carlos Castilho Pais espera que as competências que são dadas a um estudante que
será um futuro Tradutor sejam melhoradas, solicitando o auxílio dos nossos vizinhos
espanhóis, para que se possam ultrapassar estas deficiências no ensino da Tradução.

Tópico 6 – A Tradução na Atualidade e a Construção da


Identidade Europeia (continuação)

A tradução na Europa

A União Europeia é pioneira no que diz respeito à área da tradução e nenhum organismo
consegue igualar o número de tradutores que a UE tem, sendo as suas áreas de atuação
técnicas e muito vastas, desde o domínio jurídico ao económico, passando pela parte da
comunicação (como os sites e legendagens de vídeos e filmes).

Existe na UE o CdT (Centro de Tradução dos Organismos da União Europeia), cuja missão
é traduzir e efetuar serviços linguísticos para os organismos e agências da UE bem como
para organismos de toda a Europa, sendo que este Centro, criado em 1994 e sediado no
Luxemburgo, tem cerca de 200 colaboradores, sendo pelo menos 100 deles, Tradutores.
Além de efetuar os serviços descritos, dá igualmente apoio aos serviços de tradução
internos dos organismos e agências da UE, quando os mesmos estão sobrecarregados.
Este organismo recebe encomendas de trabalho de mais de 60 organismos e conta com o
apoio de vários tradutores freelancers para os ajudar, pois trabalham tanto com as línguas
comunitárias como com as línguas não comunitárias.

A nível do português na UE, os tradutores produzem há alguns anos, à semelhança do


que fazem os Tradutores de outras nacionalidades, uma publicação designada “A Folha”,

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 24


que dá a conhecer a atividade que efetuam no seio da União Europeia. Em 2007
publicaram uma edição especial, intitulada “A língua portuguesa e o trabalho linguístico nas
instituições da União Europeia”, que detalha vários assuntos relacionados com o mundo da
tradução, sendo dado especial destaque a um artigo da autoria de Carlos Matos, sobre “A
tradução de textos científicos e tecnológicos na Comissão Europeia”, onde se destaca as
funções da Direção-Geral da Tradução da Comissão Europeia, que são focadas na
tradução para português de documentos de diversas áreas e assuntos, sejam para outros
organismos da UE, sejam para pessoas ou organismos portugueses. Nos anos 80 a
maioria dos documentos (cerca de 70%) eram escritos em francês, mas atualmente, 80%
dos documentos que chegam para tradução, vêm em inglês. A terminologia maioritária é
de ordem jurídica, seguida da área económica/financeira e só depois a
científica/tecnológica; mesmo nesta última área, os documentos a traduzir raramente são
na totalidade sobre questões de índole científica e/ou tecnológica, sendo muitas vezes
documentos políticos ou jurídicos que detêm uma componente nessas áreas.

As aéreas que a tradução na UE abrange são muito dispersas (por exemplo, transportes,
energia, agricultura e pescas, saúde, etc.) e os tradutores agrupam-se normalmente por
domínios em que são especializados, podendo ou não ter esses domínios estar
relacionados com a sua área de formação.

Os Tradutores portugueses encontram algumas dificuldades no seu trabalho, começando


pela distância do país materno e passando pela pressão para efetuar o trabalho e os
cuidados a ter: as terminologias a utilizar, inexistência de termos em português, siglas,
utilização ou não de neologismos (como por exemplo a palavra “clicar”, que advém do
termo inglês “click”).

Documento – “Interpretar e traduzir para a Europa”

O Comité Interinstitucional da Tradução e da Interpretação é o fórum de cooperação entre


os serviços linguísticos dos vários organismos da União Europeia, onde são debatidas as
questões relacionadas com tradução e interpretação.

Porque é que é importante traduzir na UE? Porque, embora a Comunidade Europeia


tenha começado com apenas 4 línguas oficias, atualmente existem 24 línguas oficiais
dentro da UE, havendo igualmente outras línguas relevantes para trabalho (como é o caso
do russo, do árabe, do chinês, do japonês, etc.) ou línguas regionais de alguns EM

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 25


(Estados-Membros), o que origina uma dinâmica bastante complexa. Por ser uma
organização democrática, a UE comunica com os todos os seus cidadãos, bem como com
os organismos governamentais e administrativos dos EM na sua língua oficial, e todos têm
igualmente o direito de obter toda a informação na sua língua oficial e em poder utilizá-la
para contactos com as instituições europeias. Paralelamente, os representantes de cada
EM na UE podem, nas suas intervenções, comunicar na sua língua oficial, de modo a que
se possam expressar o mais corretamente possível; tudo isso leva a que seja
extremamente relevante o papel da tradução e dos Tradutores e Intérpretes, que são quem
assegura que todos se entendem e têm acesso à informação correta – os Tradutores
trabalham com a palavra escrita e os Intérpretes com a palavra oral.

Os serviços de tradução, embora se deparem com dificuldades, são de extrema


importância e para os auxiliar existem já utensílios da tradução que são potencializados
pelas tecnologias informáticas: as memórias de tradução encontram-se na base de dados
Euramis (que é o repositório interinstitucional) e também na base IATE (onde constam as
terminologias relativas à EU, em todas as línguas oficiais).

Os serviços de tradução da UE abarcam vários organismos e traduzem-se em variadas


funções, tais como: a DGT (Direção-Geral da Tradução) da Comissão Europeia presta
serviços de tradução que vão desde a tradução tradicional, à revisão de texto, às
traduções para sites, à tradução de legislação e documentos políticos; o Parlamento
Europeu precisa de ver a legislação aplicável traduzida nas 24 línguas oficiais; ao
Conselho Europeu e ao Conselho da União Europeia é necessário que lhes cheguem as
traduções, na sua língua oficial, dos documentos sobre os quais precisam de trabalhar; O
Tribunal de Justiça da UE tem o seu serviço de tradução jurídica (a Direção-Geral da
Tradução é o maior serviço dessa instituição), pois é necessário que os diversos e
variados documentos judiciais sejam traduzidos nas línguas oficiais da União; no Tribunal
de Contas, os Tradutores trabalham em 23 equipas e traduzem maioritariamente
documentos relacionados com auditorias, finanças e economia, seja para fins internos seja
para divulgação aos EM, atuando também como tradutores aquando das deslocações dos
auditores aos diferentes EM da União; no Banco Central Europeu, os tradutores baseiam-
se nos documentos escritos em inglês (de ordem técnica, como relatórios e publicações
oficiais) para traduzir para as línguas oficiais; tanto no Comité das Regiões como no
Comité Económico e Social Europeu, os membros vêm de todos os EM e tanto os

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documentos que elaboram como os que recebem, estão escritos na sua língua oficial,
sendo por isso necessário que os tradutores ligados a estes órgãos estejam habituados a
traduzir todo o tipo de textos relacionados com legislação europeia, tanto para que possam
ser compreendidos pelos legisladores europeus como pelo público em geral; pela
especificidade da sua área de atuação, no Banco de Investimento Europeu, os serviços de
tradução são responsáveis pela tradução para as línguas oficiais e também para algumas
línguas não comunitárias (como russo, japonês ou árabe).

Por sua vez, os serviços de interpretação, vocacionados para as traduções orais em


reuniões e conferências internacionais, são efetuados utilizando duas técnicas: a
interpretação consecutiva, técnica em que o intérprete toma notas do que o orador vai
falando e no final do discurso faz a reprodução do discurso na língua para a qual é
necessário traduzir e a interpretação simultânea, técnica utilizada quase na totalidade
das vezes em que é necessário interpretação, e que consiste em fazer uma tradução ao
mesmo tempo que o orador discursa, acompanhando o ritmo do orador – para esta técnica
é necessário que haja salas insonorizadas e equipamentos adequados de receção e
transmissão.

Os serviços de interpretação têm igualmente atuação juntos de vários organismos: ao


fazer parte da Comissão Europeia, a Direção-Geral da Interpretação efetua serviços tanto
nas reuniões organizadas pela Comissão como pelas instituições (Conselho da UE, Comité
Económico e Social Europeu, Comité das Regiões, Banco Europeu de Investimento) e
representações dos EM; no Parlamento Europeu, os Intérpretes estão presentes em todas
as reuniões - onde é usual estarem presentes as 24 línguas oficiais - e em serviços
externos, que implicam a sua deslocação junto com as delegações; o Tribunal de Justiça
da UE redige habitualmente os seus acórdãos em francês pelo que os Intérpretes têm de
ter capacidade de trabalhar com a língua francesa e outras que sejam necessárias em
cada audiência realizada, pois os intervenientes exprimem-se na sua própria língua, sendo
nesses casos efetuada interpretação simultânea.

Em suma, embora haja uma grande diversidade de novas tecnologias que auxiliam, é
imprescindível o papel das equipas de Tradução e de Interpretação e, na época multilingue
que atravessamos e que se pretende preservar, é de extrema importância para a UE
continuar o seu trabalho de salvaguarda desta variedade linguística e cultural, em prol da
democracia, da acessibilidade e da transparência, perante todos os EM e os cidadãos.

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 27


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Para se poder trabalhar nestas duas áreas para a União Europeia, é necessária formação
base - em diversos âmbitos, consoante o organismo e função - e conhecimentos profundos
das línguas e cultura com as quais se almeja trabalhar, para que o trabalho realizado seja
o mais rigoroso possível.

Embora a tradução e as técnicas utilizadas tenham ainda uma longa jornada pela frente, é
necessário que se mudem as mentalidades e que a experiência que se adquire possa ser
passada aos futuros profissionais, para que as novas gerações de Tradutores possam
responder com sagacidade aos desafios que as evoluções políticas económicas e sociais
da nossa era trazem, o que será fundamental para a manutenção de um padrão de
qualidade de tradução tão elevado como o solicitado pela União Europeia.

Tópico 7 – A Tradução Portuguesa na Europa (reflexão)

A Tradução do Outro na Europa

No documento analisado tem-se em conta questões relacionadas com culturas não-


europeias e a forma como se traduz e se analisa, antropologicamente falando, as mesmas.
Nesta questão, os historiadores têm uma certa desvantagem, pois o seu estudo recai
diretamente sobre testemunhos preservados, ao contrário dos antropólogos, que vão
diretamente estudar essas culturas, bem como a sua língua, e podem de facto aprendê-la,
de modo a que a sua interpretação possa ser mais fiel – esta facilidade em fazerem
trabalho de campo traz uma riqueza única ao trabalho que desenvolvem.

No entanto, há um outro lado da moeda: tem de se ter em consideração que nem sempre é
fácil analisar corretamente o que é expressado, que não é sempre fácil colocar esse
discurso numa versão escrita e encontrar uma maneira correta de exprimir o que se
pretende, associado a uma maneira mais erudita de escrita, que é requerida em trabalhos
científicos e académicos.

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 28


Há também questões pertinentes que se levantam, aquando da questão de representar e
traduzir o que se passa nas culturas não-europeias: as questões de contexto histórico e
político têm muitas vezes grande relevância no que vai decorrendo e na relação entre a
sociedade que está a ser analisada e a sociedade a quem essa análise se destina.

Tomemos como exemplo um artigo do antropólogo Godfrey Lienhardt sobre os


acontecimento do início do século XX na sociedade Dinka do Sul do Sudão, que,
sentindo que estavam a ficar para trás em relação aos seus rivais, sentiram necessidade
de enviar alguns jovens para estudar em escolas das missões ocidentais – internamente,
era usual que houvesse sempre provas de força e de disputa entre os jovens para que se
destacassem, e a partir dessa altura, eram os que mais se destacavam que seguiam para
as escolas ocidentais – de modo a que pudessem, posteriormente, desempenhar um papel
de negociador com o poder colonial existente. O conceito de progresso passou a ser
relevante para esta sociedade e foi o motor para que as mudanças ocorressem, mas por
outro lado estamos, em situações assim, perante falantes de uma língua dominada, que
acabam por se ir adaptando e acomodando, à medida que as transformações dos jovem
instruídos nas escolas ocidentais se vão implementando – e foi assim que o poder colonial
se foi embrenhando nas culturas e línguas indígenas previamente existentes nas colónias,
tendo influenciado todas, em diversos graus.

Também o árabe apresenta diferenças assinaláveis ao longo dos últimos 150 anos, e o
árabe moderno apresenta cada vez mais semelhanças ao inglês moderno, pois vai
absorvendo elementos das línguas europeias – no estudo de Stetkevych de 1970, ele
aponta 4 tipos de mudanças relevantes: mudança nas estruturas frásicas, traduções literais
que ignoram o facto de haver expressões árabes mais adequadas e que se vão perdendo,
e absorção de expressões das línguas ocidentais.

Estas mudanças acabam por, muitas vezes, serem benéficas paras quem é falante da
língua dominada, não devendo ser encarado como algo que se deva lastimar, mas é
notório que as alterações acabam por seguir uma mesma direção, que acaba por refletir o
que acontece no mundo e as desigualdades existentes a nível económico e político.

A tradução cultural acaba então por ser uma mescla da tradução com a antropologia e uma
pergunta que se levanta é se os pressupostos da parte antropológica da escrita, que não
vão ao encontro do trabalho feito em campo, podem interferir com a tradução cultural. Isso

Ilda Cardoso – 2018/2019 (completado por Mónica Costa 2020/2021) – pag. 29


remete para aspetos importantes, relacionados com as relações de poder. Os antropólogos
acabam por utilizar expressões metafóricas ou semi-metafóricas relacionadas com
acontecimentos da história e cultura europeia para que a leitura soe familiar e remeta para
comparações, no entanto na maioria das vezes esses sentidos figurados não são
apropriados à descrição que se deveria estar a efetuar e não existe uma procura mais
profunda de termos que possam ser mais adequados – no fundo, os antropólogos
europeus tentam adaptar a língua que estão a tentar traduzir à sua, em vez de tentarem
levar a sua língua à língua original da qual querem traduzir – e é aí que entra as questões
de relações de poder, sendo as línguas europeias dominantes e sendo mais fácil as
línguas dominadas absorverem das nossas línguas, do que oposto.

No entanto, não se pense que é fácil para os antropólogos sociais lidarem com o dilema de
traduzir o que se passa em campo: o exercício de conciliar o que se aprende e trabalha em
campo com o que existe intrinsecamente em cada antropólogo, é uma luta inglória que
dificulta a transcrição do que se desejaria traduzir, levando muitas vezes a conceitos
abstratos. A dificuldade em gerir o contexto de modo a que se possa efetuar uma tradução
fidedigna é algo muito difícil de atingir, e um problema para o qual os antropólogos não são
preparados, o que leva a que as traduções consideradas de sucesso sejam em baixo
número.

A tradução de originais em língua portuguesa na Europa: uma


análise contrastiva

É notório que a tradução tem um papel primordial, pois torna possível que haja diálogo
entre as diferentes culturas – numa era multilingue como a que vivenciamos, um ótimo
exemplo desse papel é dado pela União Europeia, que faz questão de incluir todas as
línguas oficiais dos Estados-Membros nos vários documentos e situações onde há
intervenção, permitindo essa aproximação à União em si e entre os Estados-Membros.
Mas no documento analisado, a apreciação recai sobre as posições dos diferentes países
em relação a obras traduzidas e a relação entre esses valores e a quantidade de falantes
dessas línguas no mundo – com principal destaque para o caso da língua portuguesa. As
estatísticas sobre a tradução começaram a ser reunidas na década de 30 do século XX,
através de uma ramificação da League of Nations, com o intuito de promover a

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colaboração entre as nações; apesar de interrompida pela 2ª GM, a UNESCO retomou-as
no pós-guerra e, apesar dos dados serem fornecidos por cada país e poderem não
corresponder à realidade do momento, são indicadores importantes em matéria de
tradução.

Vivemos num mundo em que a língua inglesa é amplamente utilizada e considerada como
língua franca em muitos setores, sendo, de facto, a língua dominante para interações. No
entanto, isso também é reflexo do poder económico, social, cultural e político das
potências que têm o inglês como língua oficial: os EUA em particular, mas também o Reino
Unido.

Em termos de tradução, utilizando o sistema de tradução de Heilbron (que defende a


existência de um fluxo de traduções de e para uma determinada língua, em virtude do
poder que os países que a falam detêm) e tendo por base os dados estatísticos
disponíveis na base de dados Index Translationum da UNESCO, conclui-se que a divisão
de países pela centralidade da sua língua em termos de tradução coloca na posição
hipercentral a língua inglesa, na posição central as línguas alemã e francesa, na posição
semicentral o espanhol, italiano e russo e na posição periférica as outras línguas (nas
quais se inclui o português).

Isso significa que entre 55% e 60% de todas as traduções efetuadas têm como língua de
partida o inglês, mesmo que a obra não tenha sido originalmente escrita nessa língua (mas
para muitas obras, a potencial divulgação da mesma passa por terem uma tradução em
inglês, que serve de base para traduções para outras línguas). Quanto mais centralizada
está a língua, menos importação há de obras em outras línguas para posteriormente
traduzir (só aproximadamente 3% das obras existentes no Reino Unido e EUA foram
traduzidas por eles).

Não com tanto destaque mas igualmente em posições centrais, estão as línguas alemã e
francesa, sendo seguidas da espanhola, russa (com a queda do muro de Berlim, a Rússia
viu o seu lugar na posição central ser tomado pela língua alemã) e italiana (é importante
destacar a posição relevante que a língua italiana detém, tendo em conta que o número de
falantes da língua não é tão alto – não chega a figurar nas dez línguas mais faladas no
mundo - o que vai ao encontro da teoria de Heilbron, de que não é o número de falantes o
barómetro para esta realidade).

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Ao analisarmos o caso da língua portuguesa, verificamos que, segundo dados do
Observatório da Língua Portuguesa, a nossa língua é a quarta língua mais falada no
mundo (apenas atrás do mandarim, do espanhol e do inglês), muito devido aos nove
países que têm o português como língua oficial e aos vários falantes que se encontram
espalhados pelo mundo. Também a nível de línguas usadas na internet, o português está
bem cotado, sendo a quinta língua. Mas quando analisamos a nível da tradução,
constatamos que a relevância da língua está intrinsecamente ligada à posição económica
e política dos países falantes de português, e percebemos a razão que leva a que uma
língua tão falada esteja numa posição periférica, com menos de 1% de volume de obras
escritas em língua portuguesa a serem traduzidas para outras línguas. Os autores de
língua portuguesa com mais destaque internacional a nível de publicações traduzidas são
o brasileiro Paulo Coelho e o português José Saramago (que viu o número de traduções
disparar após ganhar o Prémio Nobel da Literatura, em 1998, embora posteriormente
tenham voltado aos números anteriores ao prémio).

Embora se possa considerar uma propensão de crescimento da língua portuguesa, nas


mais recentes décadas, a nível de língua de partida para outras línguas e países, somos,
paralelamente, uma das línguas para as quais mais traduções se fazem, estando na 9ª
posição enquanto língua de chegada: a maioria dessas traduções são feitas de inglês para
português (61,9%), seguindo-se traduções do francês, do espanhol seguido do italiano e
depois do alemão – estes dados vêm corroborar a teoria de Heilbron, restando a Portugal
acreditar num futuro risonho em relação ao crescimento da nossa quota no mercado das
traduções, tendo em consideração os ligeiros aumentos que se vão verificando.

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