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A literatura

expressão gratuita do sentimento e para a realiza-


ção de um propósito lúdico ou artístico. Nos
documentos dos cartórios, porém, essa língua

ffnelceval. revela-se incolor e canhestra, condicionada pelas


minutas, apertada na rigidez das tradicionais fór-
mulas jurídicas ainda muitas vezes em latim, des-

A poesia. provida de qualquer preocupação de elegância e


apenas reduzida à tarefa de registar para fins
úteis disposições legais ou vontades privadas.
É na poesia que iremos encontrar pela pri-
ESTHER DE LEMOS * meira vez, no domínio do português, a palavra
viva, corno instrumento de expressão da sensibili-
dade e da mentalidade, que está, apesar da sua
artificialidade literária, muito mais próxima da lin-
1. Introdução guagem oral do que do árido idioma dos docu-
mentos notariais. E, sobretudo, é na poesia que
pela primeira vez a língua portuguesa se faz arte.
A literatura portuguesa surge ao mesmo
tempo, ou quase, que a fundação da nacionali-
dade. Com efeito, os primeiros textos em língua 2. A Poesia
portuguesa, com carácter literário e artístico, de
que há notícia, datam dos últimos anos do séc. xü
Que as primeiras manifestações literárias em
— isto é, surgem um pouco mais de cinquenta
português sejam poesia, não deve surpreender-
anos depois da transformação do Condado -nos: em todas as literaturas, a poesia é a pri-
Portucalense em reino de Portugal. meira a surgir. E as razões desse facto parecem
O aparecimento de uma literatura pressupõe, bastante claras: o carácter oral que tem, nessas
naturalmente, a existência de um instrumento lin- fases primitivas, pelo menos a transmissão da
guístico já apto à criação artística: e efectiva- obra literária, apoia-se no poder de memorização,
mente, no caso português, desde há séculos que de comunicação e até de encantação que a poe-
se vinha formando no Noroeste da Península sia possui, devido à sua natureza essencialmente
Ibérica uma unidade linguística diferenciada, que repetitiva (ritmos, esquemas, sons, ideias, tudo se
no séc. xu apresentava já características suficien- repete na poesia); a isto acresce a tendência da
temente definidas para constituir uma língua alma primitiva para associar o canto quer às for-
independente — o galego-português — assim cha- mas elementares de actividade — ao embalo das
mado por ser falado na Galiza e no território do crianças, às fainas do campo, do mar ou da casa
incipiente reino de Portugal. — quer às manifestações de sentimento nas diver-
E nesta língua, modalidade arcaica do portu- sas circunstâncias da vida — festa, amor, despe-
guês, que aparecem os nossos primeiros textos dida, guerra, luto, oração.
conhecidos, quer os de carácter jurídico, como Em todas as literaturas, a poesia das origens é
testamentos, cartas de foral, pleitos judiciais, quer canto, palavra que se associa à música. Os pri-
os de carácter literário, de que iremos ocupar-nos. meiros textos poéticos portugueses não fogem à
Os mais antigos testemunhos escritos do uso regra: são letras de canções, palavras modeladas
do português são, por um lado, dois documentos sobre um esquema musical.
notariais — o testamento de D. Afonso II e a
«Notícia do Torto», um pleito judicial —, ambos
datados dos primeiros anos do séc. xiii, e por 2.1. Âmbito cronológico e geográfico do
outro, algumas poesias de João Soares de Paiva, lirismo galego-português
a mais antiga das quais foi situada nos últimos
anos do séc. xu. A língua aparecia assim já apta Essa primitiva poesia em língua galego-portu-
tanto para os usos práticos da vida como para a guesa surge, como dissemos, nos fins do século
xli e prolonga-se até meados do séc. xiv.
Conhecemo-la hoje graças a três colecções de
• Texto escrito e divulgado, em fotocópias, pela F. C. poemas que nos restam, e que seguramente
Gulbenkian, em 1979, e agora revisto. representam apenas uma amostra incompleta e

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tardia da antiga poesia galego-portuguesa. 2.2. As Origens
Incompleta e tardia, note-se: a data atribuída à
mais antiga composição poética galego-portu- Como surgiu e se desenvolveu essa corrente
guesa (1196), não deve induzir-nos em erro: já de poesia de que as referidas colectâneas medie-
muito antes desse momento se compunham sem vais galego-portuguesas dão testemunho, e por
dúvida poesias em galego-português: como tam- que motivo foi o galego-português a língua do
bém é errado considerar os cerca de dois milha- lirismo peninsular desde fins do séc. xti até mea-
res de composições conhecidas como a totali- dos do xi-v?
dade da produção poética de então. Muitas Na Galiza, cedo liberta do domínio árabe,
outras poesias se terão perdido: aliás, as difíceis aberta às influências de além-Pirenéus através da
condições de fixação do texto em cópia manus- grande rota das peregrinações a Santiago de
crita, dispendiosa e demorada, não podiam asse- Compostela (o santuário de maior nomeada na
gurar uma suficiente multiplicação dos originais, Europa Ocidental durante a Idade Média), parece
e as probabilidades de chegarem até nós torna- ter florescido, já muito antes da fundação da
ram-se, naturalmente, restritas. nacionalidade portuguesa, uma poesia de inspira-
Mas, incompleta e tardia, essa amostra da ção tradicional, folclórica, cultivada sobretudo
poesia do período galego-português é suficiente pelos jograis — poetas e músicos profissionais,
para nos facultar uma visão global do que foi a muitos deles antigos clérigos, que se exibiam em
actividade poética dessa fase da literatura portu- feiras e romarias e eram também recebidos e aca-
guesa .
rinhados nas cortes dos reis e grandes senhores.
Antes de entrarmos propriamente na descrição Os jograis, que pela sua condição social e pela
dos produtos dessa actividade, impõe-se, no sua vida de artistas ambulantes mantinham per-
entanto, deixar bem esclarecido um ponto capital. manente contacto com o povo rural, sempre con-
Quando falamos, ao referirmo-nos a este servador e arcaizante, e assim mergulhavam natu-
período, em «literatura portuguesa», estamos a ralmente no mundo dos afectos, costumes,
antecipar uma designação que só mais tarde terá tradições transmitidos de pais a filhos, teriam
a sua aplicação cabal. Isto é: a primitiva poesia decerto conhecimento dos velhos, velhíssimos,
em galego-português não pertence exclusiva- cantares que as populações do Noroeste da
mente à nossa literatura nacional, não é ainda Península repetiam nas suas festas e nos seus tra-
estritamente «literatura portuguesa». As condições balhos. Esses cantares, como tantas vezes sucede
históricas que então se verificam na Península na poesia popular mais antiga de todos os povos,
Ibérica — com a fragmentação do Norte em diver- eram na sua maioria cantigas de mulher, e, natu-
sos reinos independentes mas ainda estreitamente ralmente, de mulher moça e enamorada.
ligados por laços de parentesco e vassalagem Os jograis galegos teriam tido assim o mérito
entre as diversas casas reinantes; com o intercâm- de recolher, aproveitar, difundir e por fim fixar
bio intenso de pessoas e bens; com a seme- para a forma escrita essa tradição oral primitiva,
lhança de línguas e de interesses culturais; com a vinda do fundo do tempo e da eterna alma femi-
unanimidade no esforço da Reconquista cristã do nina.
território ainda ocupado pelos muçulmanos — não A essa poesia jogralesca de fundo tradicional
são de molde a consentir uma delimitação rigo- veio entretanto sobrepor-se uma influência
rosa das literaturas nascentes. estrangeira, bem patente e documentada na poe-
E assim acontece por exemplo que uma corte sia das colecções que chegaram até nós: a
como a de Castela e Leão, onde se falava no séc. influência do lirismo provençal.
xm a modalidade arcaica do castelhano e se utili- Com efeito, durante o séc. xI, no Sul da
zava essa língua para escrever a prosa, adoptou França — ou mais propriamente em toda a região
como língua do lirismo o galego-português e cul- onde se falava a langue doe (a que pertence o
tivou o género de poesia a que chamamos provençal) e a que se dá por isso o nome de
galego-portuguesa. De modo que as composições Occitânia — florescera, nas cortes dos senhores
incluídas nas colecções da poesia portuguesa feudais a partir de Guilherme IX, duque da
arcaica não pertencem exclusivamente a poetas Aquitânia e conde da Provença, uma poesia de
portugueses ou galegos, mas também a poetas amor, extremamente requintada quanto ao senti-
castelhanos, leoneses e de outros pontos da mento que exprimia e quanto ã técnica que utili-
Península. zava. Essa poesia, de que eram agentes os trova-

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dores (trobadors em língua de oc), difundiu-se, a Entre os factores que contribuíram para a
partir do séc. XII, por toda a Europa e veio a divulgação na Península Ibérica de poesia cha-
influenciar profundamente a poesia peninsular mada provençal ou trovadoresca contam-se as ali-
emergente. anças matrimoniais de príncipes peninsulares
Nascido nas cortes florescentes e requintadas com princesas provençais ou francesas, que
do Mediterrâneo, mas gerado, segundo as investi- geralmente traziam no seu séquito músicos e
gações mais recentes parecem demonstrar, nos poetas das respectivas nações; a presença das
mosteiros do Limousin, onde a música litúrgica ordens religiosas e militares de origem francesa
renovada ia fornecendo o modelo para o canto nos primeiros tempos da nacionalidade, colabo-
de amor profano; alimentado de espiritualidade rando na Reconquista ou na colonização do terri-
cristã mas também animado de viva sensualidade; tório recuperado aos mouros; os contactos
modelado, no que respeita à relação entre o comerciais e as grandes peregrinações (como as
poeta e a amada, pelos padrões da relação feudal que se dirigiam da Península ao santuário de
de vassalagem; extremamente exigente na busca Santa Maria de Rocamadour na Provença, e as
da perfeição formal — o lirismo dos trovadores que vinham de além-Pirenéus a Santiago de
provençais tem sido objecto de inesgotáveis Compostela, na Galiza), onde a música e o canto
investigA.ções e análises, que pretendem explicar- profano se juntavam ao culto religioso.
lhe a origem e descobrir-lhe o sentido último. Do encontro dessa corrente provençalizante
Uma coisa é certa: essa poesia corresponde a um com a tradição folclórica recolhida e elaborada
elevado ideal de relações entre os sexos, a uma pelos jograis do Noroeste da Península, terá sur-
quase divinização da mulher e a um alto con- gido a poesia galego-portuguesa, que desde os
ceito do amor e da poesia, que aparecem, uni- alvores do séc. xm aparece documentada nas
dos, como expoentes de perfeição do homem. colecções a que chamamos Cancioneiros.
Na cansó (canção) de amor provençal, o tro-
vador celebra os raros dons morais e físicos da
senhora a quem diz amar e servir com total 2.3. Os cancioneiros galego-portugueses
devoção; proclama a grandeza desse amor e
exulta por poder cantar tão nobre sentimento e São três essas colecções: O Cancioneiro da
tão excelsa senhora. Fá-lo usando uma linguagem Ajuda (A), assim chamado por se encontrar
polida e escolhida, e uma métrica de grande vari- actualmente na biblioteca do Palácio da Ajuda
edade e riqueza. Para compreender o lirismo de em Lisboa, manuscrito em pergaminho, com letra
amor provençal — e o galego-português, na dos finais do séc. xm ou começos do ev e for-
medida em que este deriva daquele — não basta mosas iluminuras que representam figuras de
conhecer a língua em que está escrito, mesmo músicos, jograis e soldadeiras (isto é, bailarinas).
superando a barreira do arcaísmo: necessário se A seguir às poesias encontram-se espaços em
torna estar de posse de um outro código, que branco, destinados à notação da música, que não
não é já linguístico — o código do amor cortês chegou a ser copiada, pois o manuscrito ficou
(amor à moda da corte), que implica uma série inacabado, como aliás atestam as iluminuras,
de regras rígidas, um formulário do serviço do algumas das quais já não foram pintadas.
perfeito namorado. O segredo quanto à identi- O Cancioneiro da Ajuda reúne composições dos
dade da dama celebrada — necessário até porque autores mais antigos da poesia galego-portu-
o trovador provençal cantava geralmente um guesa; essas composições pertencem exclusiva-
amor proibido, pois dirigia sempre as suas home- mente ao género cantiga de amor, que adiante
nagens a senhoras casadas; a mesura, qualidade definiremos.
complexa dos que amam ou merecem o amor — Os outros dois cancioneiros são o
feita de boas maneiras, prudência, moderação; a Cancioneiro da Vaticana (V), que pertence à
renúncia a todo o prazer que seja para a dama Biblioteca do Palácio Pontifício de Roma, ou
causa de desgosto; a fidelidade e constância sem Biblioteca Vaticana, e o Cancioneiro da Biblio-
limites; o sentimento de que amar é o supremo teca Nacional (B), que pode ver-se hoje na
bem e de que nada se deve esperar em troca do Secção de Reservados da Biblioteca Nacional de
amor puro: eis outros tantos tópicos desse amor Lisboa; um e outro são cópias tardias de um ou
cortês que informava o lirismo vindo da mais manuscritos já perdidos, cópias essas feitas
Provença. em Itália no início do séc. XVI. Já não comportam

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notação musical e apresentam bastantes dificulda- Afonso X, D. Dinis e os infantes Afonso Sanches
des de leitura. Qualquer destes dois cancioneiros e D. Pedro, Conde de Barcelos. Alguma coisa se
contém composições dos três géneros que foram sabe ainda acerca de trovadores nobres, como
cultivados pelos poetas galego-portugueses: canti- D. Afonso Lopes de Baião, Estêvão da Guarda,
gas de amor, cantigas de amigo e cantigas de Gonçalo Eanes de Vinhal, Pai Gomes Chatinho,
escárnio e maldizer. O da Biblioteca Nacional é o entre outros, que, pelos cargos que ocuparam,
mais volumoso dos três cancioneiros medievais, são mencionados em documentos coevos, ou
repetindo muitos dos poemas que figuram nos figuram, devido à linhagem a que pertencem, nas
genealogias das famílias nobres da Península;
outros dois, mas apresentando também numero-
quanto aos trovadores burgueses, como João
sas poesias em exclusivo,. como aliás acontece
Airas de Santiago, os clérigos Airas Nunes e Pero
com os outros. O B oferece ainda uma particula- Meogo e aos jograis, que exerciam a poesia
ridade preciosa para os estudiosos do lirismo como profissão — ao passo que os trovadores
galego-português: traz apenso o fragmento de nobres a exerciam como prenda de sala — , da
uma «arte de trovar», onde se definem os géneros maioria conhecemos apenas o nome de bap-
cultivados pelos trovadores medievais e se inven- tismo, às vezes seguido de uma alcunha, e só
tariam e descrevem recursos estilísticos mobiliza- através das referências que nas composições dos
dos neste tipo de poesia. É de lamentar que esta cancioneiros se lhes fazem, podemos inferir
arte poética nos chegasse truncada, a partir ape- alguma coisa sobre a sua vida. Estão neste caso
nas do capítulo IV. o jogral Lourenço, o jogral Meendinho, Airas
As primeiras edições impressas dos cancionei- Carpancho, o jogral Lopo, e muitos outros.
ros medievais só foram feitas no século passado. Esta imprecisão de notícias dificulta, natural-
São de mencionar, além da primeira impressão mente, a localização dos autores dentro do vasto
do Cancioneiro da Ajuda feita por Ii. Lang, a período de tempo em que a moda da poesia tro-
monumental edição crítica do mesmo que se vadoresca se mantém em vigor na Península.
deve a Carolina Michaëlis; a publicação das
Cantigas de amigo e das Cantigas de amor, dos
dois apógrafos italianos, empreendida por José
2.5. Os géneros
Joaquim Nunes 1 ; e a edição crítica das Cantigas
Os cancioneiros galego-portugueses compor-
de Escárnio e Maldizer, publicada por Rodrigues tam, como se disse, três géneros diversos de
Lapa, 1965. composiçõeS:
Além destes três cancioneiros, cumpre men-
cionar outros que transmitem o Livro das — Cantigas de amor
Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, — Cantigas de amigo
rei de Castela e Leão. Trata-se de uma colectânea — Cantigas de escárnio e de maldizer (poesia
de poemas para cantar, dedicados à Virgem; satírica).
inclui a notação musical de cada composição;
quanto ao conteúdo das poesias, alternam relatos 2.5.1. Cantigas de amor
de milagres devidos a Nossa Senhora com peque- O autor anónimo da arte de trovar apensa ao
nas loas ou cânticos em seu louvor. Sobretudo Cancioneiro da Biblioteca Nacional estabelece
pelo tema religioso, o Livro das Cantigas de Santa entre cantiga de amor e cantiga de amigo uma
Maria destaca-se da corrente de lirismo na qual distinção extremamente simples e prática: é can-
entretanto cumpre integrá-la pela língua utilizada: tiga de amor, se fala «ele»; é cantiga de amigo, se
o galego-português. fala «ela».
Isto é, na cantiga de amor o eu que se
exprime é masculino: o poeta, que como tal se
2.4. Os poetas apresenta frequentemente, fala da amada ou do
amor que lhe dedica. É um homem que produz a
Dos autores das poesias reunidas nos nossos mensagem lírica.
primitivos cancioneiros, poucos dados biográficos Na cantiga de amigo o eu que se exprime é
possuímos, a não ser no caso de figuras domi- feminino: uma rapariga, que nunca se apresenta
nantes na cena política do tempo, como os reis como poetisa (e só algumas vezes canta cantigas

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alheias) fala do seu amigo (na linguagem dos segredo quanto à identidade da senhora; o lou-
trovadores esta palavra significa namorado) e do vor incansável das perfeições que a distinguem
amor que lhe inspira ou sente por ele. É uma de todas as outras, são alguns dos principais
mulher — donzela — que produz a mensagem motivos que podemos directamente filiar na poe-
lírica. • sia provençal e que reaparecem com insistência
Mas, para além desta diferença de perspectiva na nossa cantiga de amor.
quanto ao caso amoroso (o ser visto por ele ou No entanto, o confronto entre as composições
por ela), outras diferenças mais complexas, dos trovadores occitânicos e as dos galego-portu-
decorrentes em geral da origem dos dois géne- gueses revela que a nossa cantiga de amor não
ros, cumpre reconhecer entre eles. se ficou pela simples reprodução dos modelos
estrangeiros. Sem sairmos do domínio da temá-
Ocupar-nos-emos em primeiro lugar da can- tica, notamos desde logo uma diferença, que é
tiga de amor. sobretudo de tonalidade afectiva, entre uma e
O elenco de motivos de inspiração é redu- outra poesia.
zido, em parte devido à influência da cansó de Na cansó de amor provençal, o sentimento
amor provençal, que impunha, como dissemos, a dominante é o júbilo de amor, uma espécie de
obediência a um código estrito de serviço e vas- êxtase da alma e dos sentidos que transporta o
salagem amorosa. A este rigor normativo do sen- poeta ao cantar a sua amada, mesmo quando
timento e da conduta parece corresponder o for- tudo é adverso à realização do amor. A Pri-
malismo da expressão poética que se nota na mavera, a alvorada, o canto das aves enamoradas
obra dos trovadores. O artista medieval, aliás — não são, na poesia provençal, meros motivos
como tem sido frequentemente notado — , não se ornamentais, mas antes figuras, expressões con-
preocupa com a originalidade, a expressão da cretas desse estado de deslumbramento e arreba-
livre individualidade. Tem, sobretudo, uma forte tamento que dá o tom dominante. Na cantiga de
consciência artesanal, a noção de que é necessá- amor galego-portuguesa esta luminosidade radi-
rio, para ser bom artista, conhecer os segredos osa apagou-se. A palavra-chave já não é de júbilo
do ofício, utilizar a técnica — neste caso, língua, — é coita, a pena de amor, a mágoa incurável
versificação, motivos — que o género cultivado incessantemente repetida e lamentada.
exige. Daí, a exaustiva exploração dos mesmos E embora o poeta continue a protestar, à
temas por todos os trovadores, a reduzida gama moda provençal, que sofrer por tal senhora é o
de situações apresentadas, o uso de motivos e maior dos bens, escapam-lhe a cada passo amar-
formas estereotipadas. gas lamentações, e a imagem da morte é a que
O trovador galego-português tem um modelo mais frequentemente lhe acode para exprimir o
a que procura, em grau maior ou menor, manter- inefável tormento de amar sem recompensa e
se fiel, sobretudo no domínio da atitude perante sem força para resistir ao fascínio:
a mulher e o amor:
Mha senhor fermosa, direi-vos hüa ren:
«Quer'eu en maneira de proençal Vós sodes minha morte e meu mal e meu ben
fazer agora hun cantar d'amor Não raro, até, esquecendo toda a mesura
e querrey muyt'i Toar mia senhor...» imposta pela disciplina da escola cortês, o trova-
dor increpa Deus que permite tal sofrimento ou,
É o mais fecundo trovador dos nossos cancio- suprema heresia, além de censurar amargamente
neiros, o rei D.Dinis, quem expressamente a amada, sonha impossíveis vinganças contra
declara, nesta cantiga célebre, a sua vontade de aquela que o tortura e despreza:
cantar à maneira dos trovadores provençais para
louvar (toar) a sua senhor, (na língua medieval, Se eu pudesse desamar
é um substantivo uniforme, que tanto significa A quen me sempre desamou
senhor como senhora). e pudesse algun mal buscar
O protesto de fidelidade incondicional à a quem me sempre mal buscou,
«senhor»; a preocupação com o bem da amada; a assim me vingaria eu...
glória pura que o poeta extrai do simples facto
de amar, pela convicção de que o amor enobrece No reduzido número de situações e sentimen-
quem o experimenta; o escrúpulo em manter o tos da cantiga de amor galego-portuguesa avul-

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tam alguns que são absolutamente tópicos: a que sistematicamente omite qualquer substantivo
morte de amor, a que já aludimos; a mágoa da que designe a amada:
ausência ou da privação da vista da senhora; a
timidez, quase pavor, que impede o poeta de Des que eu vi
revelar à. amada os seus sentimentos; e ainda o A que eu vi...
motivo insistentemente retomado dos «olhos», ins- A amada é apenas «a que eu vi». Dir-se-ia que
trumentos da paixão (os olhos da amada, que são o artista da palavra, experimentando o instru-
de certo modo a súmula de todo o seu encanto, mento ainda novo da língua, se compraz em
e os olhos do amante, que por fatalidade viram explorar-lhe a capacidade de esquematização, e
tão belo objecto, e não se saciam de ver e só por saboreia o prazer de pôr em funcionamento um
ver dão ao poeta todo o bem e todo o mal. sistema eficaz de relações gramaticais, substi-
A cantiga de amor galego-portuguesa caracte- tuindo, tanto quanto possível, os nomes de for-
riza-se ainda, e sobretudo face à provençal, pelo mas e objectos concretos pelos signos esvaziados,
carácter abstracto e descolorido da expressão que
os subtis instrumentos de relacionação que articu-
utiliza: nem apontamentos de paisagem, nem o
lam e interligam as ideias.
recurso a imagens extraídas do mundo dos objec- Desta ausência de imagens, desta repetição
tos materiais: tudo se passa na cabeça e no cora-
de motivos, do predomínio de um vocabulário
ção do amante. De modo que o vocabulário,
abstracto, resulta sem dúvida, à primeira leitura,
pouco variado, tende sempre para a generali-
uma certa impressão de secura, de descolorido e
dade, para a abstracção; da senhora tão louvada,
de pobreza. Mas será bom não esquecer que o
não vislumbramos o mínimo traço que a indivi-
trovador galego-português obedecia a convenções
dualize. É invariavelmente classificada com vocá-
literárias estritas e utilizava um instrumento lin-
bulos ou expressões tão vagos como: fermosa,
guístico voluntariamente estilizador, a língua «ofi-
de bon parecer, de bon semelhar — mas
cial» do lirismo peninsular da época. Não se trata,
nenhuma feição do seu corpo, a não ser os
pois, de indigência, mas de voluntário despoja-
olhos, cujo papel é mais simbólico do que real,
se adivinha sequer. Quanto ao retrato psicoló- mento, na busca de uma expressão depurada-
gico, é um tipo único que reaparece na poesia mente intelectual.
Quanto à técnica de versificação, a cantiga de
de numerosos trovadores, e que se apresenta
igualmente genérico e pouco elucidativo: a amor galego-portuguesa fica sem dúvida muito
atrás da riqueza e exuberância das formas pro-
senhora tem bon sen (bom senso, bom pensar),
sabe falar e rir melhor do que nenhuma outra, é vençais, às vezes rebuscadamente intrincadas.
leal, afável, de boas maneiras, de excelente repu- A forma mais culta, influenciada pela lição
tação — em suma «comprida de todo o hen', ou dos trovadores, é a. da composição chamada can-
seja, perfeita em tudo. tiga de mestria: trata-se de um poema formado
Aliás, o que o trovador faz, mais do que can- por várias estrofes, em geral três ou mais, sem
tar a amada, é chorar a privação dela a que está refrão, e rematada por uma fiinda, isto é, um
condenado, dirigindo-lhe muitas vezes urna prece verso ou vários versos isolados, em que se corro-
fervorosa; quase poderíamos dizer que, na can- bora o sentido de toda a composição.
tiga de amor galego-portuguesa, a senhora é a Mas o gosto da repetição, que parece latejar
grande ausente, de quem ignoramos afinal quase no fundo de todo o lirismo peninsular, o gosto
tudo, e que só interessa como instrumento de das correspondências e alternâncias de sons e de
tortura ou de impossível felicidade. Também sentidos acabou por triunfar mesmo na cantiga de
nada sabemos praticamente dos lugares onde se amor, mitigado embora pela lição dos provençais.
move essa figura distante e hierática, e muito A uma temática pouco variada, a um vocabu-
pouco do tempo em que decorre o drama está- lário restrito, correspondem estruturas de poemas
tico destes amores. Na realidade, o que parece onde se repetem os sons ou palavras (aliás
interessar o trovador, mais do que as circunstân- segundo técnicas já usadas pelos provençais,
cias ou até as pessoas, são as relações entre elas. como o mozdobre, ou uso de formas derivadas
Daí, talvez, a notável insistência no uso das for- da mesma raiz: «Se eu pudesse desamar/a quem
mas pronominais que caracteriza a língua das me sempre desamou», ou o dobre, repetição da
cantigas de amor. Um trovador, Rui Fernandes, mesma palavra em lugar fixo do verso) e, sobre-
vai ao ponto de escrever uma composição em tudo, as ideias, que vão ecoando de estrofe em

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estrofe, apresentadas segundo novos arranjos antiquíssima. Por vezes, os jograis ou trovadores
vocabulares ou sintácticos. inserem nas suas composições, sobretudo no
E, não raro, quebrando a moda provençal, a refrão, um ou mais versos desse velho fundo -
cantiga de amor abandona a técnica da mestria e anónimo. Acontece cm alguns casos que o
remata cada estrofe com o lírico e musical refrão mesmo fragmento de antiga poesia folclórica é
dos velhos coros, reiterativo e intensificados: aproveitado por autores diferentes.
Este lirismo realiza-se em geral segundo um
Hun tal home sey eu, ay, hen talhada, esquema estrófico e rimático muito peculiar, em
que por vós ten a sa morte chegada. que impera ❑ princípio designado por parale-
Vedes quem é e seed'en nembrada: lismo.
eu, mha dona! Na poesia paralelística, a estrofe primitiva —
um dístico, ou grupo de dois versos — repete-se
Hun tal home sey eu que preto sente na estrofe seguinte, com alteração apenas da
de sy morte chegada certamente. palavra ou palavras finais.
Vedes quem é e venha-nos en mente: Este será um dos exemplos de paralelismo na
eu, mha dona! poesia galego-portuguesa, que, de aparência sim-
1). Dinis, CV 97, CBN 514 ples, revela sempre grande sabedoria e uma téc-
nica requintada.

2.5.2 Cantigas de amigo Pela ribeira do rio salido


Trebelhei, madre com meu amigo
A cantiga de amigo, como dissemos, não se
distingue apenas da cantiga de amor pela dife- Pela ribeira do rio levado
rença de emissor que a caracteriza à partida. Trebelhei madre com meu amado
O fundo tradicional em que se inspira condiciona
esta composição, não apenas no que diz respeito O uso do refrão — um verso, ou versos, que
ao carácter de lirismo feminino que apresenta, se acrescenta ao dístico inicial e depois se repete,
mas também quanto ao clima geral que envolve sempre igual, ao longo de todo o poema — com-
a donzela e motiva o seu canto; diferentes, mui- pleta quase invariavelmente o esquema destas
tas vezes, a forma de encarar o amor, a lingua- cantigas:
gem utilizada, os esquemas estróficos e rimáticos.
Este lirismo feminino que, como as mais Onda5do mar de Vigo,
recentes investigações têm comprovado, parece Se vistes meu amigo?
mergulhar as suas raízes numa antiquíssima tradi- E ai Deus, se verrá cedo!
ção folclórica, alimenta-se por vezes de motivos Ondas do mar levado,
Se vistes meu amado?
muito simples, comuns aliás a um fundo univer-
E ai Deus, se verrá cedo!
sal da poesia primitiva, os chamados «temas ini-
ciais», relativos às forças elementares da alma e Mas este simples esquema paralelístico com-
da natureza, ou a certas situações tópicas, de plica-se em grande número de cantigas pela
valor quase mágico — o amor feliz e o amor introdução do processo chamado na língua dos
doloroso, em confidência que tanto pode ser trovadores leixa-pren (isto é, deixa-toma ou
feita à natureza animizada e cúmplice como à larga-pega) que consiste, aproximadamente à
mãe ou às amigas; o renovo da Primavera; a maneira das desgarradas populares ainda em uso,
dança sob as árvores em flor; os banhos mágicos em começar cada estrofe repetindo o ultimo
em rios e fontes — tudo elementos relacionados verso de uma estrofe anterior.
com antiquíssimos ritos pagãos do amor; a pre- Tomemos a célebre cantiga d'amigo de
sença dos animais simbólicos, como as aves e os D. Dinis:
veados do monte; os folguedos na ribeira ou os
lamentos à beira-mar, na mágoa das ausências, Ai flores, ai flores do verde pino
interrogando as ondas vivas; o encontro dos ena- se sabedes novas do meu amigo?
morados no templo; a separação ao toque da Ai Deus, e u é?
alvorada, ou ao canto das aves matutinas. Ai flores, ai flores de verde ramo,
A cantiga de amigo galego-portuguesa apre- se sabedes novas do meu amado?
senta , assim, vestígios de uma poesia tradicional, Ai Deus, e u é?

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Até aqui, apenas com a costumado acréscimo C — Eu a Santa Cecília de coraçon o digo.
do refrão, que permanece independente do R — E por el vivo coitada!
esquema, temos o tipo já descrito de paralelismo,
chamado anafórico (da anáfora, figura de estilo 4.. estrofe
que consiste na repetição de uma palavra ou B' — Ca m'enviou mandado que se vai no fos-
palavras em princípio de frase), a repetição da sado
primeira estrofe, apenas com substituição das C' — Eu a Santa Cecília de coraçon o falo.
palavras em posição de rima. Mas intervém então R — E por el vivo coitada!
o processo dito kixa-pren e vai-se à primeira
estrofe buscar o 2." verso (o último, exceptuando Como é fácil verificar, cada dístico é seguido
o refrão), para começar um terceiro dístico: de outro que repete ou faz ecoar o sentido do
anterior.
Se sabedes novas do meu amigo, Nas composições paralelísticas a rima é
aquel que mentiu do que pôs comigo? toante, e alternam as rimas em - i - e as rimas
Ai Deus, e u é? em - a -, como nos exemplos referidos.
O tipo de organização estrófica e rimática
E logo, combinando assim paralelismo e apresentado leva a concluir que estas poesias
leixa-pren, uma estrofe — o 4.° dístico — paralela deviam destinar-se originariamente ao canto coral
da anterior, com a habitual substituição dos finais alternado: um coro cantaria o 1." dístico, outro
de verso: coro faria eco cantando o 2.°, e no refrão os dois
coros juntar-se-iam. Por se reconhecer a adequa-
Se sabedes novas do meu amado, ção deste esquema de cantigas não só ao canto
aquel que mentiu do que m'á jurado? coral mas também à dança, dá-se-lhes o nome de
Ai Deus, e u é? bailias ou bailadas, embora esta designação seja
muitas vezes aplicada às cantigas d'amigo cujo
A partir daqui, o encadeado é perfeito. Assim, tema é a dança. Cerca de quarenta composições
o 2.° verso do 1.0 dístico é o 1.0 do 3.0; e o 2.° dentre as cantigas de amigo dos cancioneiros
verso do 2.° dístico, é o 1.° do 4.'; o 2.° do 3.0, o obedecem ao modelo descrito — paralelismo per-
1.0 do 5.(). feito, refrão e kixa-pren. Os temas, extrema-
Observe-se o desenvolvimento deste esquema mente simples, condizem com a pureza da forma:
numa cantiga de Martim de Ginzo, em que a são pouco mais do que suspiros de mágoa ou
donzela exprime a sua inquietação pela vida do exclamações de alegria, convites à dança e ao
amado, que partiu para a guerra: canto, interrogações ansiosas sobre uma ausência,
protestos de amor até à morte, invocações da
1.a estrofe donzela às flores, às ondas, às aves e aos cervos
do monte, a outras donzelas ou à mãe — numa
A — Como vivo coitada, madre, por meu efusão lírica em que o eu parece derramar-se e
amigo fundir-se nas coisas.
B — Ca m'enviou mandado que se vai no Outras cantigas de amigo paralelísticas apre-
ferido sentam depois variações, complicações em rela-
R — E por el vivo coitada! ção ao esquema primitivo. A estrofe deixa de ser
o dístico inicial, passa a ter três, quatro, cinco ou
2. , estrofe mais versos; o refrão alonga-se também e não
raro aparece intercalado na estrofe em lugar de
A' — Como vivo coitada, madre, por meu
se situar apenas no final:
amado
B' — Ca m'enviou mandado que se vai no fos- Levantou-se a velida,
sado levantou-se alva,
R — E por el vivo coitada! e vai lavar camisas
eno alto
3.. estrofe vai-las lavar alva.
B — Ca m'enviou mandado que se vai no
ferido Levantou-se a louçana,

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levantou-se alva É neste tipo de cantigas de amigo que por vezes
e vai lavar delgadas se nota, sobretudo nas atitudes assumidas pela
mo' alto donzela e pelo amigo, maior influência do lirismo
vai-las lavar alva provençal, com a sua concepção de amor cortês.
A donzela parece ter agora aprendido o papel de
amada (daquela amada distante e insensível que
Dentro do género cantiga de amigo não na cantiga de amor faz o tormento dos trova-
existe, é preciso notar, a homogeneidade acen- dores):
tuada que notamos dentro do género cantiga de
amor. »De morrerdes por mi grau dereito é,
Antes de mais, devemos distinguir, entre as amigo, ca tanto paresco eu ben...»
cantigas a que acabamos de referir-nos mais deti-

damente, aquelas que seguem de mais perto os Em português actual: justo e certo que
modelos tradicionais, e por vezes parecem limi- morrais por mim, amigo, já que eu sou tão for-
tar-se quase a reproduzir velhos cantares femini- mosa...».
nos: as paralelísticas perfeitas de refrão, cantigas Ela conhece a regra do segredo e exige que
em que os elementos naturais figuram com fre- o amigo a cumpra. Ou ainda, lembrando ao
quência, e que deixam uma impressão de espaço amigo que o verdadeiro amante cortês nada deve
aberto, de apelo misterioso, de frescura original. exigir em troca do amor que dá, considera como
Mas, uma vez definidas e analisadas estas, fica grande favor consentir-lhe que proclame a sua
ainda uma vastíssima colecção de cantigas de dedicação: «Ca ben é de vos sofrer/ de dizerdes
amigo que não correspondem ao mesmo tipo. ca sodes meu».
Trata-se de poesias que, mantendo embora o Neste tipo de poemas, em que ❑ poeta nos
carácter feminino da mensagem, se desprendem dá uma visão às vezes irónica, mas quase sempre
depois, no restante, do outro estilo e apresentam delicada e certeira dos sentimentos femininas,
uma factura mais complexa; fogem, geralmente, à encontram-se algumas peças de grande beleza,
simplicidade do paralelismo anafórico das bailias; que, não tendo embora o encanto intacto e mis-
tratam o caso de amor com subtileza e argúcia, terioso das bailias, revelam finas sensibilidades
às vezes com dramatismo expressivo, outras, com poéticas e uma capacidade de análise e expres-
um toque de ironia travessa; poesias, em suma,
são do sentimento verdadeiramente notáveis.
nas quais o poeta culto só incompletamente
Ainda a propósito de variedade, deve dizer-se
desaparece para dar lugar à donzela ingénua. Foi
que ela não se esgota nesta divisão entre cantigas
a este tipo de cantigas de amigo que o professor
Vitorino Nemésio chamou »de factura individual», d'amigo de tipo tradicional e cantigas d'amigo de
porque, ao contrário das que descrevemos anteri- factura individual, A variedade de motivos, sobre-
ormente, revelam a invenção de um poeta que tudo notável nas cantigas mais ligadas à tradição,
só minimamente recorreu ao património colectivo determinou, desde há muito, uma classificação
do folclore. das cantigas de amigo em subgéneros — classifi-
A donzela já não é a pura voz lírica, que con- cação, note-se, que não cobre toda a produção
vida de longe as outras donzelas ao baile dos cancioneiros, pois muitas dessas cantigas
(«Vayamos, irmanas, vayamos bailar...) ou chama, escapam completamente à inclusão em qualquer
insistente, o amigo adormecido («Levad', amigo, dos subgéneros a seguir indicados.
que dormides as manhãs frias...»). E agora uma Podemos distinguir um número bastante avul-
presença muito mais complexa e densa, uma tado de cantigas de amigo em que se alude ao
consciência de si, às vezes a obstinação fatal mar; com frequência, a donzela interroga as
num amor que tudo condena; outras, a alegria e ondas que viram partir o seu amigo (às vezes,
a garridice quase infantil; não raro o despeito, o expressamente se diz, para a guerra contra os
retraimento estudado, o ardil feminino. Menos mouros); outras vezes, refere-se às barcas que
ricas em alusões a aspectos da natureza, estas sulcam o mar ou o rio. Pela poesia de Pai
cantigas fornecem alguns ligeiros apontamentos Gomes Charinho, poeta galego que exerceu o
da vida quotidiana — expedições militares, treinos cargo de almirante no reinado de Afonso X, per-
de armas, torneios poéticos, festas de boda, passa um certo entusiasmo ante o espectáculo
romarias, a ansiedade das longas ausências, as dos navios que largam embandeirados: Numa
oportunidades de namoro, as relações familiares. belíssima bailia do jogral Meendinho, o tema das

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ondas atinge um dramatismo invulgar: a donzela val. Os cantos de romaria raramente exprimem
que espera o amigo na ermida à beira-mar é sur- autêntico sentimento religioso: na melhor das
preendida pela maré cheia, mas nada pode hipóteses, a donzela vai ao santuário pedir pelo
arrancá-la da expectativa apaixonada que parece amado que anda na guerra:
criar o próprio movimento do poema:
Ai Santiago, padron sabido,
Estava na ermida, ante o altar vós me adugades o meu amigo.
E cercaron-me as ondas grandes do mar...
Eu atendendo o meu amigo, («Ai Santiago, padroeiro de fama, trazei-me o
Eu atendendo o meu amigo. meu namorado»).
Por vezes, o jogral diverte-se a descobrir airo-
A este tipo de composições em que o motivo samente a garridice e a futilidade das meninas
do mar domina, dá-se o nome de marinhas ou, que confessam sem pejo os seus motivos de
por vezes, barcarolas. São bem características da «peregrinação»:
poesia peninsular, em cujo fundo remoto mergu-
lham as suas raízes. Pois nossas madres van a San Simon
Sairias é, como já se disse, designação ambí- de Vai de Prados candeas queimar
gua; aplica-se quer ao esquema do paralelismo
anafórico com leixa-pren e refrão, destinado ao Queimem candeas por nós e por si
coro e ã dança, quer às cantigas de amigo que, e nós, meninhas, bailaremos i.
independentemente da forma estrófica, tratam
temas relacionados com a dança. Nos cancionei- Ou então é a ingénua e tosca religiosidade da
ros medievais, a dança é, muitas vezes, sob as rapariga que se zanga com o santo, porque ele
árvores em flor, reminiscência de velhas festas não ouve os seus pedidos, e por isso lhe nega as
pagãs de Maio, que ainda hoje não se apagou de boas velas de cera:
todo entre as populações rurais mais conservado-
ras. O tema do amor e o tema da Primavera ou Non vou eu a San Clemenço
da flor, associados ao tema da dança feminina, orar e faço gran razon,
dão um encanto ritual muito peculiar a estas ca el non me tolhe a coita
composições, que têm um parentesco muito que trago no meu coraçon.
remoto com a poesia primitiva de todos os países
do Ocidente. Entre as cantigas de amigo é costume incluir
As cantigas de romaria constituem um ainda como subgéneros as albas e as pasto-
núcleo temático muito importante: são cerca de reias. Estes dois tipos de poemas merecem trata-
oitenta composições, e, como as marinhas, apre- mento especial, pois, ao contrário dos que apon-
sentam-se estreitamente ligadas com a realidade támos antes, têm origem provençal.
peninsular medieval. Na cantiga de romaria, a A alba é a lamentação dos amantes que,
donzela propõe-se ir a um santuário — geralmente depois de passarem a noite juntos, são desperta-
uma das numerosas ermidas que povoam as ter- dos pelo nascer do dia, que os obriga a separar-
-se. Trata-se de um velhíssimo tema inicial, exis-
ras de Galiza e de Entre-Douro-e-Minho — ou,
tente em muitas literaturas primitivas, mas que
mais raramente, relata a sua peregrinação. Os
encontrou terreno favorável na poesia provençal,
motivos destas romarias nem sempre são de pura poesia do amor adúltero e por isso clandestino.
devoção: na maioria dos casos, é apenas a oca- Na poesia galego-portuguesa de amigo, onde a
sião de um encontro com o namorado, muitas protagonista do caso amoroso é uma donzela, e
vezes no dia da festa do patrono ou por ocasião onde o clima geral é de pureza e recato, o tema
de urna romagem colectiva, outras vezes na soli- da alba não teve desenvolvimento notável.
dão de uma entrevista que a donzela disfarça em Conhece-se no entanto um poema — uma das
acto de devoção; a romaria é ocasião ansiosa- mais belas jóias da poesia medieval portuguesa,
mente esperada de aparecer, de se exibir, de uma paralelística de Nuno F. Torneol, em que,
dançar «ante ele» — momento extremamente sob a forma de monólogo feminino, o tema do
importante na vida de encerro da donzela atedie- despertar do amigo ao amanhecer se combina

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com o do canto das aves namoradas — às quais, uma frase da arte de trovar citada. Isto é, o
num gesto cheio de implicações simbólicas, o escárnio comportaria, corno elemento distintivo,
amigo quebra os ramos e seca as fontes onde um equívoco, um duplo sentido, que proporcio-
bebiam, dissipando o clima festivo e nupcial que naria aos leitores o prazer de um jogo de inter-
parecia envolver os amantes. pretação.
A pastoreia foi sem dúvida importada da Na prática, nem sempre é fácil destrinçar os
poesia provençal e da francesa, onde são fre- dois tipos de cantigas, até porque muitas alusões
quentes pequenos poemas narrativos nos quais são hoje para nós incompreensíveis, e para mais
se canta o encontro entre um cavaleiro ou trova- na forma irremediavelmente deturpada em que
dor e urna formosa pastora: poemas de sedução, chegaram até nós certos textos. E mais difícil se
às vezes violenta, em que a pastora aparece ora torna ainda identificar outros subgéneros a que o
cedendo ao capricho do forasteiro ora repelindo- autor da arte de trovar alude, entre eles a cha-
o com energia. Na poesia galego-portuguesa, as mada «cantiga de seguir», que consistiria na paró-
pastoreias, aliás em número restrito, apresentam, dia satírica de uma poesia séria, processo este
com excepção de uma, de Pedro Amigo de que, segundo parece, foi muito caro à musa satí-
Sevilha, mais directamente decalcada sobre o rica peninsular da Idade Média.
modelo estrangeiro, carácter muito peculiar. A sátira galego-portuguesa não pode com
O trovador conta como avistou a pastora e como facilidade filiar-se em modelos provençais. Na
se escondeu para poder vê-la sem a perturbar poesia dos trovadores occitânicos a sátira atingiu
(quando muito, dirige-lhe um tímido galanteio alto significado religioso, moral e político, que só
que ela rejeita cortesmente). Mas em quase todos
raramente aflora nas cantigas satíricas dos nossos
os casos o trovador retira-se, depois de ter
cancioneiros. Será porventura mais fecundo pro-
ouvido cantar a pastora: o motivo dominante da
curar a origem deste género numa tradição
pastoreia galego-portuguesa é, assim, o do canto
da donzela. Como notou o Prof. Eugenio autóctone burlesca, que terá alimentado igual-
Asensio, um tipo de poema que era originaria- mente os arremedos e jogos do incipiente teatro
mente masculino (pois é o homem que relata medieval.
uma sua aventura amorosa) integrou-se, ao pas- A nossa poesia satírica só raramente se ergue
sar à poesia galego-portuguesa, no âmbito da às alturas de uma critica dirigida a aspectos gra-
cantiga de amigo, que tão enraizadamente ves da vida em geral. Habitualmente, tende para
galego-portuguesa se afirma — e isto, uma vez a caricatura dos vícios e ridículos individuais,
que toda a cena narrada tem por objectivo dar a desde a beberrona, a soltura de costumes ou a
palavra à pastora, enquadrar as palavras de amor avareza de uns, à disformidade física, ao mau
que ela diz ou canta. E, caso notável, essas pala- gosto no traje ou à fastidiosa tagarelice de outros.
vras são às vezes retiradas de outros poemas. Crítica anedótica, circunstancial, das fraquezas,
Veja-se a pastoreia de Airas Nunes "Oi oje eu üa misérias e vergonhas individuais, tem, frequente-
pastor cantar. mente, um carácter grosseiro e obsceno, outras
vezes, simplesmente caricato e grotesco.
No entanto, alguns temas de mais larga pro-
2.5.3 Poesia satírica. Cantigas de escárnio e jecção humana foram tratados pelos satíricos
de maldizer galego-portugueses. A lamentação em termos
O terceiro género representado nos cancionei- genéricos sobre a decadência dos valores morais
ros galego-portugueses é o da poesia satírica, — verdade, lealdade, mesura — assume às vezes
que o autor do fragmento da arte de trovar já um tom grave; outras, mais travesso e ligeiro,
mencionado divide em cantigas de escárnio e como numa cantiga de Airas Nunes, em que se
cantigas de maldizer. visam particularmente os que deviam ser e não
A diferença entre estes dois subgéneros satíri- são já, segundo o poeta, os defensores desses
cos é que, na cantiga de maldizer, o trovador valores: os membros do clero regular: «Porque no
critica aberta e directamente algum aspecto risível mundo mengou a verdade/punhei um dia de a ir
da realidade, sem esconder nem disfarçar o alvo buscar...! Nos moesteiros dos frades regrados/ a
das suas críticas, ao passo que na cantiga de demandei, e disserom-m'assi:/ — Non busqueis
escárnio procura fazê-lo «por palavras encober- vós a verdade aqui,/ca muitos anos avemos pas-
tas, que hajam dois entendimentos», para usarmos sados/ que non morou nosco...»

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Entre as sátiras de alcance político avulta o reles da actividade poética, que as cantigas de
ciclo de cantigas relativo à entrega dos castelos, amor e de amigo ocultam, dela mostrando apenas
nas quais se verbera a traição dos alcaides que, a face requintada e polida.
rompendo o juramento feito ao rei deposto, Na sátira, a arte dos trovadores volta-se muitas
D. Sancho II, entregaram os castelos que gover- vezes contra si própria, autocrítica-se e ridicula-
navam ao conde de Bolonha, futuro D. Afonso riza-se, como quando denuncia, por exemplo,
III. O mais célebre escárnio deste ciclo é a vigo- certos lugares-comuns estafados da poesia cortês,
rosa e terrível cantiga de Airas Peres Vuiturom, como a «morte de amor». (Roi Queimado morreu
em que se sublinha a pressão exercida por certo con amor/ em seus cantares...! .../ mas ressurgiu
clero sobre a consciência dos alcaides, ameaça- depois ao tercer dia».)
dos de excomunhão se não entregassem os caste- Aliás, um aspecto que não podemos ignorar é
los ao conde: a forma soez e sórdida de tratar a feminilidade e
as relações entre os sexos, que na poesia galego-
A lealdade de Bezerra pela Beira muito anda. portuguesa satírica contrasta gritantemente com
ben é que a nostra vendamos, pois que no-lo um ideal de mesura traduzido nas cantigas de
[Papa manda. amor.
Como tem sido observado, este contraste fla-
Em todo este ciclo de cantigas, como aliás em grante parece corresponder à complexa realidade
outras sátiras dos cancioneiros, se denuncia amar- da alma medieval, mal saída da barbárie e violên-
gamente a quebra da grande virtude que fora o cia, contaminada já pelos vícios do urbanismo e
suporte moral e afectivo do mundo feudal: a vir- visando, ao mesmo tempo, um ideal de perfeição
tude da lealdade, da fidelidade ao juramento moral, de convívio e civilidade, de beleza e de
feito. cultura que só em teoria e desejo conseguia
Também a cobardia dos homens de armas foi aflorar.
objecto de sátiras extremamente eficazes, produ- A poesia burlesca dos cancioneiros, justamente
zidas sobretudo na corte de Afonso X; o próprio pela pequenez quotidiana dos seus motivos, pela
rei subscreve algumas das mais notáveis, como as atenção aos aspectos mais humildes da vida — as
dirigidas contra os senhores que se esquivaram a refeições, o traje, os transportes, o dinheiro, as
participar na guerra com os mouros de Granada, diversões e ocupações domésticas, etc. — constitui
ou contra os cavaleiros cristãos que voltaram as um precioso reportório de notícias sobre a vida
costas ao inimigo. quotidiana e a pequena história dos reinos cris-
Não faltam também na sátira galego-portu- tãos da Península durante o século xm. O seu
guesa apontamentos avulsos de crítica social, valor como documento de costumes excede, sem
embora dados quase sempre de forma anedótica: dúvida, o interesse que apresenta como monu-
a miséria ou escassez da pequena nobreza empo- mento literário, obra de arte acabada e límpida.
brecida e pretensiosa, a ânsia de promoção dos É na poesia de amor e de amigo, com toda a
burgueses e vilãos que desejam a todo o custo estilização e depuração a que sujeita a realidade,
enobrecer-se. Um dos aspectos mais interessantes que encontramos a mais alta expressão da sensi-
desta poesia satírica é a imagem caricatural que bilidade, do gosto e da consciência artística,
nos. fornece da própria profissão de poeta. naqueles primeiros tempos da literatura em lín-
O estatuto do trovador nobre e o do jogral, pro- gua portuguesa.
fissional da poesia e em princípio simples execu-
tante, aparecem nitidamente diferenciados. E em
muitos casos as troças dirigem-se justamente
àqueles que os infringem: o trovador que canta
mulheres plebeias, o jogral que não se contenta
com a sua condição e quer subir na hierarquia,
adoptando atitudes e fórmulas só consentidas ao
trovador... Aliás, é sobretudo ao mundo boémio e
desbragado dos marginais que eram os músicos,
poetas e bailarinas ambulantes que esta sátira vai 1
Encontra-se no prelo, em 1997, uma edição crítica
buscar as personagens e situações mais grotescas, das Cantigas d'Amigo, acompanhada de um estudo sobre a
revelando-nos assim a intimidade quotidiana e sua poética, da autoria de Rip Cohen.

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