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LATIM NA PONTA DA LÍNGUA – CURSO DE LATIM

ALEX AUGUSTO MARCELO SEÇÃO 2


LEITURA COMPLEMENTAR

Noções básicas de pronúncia

(LOURENÇO, 2019)

Tratando-se de uma língua com séculos de história, que foi falada num gigantesco espaço geográfico,
compreende-se sem dificuldade que, ao longo dos tempos, o latim teve, obrigatoriamente, muitas
pronúncias.

Por um lado, percebemos através do imenso manancial de inscrições romanas e também da


ortografia dos próprios textos literários que, na época de Plauto e de Terêncio (século II a.C.), certas palavras
não eram pronunciadas da maneira que seria normal na época de Cícero e de Vergílio (século I a.C.). Por
outro lado, parece lógico pressupormos que o latim falado, no auge do império, na cidade de Olisīpo (Lisboa)
não soasse exatamente igual ao falado em Londinium (Londres), pronúncias essas que seriam também
diferentes, por sua vez, das de Burdigalum (Bordéus), de Vindobona (Viena) e da própria Rōma – onde
certamente haveria, também, oscilações dependentes dos fatores habituais que influem nestas matérias:
donde o falante é originário; que escolaridade (não) teve; de que classe social provém.

Quando o futuro imperador Adriano, nascido na Hispânia, interveio no senado em 101 d.C. para ler
em voz alta um discurso em nome do imperador Trajano, os aristocráticos senadores desataram a rir às
gargalhadas por causa do seu sotaque. A partir desse momento, Adriano empenhou-se com todas as suas
forças em erradicar de sua pronúncia qualquer som que não fosse o da mais alta sociedade de Roma 1.
Escrevendo no mesmo século II d.C. em que Trajano levou o império romano à sua extensão máxima, Aulo
Gélio refere um intelectual oriundo da Hispânia, chamado Antônio Juliano, que impressionou os convidados
num jantar pela sua brilhante eloquência, pela sua incrível erudição e... pelo seu sotaque “espanhol” 2.

Relativamente ao império romano, um aspecto que temos de tomar em consideração é a pasmosa


mobilidade de grupos sociais cuja profissão os obrigava a grandes deslocações (fossem eles militares,
comerciantes ou, mais tarde, missionários cristãos). O falante de latim que estava a tremer de frio no
nevoeiro gelado da muralha de Adriano não era necessariamente um soldado nascido na Britânia;
provavelmente era alguém que tinha nascido bem longe. Chegado a Braga no século VI para converter ao

1
Este episódio é relatado na História Augusta (cf. Adriano 3.1), obra do século IV d.C. que tem a graça de ser um repositório
descarado de fofocas.
2
Cf. Aulo Gélio, Noites Áticas 19.9.2; Holford-Strevens, pp. 86-87.
1
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LEITURA COMPLEMENTAR

catolicismo ortodoxo os suevos deslumbrados pelos encantos da heresia, Martinho, nascido na Panônia
(hoje Hungria), deve ter achado que o latim falado pelos minhotos de outrora soava bastante diferente do
seu.

Esse problema repetir-se-ia ao longo da história futura do latim, sobretudo a partir do momento em
que se desenvolveram as línguas vernáculas do espaço românico. A pronúncia de cada vernáculo começou
a afetar a pronúncia de “cada” latim. No século XVI, o imperador Maximiliano (neto do rei português D.
Duarte) recebeu delegados franceses que discursaram perante a sua corte com gálico requinte e – séculos
antes de Derrida – com gálica ininteligibilidade, atribuída pelos presentes à língua francesa falada pelos
embaixadores da França. Na verdade, os discursos dos franceses eram, muito educadamente, na única língua
que todos na corte dominavam: latim. Só que o seu latim era pronunciado com uma fonética tão afrancesada
que soava, sem tirar nem pôr, a francês 3.

A pronúncia do latim majoritariamente ensinada hoje nas escolas e universidades da Europa e das
Américas procura aproximar-se o mais possível daquilo que pensamos ter sido a pronúncia culta de Roma
do século I a.C. – portanto, a Roma do final da República e do início do Império.

A opção por esta pronúncia não teve um percurso fácil nem linear. No final do século XX, ainda era
frequente ouvir-se, em Portugal, latinistas de uma geração mais idosa falarem, como se se tratasse de uma
controvérsia recente, da oposição entre “pronúncia tradicional” (que em Portugal equivalia a “pronúncia
eclesiástica”, na sua forma ideal latim pronunciado como se fosse italiano, mas que na prática, em Portugal,
era latim pronunciado como se fosse português) e “pronúncia restaurada” (a pronúncia preconizada pelos
filólogos).

A verdade é que a controvérsia não era recente. Podemos apontar como data precisa para o início
da discussão o ano de 1528, em que Erasmo publicou a sua obra (em forma de diálogo entre um leão e um
urso!) intitulada Dē rectā Latīnī Graecīque sermōnis prōnuntiātiōne. Na Europa católica – nomeadamente na
França –, a ideia de mudar a pronúncia do latim foi rejeitada como aquilo a que os teólogos da Sorbonne
chamaram, no século XVI, “heresia gramatical”. Na Europa protestante, os séculos subsequentes trouxeram
debates intensos nas grandes universidades (desde logo Oxford e Cambridge) sobre a adoção – ou não – de
uma pronúncia que refletisse aquilo que os romanos teriam reconhecido como a sua língua. Pois parece
óbvio para muitos latinistas ainda hoje que é um atentado à lógica linguística (para não falar da estética)

3
Ver Allen, p. 107.
2
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pronunciar grātia como “graysha” (na Inglaterra), caput como “cápude” (em Portugal) ou, no pior caso de
todos, a conjunção concessiva quamquam como homófona de “cancan” (na França, claro).

Na segunda metade do século XIX, os professores universitários que estudavam e ensinavam latim
ao mais alto nível não fecharam os olhos ao livro de W. Corssen Über Aussprache, Vokalismus und Betonung
der lateinischen Sprache, publicado em Leipzig, em 1858-1859 (com uma 2ª edição revista, que saiu dez anos
depois). O argumento a favor da pronúncia restaurada foi sendo progressivamente tomado como impossível
de não aceitar (veja-se o caso de A Grammar of the Latin Language from Plautus to Suetonius, de H. J. Roby,
publicada pela primeira vez em 1874), embora as resistências continuassem. Alguns cidadãos franceses,
sintomaticamente liderados por um octogenário, fundaram, em 1928, uma sociedade de resistentes à nova
pronúncia, chamada “Amis de la prononciation française du latin”. No ano em que começou a Segunda
Guerra Mundial, o jornal britânico The Times decidiu publicar uma série de cartas vindas da sociedade civil
e do meio universitário sobre o tema da “pronúncia tradicional” versus “pronúncia restaurada” do latim. Ao
que parece, num ato de censura significativo, foi suprimida a publicação da carta vinda do catedrático de
latim da Universidade de Cambridge, por ser favorável à pronúncia restaurada 4.

(Já agora, a minha primeira professora de latim, uma senhora de inabalável segurança gramatical
com quem estabeleci as bases dos meus próprios estudos latinos, falava, em inícios da década de 80 do
século XX, da pronúncia restaurada como se fosse uma moda exótica e recente; e pronunciava alegremente
qualquer frase latina como se estivesse a falar português: patientia = “paciência”, e por aí fora.)

Feita essa breve resenha sobre as dificuldades com que os filólogos se confrontaram para propor
uma pronúncia do latim ancorada na ciência e não nas tradições discrepantes de cada país, frisemos o mais
importante: a pronúncia restaurada tem a vantagem pedagógica de tornar audível, na leitura e na
aprendizagem, aspectos importantes da fonética do latim clássico, aspectos esses que serão menos
relevantes (ou mesmo irrelevantes) no latim tardio e medieval, mas cujo entendimento é indispensável para
a compreensão do latim de autores como Cícero, Vergílio, etc.

Para dar só um pequeno exemplo: as vogais iniciais de uolo (“quero”) e de nolo (“não quero”) seriam
porventura homófonas no latim tardio e medieval (e são pronunciados como iguais na dita pronúncia
tradicional); mas, para entendermos um efeito rítmico usado por Cícero (uma chamada “cláusula métrica” 5),

4
Ver Wilkinson, pp. 4-5.
5
Ver pp. 407-413.
3
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ou um efeito poético usado por um poeta clássico, precisamos de ter noção de que para Cícero ou Vergílio
o som de uŏlō era diferente do de nōlō.

Assim, o mais aconselhável é tentarmos diferenciar na pronúncia o som das duas palavras, na plena
consciência de que já em finais do século IV, como nos transmite Agostinho, muitas distinções entre vogais
longas e breves não eram corretamente oralizadas na fala do dia a dia 6.

BIBLIOGRAFIA

LOURENÇO, F. Nova gramática do latim. Lisboa: Quetzal Editores, 2019, pp. 41-45.

6
Cf. Agostinho, Dē mūsicā 2.1.1; Dē doctrīnā christiānā 4.10.24.
4

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