Você está na página 1de 3

ARQUIVOS PESSOAIS: QUESTÕES PARA UM DEBATE

Ana Maria de Almeida Camargo


(Departamento de História, FFLCH-USP)

Em obra clássica de ficção científica (Um cântico para Leibowitz1), os


papéis encontrados num abrigo antiatômico, muito tempo depois de
devastada a Terra e perdida a lembrança da trajetória dos homens sobre
ela, foram guindados à condição de textos sagrados e relíquias,
alimentando crenças e devoções religiosas. Não passavam, na verdade, de
anotações rotineiras do indivíduo que viveu seus últimos dias no interior
de uma cápsula, feitas com o intuito de controlar o estoque de alimentos
de que dispunha e o sistema de proteção contra a radioatividade. O
artifício de Walter M. Miller Jr. para projetar a história do mundo em
direção a um futuro distante, apresentando como antevisão a origem dos
valores presentes na sociedade contemporânea, servirá aqui para discutir
a natureza dos documentos de arquivo e, em especial, daqueles
acumulados por pessoas.
Consideremos, antes de mais nada, as duas circunstâncias em que a
informação e seu suporte (binômio pelo qual se define, tecnicamente, todo
e qualquer documento) cumprem a função básica de provar e
testemunhar. Na primeira delas, o registro de atividades específicas (uma
espécie de “economia doméstica” de sobrevivência no interior do abrigo)
assume o caráter utilitário e instrumental dos documentos de arquivo, isto
é, daqueles que são naturalmente produzidos e/ou acumulados em razão
de imperativos de ordem prática. Na outra, por intermédio de uma
atribuição de sentido que desconsidera o contexto em que foram
originalmente produzidos, os documentos passam a corresponder a outros
vínculos de necessidade, desta feita como instrumentos de prática
religiosa. Em ambos os casos, os documentos não prescindem dos
elementos relacionais que fazem com que as unidades que integram um
arquivo sejam articuladas umas às outras e desprovidas de autonomia,
dentro do princípio de consignação 2 que o rege. E exatamente porque
resultantes de uma acumulação natural, necessária e não gratuita, os
documentos são dotados de organicidade, isto é, da capacidade de refletir
a estrutura, funções e atividades da entidade acumuladora.

1 MILLER JR., Walter M. Um cântico para Leibowitz. Trad. Maria da Glória de Souza
Reis. São Paulo: Melhoramentos, 1982.
2 Derrida associa o princípio arcôntico ao de consignação, na sua definição de arquivo. “A

consignação tende a coordenar um único corpus em um sistema ou uma sincronia na


qual todos os elementos articulam a unidade de uma configuração ideal”. DERRIDA,
Jacques. Mal de archivo: una impresión freudiana. Trad. Paco Vidarte. Madrid: Trotta,
1997. p. 11. (Estructuras y Procesos, Filosofía).
O exemplo retrata uma situação-limite, na medida em que raras
vezes o documento de arquivo fica desprovido de sua força ilocucionária3;
mas ilumina as condições problemáticas enfrentadas pelos profissionais
da área arquivística no trato com documentos de origem pessoal.
Submetidos aos mesmos procedimentos técnicos de arranjo e descrição
que os de origem institucional (públicos e privados), os arquivos pessoais
oferecem uma gama variada de peculiaridades que nos obrigam a rever
princípios e conceitos. Neste debate procuraremos, a fim de oferecê-los a
um questionamento interdisciplinar, identificar os três pontos que, no
nosso entender, são os mais controvertidos sobre o tema.
O primeiro deles diz respeito à recontextualização dos documentos
operada pelo próprio titular do arquivo ou por seus sucessores, muitas
vezes com a intenção inequívoca de “monumentalizá-lo” 4 . Ao aplicar o
princípio de respeito à ordem original, que muitos insistem em entender
como simples manutenção de critérios adotados para ordenação de
unidades documentais no interior de uma série, o dilema que se coloca
para o arquivista é: ou tomar como referência a função inicial do
documento, numa abordagem diplomática, ou considerar a final,
valorizando a forma mais complexa assumida pelo arquivo, como tem sido
a prática em relação aos produtos residuais do funcionamento de
instituições.
Outro ponto é o da própria constituição do universo documental
abrangido pelo arquivo. O reduto do indivíduo incluiria, em meio àquelas
que o vinculam a instituições sociais de latitude variável (o Estado, a
escola, a igreja, o lugar de trabalho, o partido político, a família) 5 , um
conjunto de ações juridicamente irrelevantes6, cujas regras e fórmulas são
menos visíveis (relações de amizade e de amor, opções intelectuais,
obsessões e tantas outras). Aquilo que nos arquivos institucionais se
evidencia a partir do conhecimento não apenas de estatutos, regulamentos
e organogramas, mas também de espécies convencionais para o registro
dos atos praticados, ainda que estes se alterem com o passar do tempo,
torna-se opaco à primeira vista nos arquivos pessoais, ocasionando muitas
vezes a exclusão de determinados itens como alheios ao conjunto ou como
pertencentes a outros centros de custódia (bibliotecas e museus). Ligada a

3 Trata-se da propriedade de autocontextualização dos textos escritos. OLSON, David R. A


escrita como atividade metalingüística. In: OLSON, David R. & TORRANCE, Nancy (org.).
Cultura escrita e oralidade. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Ática, 1995. p.
267-286. (Múltiplas Escritas).
4 Ver, a respeito: FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o

arquivo de Gustavo Capanema. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 11 (21): 59-87, 1998.
5 DARDY, Claudine. De la paperasserie à l’archive: l’administration domestique. In:

FABRE, Daniel (dir.). Par écrit: ethnologie des écritures quotidiennes. Textes réunis par
Martin de La Soudière et Claudie Voisenat. Paris: Maison des Sciences de l’Homme, 1997.
p. 187-200. (Mission du Patrimoine Ethnologique; Ethnologie de la France, 11).
6 Como bem as definiu Luciana Duranti na obra Diplomática: usos nuevos para una

antigua ciencia. 1. ed. en castellano. Traducción, prólogo y presentación de Manuel


Vázquez. Carmona: S&C, 1996. p. 49. (Biblioteca Archivística, 5).
esta questão está ainda a da aplicação do conceito de autenticidade aos
documentos de arquivos pessoais, atributo que hoje está inteiramente
associado às condições de produção documental.7
A inexistência de parâmetros normativos – os curricula, quando
existem, cobrem apenas uma parcela das atividades do indivíduo –
transforma o trabalho de arranjo e descrição num esforço ingente, em que
o estabelecimento de áreas de ação, funções e atividades como categorias
classificatórias dos documentos é, simultaneamente, a construção
esquemática de uma biografia. Ao fazê-lo, o arquivista tem que saber fixar
a nítida fronteira entre a busca de um contexto de produção – que
preserva o sentido pleno de cada parte e do arquivo como um todo,
garantindo-lhe alto grau de polissemia – e uma abordagem temática da
documentação, que leva em conta as demandas da investigação científica.
Por mais exaustiva que esta pretenda ser, acaba fatalmente por limitar o
potencial informativo que todo instrumento de pesquisa, por definição,
deve sugerir.

7 DELMAS, Bruno. Manifesto for a contemporary diplomatics: from institutional

documents to organic information. The American Archivist, Chicago, 59 (4): 438-452,


1996.

Você também pode gostar