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UMA ASSIMILAÇÃO CRÍTICA DA DURAÇÃO PSICOLÓGICA DE HENRI BERGSON: RAÇA

E PSICOLOGIA.

Pretendo aqui executar uma assimilação crítica dos conceitos de Henri Bergson, apresentados em
sua primeira obra, Ensaios sobre os dados Imediatos. A expressão assimilação crítica é de Álvaro
Vieira Pinto, e tem o sentido de uma metodologia de aproveitamento das ideias advindas dos países
centrais, e que, por sua gênese, estrutura e função, não são adequadas à realidade dos países
subdesenvolvidos. Trata-se, portanto, de uma orientação metódica, mediadora entre realidades
nacionais distintas, países centrais e países periféricos, que coloca o investigador numa postura
crítica diante do conhecimento de origem estrangeira. Longe de significar o ato de um nacionalismo
irracionalista, que rejeita o saber estrangeiro (teoria da rã), é o procedimento de adequação da ideia
à nossa realidade. Adequação como ato de reorganizar os componentes e o sentido das ideias
estrangeiras em função de nosso contexto. Prudência que alguns teóricos dos anos 50 tinham,
precavidos contra a colonização cultural e científica, e como as ideias, ao atravessar os oceanos,
passam a funcionar de modo diferente de como funcionavam em sua terra natal.

Vieira Pinto aproveitou-se de um referencial teórico existencialista, e utilizou-se de noções de Sartre


e Jaspers, todavia, alterando-lhe o sentido em virtude do contexto nacional. Mesmo uma noção tão
clássica como a categoria de trabalho, de Marx, não foi poupada de uma contextualização.

Tal rigor era também partilhado por outro integrante do ISEB, o grande sociólogo brasileiro Alberto
Guerreiro Ramos, com sua Redução Sociológica (…).

Seguindo essa orientação metodológica, pretendo uma leitura do Ensaio, primeira obra de Bergson,
julgando que os conceitos inaugurados ali, “duração psicológica”, “multiplicidade qualitativa ou de
interpenetração”, podem ser uteis na formulação de problemas especificamente brasileiros, como
pretendo demonstrar.

Há um significativo volume de livros e incursões no pensamento de Bergson no Brasil, o que talvez


torne estéril mais um comentário ao primeiro livro de Bergson. Logo, há uma boa razão para não
gastar nossos precários recursos com mais um estudo sobre o dito autor, inspiração aliás, do filósofo
francês Gilles Deleuze, que tem um sucesso significativo no Brasil, porta de entrada para o filósofo
da duração para muitos leitores. Todavia, o que me motiva a essa pequena aventura é um problema
que suponho não ter sido formulado, e cuja relevância talvez justifique o dispêndio de páginas e
tempo. Fréderic Worms, já aludiu que vários erros de leitura desse filósofo um tanto aberrante
podem ser evitados colocando-o em seu tempo, o “positivismo oitocentista”. O livro inaugural
surgem em 1888, finais do século 19, como uma reação ao cientificismo exacerbado que o
positivismo encheu a Europa.

Essa reação ao positivismo, no caso do livro em questão, toca uma questão crucial, “o problema da
liberdade”. Sim, liberdade, um dos pilares da revolução francesa, um dos postulados inegociáveis
de uma fração da burguesia europeia, fiel aos ideais da Revolução.

De fato, o cientificismo positivista, instaurava um mecanicismo universal, um determinismo sem


lacunas, que suprimia do mundo a liberdade. O espiritualismo francês, herdeiro de Descartes, se
impõe como um baluarte contra esse determinismo exacerbado, evidente na emergente
psicofisiologia de Wundt, e no associacionismo de Mill. Luta do espírito de finura contra o espírito
geométrico. Não cabe retraçar todo o cenário desse combate, mas apenas deixar evidente uma
questão um tanto deixado na margem, e que atravessa profundamente a constituição tanto da
história das ideias no Brasil, quanto sua formação sociopolítica. É que o positivismo europeu, seu
determinismo manifesto numa diversidade de teorias, é o responsável pela elaboração de uma
antropologia racista, com necessárias implicações na psicologia, que irrigaram as instituições
brasileiras, oficialmente, até 1930, incluindo o emergente sistema de ensino público.

O livro inaugural de Bergson, tem a marca de uma elaboração metodológica em filosofia, que tenta
solucionar ou dissolver os impasses filosóficos levantado derivados da emergência do positivismo.
Pode-se dizer que Bergson ataca dois problemas entrelaçados, um conjuntural e outro estrutural, o
problema da liberdade, o impasse entre o espiritualismo francês e a psicologia alemã, um fundando
a liberdade no livre-arbítrio postulado de antemão, como uma atividade do espírito aquém da
matéria, logo, das causalidades mecânicas, e o outro colocando o psiquismo como um resultado das
sensações e das causas externas. O problema estrutural, mais profundo e mais geral, razão de ser do
problema conjuntural, segundo Bergson, é a insuficiente concepção de tempo cunhada pela
filosofia, expressa na estética transcendental de Kant. O modo como Bergson coloca é intrigante;
ele pretende resolver o problema da liberdade corrigindo a noção de tempo na estética
transcendental, afirmando esta é condição daquela. Entenda corretamente o tempo, e a liberdade
deixa de ser um problema teórico para se tornar um dado indubitável. O tempo, aí, continuando na
esteira da estética transcendental kantiana, não é o cósmico nem o metafísico, e sim o tempo que
experimentamos na vida interior.

Veja-se que Bergson pretende realinhar as coordenadas do problema da liberdade. Isso tem por
consequência refundar filosoficamente a liberdade, em bases diferentes da que o espiritualismo
francês, seus mestres, colocavam. Trata-se de não mais se fechar no quarto abstrato da filosofia, e
apartar-se da ciência. A metodologia de Bergson pretende não abrir mão dos avanços científicos,
mas utilizar-se de seus achados como dados do problema, a fim de elaborar uma filosofia precisa,
corrigida do excesso de especulação. Então, não se trata de fechar-se em Aristóteles, em Descartes e
Kant, mas de examinar os achados da ciência e depurá-los de sua “metafísica inconsciente”. Para
Bergson, a ciência positiva é marcada pela exatidão, ou seja, por uma extensão limitada a casos
passíveis de experimentação. No momento em que os resultados científicos postulam generalidades
especulativas, ultrapassou o limiar da ciência e se pretende filosofia. Em grande parte, o problema
da liberdade é levantado por pressupostos filosóficos, orientando a interpretação dos dados
experimentais, por exemplo, o paralelismo psicofísico não passa de uma especulação que se furta à
observação experimental. O que nos interessa, é que Bergson entra em tensão com o positivismo
problematizando a filosofia inerente aos seus resultados.

Metodologicamente, Bergson estabelece um certo intervalo entre o imediato e o mediado, em busca


da experiência imediata, ou da formulação da experiência humana conclusa, a fim de encontrar na
própria experiência uma região recalcada pela própria experiência conclusa. Um recuo da ação para
a contemplação. Mas um recuo instrumental, e não uma queda no irracionalismo e no romantismo,
em busca de uma experiência autêntica suprimida. Trata-se de uma depuração da reflexão, uma
inflexão, um esforço tal, que leva o intelecto a adequar-se à experiência em sua origem, os dados
imediatos.

Essa depuração metodológica se dá por meio de conceitos precisos, adequados aos dois lados da
experiência, a conclusa e a inconclusa, a mediada, e a imediata, ou, mais claramente, a ação e a
contemplação. Mas esses conceitos são “ilustrados” por meio de reduções à experiência real, por
certas descrições analíticas da experiência psicológica.

O resultado é que Bergson, minuciosamente, estabelece critérios para uma “divisão dos mistos”,
complexificando a noção de experiência, demasiado simplória tanto em Kant quanto no
positivismo. A experiência porta graus, ou estratos. Basicamente dois, entre os quais oscilamos. A
experiência da ação, da atividade cotidiana, regulada pelo senso comum e pelo bom senso. A
experiência imediata, muda, recalcada, que é a apreensão imediata do real, sensível, que é
organizada pelo intelecto, e se torna passível de ser comunicada. É essa passagem de uma a outra
que se torna evidente na análise de Bergson, e o dado crucial que resolve o problema da liberdade.
E por quê? Porque o tempo só aparece em sua pureza ou riqueza na experiência imediata, na
experiência da contemplação. O humano, em sua cotidianidade ativa, imerso no mundo, por ordem
de sua própria biologia e da sociedade, perde o tempo originário que é a essência de seu psiquismo.

Então, a experiência humana, em Bergson é marcada por dois polos que se interpenetram, o
psiquismo e a inteligência, ou melhor, a consciência imediata e a consciência reflexa. E é a primeira
que é idêntica ao tempo puro, ou melhor, a duração. O tempo real, concreto, ao menos no horizonte
do Ensaio, é a duração da consciência. É ela que introduz o tempo na matéria do universo. E ela que
retem o momento’, e contrai com o momento”. Ela cria a sucessão. Bergson chama isso de “presente
vivo do eu”. O esforço intelectual é portando elaborar os conceitos que dão conta da lógica própria
dessa região da experiência, seu processo, seu resultado, suas condições concretas, e a passagem
dela a nossa experiência de ação.

Apreendido essa região da experiência, ficará claro que aí o tempo se apresenta como uma massa
criadora que responde pela nossa autoconstituição psíquica, e pela região da ação, logo do calculo e
da conceituação, enfim, da criação. É uma região essencialmente criadora, e responsável pela nossa
potência de criação. Criação, aqui, num sentido determinado, como produção; extração constante de
novidades de si mesmo, a revelia da teoria da conservação de energia.

Com isso, Bergson refunda a liberdade em termos mais precisos que uma abstrata atividade
espiritual dada metafisicamente. A liberdade é fundada agora na temporalidade do psiquismo. Uma
metafísica imanente à experiência, à merce da experiência de todos.

Mas o que isso tem a ver com o problema formulado aqui? É que Bergson, ao fundar a liberdade no
psiquismo, ou na duração psíquica, mesmo que mantenha formalmente a ideia de liberdade do credo
liberal burguês – a liberdade como um traço do indivíduo, num âmbito privado – expõe a
fragilidade e a grosseira do determinismo positivista. É que o determinismo não tem legitimidade
para avançar sobre uma dimensão da experiência cuja lógica não é mais segmentária, nem física,
nem mesmo de ordem biológica. O psiquismo só é explicado pela temporalidade, por uma acúmulo
produtivo resultante da contração da realidade, num processo de interpenetração dos instantes
contraídos. Sendo assim, a psicologia só poderá se contentar com processos superficiais, que dizem
respeito a fenômenos secundários.

Frente a isso, podemos perguntar, quais as implicações dessa verdade sobre aquelas classificações
do psiquismo, ou a mensuração da inteligência fundada nos tipos raciais, tão presentes no
determinismo positivista? É então que começa a se esboçar o nosso problema, e de onde partimos.

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