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Toda criança desenha... Toda criança desenha?!...

Alice Fátima Martins1

A princípio, toda criança desenha. Desenha com qualquer instrumento que


lhe sirva de prolongamento para o corpo, deixando registrado nalguma superfície o seu
gesto. Desenha deslocando-se no espaço, traçando etéreos caminhos, fugazes
construções, imaginárias estruturas que se compõem e recompõem no brincar desde si
em direção ao mundo. Desenha interagindo com os objetos nos quais projeta o próprio
corpo, que vai sendo descoberto e reconhecido aos poucos, na medida da construção das
relações consigo, com os outros, com o seu meio. Toda criança desenha a si mesma
enquanto rabisca, quando esboça quaisquer figuras, enquanto grafa os elementos do seu
universo explorado, e os nomeia, e compõe intermináveis histórias a partir deles...
Toda criança cresce enquanto brinca com outras crianças, com os objetos,
enquanto experimenta seu corpo, pesquisa o tempo, o espaço e as relações no meio
sócio cultural em que se encontra; enquanto se expressa através do gesto, do traço, da
cor, do grito, do riso, do jogo, do canto, do sonho e da fantasia. Toda criança é lúdica
em seu desejo por saber, descobrir, construir... Toda criança é lúdica enquanto aprende a
complexa teia de códigos, signos, significados dos caminhos que deve trilhar para
tornar-se sujeito social, para estabelecer vínculos de pertencimento, identidades.
Pillar (1990) chama a atenção para o fato de que, mais do que apenas
impressões deixadas pela criança sobre materiais, superfícies e espaços, os desenhos, as
pinturas, as construções evidenciam o seu processo de elaboração cognitiva, emocional
e perceptiva do mundo, no qual é agente. Em seu trabalho, a criança constrói noções a
partir das vinculações que estabelece com o que foi percebido nas suas experiências
sensoriais, motrizes, em suas aventuras pelos jogos das relações socioculturais.

Gente pequena desenha o que sabe de si mesma e de outras gentes de todos os


tamanhos
Desde os primórdios da vida, a criança constrói sua autoimagem a partir da
percepção e das relações que estabelece com os estímulos de origem externa e interna
ao seu corpo, ajustando-se, em maior ou menor grau, ao ambiente sociocultural do qual

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Doutora em Sociologia (UnB), Mestre em Educação (UnB), Arte Educadora. Docente permanente do
Programa de Pós Graduação em Cultura Visual (FAV/UFG). Atualmente desenvolve projeto de pesquisa
no Programa de Pós Doutorado em Estudos Culturais (PACC/FCC/UFRJ).
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faz parte. A percepção de si mesma se dá a partir da diferenciação entre os estímulos e


necessidades e a sua satisfação ou saciedade. Nessa diferenciação reside a base da
formação da autoimagem.
As relações estabelecidas entre estímulos e necessidades, de um lado, e sua
satisfação ou saciedade, do outro, dependem da atuação de um terceiro elemento, “aquele
que não sou eu”, o “outro”, cuja contraposição é condição para o início do esboço da
própria identidade. O outro, outros, com quem a criança interage, iniciam-na pelas
veredas de ser, ao mesmo tempo, verso e reverso, subjetividade e objetividade, indivíduo
e coletivo, desejo e tensão, impulso e coerção, pulsão e repressão, solidão e multidão...
Dessa forma, a imagem que cada pessoa elabora sobre si, de modo sempre
dinâmico, resulta da sua história de vivências desde o próprio corpo, que é o espaço que
cada um ocupa no universo, na relação com os demais e o meio em que vive, o que
envolve conquistas, tensões, frustrações, desejos, ambiguidades, dúvidas... Se cada
corpo é único e tem uma história igualmente única, se cada pessoa manifesta-se no
mundo com o seu corpo e sua história, ao mesmo tempo, cada corpo conta uma história
que também é social, coletiva, cultural, histórica. Assim, além de suas construções
individuais e únicas, a cada um cabe participar da caminhada que a humanidade
cumpre, produzindo conhecimento, fazeres, símbolos, modos de vida, visões de mundo,
formas de expressão coletivas.
Ou seja: se a autoimagem, em contínua constituição, pelo indivíduo, no
decurso de sua história, traz suas marcas digitais de vivências, ela também reflete suas
interações com o meio, com os outros indivíduos, com vários níveis e formas de
pertencimento a diferentes grupos sociais, cujas construções iniciam-se desde a mais
tenra idade.
Nos processos de descoberta de si nas relações com os outros e o meio, no
princípio, é grande o poder expressivo do gesto: a criança movimenta-se corporalmente,
aceitando, rejeitando, repousando, alegrando-se, denunciando desconforto,
reivindicando. “A atividade motora (...) é a base da criatividade, dessa busca constante
onde nada jamais é fixo, onde nada se repete” (LAPIERRE & AUCOUTURIER, 1988).
Mas o gesto é também efêmero: findado o movimento que o produz, acaba-se. Se
repetido o movimento, já é outro: outro gesto, num outro tempo... O próprio corpo já se
terá modificado em relação ao momento anterior.
No entanto, a despeito de sua efemeridade, o gesto pode deixar marcas. A
descoberta, pela criança, de que pode fixar ao menos parte da trajetória do gesto ao
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fazer uso de algum instrumento que registre o movimento do seu corpo tem sabor e
valor inestimáveis: batons, canetas, lápis, alimentos sobre superfícies diversas abrem
campo para experimentações as mais diversificadas, quantas vezes inesperadas. O
prazer gestual na produção de marcas é fonte de grande motivação para a criança
pequena que começa a desenhar. O gesto da mão que traça inicia-se no corpo todo,
envolvido no ato de expressar-se no desenho. Essa conquista ocorre quando a
linguagem verbal também está sendo descoberta e, diariamente, um grande número de
palavras e estruturas frasais são incorporadas ao repertório em franca expansão.
Desenhar e falar são ações que possibilitam o estabelecimento de correspondências e
complementaridades: “A ação gráfica no papel sugere figuras. A palavra representa o objeto,
a pessoa, o fato” (DERDYK, 1989, p. 97).
As primeiras manifestações gráficas são rabiscos aos olhos do adulto.
Lowenfeld & Brittain (1977) denominam esse como o estágio das garatujas. Pillar
(1996), com base nos estudos de Luquet e Gardner, refere-se a esse desenhar aleatório
como atividade motora não simbólica. Em outras palavras, o desenho é entendido como
um jogo em que a criança expressa gestos motores e descobertas perceptivas, sem o
necessário compromisso com o registro ou a comunicação com o outro.

Desenho de Yasmin, 4 anos

Os traços, inicialmente marcados ao acaso, vão sendo controlados pela criança


no domínio gradativo das relações entre o movimento do braço e as marcas produzidas,
cujos resultados ela aprende a confirmar com o olhar. Para tanto, impõe-se o desafio de
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coordenar as complexas relações entre o traçado que vê, o traçado que pretende, a ação
da mão e o movimento que produz o desenho.
Aos poucos, os rabiscos se modificam, incorporando intencionalidades,
sentidos, ampliando, portanto, as possibilidades representacionais. A criança descobre a
possibilidade de produzir marcas, registros que podem significar coisas, evocar fatos,
pessoas e objetos, e mais, podem ser decodificados por outras pessoas. É o ingresso no
mundo da linguagem. Mas o que é falar? O que é internalizar os sistemas de
comunicação culturalmente articulados? O que significa dominar a escrita, ser capaz de
produzir imagens reconhecíveis no coletivo?
Ao possibilitar a vivência de questões como essas, o exercício do desenhar
entrecruza a expressão individual da criança com as construções de sentido no contexto
da cultura. Assim considerado, o ato de desenhar é individual e coletivo, tem marcas
espontâneas de experimentação, e ao mesmo tempo observa conjuntos normativos do
viver em sociedade.
Ao perceber-se diferenciado em relação ao meio em que se encontra, a
criança inicia a estruturação da representação gráfica da figura humana, cuja célula
básica é a forma arredondada, a cabeça, à qual são acrescentados braços, pernas, tronco.
Nesse processo, ganha registro toda informação descoberta e vivenciada pela criança
sobre o próprio corpo, em graus crescentes de complexidade. A esse respeito, Derdyk
(1990) comenta:

Do eu mesclado e mimetizado com a natureza, surge, aos poucos, um eu


mais fortalecido e comprometido com a noção de um corpo, forma finita,
que entra em relação com o mundo. O eu se diferencia das coisas. No
desenho, similarmente, uma forma existe na medida em que se diferencia
de outras formas (p. 107).

A figura humana – seu detalhamento, expressão, movimento, localização no


espaço e nas paisagens – vai tomando formas de representação cada vez mais ricas, tanto do
ponto de vista das informações que porta, quanto dos recursos de linguagem usados. Além
da estrutura corporal representada, as idéias de localização espacial, de movimento nesse
espaço, de identidades, vão tomando forma, bem como papéis sociais e temáticas gerais de
interesse para a criança e o adolescente, que envolvam esse estar no mundo.
Em síntese: a criança desenha, pinta, constrói, com o seu corpo, o seu
espaço de existência no mundo, em interação com ela mesma, com os outros e com o
meio, nas dinâmicas de construção de suas identidades.
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Desenho de Yasmin, 4 anos

Reitero, no conjunto de reflexões aqui proposto, que escolho não me ater às


discussões sobre os quantos modelos e quadros que tratam dos estágios de desenvolvimento
das representações gráficas elaboradas pelas crianças. Também escolho não estabelecer
relações entre os possíveis estágios do desenho e etapas do desenvolvimento cognitivo,
propostas por quantos estudiosos da área. Prefiro me aproximar dos complexos processos de
perguntas e buscas de respostas, nos quais o ato de desenhar tanto amplia as indagações,
quanto contribui para a busca de respostas que logo se abrem em novas indagações, no
contínuo confronto entre o sujeito e a sociedade, nos embates da cultura, da qual tomam
parte as visualidades que habitam o quotidiano de cada um. Entendendo que o ato de
desenhar, pela criança, integra as múltiplas aprendizagens das veredas de se fazer sujeito
social, nas dinâmicas de construção de sentidos da cultura.

O interesse pelos desenhos das crianças


O interesse pelos desenhos das crianças não tem muito mais que 100 anos. De
fato, ganhou espaço entre artistas, educadores, e outros profissionais, nas primeiras décadas
do século XX, a partir das influências dos estudos emergentes da psicanálise, da psicologia
afirmando-se como campo de estudos do comportamento humano. Pela vereda psicológica,
os desenhos eram vistos como janelas que poderiam possibilitar o acesso a conteúdos
emocionais das crianças, abrindo frentes diversas de uso e interpretação de suas
manifestações.
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Artistas modernistas também se interessaram pelo modo como as crianças


expressavam-se, desenhando ou fazendo uso de outros recursos. É célebre a frase de Pablo
Picasso, já na maturidade de seu percurso artístico: – “Precisei de uma vida inteira para
aprender a desenhar como as crianças...” Reconhecidamente, Max Ernst, Miró, Paul Klee,
dentre outros, encantavam-se com os traçados feitos por crianças, buscando exercitar
esse espírito, de diferentes modos, em suas obras. Não faltaram artistas modernistas que
tenham aberto espaço, em seus ateliers, para o trabalho com os pequenos, inspirando-se em
sua disposição para experimentar, descobrir, expressar-se... Como fez, por exemplo, Anita
Malfatti, na cena brasileira dos anos 30.
Tais motivações, aliadas ao ideário educacional da Escola Nova, que
reivindicava o deslocamento do foco, no processo de ensinar e aprender, do professor para o
aluno, forneceram as bases para propostas de ensino de arte, e nelas de desenho, orientadas
pela liberdade de expressão, pelo direito de manifestação espontânea da criança. No Brasil, o
Movimento das Escolinhas de Arte tem destaque como iniciativa nessa direção.
No ambiente escolar regular, por sua vez, o desenho marca presença há bem
mais tempo, mas sem a ênfase na expressão; ao contrário, prevalece a reprodução de
imagens, treino da mão, produção de formas geométricas, além da ilustração de outros
conteúdos, e adornos de eventos institucionais, dentre outras atividades.
Se de um lado, a educação escolar, marcadamente mais conservadora no tocante
à inserção do desenho em suas atividades, deixou como herança a concepção do desenho
como cópia, treino, reprodução, as experiências desenvolvidas em ambientes extra-escolares
– ateliers, escolinhas de arte, e outros – legaram os ideais da liberdade para expressar-se, do
desenho espontâneo, da inocência do traço infantil, bem como referencias ao conteúdo
psicológico dessa produção.
Mais recentemente, tem ganhado visibilidade a dimensão cultural do ato de
desenhar. O sujeito que desenha interpreta o que vê e age sobre o mundo produzindo signos,
marcas, sentidos. Nesses termos, visualidades, dentre as quais os desenhos, não são neutras,
inocentes, espontâneas: elas portam sentidos, refletem relações, tensões, expectativas... Os
desenhos das crianças, desde suas primeiras elaborações, também dialogam com seu meio,
estabelecendo relações de tensão, desafios, fazendo acordos, acolhendo normas, estruturando
linguagem.
Assim, supera-se a idéia de desenho espontâneo, na direção da noção de
produção que resulta das complexas relações entre o indivíduo e os contextos culturais em
que ele se manifesta. Em se tratando da educação infantil, há que se ter em conta as
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peculiaridades dos modos como as crianças estabelecem as relações entre as informações de


que dispõem sobre o mundo, como elaboram as sínteses, como explicam os fatos, a cada
etapa de suas aprendizagens, em constante transformação. Ao desenhar, a criança não está só
expressando tais processos, ela também os está elaborando, e neles articulando mais que
informações cognitivas e afetivas, também dados do meio sócio-cultural em que ela se
encontra.

Na escola, brincando de desenhar...

Em meados dos anos 90, eu lecionava na rede pública de ensino, em


Brasília, trabalhando com crianças de cinco e seis anos, além dos estudantes dos
primeiros anos do ensino fundamental, na faixa dos sete aos dez anos. A escola era
muito grande2. O acesso às salas de aula distribuídas por setores exigiam dos estudantes
boas caminhadas nas trocas de atividades, quando passavam, por exemplo, da aula na
Biblioteca à de Artes Plásticas. Essa caminhada parecia interminável sobretudo para os
estudantes menores, cuja estatura não permitia que vislumbrassem o final do pátio, por
trás de tantos obstáculos interpostos: bancos, jardins, objetos de arte, salas, salas, muitas
salas... Mas a aventura valia sempre a pena, e os caminhos pelo pátio traçavam desenhos
de conquistas. Quando chegavam à oficina onde eu os aguardava, as descobertas do
mundo transbordavam por todos os poros em alegria e entusiasmo.
Nesse período, as orientações institucionais para o planejamento das
atividades apontavam que deveríamos, dentre outros conteúdos, desenvolver os
conceitos relativos aos chamados elementos constituidores do desenho: ponto, linha,
textura, dentre outros. Vale notar que essa referência, ao lado das solicitações de se
incluir tópicos de História da Arte, significaram uma conquista em relação à década
anterior, quando os planejamentos das aulas de artes eram montados em torno de
atividades esvaziadas de sentido, reduzidas a exercícios repetitivos de recorte e
colagem, colagem com palitos, desenho livre, etc.

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Tratava-se de uma das Escolas Parque previstas no projeto de ensino concebido por Anísio Teixeira para
Brasília. No projeto original, cada Escola Parque deveria atender, diariamente, numa estrutura de
educação integral, aos estudantes de quatro Escolas Classe circunvizinhas, oferecendo aulas de Artes,
Artes Industriais, Biblioteca e Educação Física. Não estava previsto o atendimento a crianças da educação
infantil (na década de 60, denominada pré-escola, com atividades desenvolvidas nos Jardins de Infância),
mas do ensino fundamental (à época, denominado primário e ginásio). No decurso do tempo, não só não
foram construídas todas as Escolas Parque previstas, bem como sua organização e modo de atendimento
foram muito modificados. No período referido em meu relato, a escola onde eu trabalhava passou a
receber, também, crianças na faixa de 4 a 6 anos de idade (só posteriormente o ensino fundamental
incorporou a idade de 6 anos, ampliando sua duração para 9 anos).
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Por essa razão, não é difícil encontrar, nos diários escolares daquele período,
e em muitos ainda hoje, registros dos conteúdos ministrados, nos quais os professores
listam tópicos tais como ponto, linha, textura, ao lado de arte na pré-história, semana
de arte moderna, e outros, para crianças cuja experiência de vida não tinha muito mais
que a metade de uma década... As noções que tinham construído de tempo e duração,
não as ajudavam a projetar a imaginação muito além dessa temporalidade.
Além disso, em geral, os professores quase nunca avançavam muito além de
abordar esses conceitos de modo aligeirado, em atividades pouco estimulantes e
destituídas de significado. São bom exemplos as aulas em que as crianças deveriam
preencher desenhos colando bolinhas de papel crepom coloridas, ou cobrir formas com
pontos fazendo uso de canetas hidrocor. Muitas vezes, fazendo pesquisa de campo, ouvi
relatos dos pequenos aprendizes, quando eram submetidos a tarefas como essas,
queixando-se de cansaço nas mãozinhas.
No exercício de meu papel como professora, em especial professora de artes,
sempre tive muitas dúvidas quanto ao acolhimento dessas orientações, principalmente
pelas inquietações que me moviam sobre as aprendizagens que fizessem sentido para as
crianças, em seus modos de perceber, sentir e pensar o mundo, em seus contextos de
viver. Por essa razão, preferia brincar com algumas idéias, para construir possibilidades,
partindo de vivências das próprias crianças, na direção de ampliar a complexidade de
suas interpretações e formulações.
Ao iniciar conversas sobre os conteúdos que deveríamos desenvolver,
lembro-me do entusiasmo de algumas crianças, por exemplo, tentando definir o que lhes
sugeria a idéia de ponto: – “quando a gente se corta, o médico dá pontos para fechar o
machucado...”, ou linha: – “quando eu quero telefonar p’ro meu amigo, eu escuto no
telefone p’rá saber se tem linha...”
As idéias de ponto e linha que desfiávamos nessas conversas, fazendo
associações diversas, nos permitiam pensar em muitas coisas, elaborar idéias, propor
muitas brincadeiras... aprender...
Por vezes, imaginávamos que éramos pontos nos deslocando no espaço,
cumprindo trajetórias, deixando marcas, estabelecendo elos e relações com outros
pontos e trajetórias... A partir daí, eu pedia às crianças que, depois das aulas,
observassem os caminhos que elas percorriam entre os diversos lugares-pontos pelos
quais transitavam: a escola e a casa, a casa e o parque, o parque e a casa de um amigo, o
retorno para casa... E pedia, também, que observassem como cumpriam esses percursos:
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de carro, ônibus, a pé, de bicicleta. Que marcas cada um deixava pelo caminho? Que
paisagens abriam-se a cada passo? Quais cores mais lhes chamavam a atenção? Depois,
ouvíamos os relatos de cada sobre as impressões desses caminhos, as linhas com que
costurávamos nossos trajetos pelo mundo, fixando na memória retalhos de sensações,
emoções, pensamentos, idéias...
Muitas vezes, sentávamo-nos no chão, juntinhos, e olhávamos fotografias,
imagens diversas, que incluiam reproduções de obras de artistas, ou trabalhos de outros
estudantes da escola. Eles faziam muitos comentários, falavam de coisas que
lembravam vendo aquelas imagem; eventualmente eu lhes contava histórias ancoradas
naquilo que víamos...
Passávamos, então, às superfícies do chão, dos papéis, levando linhas a
passear com o auxílio de lápis, carvão, giz, barbantes, a recontar histórias, a refazer
percursos, limites, a montar mapas. E, pelos caminhos, as linhas iam parando para olhar,
“se admirar” com o que viam, em pausas por vezes breves, outras vezes mais
demoradas. A cada passo, uma pausa, um ponto, um laço... Às vezes, um escorregar
mais longo e prazeroso, noutras a linha ficava delgada, para depois se alargar, vestir-se
de outra cor, quantas vezes “se acabar” nas bordas de alguma superfície, à beira de
algum abismo...
As crianças de uma das turmas mais jovens acostumaram-se a trabalhar
debaixo das mesas e outros móveis, fazendo esconderijos, cavernas mágicas, cabanas,
casas, escolas... Reuniam-se em pequenos grupos, organizavam as carteiras de modo a
abrigarem-se confortavelmente durante sua produção, para a qual levavam consigo tudo
de que precisavam: papéis, lápis, tesouras, colas, tintas, caixas, tecidos, etc.
Trabalhavam secretamente, protegidas de quaisquer invasões que as pudessem ameaçar.
Por vezes uma ou outra criança saía, para fazer uma pergunta, mostrar um desenho em
processo, pedir algum objeto, estabelecer contato com outro grupo recolhido em outro
abrigo...
Ao final de certo tempo, a magia dos esconderijos cessava, e as crianças
começavam a se retirar. Traziam, consigo, suas produções. Nos sentávamos, novamente,
no grupo grande, para ver o que tinham feito. Seus poucos anos de vida lhes provia de
doses variáveis de paciência para esse e os demais exercícios; muitas vezes sua atenção
era rapidamente arrebatada por outros estímulos. A possibilidade de dispersão
espreitava nossas atividades. Mas, aos poucos, elas aprendiam a comparar seus
trabalhos com os trabalhos dos outros, a relacionar o que haviam feito com nossas
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conversas anteriores. Ou a explicitar outras relações. Falar sobre o que haviam feito era
sempre um exercício enriquecedor da própria produção, e aos poucos ampliava seu
repertório para dar sequência às aprendizagens.

Na escola, aprendendo... a copiar...

Nessa escola, as paredes transformavam-se em enormes painéis onde se


expunham muitos desenhos e pinturas de crianças, fotografias, e eventualmente
trabalhos de adultos – artistas, professores, professores-artistas... Mas esse não era, e
não tem sido o cenário que prevalece nas escolas regulares de ensino, dedicadas ao
início da escolarização, tampouco à educação infantil.
Os primeiros anos na escola estão repletos de apelos que pretendem
conquistar a atenção e a motivação dos pequenos frequentadores. Dentre esses, os
elementos visuais integram os ambientes, bem como os recursos metodológicos
adotados para a promoção das aprendizagens pretendidas.
Uma das marcas dessas visualidades é que, em sua maioria, são produzidas
por adultos cuja intenção é reproduzir traçados supostamente relacionados a um certo
gosto infantil... Nesse trabalho, adultos empenham-se em copiar modelos, tentando
reproduzir figuras, personagens, ambientes gráficos veiculados por meios de
comunicação, livros didáticos, indústria do entretenimento, ou mesmo reunidos em
arquivos escolares, disponíveis para esse fim. Alguns professores e funcionários
aperfeiçoam-se nos processos de fazer cópias e reproduções. Muitos orgulham-se disso.
É importante ressaltar que, raramente, desenhos de criança fazem parte
desses repertórios imagéticos.
Considerando-se que a principal missão da escola, desde os últimos anos da
educação infantil, ao início do ensino fundamental, seja iniciar as crianças no mundo da
palavra escrita, a utilização de imagens, ilustrações, exercícios de desenho, em auxílio
do processo de alfabetização, ganha versões as mais variadas, que vão de exercícios
para aumentar o controle do movimento da mão, a cartazes e ilustrações diversas que
ajudam a memorizar palavras, letras, sonoridades.
Descrevo, em seguida, um conjunto de episódios comuns, que acontecem
quotidianamente em muitas escolas. Os aqui descritos foram observados em campo,
com crianças de educação infantil sendo preparadas para a alfabetização.
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Episódio 1
A professora identifica, com os alunos, a letra M no alfabeto colocado acima do quadro
de giz. Depois, desenha a letra no quadro. Distribui um material impresso, no qual está
desenhada a letra M maiúscula e minúscula. Ela pede que os alunos cubram a linha da
letra com bolinhas de papel crepom colorido.

Episódio 2
A professora conversa com os alunos sobre as coisas que existem numa fazenda. Os
alunos contam histórias, fazem observações. Ela explica: – “nós vamos fazer um
trabalho que é colorir uma ilustração, para depois criarmos, juntos, uma historinha”.
Ela distribui uma folha com uma ilustração. – “Cada um vai olhar tudo o que tem aí no
desenho. Vão observar o que ‘tá acontecendo...” Um aluno comenta: – “o menino tá em
cima do boi...” Outro questiona: – “Tia, não é gado, não?” Ela explica: – “gado é
quando tem muitos bois e muitas vacas. Vocês vão colocar o nome de vocês.
Caprichem!”. A professora percorre as carteiras, observando os alunos trabalhando.
Pergunta a um deles: – “que cor que é a vaca?! Preto e branco?” O menino não
responde. Ela prossegue: – “conserta a cor dessa vaca, viu? Você já viu alguma vaca
azul?” O menino sorri timidamente. Outro colore o boi com a cor cinza: – “ninguém
lava ele...” e acrescenta pontinhos escuros usando a caneta hidrocor: – “é pulga”.
Coloca pontinhos na figura da menina sentada sobre o boi: – “ela pegou pulga porque
montou nele. Tem até uma que pulou lá em casa...”

Episódio 3
A professora fixa, no quadro de giz, o desenho de uma cesta com flores coladas. –“cada
um vai ganhar uma cestinha, vai pintar, vai recortar. Depois vão fazer aquelas
florzinhas para colar nela. Vocês é que vão fazer!”. Ensina a fazer a flor, desenhando
no quadro: – “faz uma bolinha, põe as pétalas em volta, e vai fazendo uma flor... pode
ser assim também...” Um menino pergunta: – “tia, posso fazer um monte de
laranjinha?” Ela responde: – “eu pedi para fazer laranjinha? É claro que não!”.
Distribui retalhos de papel colorido para as crianças fazerem as flores. Um menino
pergunta: – “ hoje é dia das mães?” A professora responde que não. Ele então continua:
– “então p’ra que é que eu vou levar isso p’ra casa?” Uma menina decide colar flores
naturais na cesta, em lugar das flores de papel. Para isso, chama a professora: – “tia, eu
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vou colar flor de verdade!” A professora responde: – “Não, não fica bom!”. A menina
desiste. Uma colega adota sua idéia, colando as flores no seu trabalho. Finalizando,
várias crianças colam as flores na cesta.

Desenhos de Marcela e Maiko, ambos com 6 anos

Episódio 4
A professora trouxe uma flor impressa para trabalhar com os alunos. – “Hoje nós vamos
pegar esta flor. Vocês vão pintar, com muito amor e carinho. Eu vou dar um palito de
picolé para vocês colarem e ser o caule, o cabinho da flor. Presta atenção. Nós temos
três folhas aqui para a flor. Vocês vão pintar as folhas, e vão colar as folhas desse
jeito: duas folhas na florzinha e outra no cabinho, no palito do picolé”. Desenha no
quadro para mostrar como eles devem colar as folhinhas, – “por trás das pétalas da
flor”. Continua a explicar: – “depois nós vamos aprender a música do jardim e vocês
vão balançar as flores. Mas para isso vocês vão ter que estar com ela pronta”. As
crianças começam a colorir. Inquietam-se durante a execução do trabalho, em parte pela
necessidade de troca de materiais, o que os leva a levantarem-se e caminharem pela
sala. Conversam entre si, comparam os desenhos. Muitas vezes, distraem-se com outros
assuntos. A atividade é interrompida pelo horário do lanche. Nem todas as crianças
concluem a flor. A professora não ensina a “música do jardim” para eles. Ao final da
aula, muitas flores são jogadas na lixeira da sala.
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Algumas questões podem ser levantadas a partir dos episódios descritos.


Inicialmente, vale observar que desenhos de crianças, em geral, diferem
substancialmente das ilustrações de livros destinados ao público infantil, de livros
didáticos, e também das coletâneas de desenhos pedagógicos que circulam nos
ambientes escolares. Estas ilustrações são desenhos de adultos que visam o público
infantil, com traço e estilos próprios.
Em geral, as imagens veiculadas nos ambientes escolares observados
tendem à simplificação do traço, uma estilização da forma, o que, contudo, não
subentende a busca de sua essencialidade visual. A simplificação e estilização da forma
observadas, muitas vezes, devem-se às interferências no traçado feitas por quem executa
a cópia, o que determina alterações na imagem entregue para as crianças, se comparada
com a imagem original, de que é copiada. Essas alterações acabam por criar um caráter
quase expressionista, a partir da deformação da imagem. Desse modo, a sua significação
fica condicionada às convenções estabelecidas em sala de aula entre professor e
crianças: determinada imagem significa determinada palavra. Finalmente, a baixa
qualidade quanto à programação visual e impressão dos desenhos impressos, em sua
maioria, tem sido superada com o uso dos novos recursos tecnológicos disponíveis para
professores, que contam com scanners, impressoras, além da possibilidade de busca de
imagens diversas na rede de computadores.
No tocante à escolha das figuras para serem reproduzidas, as questões
estéticas não tem relevância prioritária, em favor da funcionalidade das imagens. Muitas
vezes, as ilustrações de textos, os desenhos para serem coloridos, os cartazes são
trazidos ao ambiente de sala de aula para substituir a realidade, simulando a interação
do aluno com o concreto. Algumas professoras explicam que a utilização de desenhos
tem maior incidência no período que antecede e durante a alfabetização, por haver a
necessidade “de se trabalhar mais o concreto com o aluno”. Entenda-se: o “concreto”
por elas referido é a representação visual de coisas, cenas, ambientes... Ou seja, a idéia
de promover aprendizagens a partir da interação com a realidade, na relação com
objetos, pessoas, fatos, continua não sendo realizada, posto que o desenho,
independentemente de sua qualidade gráfica e estética (ou da falta dela) não substitui a
coisa desenhada: tão somente a representa visualmente.
Mas é importante notar que as crianças absorvem informações por meio da
observação e exploração ativas de seu meio, e do processamento contínuo do
conhecimento anteriormente organizado. E, afinal, visões de mundo não são
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comunicadas apenas nos textos e composições visuais das imagens, mas, sobretudo, nos
contextos culturais de interação comunicativa. Nos episódios descritos, é possível
constatar que as respostas das crianças às atividades com desenho reproduzido não são
marcadas pela passividade. Ao contrário, se algumas crianças mostram-se mais
disponíveis para observar as instruções da professora, outras estabelecem uma relação
mais ativa com os desenhos, alterando-lhe o traçado, descobrindo novas possibilidades
de execução. Mesmo quando não tem suas iniciativas aprovadas pela professora.
De toda sorte, a ênfase na cópia, na reprodução, redunda, quase sempre, em
atividades destituídas de sentido para as crianças. Para que fazer uma cesta com flores
se não é Dia das Mães? Essa pergunta permanece sem resposta. A lixeira fica cheia de
desenhos mal concluídos ao final da aula, e esse fato também não é trazido à pauta das
discussões sobre planejamento.
Perguntadas sobre se gostam ou não de desenhar, algumas crianças revelam,
timidamente, que gostam, mas em seguida afirmam não saber desenhar: – “Quem sabe,
mesmo, é a professora.” E, por considerarem que nunca conseguirão desenhar como a
professora, elas preferem apenas colorir os desenhos que recebem durante as aulas...
Ocorre que a professora também “não sabe desenhar”. Na verdade, ela é habilidosa
para copiar, ampliar, colorir, recortar, colar... Os materiais pedagógicos são preparados
por ela, cuidadosamente, por meio da cópia e reprodução, fazendo uso dos diversos
recursos técnico-tecnológicos disponibilizados, de acordo com o perfil sócio-cultural da
escola e da comunidade na qual está inserida: mimeógrafo, máquina fotocopiadora,
scanner, internet...
Os fluxos das visualidades nas escolas, portanto, desde a educação infantil,
apresentam-se carregados de sentidos, tensões, intenções... significam e orientam ações,
escolhas... Quase sempre, ensinam a não desenhar, a copiar... Quando assim, ensinam,
também, que o desenho das crianças “não é bom”... E, desde as atividades preparatórias
para a alfabetização, priorizam, majoritariamente, a especialização do movimento da
mão para o exercício da escrita...
Talvez a profusão com que as crianças pequenas costumam desenhar reflita
a urgência que elas pressentem, ante o esgotamento iminente do tempo de que dispõem
para desenhar tudo quanto estão em vias de descobrir e aprender... Chama a atenção
como essas mesmas crianças, tão rapidamente, em seus percursos escolares, perdem o
gosto por desenhar...
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Da educação infantil aos primeiros anos de escolarização, em algum lugar, o


prazer de desenhar fica esquecido, em favor da internalização de todas as normas
escolares e suas prioridades na agenda das aprendizagens: ler, escrever, contar...
Perde-se de vista, nesse processo, que “não se alfabetiza fazendo apenas as
crianças juntarem as letras. Há uma alfabetização cultural sem a qual a letra pouco
significa. A leitura social, cultural e estética do meio ambiente vai dar sentido ao mundo
da leitura verbal” (BARBOSA, 1996, pp. 26-27).

Do desenho-criança ao traço adestrado...

Do gesto amplo que traça linhas, à mão apoiada, que escreve palavras, no
processo de alfabetização, pode ocorrer um esvaziamento do ato de desenhar. A esse
respeito, Derdyk, muito pertinentemente, observa:

O sistema educacional geralmente dá uma grande ênfase ao mundo da


palavra. Dependendo da estratégia utilizada para a aquisição da escrita,
existe um esvaziamento da linguagem gráfica como possibilidade
expressiva e representativa. A aprendizagem escrita canaliza a descarga
energética e expressiva da atitude gráfica que o desenho carrega para uma
noção regulada de controle técnico na utilização do instrumento. A
manifestação gráfica fica à margem. (1989, p. 103)

Em visitas a muitas escolas, foi possível constatar que, em geral, se


privilegiam atividades de coordenação motora e visomotora no período anterior à
alfabetização, quando são adotados exercícios que pedem o preenchimento de linhas
pontilhadas e espaços delimitados, observando-se os limites, e apresentam figuras para
serem completadas. Tais exercícios, baseados em desenhos reproduzidos, preparam as
crianças para serem alfabetizadas. Nesse processo, as imagens copiadas auxiliam no
processo de aprendizagem da escrita.
Imagens para serem copiadas... palavras para serem treinadas... frases para
serem montadas... linhas para serem trilhadas...
A prontidão, entendida como um conjunto de habilidades mínimas
necessárias para que o aluno aprenda a ler e a escrever, é um conceito criticado por
vários estudiosos, que denunciam tais condições como artificialmente impostas às
crianças. Ferreiro & Teberosky (1985), por exemplo, argumentam que a criança, em
diferentes estágios, desenvolve diferentes hipóteses sobre o ato de ler e escrever. Cabe
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ao professor reconhecer tais hipóteses e estimular a criança a avançar na direção da


escrita convencional, culturalmente produzida e socialmente aceita, e da leitura. O que
significa dizer que não há um conjunto específico de habilidades que capacite a criança
a ser alfabetizada, mas, em cada momento do seu desenvolvimento, a criança dispõe de
um conjunto de esquemas de pensamento a partir do qual o professor deve propor suas
estratégias de ensino.

Exercício de alfabetização feito por criança de 6 anos

O ensino organizado em torno do ato de copiar não leva em conta o potencial


cognitivo e criativo, nem os referenciais socioculturais das crianças: “Fornecer um „modelo‟
para ser copiado exclui a possibilidade de a criança selecionar seus interesses e necessidades
reais. No ato da seleção está inclusa uma leitura da realidade, que, em si, é um exercício
reflexivo e criativo”. (DERDYK, 1989, P. 107).
O que difere substancialmente dos processos de imitação nas relações de
ensinar e aprender. Na imitação, a criança escolhe seus assuntos, para deles se apropriar,
por meio da representação. Ao imitar, a criança elabora imagens mentais, para
reapresentá-las sob a forma de linguagem, ampliando seu repertório.
Na imitação, portanto, a criança se apropria daquilo que seja de sua escolha,
imprimindo-lhe seu próprio traço. No ato da cópia, ao contrário, ocorre um
distanciamento de si mesma, donde o esvaziamento de significado.
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A formação dos professores que atuam na Educação Infantil

Essa discussão requer que se traga à pauta duas questões fundamentais. A


primeira: qual a formação dos professores que atuam na educação infantil, e como as
visualidades estão nela inseridas? A segunda: como as questões relativas à educação
infantil integram a formação dos professores de artes?
É necessário esclarecer que os grupos de crianças menores de 7 anos terem
sido atendidos por mim consistiu situação de excessão, devida, tão somente, à
especificidade da Escola Parque, onde professores licenciados em artes, educação física,
letras, ensinam crianças de início de escolarização e, esporadicamente, da educação
infantil. De acordo com a legislação vigente, é no segundo segmento do ensino
fundamental que professores com essa formação devem atuar. Na prática, há muita
carência de professores com formação específica para essa demanda, em especial na
área de artes, o que justifica, muitas vezes, desvios de atuação, com professores lotados
para ministrar aulas em campos do conhecimento para os quais não tem formação, ou
cuja formação é precária. Tal quadro precisa ser modificado.
Já as crianças menores tem aulas com professores cuja formação deveria ser
feita nos cursos de Pedagogia, ou Normal Superior. Em geral, nos centros de formação
desses professores, as orientações quanto à inserção do desenho e de outros meios
visuais de comunicação no ensino não são restritas à área de artes, que, em geral, tem
espaços mais ou menos tímidos nos currículos. Diferentes concepções e orientações
sobre o trabalho com visualidades são veiculadas em um conjunto variável de
disciplinas, formado principalmente pelas didáticas. Nas disciplinas voltadas para os
recursos metodológicos, são tratados nos chamados materiais de ensino aprendizagem,
que evolvem o desenho de letras, a utilização de cartazes, ilustrações, estampas, rótulos,
maquetes e desenhos reproduzidos para serem utilizados como suporte para diversos
conteúdos escolares.
Ainda que disciplinas voltadas para o ensino de arte sejam previstas, e
priorizem fundamentos e aspectos metodológicos da área para o início de escolarização,
geralmente elas não chegam a integrar o chamado núcleo forte da formação, sendo
consideradas periféricas, ou de apoio.
Na outra via da questão, professores de arte, salvo excessões, não atuam na
educação infantil e início de escolarização. Esse fato acaba por gerar uma espécie de
desinteresse entre arte-educadores para aprofundar questões relativas a esse segmento
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do ensino. A mais, em sua formação, a prioridade é dada aos aspectos do ensino de arte
de pré-adolescentes e adolescentes, faixa etária que frequenta o segundo segmento do
ensino fundamental e o ensino médio. De modo que é pouca a familiaridade desses
professores com as especificidades do trabalho com as crianças menores, sobretudo da
educação infantil, seja para atuar com elas, seja para formar professores que atuarão
nesse segmento.
Esse descompasso tem repercussões diretas nos modos como o desenho e as
visualidades em geral integram as atividades que precedem e durante o processo de
alfabetização, bem como nos argumentos que sustentam essas orientações.
Tais questões precisam ser pensadas, portanto, também a partir das relações
entre a formação inicial e continuada dos professores que atuam com educação infantil,
para a qual professores e pesquisadores na área do ensino de artes e cultura visual
podem contribuir de modo efetivo.

Pelo direito de brincar, aprender, e se fazer agente de cultura ativo desde a


infância
Esses fatores entrecruzados, somados a outros que aqui não foram
considerados, por certo, criam as condições nas quais as crianças tendem a abandonar,
gradativamente, o exercício de experimentar e construir modos de representações por
meio dos desenhos.
No entanto, talvez caiba a pergunta: é mesmo importante para a criança que
seja assegurado o espaço do desenhar?
A esse respeito, é preciso notar que fala, desenho e escrita são sistemas de
representação distintos, que dialogam, complementando-se, apesar das tensões que
possam estabelecer entre si. O exercício de cada um deles envolve estruturas cognitivas,
capacidade de representação, imaginação, sensibilidade, criação, e articulação da
experiência pessoal com a coletiva, no âmbito da cultura.
Não se pode perder de vista, também, que uma das características mais
marcantes da cultura contemporânea está no aumento sem precedentes de circulação de
informações visuais, bem como de acesso a equipamentos e tencologias que ampliam a
um número cada vez maior de pessoas a possibilidade de produzir imagens as mais
variadas. Atualmente, é cada vez mais precoce o acesso das crianças a essas tecnologias,
em câmeras fotográficas e de vídeo, telefones celulares, computadores, jogos
eletrônicos, dentre outras novidades que chegam ao mercado a cada dia.
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Nesse ambiente, a produção imagética ganha outras dimensões e códigos,


passando do traçado sobre superfícies, das marcas deixadas pelo gesto, à operação de
equipamentos que respondem aos comandos digitalmente.
Ora, se à escola cabe parte significativa da formação de crianças e jovens
para sua inserção ativa, criativa, nas teias das relações sociais, sem perder de vistas suas
identidades sempre em construção, e se aos centros que trabalham com educação
infantil cabe promover a passagem desde o ambiente familiar, doméstico, em direção ao
mundo mais amplo, para a criança, então essas questões não podem deixar de
comparecer de modo efetivo à pauta das reflexões, dos planejamentos, dos processos de
ensinar e aprender deflagrados.
Somos todos responsáveis, sim, em alguma medida, por assegurar aos
pequeninos o direito de brincar, aprender, produzir sentidos no decurso de sua inserção
progressiva na complexa malha das relações sociais e construções culturais. Desse
processo, o desenhar, compreendido de modo amplo, é parte inalienável, e seu espaço
deve ser preservado em todo o processo de escolarização, desde a educação infantil.
Como condição para que possamos afirmar, sem sustos, que sim, toda
criança desenha!...

Referência Bibliográfica

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996.
DERDYK, Edith (1989). Formas de pensar o desenho. Série Pensamento e Ação no
Magistério. São Paulo: Editora Scipione.
(1990). O desenho da figura humana. Série Pensamento e Ação no Magistério.
São Paulo: Editora Scipione.
FERREIRO, Emília, e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1985.
LAPIERRE & AUCOUTURIER (1986) A simbologia do movimento. Porto Alegre: Artes
Médicas.
LOWENFELD, V. & BRITTAIN, W. L. (1977). Desenvolvimento da capacidade
criadora. São Paulo: Mestre Jou.
PILLAR, Analice Dutra (1990). Fazendo artes na alfabetização. Porto Alegre: Kuarup.
____ (1996). Desenho e construção de conhecimento na criança. Porto Alegre: Artes
Médicas.
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Para citar este texto:


MARTINS, Alice Fátima. Toda criança desenha... Toda criança desenha?!. In:
MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene. (Org.). Cultura Visual e Infância. Santa
Maria: Editora UFSM, 2010.

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