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Doutora em Sociologia (UnB), Mestre em Educação (UnB), Arte Educadora. Docente permanente do
Programa de Pós Graduação em Cultura Visual (FAV/UFG). Atualmente desenvolve projeto de pesquisa
no Programa de Pós Doutorado em Estudos Culturais (PACC/FCC/UFRJ).
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fazer uso de algum instrumento que registre o movimento do seu corpo tem sabor e
valor inestimáveis: batons, canetas, lápis, alimentos sobre superfícies diversas abrem
campo para experimentações as mais diversificadas, quantas vezes inesperadas. O
prazer gestual na produção de marcas é fonte de grande motivação para a criança
pequena que começa a desenhar. O gesto da mão que traça inicia-se no corpo todo,
envolvido no ato de expressar-se no desenho. Essa conquista ocorre quando a
linguagem verbal também está sendo descoberta e, diariamente, um grande número de
palavras e estruturas frasais são incorporadas ao repertório em franca expansão.
Desenhar e falar são ações que possibilitam o estabelecimento de correspondências e
complementaridades: “A ação gráfica no papel sugere figuras. A palavra representa o objeto,
a pessoa, o fato” (DERDYK, 1989, p. 97).
As primeiras manifestações gráficas são rabiscos aos olhos do adulto.
Lowenfeld & Brittain (1977) denominam esse como o estágio das garatujas. Pillar
(1996), com base nos estudos de Luquet e Gardner, refere-se a esse desenhar aleatório
como atividade motora não simbólica. Em outras palavras, o desenho é entendido como
um jogo em que a criança expressa gestos motores e descobertas perceptivas, sem o
necessário compromisso com o registro ou a comunicação com o outro.
coordenar as complexas relações entre o traçado que vê, o traçado que pretende, a ação
da mão e o movimento que produz o desenho.
Aos poucos, os rabiscos se modificam, incorporando intencionalidades,
sentidos, ampliando, portanto, as possibilidades representacionais. A criança descobre a
possibilidade de produzir marcas, registros que podem significar coisas, evocar fatos,
pessoas e objetos, e mais, podem ser decodificados por outras pessoas. É o ingresso no
mundo da linguagem. Mas o que é falar? O que é internalizar os sistemas de
comunicação culturalmente articulados? O que significa dominar a escrita, ser capaz de
produzir imagens reconhecíveis no coletivo?
Ao possibilitar a vivência de questões como essas, o exercício do desenhar
entrecruza a expressão individual da criança com as construções de sentido no contexto
da cultura. Assim considerado, o ato de desenhar é individual e coletivo, tem marcas
espontâneas de experimentação, e ao mesmo tempo observa conjuntos normativos do
viver em sociedade.
Ao perceber-se diferenciado em relação ao meio em que se encontra, a
criança inicia a estruturação da representação gráfica da figura humana, cuja célula
básica é a forma arredondada, a cabeça, à qual são acrescentados braços, pernas, tronco.
Nesse processo, ganha registro toda informação descoberta e vivenciada pela criança
sobre o próprio corpo, em graus crescentes de complexidade. A esse respeito, Derdyk
(1990) comenta:
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Tratava-se de uma das Escolas Parque previstas no projeto de ensino concebido por Anísio Teixeira para
Brasília. No projeto original, cada Escola Parque deveria atender, diariamente, numa estrutura de
educação integral, aos estudantes de quatro Escolas Classe circunvizinhas, oferecendo aulas de Artes,
Artes Industriais, Biblioteca e Educação Física. Não estava previsto o atendimento a crianças da educação
infantil (na década de 60, denominada pré-escola, com atividades desenvolvidas nos Jardins de Infância),
mas do ensino fundamental (à época, denominado primário e ginásio). No decurso do tempo, não só não
foram construídas todas as Escolas Parque previstas, bem como sua organização e modo de atendimento
foram muito modificados. No período referido em meu relato, a escola onde eu trabalhava passou a
receber, também, crianças na faixa de 4 a 6 anos de idade (só posteriormente o ensino fundamental
incorporou a idade de 6 anos, ampliando sua duração para 9 anos).
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Por essa razão, não é difícil encontrar, nos diários escolares daquele período,
e em muitos ainda hoje, registros dos conteúdos ministrados, nos quais os professores
listam tópicos tais como ponto, linha, textura, ao lado de arte na pré-história, semana
de arte moderna, e outros, para crianças cuja experiência de vida não tinha muito mais
que a metade de uma década... As noções que tinham construído de tempo e duração,
não as ajudavam a projetar a imaginação muito além dessa temporalidade.
Além disso, em geral, os professores quase nunca avançavam muito além de
abordar esses conceitos de modo aligeirado, em atividades pouco estimulantes e
destituídas de significado. São bom exemplos as aulas em que as crianças deveriam
preencher desenhos colando bolinhas de papel crepom coloridas, ou cobrir formas com
pontos fazendo uso de canetas hidrocor. Muitas vezes, fazendo pesquisa de campo, ouvi
relatos dos pequenos aprendizes, quando eram submetidos a tarefas como essas,
queixando-se de cansaço nas mãozinhas.
No exercício de meu papel como professora, em especial professora de artes,
sempre tive muitas dúvidas quanto ao acolhimento dessas orientações, principalmente
pelas inquietações que me moviam sobre as aprendizagens que fizessem sentido para as
crianças, em seus modos de perceber, sentir e pensar o mundo, em seus contextos de
viver. Por essa razão, preferia brincar com algumas idéias, para construir possibilidades,
partindo de vivências das próprias crianças, na direção de ampliar a complexidade de
suas interpretações e formulações.
Ao iniciar conversas sobre os conteúdos que deveríamos desenvolver,
lembro-me do entusiasmo de algumas crianças, por exemplo, tentando definir o que lhes
sugeria a idéia de ponto: – “quando a gente se corta, o médico dá pontos para fechar o
machucado...”, ou linha: – “quando eu quero telefonar p’ro meu amigo, eu escuto no
telefone p’rá saber se tem linha...”
As idéias de ponto e linha que desfiávamos nessas conversas, fazendo
associações diversas, nos permitiam pensar em muitas coisas, elaborar idéias, propor
muitas brincadeiras... aprender...
Por vezes, imaginávamos que éramos pontos nos deslocando no espaço,
cumprindo trajetórias, deixando marcas, estabelecendo elos e relações com outros
pontos e trajetórias... A partir daí, eu pedia às crianças que, depois das aulas,
observassem os caminhos que elas percorriam entre os diversos lugares-pontos pelos
quais transitavam: a escola e a casa, a casa e o parque, o parque e a casa de um amigo, o
retorno para casa... E pedia, também, que observassem como cumpriam esses percursos:
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de carro, ônibus, a pé, de bicicleta. Que marcas cada um deixava pelo caminho? Que
paisagens abriam-se a cada passo? Quais cores mais lhes chamavam a atenção? Depois,
ouvíamos os relatos de cada sobre as impressões desses caminhos, as linhas com que
costurávamos nossos trajetos pelo mundo, fixando na memória retalhos de sensações,
emoções, pensamentos, idéias...
Muitas vezes, sentávamo-nos no chão, juntinhos, e olhávamos fotografias,
imagens diversas, que incluiam reproduções de obras de artistas, ou trabalhos de outros
estudantes da escola. Eles faziam muitos comentários, falavam de coisas que
lembravam vendo aquelas imagem; eventualmente eu lhes contava histórias ancoradas
naquilo que víamos...
Passávamos, então, às superfícies do chão, dos papéis, levando linhas a
passear com o auxílio de lápis, carvão, giz, barbantes, a recontar histórias, a refazer
percursos, limites, a montar mapas. E, pelos caminhos, as linhas iam parando para olhar,
“se admirar” com o que viam, em pausas por vezes breves, outras vezes mais
demoradas. A cada passo, uma pausa, um ponto, um laço... Às vezes, um escorregar
mais longo e prazeroso, noutras a linha ficava delgada, para depois se alargar, vestir-se
de outra cor, quantas vezes “se acabar” nas bordas de alguma superfície, à beira de
algum abismo...
As crianças de uma das turmas mais jovens acostumaram-se a trabalhar
debaixo das mesas e outros móveis, fazendo esconderijos, cavernas mágicas, cabanas,
casas, escolas... Reuniam-se em pequenos grupos, organizavam as carteiras de modo a
abrigarem-se confortavelmente durante sua produção, para a qual levavam consigo tudo
de que precisavam: papéis, lápis, tesouras, colas, tintas, caixas, tecidos, etc.
Trabalhavam secretamente, protegidas de quaisquer invasões que as pudessem ameaçar.
Por vezes uma ou outra criança saía, para fazer uma pergunta, mostrar um desenho em
processo, pedir algum objeto, estabelecer contato com outro grupo recolhido em outro
abrigo...
Ao final de certo tempo, a magia dos esconderijos cessava, e as crianças
começavam a se retirar. Traziam, consigo, suas produções. Nos sentávamos, novamente,
no grupo grande, para ver o que tinham feito. Seus poucos anos de vida lhes provia de
doses variáveis de paciência para esse e os demais exercícios; muitas vezes sua atenção
era rapidamente arrebatada por outros estímulos. A possibilidade de dispersão
espreitava nossas atividades. Mas, aos poucos, elas aprendiam a comparar seus
trabalhos com os trabalhos dos outros, a relacionar o que haviam feito com nossas
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conversas anteriores. Ou a explicitar outras relações. Falar sobre o que haviam feito era
sempre um exercício enriquecedor da própria produção, e aos poucos ampliava seu
repertório para dar sequência às aprendizagens.
Episódio 1
A professora identifica, com os alunos, a letra M no alfabeto colocado acima do quadro
de giz. Depois, desenha a letra no quadro. Distribui um material impresso, no qual está
desenhada a letra M maiúscula e minúscula. Ela pede que os alunos cubram a linha da
letra com bolinhas de papel crepom colorido.
Episódio 2
A professora conversa com os alunos sobre as coisas que existem numa fazenda. Os
alunos contam histórias, fazem observações. Ela explica: – “nós vamos fazer um
trabalho que é colorir uma ilustração, para depois criarmos, juntos, uma historinha”.
Ela distribui uma folha com uma ilustração. – “Cada um vai olhar tudo o que tem aí no
desenho. Vão observar o que ‘tá acontecendo...” Um aluno comenta: – “o menino tá em
cima do boi...” Outro questiona: – “Tia, não é gado, não?” Ela explica: – “gado é
quando tem muitos bois e muitas vacas. Vocês vão colocar o nome de vocês.
Caprichem!”. A professora percorre as carteiras, observando os alunos trabalhando.
Pergunta a um deles: – “que cor que é a vaca?! Preto e branco?” O menino não
responde. Ela prossegue: – “conserta a cor dessa vaca, viu? Você já viu alguma vaca
azul?” O menino sorri timidamente. Outro colore o boi com a cor cinza: – “ninguém
lava ele...” e acrescenta pontinhos escuros usando a caneta hidrocor: – “é pulga”.
Coloca pontinhos na figura da menina sentada sobre o boi: – “ela pegou pulga porque
montou nele. Tem até uma que pulou lá em casa...”
Episódio 3
A professora fixa, no quadro de giz, o desenho de uma cesta com flores coladas. –“cada
um vai ganhar uma cestinha, vai pintar, vai recortar. Depois vão fazer aquelas
florzinhas para colar nela. Vocês é que vão fazer!”. Ensina a fazer a flor, desenhando
no quadro: – “faz uma bolinha, põe as pétalas em volta, e vai fazendo uma flor... pode
ser assim também...” Um menino pergunta: – “tia, posso fazer um monte de
laranjinha?” Ela responde: – “eu pedi para fazer laranjinha? É claro que não!”.
Distribui retalhos de papel colorido para as crianças fazerem as flores. Um menino
pergunta: – “ hoje é dia das mães?” A professora responde que não. Ele então continua:
– “então p’ra que é que eu vou levar isso p’ra casa?” Uma menina decide colar flores
naturais na cesta, em lugar das flores de papel. Para isso, chama a professora: – “tia, eu
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vou colar flor de verdade!” A professora responde: – “Não, não fica bom!”. A menina
desiste. Uma colega adota sua idéia, colando as flores no seu trabalho. Finalizando,
várias crianças colam as flores na cesta.
Episódio 4
A professora trouxe uma flor impressa para trabalhar com os alunos. – “Hoje nós vamos
pegar esta flor. Vocês vão pintar, com muito amor e carinho. Eu vou dar um palito de
picolé para vocês colarem e ser o caule, o cabinho da flor. Presta atenção. Nós temos
três folhas aqui para a flor. Vocês vão pintar as folhas, e vão colar as folhas desse
jeito: duas folhas na florzinha e outra no cabinho, no palito do picolé”. Desenha no
quadro para mostrar como eles devem colar as folhinhas, – “por trás das pétalas da
flor”. Continua a explicar: – “depois nós vamos aprender a música do jardim e vocês
vão balançar as flores. Mas para isso vocês vão ter que estar com ela pronta”. As
crianças começam a colorir. Inquietam-se durante a execução do trabalho, em parte pela
necessidade de troca de materiais, o que os leva a levantarem-se e caminharem pela
sala. Conversam entre si, comparam os desenhos. Muitas vezes, distraem-se com outros
assuntos. A atividade é interrompida pelo horário do lanche. Nem todas as crianças
concluem a flor. A professora não ensina a “música do jardim” para eles. Ao final da
aula, muitas flores são jogadas na lixeira da sala.
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comunicadas apenas nos textos e composições visuais das imagens, mas, sobretudo, nos
contextos culturais de interação comunicativa. Nos episódios descritos, é possível
constatar que as respostas das crianças às atividades com desenho reproduzido não são
marcadas pela passividade. Ao contrário, se algumas crianças mostram-se mais
disponíveis para observar as instruções da professora, outras estabelecem uma relação
mais ativa com os desenhos, alterando-lhe o traçado, descobrindo novas possibilidades
de execução. Mesmo quando não tem suas iniciativas aprovadas pela professora.
De toda sorte, a ênfase na cópia, na reprodução, redunda, quase sempre, em
atividades destituídas de sentido para as crianças. Para que fazer uma cesta com flores
se não é Dia das Mães? Essa pergunta permanece sem resposta. A lixeira fica cheia de
desenhos mal concluídos ao final da aula, e esse fato também não é trazido à pauta das
discussões sobre planejamento.
Perguntadas sobre se gostam ou não de desenhar, algumas crianças revelam,
timidamente, que gostam, mas em seguida afirmam não saber desenhar: – “Quem sabe,
mesmo, é a professora.” E, por considerarem que nunca conseguirão desenhar como a
professora, elas preferem apenas colorir os desenhos que recebem durante as aulas...
Ocorre que a professora também “não sabe desenhar”. Na verdade, ela é habilidosa
para copiar, ampliar, colorir, recortar, colar... Os materiais pedagógicos são preparados
por ela, cuidadosamente, por meio da cópia e reprodução, fazendo uso dos diversos
recursos técnico-tecnológicos disponibilizados, de acordo com o perfil sócio-cultural da
escola e da comunidade na qual está inserida: mimeógrafo, máquina fotocopiadora,
scanner, internet...
Os fluxos das visualidades nas escolas, portanto, desde a educação infantil,
apresentam-se carregados de sentidos, tensões, intenções... significam e orientam ações,
escolhas... Quase sempre, ensinam a não desenhar, a copiar... Quando assim, ensinam,
também, que o desenho das crianças “não é bom”... E, desde as atividades preparatórias
para a alfabetização, priorizam, majoritariamente, a especialização do movimento da
mão para o exercício da escrita...
Talvez a profusão com que as crianças pequenas costumam desenhar reflita
a urgência que elas pressentem, ante o esgotamento iminente do tempo de que dispõem
para desenhar tudo quanto estão em vias de descobrir e aprender... Chama a atenção
como essas mesmas crianças, tão rapidamente, em seus percursos escolares, perdem o
gosto por desenhar...
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Do gesto amplo que traça linhas, à mão apoiada, que escreve palavras, no
processo de alfabetização, pode ocorrer um esvaziamento do ato de desenhar. A esse
respeito, Derdyk, muito pertinentemente, observa:
do ensino. A mais, em sua formação, a prioridade é dada aos aspectos do ensino de arte
de pré-adolescentes e adolescentes, faixa etária que frequenta o segundo segmento do
ensino fundamental e o ensino médio. De modo que é pouca a familiaridade desses
professores com as especificidades do trabalho com as crianças menores, sobretudo da
educação infantil, seja para atuar com elas, seja para formar professores que atuarão
nesse segmento.
Esse descompasso tem repercussões diretas nos modos como o desenho e as
visualidades em geral integram as atividades que precedem e durante o processo de
alfabetização, bem como nos argumentos que sustentam essas orientações.
Tais questões precisam ser pensadas, portanto, também a partir das relações
entre a formação inicial e continuada dos professores que atuam com educação infantil,
para a qual professores e pesquisadores na área do ensino de artes e cultura visual
podem contribuir de modo efetivo.
Referência Bibliográfica
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996.
DERDYK, Edith (1989). Formas de pensar o desenho. Série Pensamento e Ação no
Magistério. São Paulo: Editora Scipione.
(1990). O desenho da figura humana. Série Pensamento e Ação no Magistério.
São Paulo: Editora Scipione.
FERREIRO, Emília, e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1985.
LAPIERRE & AUCOUTURIER (1986) A simbologia do movimento. Porto Alegre: Artes
Médicas.
LOWENFELD, V. & BRITTAIN, W. L. (1977). Desenvolvimento da capacidade
criadora. São Paulo: Mestre Jou.
PILLAR, Analice Dutra (1990). Fazendo artes na alfabetização. Porto Alegre: Kuarup.
____ (1996). Desenho e construção de conhecimento na criança. Porto Alegre: Artes
Médicas.
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